P/1 – Boa tarde, senhor José.
R – Boa tarde.
P/1 – Muito obrigada pelo senhor ter vindo. Eu queria começar essa nossa conversa com o senhor dizendo para a gente o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – José Francisco das Neves. Eu morei em Jaboatão, na Rua Nara Lúcia, no número 40 B, no Centro de Jaboatão.
P/2 – O senhor nasceu onde, em que cidade?
R – Nasci em Palmares, na cidade de Palmares.
P/2 – Em que dia?
R – Eu nasci no dia 20 de fevereiro de 1936.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – Manoel Francisco das Neves, e o nome da minha mãe também, né?
P/1 – Isso.
R – Alzira Correia das Neves.
P/1 – E o senhor sabe o que eles faziam?
R – Meu pai trabalhava... Não tinha emprego certo não. Trabalhava num canto e no outro, só fazendo bico, essas coisas, sabe? E a minha mãe não trabalhava, ele fazia a louça, morava em engenho.
P/2 – Seu pai trabalhava em engenho, é isso?
R – É, no engenho. Meu pai fazia bico, trabalhava para um e para o outro, e até eu trabalhava com ele. Eu cortei cana, trabalhei puxando gado, puxando, boi, fiz aceiro de mata, cavei valeta, tirei conta. Era muito pequeno e trabalhava para o meu pai, já nessa época. A gente era muito pobre e morava em uma casinha caindo os pedacinhos, a gente dormia em cama de vara, lá tinha uns colchões que o pai fazia de capim para a gente se deitar. A gente era muito pobre nesse tempo. Um padrinho meu, que me batizou, foi quem me colocou na escola para eu estudar. Estudava na marra mesmo. Eu fiz quatro anos de primário a pulso. Mas estes quatro anos primários que eu fiz, valeu a pena, porque muitos que tem o ginasial hoje, que a gente encontra, eu faço melhor dos que tem por aí, com estudo avançado. Eu fiz um curso muito bom.
P/1 – E como é que era essa escola, que o seu padrinho o levou?
R – Era a escola da Prefeitura,...
Continuar leituraP/1 – Boa tarde, senhor José.
R – Boa tarde.
P/1 – Muito obrigada pelo senhor ter vindo. Eu queria começar essa nossa conversa com o senhor dizendo para a gente o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – José Francisco das Neves. Eu morei em Jaboatão, na Rua Nara Lúcia, no número 40 B, no Centro de Jaboatão.
P/2 – O senhor nasceu onde, em que cidade?
R – Nasci em Palmares, na cidade de Palmares.
P/2 – Em que dia?
R – Eu nasci no dia 20 de fevereiro de 1936.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – Manoel Francisco das Neves, e o nome da minha mãe também, né?
P/1 – Isso.
R – Alzira Correia das Neves.
P/1 – E o senhor sabe o que eles faziam?
R – Meu pai trabalhava... Não tinha emprego certo não. Trabalhava num canto e no outro, só fazendo bico, essas coisas, sabe? E a minha mãe não trabalhava, ele fazia a louça, morava em engenho.
P/2 – Seu pai trabalhava em engenho, é isso?
R – É, no engenho. Meu pai fazia bico, trabalhava para um e para o outro, e até eu trabalhava com ele. Eu cortei cana, trabalhei puxando gado, puxando, boi, fiz aceiro de mata, cavei valeta, tirei conta. Era muito pequeno e trabalhava para o meu pai, já nessa época. A gente era muito pobre e morava em uma casinha caindo os pedacinhos, a gente dormia em cama de vara, lá tinha uns colchões que o pai fazia de capim para a gente se deitar. A gente era muito pobre nesse tempo. Um padrinho meu, que me batizou, foi quem me colocou na escola para eu estudar. Estudava na marra mesmo. Eu fiz quatro anos de primário a pulso. Mas estes quatro anos primários que eu fiz, valeu a pena, porque muitos que tem o ginasial hoje, que a gente encontra, eu faço melhor dos que tem por aí, com estudo avançado. Eu fiz um curso muito bom.
P/1 – E como é que era essa escola, que o seu padrinho o levou?
R – Era a escola da Prefeitura, sabe? Estudava, assim, a escola era da Prefeitura, mas era na Rede Ferroviária. Meu padrinho era ferroviário.
P/1 – E o que o seu padrinho fazia na Rede?
R – Ele era caldeireiro.
P/1 – Caldeireiro?
R – Era, ele foi quem me batizou, ajudava muito a gente em casa, a minha mãe, o meu pai. Muitas vezes fazia feira, levava para gente tudinho, comprava as coisas. Inclusive a gente era muito pobre, meu pai vivia de tirar contas, essas coisas.
P/2 – O que era tirar contas?
R – Era limpar cana, aquele negócio, limpando canas.
P/2 – E isso chama tirar contas, então?
R – É, tirar conta.
P/2 – E ele trabalhava em vários engenhos?
R – Em vários engenhos, ele e eu, muito pequeno e trabalhando, com 12 anos já trabalhava.
P/2 – Era só o senhor de filho?
R – Muitos filhos. Na faixa de uns 14 irmãos.
P/1 – Ele ia mais o senhor, ou mais alguns outros?
R- Sim, iam meus irmãos também, tudo trabalhava lá, cortava cana, fazia de tudo. A gente fazia isso tudo com ele. A gente nasceu trabalhando, sabe? Trabalhador.
P/1 – E qual era o nome do seu padrinho?
R – Era Afonso José da Silva.
P/1 – O senhor pode contar para nós, aqui, um pouquinho − porque essa gravação vai ficar para a história −, o que fazia um caldeireiro?
R – Caldeireiro trabalhava na Rede Ferroviária, ele trabalhava em Palmares, na oficina de Palmares. O caldeireiro... Tem a fornalha da máquina, aquela fornalha grande, ele tinha que fazer o trabalho de dentro, para soldar os tubos que estouravam. Caldeireiro é isso, tinha os tubos que estouravam dentro da máquina, os tubos todinhos que tinham dentro. Ele entrava com o ajudante para soldar, limpar tudo, ajudar a pintar tudo; passava uma lixa, passava tudo e depois soldar tudo e tampar aquele buraco que estava vazando. Caldeireiro é isso.
P/2 – Tinha, então, uma oficina em Palmares?
R – Tinha em Palmares uma oficina. E nessa mesma oficina que eu vim a aprender.
P/2 – Então essa época do seu padrinho era quando o senhor era ainda pequeno?
R – Eu ainda era pequeno, mas ela continua lá, a oficina. Com o tempo eu fui crescendo e sei que chegou o tempo de servir o Exército, eu servi o Exército um ano. Antes de eu servir o Exército, me empregaram na Rede como limpador provisório. Eu estava com 17 anos quando eu entrei na Rede como limpador provisório, limpando esse negócio de rodas das máquinas, limpando máquina na frente, aqueles matos, naquelas máquinas que chegavam para a gente botar as lenhas em cima para os outros jogarem para cima da locomotiva e poder viajar de manhã. Depois me tiraram lá de fora e me colocaram lá para dentro da oficina. Aí eu fui trabalhar, trabalhei até limpando banheiro. Eu limpava para não sair do emprego, tinha que fazer de tudo. Depois dali me botaram para os tornos, limpar o torno, essas coisas, limpar aquelas limadas de tornos, sabe? Depois meu chefe me disse: “Você, eu vou tirar você daí, vou colocá-lo para trabalhar de ajudante de caldeireiro.” Eu trabalhei também de ajudante de caldeireiro com ele. Depois me tiraram de ajudante de caldeireiro e me colocaram para trabalhar como ajudante de serralheiro. Trabalhei como serralheiro. Depois, ele disse assim: “Você quer trabalhar como foguista?” Eu digo: “Quero.” Aí, fui trabalhar de foguista, só que não tinham aquelas máquina de lenha, saía todo dia de manhã, seis horas, sete horas, dez horas para fazer aqueles trens que saíam, eu trabalhava de foguista, no estoque de lenha. O maquinista puxando e eu jogando aqueles paus dentro da fornalha, ficava aquela quentura. Isso aqui, eu não sei como eu não sofro da coluna hoje, porque eu trabalhei muito naquelas máquinas, naqueles estoques de lenha. Pegava assim e ficava jogando dentro, até chegar no local. Depois, passou aquele tempo todinho, aí chegaram aquelas máquinas pretas de Maria Fumaça, aquela de óleo, mas foi o que melhorou alguma coisinha, o maçarico, tinha um maçarico.
P/2 – Mas vamos contra daqui a pouquinho cada uma dessas suas fases com detalhe, está bom, senhor Francisco? Então, a escola, o senhor disse que era uma escola da Rede lá em Palmares. É isso mesmo?
R – É.
P/2 – E o senhor morava ainda no engenho...
R – No engenho.
P/2 – E ia a pé para a escola?
R – Ia a pé.
P/2 – Era longe, senhor Francisco?
R – Não, era na faixa de meia légua.
P/2 – E ia todo o dia para a escola, bonitinho...
R – É. E voltava...
P/2 – Era de manhã ou à tarde, a escola?
R – Eu estudava depois das três horas da tarde.
P/2 – Depois das três.
R – É.
P/2 – Porque de manhã o senhor trabalhava?
R – Trabalhava.
P/1 – Certo.
P/1 – E tinham muitos alunos na escola, ou não?
R – Tinha, muitos alunos, tudo gente pobre, trabalhava e estudava lá.
P/2 – Tinha caderno? Como é que era?
R – Tinha. A Prefeitura mandava caderno, dava livros, dava tudo...
P/2 – Dava lápis...
R – Dava tudo porque a gente não podia comprar. Dava tudo para a gente, lápis, dava tudo.
P/2 – Dava tudo.
R – É.
P/2 – E aí o senhor foi nessa vidinha...
R – Fui.
P/2 – Até os 17 anos?
R – Até chegar perto de servir o Exército, aí eu fui servir o Exército. Mas antes de servir o Exército eu trabalhava na oficina lá de Palmares. Mas eu entrei com um contrato, aí eu fui para o Exército.
P/2 – Não era funcionário, era por contrato.
R – Não, era como contrato. Mas quando eu voltei do Exército, depois de um ano, a minha vaga estava aberta. Eu voltei para o mesmo lugar que eu estava. Naquele tempo era assim, você saía de um serviço para servir ao Governo, aquele seu lugar estava guardado.
P/2 – Ficava guardado.
R – Ficava guardado, aí eu voltei e fiquei.
P/2 – O senhor serviu o Exército onde? Em Recife?
R – Em Recife, em Socorro.
P/2 – Em Socorro?
R – É.
P/2 – Tinha um Batalhão do Exército lá?
R – Tinha, tinha.
P/1 – E foi bom esse período do Exército?
R – Foi.
P/2 – Foi?
R – Foi, porque eu me formei, fiquei mais forte, tinha instrução, essas coisas. Aí pronto, graças a Deus, aí eu trabalhei na Rede de novo. Eu fui começar (com?) essa chance de trabalhar na caldeiraria, ajudante de caldeireiro, ajudante de serralheiro, depois que me chamaram para trabalhar de foguista, e aí eu fui trabalhar de foguista.
P/1 – E como era o trabalho de foguista?
R – Era assim, na máquina, botando sempre aqueles paus dentro da fornalha. O trem puxando você e jogando aqueles paus dentro para poder funcionar. Aquela fornalha funcionava com os paus. O maquinista puxando e o foguista ficava muito naquela...
P/1 – E não tinha intervalo?
R – Era direto, não tinha intervalo não, parava um pouquinho e começava de novo. Parava um pouquinho, só fazia esfriar um pouquinho e começava de novo.
P/1 – Levantava para respirar um ar mais fresco...
R – É, um pouquinho. Quando chegava naquele local, parava a locomotiva, parava e passava um tempo lá até voltar. Aí lavava a máquina, enchia mais de lenha e tal e via de lenha como estava.
P/1 – E o senhor usava alguma roupa especial para ficar trabalhando?
R – Eu trabalhava de todo o jeito, não tinha roupa especial não, trabalhava de todo o jeito. Depois veio essa máquina a óleo, essa Maria Fumaça, nessa também a mesma coisa, não tinha fardamento. Você trabalhava do jeito que você podia, a mesma roupa que você trabalhava.
P/2 – Porque era muito quente, senhor Francisco...
R – Era quente demais.
P/2 – Muito quente.
R – Tinha uma tal de dois rolos, era uma garra, tinha uma garra, eu trabalhei nela também.
P/2 – O que são esses dois rolos, senhor Francisco?
R – Era a garra.
P/2 – Mas o que são esses dois rolos.
R – É porque são dois lados, dois lados de óleo, óleo na frente e óleo atrás, para nunca faltar, quando secava um tinha o outro. Era assim, viajava para todo o canto e não faltava óleo.
P/1 – O pessoal falou que tinha um lenheiro nas estações. Toda a estação tinha um?
R – Não, não era na estação, era numa repartição recolhida. Aí a máquina entrava para aquele local para ser abastecida de lenha.
P/1 – Para se abastecer. Mas não era automático? Ou o senhor tinha que abastecer?
R – Não, era a gente que tinha que trabalhar, tinha que jogar a lenha em cima. Jogar a lenha no tender para encher o tender todinho de novo para poder voltar. Foguista trabalhava muito, trabalhava para morrer. Só quem tinha coragem, para trabalhar.
P/2 – E como é que era, por viagem ou por tempo? Como é que era o seu horário de trabalho?
R – Tinha horário. Eu viajava, quando eu voltava já tinha outro para ir no meu lugar. Aí, então, da outra vez que ele vinha, eu pegava de volta.
P/2 – Todo o dia, então, o senhor pegava?
R – Não, a gente ia, viajava, na faixa de quatro, cinco horas, seis horas, sete horas. Quando chegava, outra pessoa para pegar de novo, você ficava e quando aquela pessoa voltava, aí eu pegava de volta para Palmares de novo.
P/2 – Aí o senhor ficava de folga nesse período...
R – Eu ficava esperando, esperava a volta. Neste tempo tinha o descanso. Aí na volta tinha esse que vinha, aí ele ficava e eu continuava a viagem.
P/1 – Então, o senhor estava contando para a gente como era o trabalho do senhor, de foguista.
R – Depois, o meu chefe falou a mim: “Você quer fazer um curso para ser maquinista? A gente coloca você na lista para você fazer um curso para maquinista. Você é um menino inteligente, sua leitura é mais ou menos, se você quiser fazer um curso para maquinista, você vai sair dessa vida de foguista para maquinista.” “Eu quero!” Foi quando vieram essas diesel, essas máquinas a diesel. E eu aceitei. “Aí você vai para Recife.” De Palmares eu fui para Recife fazer o curso.
P/1 – E o senhor já tinha ido para Recife alguma vez?
R – Já tinha ido, já tinha viajado. “Você vai fazer um curso lá, para maquinista. Aí você vai ser classificado para maquinista, se você passar nas provas. Se você não passar nas provas, você fica como foguista mesmo.” Eu falei: “Vou tentar.” Aí me colocou na lista e deu diária, porque a gente tinha diária quando tinha viagem para fora assim. Eles deram a diária da gente, tudinho, e a gente foi. Eu fiz o curso, passei na faixa de nove meses fazendo o curso lá. Aliás, tinha curso de eletricidade, tinha curso para muitas coisas lá. Naquele tempo eu sabia uma conta muito boa, eu estudei os quatro anos do primário e sabiam essa conta de raiz quadrada. Eu aprendi, sabia todas essas qualidades de contas. E escrevia bem, mandavam a gente fazer carta para ver se a gente estava escrevendo bem. Depois eu sei que ele perguntou muitas coisas. A gente fez curso para motor, motor da máquina, para ver se a gente passava. E a gente passou nos cursos, todinho. Mas com 70 você passava, eu passei com 70,9. Passei. Agora, tinha um foguista lá, coitado, que eu tive muita pena dele, Laélcio. Ele era muito fraco: “Deixa eu filar, deixa eu filar. Você não carece de me ensinar não, você deixa a sua escrita assim, fácil, que eu de cá olho de longe.” Aí eu deixava, com pena dele. Eu passei o tempo todinho fazendo o curso e ele bem perto de mim, coitado, não sabia de nada. Quando terminou os nove meses: “Bem, hoje é o dia do resultado.” Depois de nove meses, sabe? Chamou todo mundo e foi dizendo as provas: “Fulano de tal, número”. Os que não passavam, escanteio, e iam ficando os que estavam passando. Aí, quando chegou a vez de dizer a minha: “Agora, senhor José Francisco das Neves. A sua nota deu 7,9, passou com nove pontos a mais.” Aí chamou o Laélcio assim: “Esse Laélcio também, cadê o seu... 7,9 também, que coincidência os dois tirarem igual.” Eu digo: “Eu não sei.” Aí eu fiquei meio assim, né? Será que ele vai me botar de escanteio ali, vai dizer que fui eu que dei fila... Ficou um ar de riso de lá, ele entendeu mas deixou passar. Aí passou, passou, passou, depois de um tempo ele falou: “Oh, José, que coincidência foi aquela, que você pegou 7,9 e o seu colega pegou o mesmo total?” Eu digo: “Não sei não.” “Eu não quero arranjar problema não, eu sei o que foi. Deixa para lá.” Ele passou a maquinista também, e foi um maquinista de mão cheia, sem ter essa leitura toda.
P/1 – Só uma coisinha que eu fiquei pensando. O senhor fez um maquinista já para diesel?
R – Para diesel, foi.
P/2 – Ah, então ficou faltando um períodozinho para o senhor contar. Essa coisa do óleo, o senhor também era foguista do óleo.
R – Era foguista.
P/2 – Porque aí já não jogava mais a tora de madeira.
R – Não, ali era no maçarico.
P/2 – Como é que fazia isso, senhor Francisco?
R – O óleo você acertava assim: tinha um injetor da água para poder alimentar a água, sabe? E tinha o maçarico, que era para o óleo passar, para poder ter vapor, para poder ter força, aí colocava no maçarico. Colocava o maçarico de lado, assim, sabe? Do lado, assim, no maçarico, sentadinho. Não era mais fazer aquele esforço de doer não, só sentado, a gente só sentado no maçarico. O maquinista puxando o trem e eu só no maçarico ali. Aí a fumaceira, aquela fumaça preta. Você não assistiu a Maria Fumaça, né?
P/1 – Quando o senhor fazia este movimento com o braço, quer dizer, o senhor na verdade estava injetando...
R – Estava injetando força para a locomotiva, para a locomotiva poder ter força para puxar o trem. E era só no comando, só no comando, entendeu?
P/2 – Quanto tempo o senhor ficou nessa função de foguista, entre a lenha e o óleo?
R – Mais ou menos uma faixa de uns dez anos, mais ou menos.
P/1 – Bastante, né.
R – Uns dez anos. Depois de dez anos que chegou essa máquina a diesel.
P/2 – Outros foguistas ficavam assim também, bastante tempo?
R – Ah, era a mesma coisa.
P/2 – Ficavam também, assim, muito tempo? Bastante tempo?
R – Ah, a mesma coisa. Quando chegou depois de dez anos a máquina a diesel chegou, aí só estava lá quem soubia fazer alguma coisa, que a entendia, porque tinha muitos problemas na máquina a diesel, tinha até que ser inteligente para poder trabalhar, se não tivesse inteligência não trabalhava não.
P/1 – O senhor falou que o curso de maquinista, de nove meses, foi em Recife. Como é que o senhor fazia para ir nesses cursos, como é que era o dia a dia?
R – Ele deu diária à gente, de Palmares, ele deu diária, dinheiro para passar esse tempo todinho.
P/2 – Os nove meses? Era um dinheirão...
R – Sim, era diária. Era um dinheirão, deu até para fazer uma casinha para a gente morar, casinha com esse dinheiro que a gente recebeu.
P/1 – Aí vocês foram morar numa casinha da Rede?
R – Não, eu economizei a diária.
P/1 – Economizou?
R – Economizei, foi. Economizei o dinheiro, fazia um arranjo para passar e guardar um dinheirinho. Quando eu passei esse tempo todinho e depois de nove meses... A gente passou, depois do curso, ainda uns sete meses para poder assumir um lugar, porque eram dois maquinistas, um viajava com a gente, que era o tutor, que ensina a gente. A gente ia aprendendo a linha, como é que fazia isso, aquilo outro. Aí eu passei esse tempo todinho.
P/2 – Mas onde era o curso, senhor Francisco?
R – Ali em Edgard Werneck.
P/1 – E onde o senhor dormia?
R – Rede.
P/1 – Em rede?
R – Era. Tinha até um galpão que dormia a gente todinho em rede. Tinha um monte de rede armada. Morava ali, passamos nove meses morando ali, ali a gente deitava.
P/1 – No galpão?
R – No galpão da Rede, foi, morando ali.
P/2 – Como é que comia, tomava banho...
R – Ah, a gente comia em um bar. Ia no bar, fazia as refeições assim, nos locais. A gente não tinha gente quem cozinhasse para a gente não, mas dava para comer muito bem, a comida era barata esse tempo todo. Eu sei que eu fiquei foi gordo com essa besteira minha. Estava lá e você dormindo, e, depois do curso, não ia para conto nenhum, ia somente deitar, descansar. Mas, às vezes, às duas horas da manhã, eu estava assim, com o livro no rosto, estudando, estudando para poder dar certo nas provas. Então eu ia dormir, chegava à noite e não dava, de manhã... Eu ia dormir às duas horas da manhã, três horas da manhã ia dormir, estudando de noite para poder passar.
P/2 – E aprendeu de tudo, então?
R – Aprendi de tudo, graças a Deus.
P/2 – Tinha aula do quê, senhor Francisco?
R – Aula de tudo, de tudo mesmo.
P/2 – De uma locomotiva?
R – Desde a repartição elétrica, tudinho. Eu ia até trazer para mostrar para vocês, mas não deu, estou com a mala cheia. Tem umas apostilas lá, que a gente fazia o curso. Eu guardei tudinho, está tudo guardadinho, está tudo guardado, não sei por que não dei fim. A gente fazia o curso... Está tudo guardadinho, minhas apostilas todinhas. Tem até o tempo do total que eu tinha, que eu chegava da estação, que eu saía da estação... Aquele livro que a gente tinha que fazer está guardado, porque eu guardo tudinho, aí tem a hora que eu chegava da estação, tinha a hora de chegada, tinha tudo.
P/1 – Então quando acabou o curso, o senhor passou, como é que foram esses sete meses indo nas viagens com o tutor?
R – Foi somente ele ensinando o que a gente deveria fazer, como é que ia parar o trem, quando ia sair, a saída, a parada, até a gente aprender. Ele muitas vezes mandava a gente pegar no comando, ensinando. A gente não ficava só olhando não. O maquinista que estava com a gente dava para a gente ir aprendendo: “Faça isso, faça aquilo, faça isso, faça aquilo.” E a gente ia fazendo tudo o que ele ensinava. Quando foi depois, começou, quando a gente fazia sozinho. Aí graças a Deus, inteligente do jeito que eu era, num instante eu aprendi. Dos primeiros que foram, o primeiro que aprendeu fui eu.
P/1 – Como é que era manejar a locomotiva?
R – Era... É feito um carro, quase idêntico ao carro. Essa máquina a diesel parecia um carro. Tem a... Como é?
P/2 – A alavanca...
R – Sim, é quase a mesma coisa. Não é igual, mas é idêntico.
P/1 – Em que linhas o senhor começou?
R – Eu comecei do Palmares para Paquevira. De Paquevira para Garanhuns, depois de Palmares para Recife. Depois, de Recife fui pegando de Paquevira para Maceió. Aí depois mudou o curso para Belo Jardim, mudou o curso para João Pessoa. Aí fui conhecendo mais linha, ia conhecendo os percursos das linhas. Depois que eu estava certo, pronto, comecei a viajar certinho, não houve mais problema. Passei sete meses para eu aprender, porque tem linha que desce e sobe, sabe? Desce e sobe. Aí tem que saber tudo para poder ter o controle da máquina.
P/2 – Por que, senhor Francisco? Qual é a diferença entre desce e sobe? O que o senhor tem que controlar?
R – Tem o controle todo da locomotiva, tem o breque certinho... Tem um que é manual e tem o outro que é sem ser manual. O manual é para manobra e o outro é para viagem. O manual é só para manobra.
P/2 – E quando tem que subir tem que apertar algum botão diferente?
R – É, tem, para descer ou subir. Tem que controlar e ela fica gritando: “Tchi, tchi, tchi, tchi.” Sabe, bem bonitinho: “Tchi, tchi, tchi, tchi.” Para poder, sabe?
P/2 – Porque para subir, tem que ter mais força; é isso?
R – É.
P/2 – Ah, para descer o senhor tem que ter meio...
R – Mais cuidado do que para subir.
P/2 – Ah, mais cuidado.
R – Se você vacilar, termina virando. Tem muita curva na linha, muita descida.
P/1 – E o senhor começou a pilotar os trens de passageiros...
R – Foi, foi. Fiz os trens de passageiros, trem de sal, trem de barro, trem de pedra, carga, essas coisas, tudo eu fiz. Trazia passageiro para Maceió, Paquevira, João Pessoa, sabe. Descia tudo de novo, fazia tudo isso.
P/1 – Para Maceió o senhor saía aqui de Recife?
R – Saía do Recife, em Paquevira eu ficava, outra equipe eu pegava para Maceió. Eu ficava em Paquevira, o outro que vinha, que já estava esperando na minha frente, descia para Recife. O outro que vinha de cá, pegava para Maceió. Eu ficava em Maceió, o outro pegava cá e eu ficava esperando. O outro que chegava lá e eu voltava. Era assim, uma equipe, troca de equipe.
P/2 – O maquinista também ficava...
R – Trocava de equipe...
P/2 – Ah, que nem, mais ou menos...
R – Ficavam duas equipes em Maceió, ficavam duas equipes em Paquevira, ficavam duas equipes em Palmares, ficavam duas equipes em Recife, era assim, trocava de equipes. Não dava para viajar direto não, era descanso. O que vinha de Recife pegava para Palmares para Paquevira; de Paquevira para Maceió; de Maceió tinham outros para voltar. Eu, que já estava esperando, descia para Palmares. Era assim, sabe? Mudava de equipe.
P/1 – E o senhor, tinha algum lugar, alguma parte que era mais difícil de levar o trem?
R – Tinha. Tinha uma parte ali que a gente pegava de Palmares para Quipapá, Paquevira, que tinha 14 túneis para passar por debaixo da terra. Muitas vezes a máquina patinava, precisava colocar areia. O foguista ficava na frente, colocando areia.
P/2 – Por que senhor Francisco, ele ficava molhado?
R – Porque patina, se não tiver areia ele não sobe não. Além de ser túnel, era subida.
P/2 – Ah, porque era muito inclinado.
R – É, tinha que colocar areia. O foguista tinha que ficar lá na frente colocando areia.
P/2 – Nossa, que medo.
P/1 – E onde ficava armazenada essa areia?
R – Na frente... Ele ficava puxando um canozinho que tinha e a areia ia no trilho, mas ele tem que estar segurando na frente para não ficar... E se recuasse era perigoso.
P/1 – E tinha algum outro trecho também mais difícil?
R – Tinha. Muitas vezes até a gente ia viajando assim, para Maceió, chovia. Aí, quando tinha uma subida, uma serra, tinha que botar areia, porque senão a máquina não subia não, porque era a areia limpando o trilho, sabe? Lá tinha o local de cair areia, eram seis cantos que tinha que cair areia embaixo dela para limpar.
P/1 – E o trem continuava andando?
R – Continuava andando, a areia limpando o molhado.
P/1 – Controlando e indo. Isso mais na subida do que na descida?
R – Mais na subida. Na subida é que penava mesmo, na subida que era difícil. Na descida não, na descida a gente tinha que ter o jeito de levar, só não podia descer, porque ficava escorregadio também, tinha que botar a areia e ficar limpando, no molhado ela escorregava, escorregavam as rodas.
P/1 – As rodas?
R – Escorregavam.
P/1 – E quando o senhor levava passageiro, como é que o trem era recebido nas estações?
R – Era para pegar ou saltava do trem, feito o metrô. Não tem o metrô? É a mesma coisinha.
P/1 – Como? Tinha gente vendendo alguma coisa...
R – Tinha, vendia. Vendia água, vendia cocada, vendia fruta, vendia tapioca, vendia muitas coisas... Pão. Tinha muita gente vendendo, quando parava o trem. Uma vez eu até atrasei uns dois minutos: “Ah, o meu dinheiro, eu não recebi.” Eu parei para o cabra receber o dinheiro, me lembro como se fosse hoje. Aí cheguei lá no meu chefe: “Olhe, está marcado aqui dois minutos, não há problema não.” Ele sabia que eu nunca atrasava. Eu não sei como ele sabia, se alguém dizia... Ele sabia mesmo pelo percurso, tinha que anotar o percurso na caderneta.
P/1 – E como é que funcionava essa caderneta?
R – Tinha que chegar na estação três horas. Tinha que ser três horas. Se tinha que chegar à uma hora, era uma hora; uma hora e meia, uma hora e meia. Você não podia passar um minuto.
P/1 – Você lembra o nome da estação?
R – Era tudo anotado. Anotava o horário na cadernetinha para quando chegar mostrar.
P/2 – Não podia atrasar?
R – Não.
P/2 – De jeito nenhum?
R – Não.
P/2 – Nem passageiro e nem carga?
R – Não, tem que ser no horário certo.
P/1 – E o apito? Quando chegava na estação tinha que apitar?
R – Avisava.
P/1 – E como era o aviso quando chegava?
R – Ah, aquela a diesel, o aviso era: “Piuuuu... Uiiii... hãm hãm hãm...” Aquela máquina apita, dava aquele: “Ahhh, hãm hãm hãm... Hãm hãm hãm.” A gente avisava, quando ia chegando na estação, já sabiam, corriam lá para uma pua estação. Ela apitava muito, só dava uma puxada...
P/1 – E o senhor tinha algum código com algumas pessoas, em especial, que o senhor conhecia ao longo da linha?
R – Tinha, eu conhecia muita gente. Ah fulano, eles conheciam pelo meu apito, eles já conheciam, já sabiam o meu apito como era, já fazia o jeito de apitar... Então já sabiam que era eu que ia chegando (risos). Já estava tudo na estação me esperando.
P/1 – E o senhor, os passageiros só podiam subir no trem nas estações ou tinha algum outro lugar?
R – Não, só na estação. Não podia parar em outro lugar, se parasse era multado e você ia ficar suspenso, não podia não, tinha que parar na estação certa. Agora, a carga muitas vezes a gente parava, porque assim, tinha os trabalhadores, os trabalhadores de linha, cassaco de linha, a gente tinha que parar os pobrezinhos. A gente parava um minuto, dois minutos, não tinha problema não.
P/1 – E qual que era o nome mesmo? Desses que trabalhavam em linha?
R – Cassaco de linha.
P/1 – Cassaco?
R – Cassaco, normalmente a gente chamava de cassaco de linha.
P/1 – Cassaco de linha? Eles ficavam...
R – É, eles ficavam fazendo o serviço de linha, colocando dormente na linha. Não tinha dormente, antigamente, de pau, eles botavam aqueles dormentes e a gente chamava cassaco de linha. Não sei por que tem esse nome. (risos)
P/2 – E eles pegavam, vocês davam carona para eles...
R – Dava, botava o troller. Muitas vezes... Tinham muitas carroças, assim, e pegava os trollers e colocava em cima. Até na estação, tem até um troller ali, tem ali na estação, ainda tem. Até eu trabalhei naquela azul que tem ali, não tem, na estação? Tem uma pequenininha, não tem uma pequenininha? Trabalhei naquela máquina de manobra, trabalhei nela também. Trabalhei numa azul que tinha do lado de cá, aquela máquina dois rolos, a garra? Eu trabalhei nela, seiscentos e 12 parece, não? Trabalhei naquela máquina, trabalhei direto nela. Estão lá na estação, todas as quatro.
P/2 – Mas estes trabalhadores não tinham passe para andar no trem, senhor Francisco?
R – Tinha, tinha.
P/2 – E vocês davam carona só para facilitar a vida deles?
R – Era, mas a questão é que eles tinham passe para viajar em passageiro.
P/2 – Ah, isso era para cortar um trecho de trabalho?
R – Era.
P/2 – Ah, que legal.
R – Eles só tinham passe para viajar em trem de passageiro. Tinha os passezinhos...
P/1 – Quer dizer que vocês se ajudavam, não é isso?
R – É, porque trabalhador igual a gente, amigo de trabalho... Mesmo que eles me multassem, eu tinha pena. Aí parava toda vez, nunca houve problema não, graças a Deus.
P/2 – Que bom!
R – Trabalhei esse tempo todinho, nunca tive nem meio dia perdido de serviço, fui um bom trabalhador. Saí, graças a Deus. Tanto é prova que eu me aposentei e tive três licenças prêmio. Tive, eu tive três licenças-prêmio.
P/1 – E o senhor, quando viajava, o senhor ia com algum auxiliar? Viajava sozinho, como é que era? Quem viajava com o senhor?
R – O foguista.
P/1 – O foguista?
R – Era. A gente só trabalhava em dois, o foguista e o maquinista.
P/1 – E vocês tinham que usar uma farda, alguma coisa assim?
R – Só foi usar a farda depois que trabalhei nessa máquina a diesel. A gente trabalhava até com um fone no ouvido, porque dava uma “zoada” danada, dava uma “zoada” tremenda. E todo engravatado, todo alinhado nessa máquina mesmo. Não trabalhava sem a farda não.
P/1 – Tinha o quepe?
R – Tinha o quepezinho, tudinho.
P/1 – Como é que era esse quepe?
R – Eu até passei uns tempos com ele, depois eu dei fim, ficou guardado. Era bem bonito, azul, um quepe azul.
P/1 – E estava escrito “maquinista”?
R – É, maquinista. Tinha o nome, maquinista e tudo. E a farda era bonita, a farda da gente.
P/1 – Era azul?
R – Era azul. A farda era toda azul e o sapato tinha que andar com ele engraxado. E uma coisa, se você tomasse qualquer coisa, bebesse qualquer coisa, você era demitido. Não tinha esse negócio agora que tem nos carros, do bafômetro, para saber se o cara tinha bebido. Muitos caras foram demitidos por causa disso.
P/2 – Já tinha isso, então?
R – Tinha, muitos foram demitidos por causa disso, muitos foram demitidos.
P/1 – E o que o senhor preferia levar? Carros de passageiros ou os vagões?
R – Para mim o que era estava bom, a mesma coisa.
P/1 – Tinha alguma diferença?
R – Tinha, depois começou a botar a máquina, máquina acoplada. A gente viajava com duas, três máquinas agarradas uma na outra para puxar o trem, para ficar com uma força melhor, a gente acoplava uma na outra.
P/1 – E como é que era, iam três maquinistas?
R – Não, só o maquinista e o foguista fracionavam as três máquinas. Eram sempre acopladas, de baixo, assim, todas elas. Tinham uns canos que a gente acoplava uma na outra, juntava. E as três forças das três máquinas fracionavam só com o foguista e do maquinista. Era uma força que puxava muito trem, muitos trens, muitos carros.
P/1 – Mas não ia ninguém junto com o senhor? Digamos que o senhor de repente passasse mal, por algum motivo, não ia uma pessoa...
R – Não tem o foguista?
P/2 – O foguista também...
R – Ele resolvia.
P/2 – Ah, é?
R – Ele resolvia, por isso que tinha dois. Pois se desse problema em um, tem o outro para resolver...
P/2 – Ele dirigia o trem, então?
R – Ah, era. O foguista é quase igual um maquinista, ele aprende a fazer tudo, só não tem o nome de maquinista porque não fez o curso, mas ele resolve. Se eu trabalho com um foguista há uns sete anos, uns quatro ou cinco anos eu sei fazer tudo. Agora, só que eu não tinha o nome de maquinista.
P/2 – Mas quem ia ficar botando a lenha lá se ele fosse dirigir o trem?
R – Olha, quando a gente viajava, naquelas máquinas de lenha, essas de máquina a diesel era melhor, sabe? Tinha condutor, tinha guarda freio...
P/2 – Ah, aí qualquer um...
R – Qualquer um, era.
P/1 – Nossa, que legal!
R – Tinha condutor, tinha guarda freio, tinha tudo, aqueles que andavam em cima do trem. Aí assumia, era... Muitas vezes a gente os ensinava a fazer o serviço, porque quando tinha muita coisa eles quebravam o galho.
P/1 – Se precisasse ir ao banheiro, alguma coisa...
R – Era...
P/1 – E por falar nisso, como é que o senhor fazia para ir ao banheiro em uma viagem longa?
R – Não, a gente, muitas vezes, como se dizia, para, vai atrás do carro e faz o trabalho. (risos) Aí a gente ficava lá acocorado e depois vinha para o carro andando mesmo. Se fosse para fazer xixi era uma coisa, não parava o trem não (risos).
P/1 – Não parava?
R – Não, mas dava para fazer. Não parava, ficava ali atrás... (risos).
P/1 – E para comer? Para comer era um pouco diferente, né?
R – A gente cozinhava com um fogão, era um fogão “jacaré”, o nome do fogão que tinha era jacaré. Puseram o nome de fogão jacaré, cozinhava feijão, fazia tudo na locomotiva.
P/1 – E como é que era esse fogão jacaré?
R – Era no álcool.
P/2 – Tinha um fogareiro...
R – Era no álcool, no óleo diesel. Botava um oleozinho, diesel, e cozinhava, funcionava. Fazia carne, feijão, fazia tudo. O café fazia no injetor. Juntava o injetor, botava o café dentro da vasilha e ali fazia o café com a água quente que saía do injetor. Fazia: “Tchiiiiii.” (risos) Era...
P/1 – Gostei...
R – Assava carne, escaldava a carne, ficava de um jeitinho bem escaldadazinha (risos). Era assim, tinha água quente, botava a carne ali, escaldava, ficava bem escaldadinha. Era só botar no fogo e assar. (risos)
P/2 – O povo é muito criativo, né? Bom, o senhor tinha a sua escala. Tinham os períodos...
R – Tinha o dia de folga, tinha o dia de folgar também. Às vezes eu folgava um dia e às vezes até dois. Tinha dois dias de folga, ou um dia, de acordo com a situação.
P/1 – Onde o senhor morava, nessa época?
R – Morava em Palmares.
P/1 – Em Palmares?
R – Era.
P/1 – E aí, fazia essas viagens e dormia na estação?
R – Dormia, quando chegava aos locais a gente ia para o castelo.
P/1 – Castelo...
R – Tinha o castelo e a gente botava rede para dormir. Todo canto que eu chegava tinha castelo para a gente dormir, pela Rede. Quando chegava o maquinista, o foguista lá, já tinha o local de armar a rede. Quem quisesse fazer alguma comida ali no castelo... Eu ia comer no bar, nos cantos. Muitas vezes eu levava já alguma comida preparada quando eu saía de casa, preparava uma carne assada, um negócio, para comer no meio do caminho. Não fazia muito no caminho não, e quando não levava, fazia. Muitas vezes eu viajava, já levava a minha marmita cheia para almoçar no meio do caminho, para eu não fazer a minha comida no meio do caminho.
P/1 – Tinha algum lugar que o senhor achava mais bonito para ver quando o senhor estava pilotando a locomotiva? Que o senhor olhava, assim: “Puxa vida, isso é...”
R – Olha, eu vou dizer uma coisa à senhora: a coisa mais gostosa que eu fiz na minha vida foi viajar, foi trabalhar como maquinista. A gente goza muito a vida, a gente conhece muita gente, muitas pessoas, faz muita amizade. Eu fiz muita amizade, em todo o canto fazia amizade. Muitas vezes, quando eu chegava de viagem, a gente dava lenha ao povo, dava água. A gente viajava aqueles carros de água para não faltar água para a locomotiva, a gente dava água, dava lenha, a gente recebia galinha, recebia milho, recebia feijão, recebia tanta coisa... E a gente trazia, era jaca... Era tanto, a gente recebia tudo, ovos. A gente trazia a feira para casa, de graça, porque eles davam para a gente, esse povo pobre para quem a gente dava lenha, que esse povo todo criava galinha, aí dava, e chegava em casa com tudo isso.
P/2 – E era tudo muito pobre, senhor Francisco?
R – Esse povo, desse meio do sertão, o povo viajante, que faltava... Eu viajei tanto tempo para Sertânia, naquele tempo. Sertânia, Cabedelo, viajei para Patos e Cajazeiras, aqueles cantos todinhos, viajei para Belo Jardim, todos esses cantos aí.
P/2 – Era uma paisagem bem...
R – Bem bonita, muito bonita. Era uma vida boa, eu gostava daquela vida. Era uma vida divertida.
P/2 – Como é que... Tinha vegetação? Como é que era?
R – Tinha. Vegetação tudo bonita, era lindo...
P/1 – Tinham os açudes?
R – Tinha, tudo lindo, não tinha esse negócio de ter nojeira, aquelas águas eram todas limpinhas naquele tempo, eu não sei por que hoje está tudo nojento, e naquela época era tudo limpinho. E o povo ainda bebia água daquele rio, nunca morria de doença, porque era um rio limpo. Hoje em dia é tudo cheio de nojeira, em tudo quanto é canto. Eu mesmo, não tem quem faça eu beber uma água dessa Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa). Eu só tomo água dessa água que a gente compra, Deus me livre, eu não. Até os periquitos que eu tenho lá em casa, que eu crio, eu dou água dessas que eu compro, não dou água de torneira não, para não morrer de doença.
P/1 – E o senhor dava apelido para as locomotivas?
R – Não, o apelido que tinha dessa a óleo, que era Maria Fumaça, apelido, e dessa outra a gente chamava de Máquina de Lenha. O apelido era esse, Máquina de Lenha. E tinha um nome assim Great Western, a primeira que teve o nome das máquinas. Era GWR (Great Western Brasil Railway) não sei o que lá, as primeiras máquinas que saíram de carvão. Não sei muito bem o nome das máquinas de carvão. Nesse tempo da Great Western era máquina de carvão, aqueles pedaços de carvão para funcionar. Mas eu não peguei não, eu peguei foi de lenha para cá.
P/1 – Então, senhor José, a gente estava conversando lá fora, o senhor chegou a comentar que o senhor jogava futebol...
R – Foi, eu comecei em Palmares, comecei jogando no infantil, futebol infantil. Depois do futebol infantil fui para o juvenil, depois que eu fiquei no juvenil, aí veio um senhor de uma usina, chamada Usina Santa Terezinha, se não me engano, e me chamou para eu jogar no futebol de lá. Quando eu cheguei lá cresci no futebol. Cresci no futebol, fiquei, passei para o futebol “de maior”. Eu, com 17 anos, fiquei profissional. Aí foi quando eu vim jogar em Palmares, que eu não estava nem em Palmares, eu estava jogando na usina, ganhando dinheiro só para jogar, não trabalhava não, só para jogar. Aí viemos jogar contra outro time de Palmares, minha família estava toda em Palmares e eu estava na usina, jogando pelo time de lá. Quando eu cheguei aqui, joguei, aí o chefe − Gerson Batista, era o nome dele − gostou de mim e disse: “Eu quero ficar com você, jogando futebol aqui pelo time de Palmares.”
P/1 – Deixa eu ver só se eu entendi. O senhor começou a jogar bola de pequeno...
R – De pequeno, foi, de pequeno.
P/1 – E aí o senhor entrou para jogar no time de futebol de Palmares?
R – Foi.
P/1 – E esse time de futebol da cidade era um clube?
R – Era um clubezinho, um clubezinho lá da cidade, lá do prefeito. Aí eu fiquei jogando infantil. Do infantil, veio o juvenil, maior, né? Já tinha uns quinze anos. Depois disso, gostaram do meu futebol e me levaram para a usina.
P/1 – E enquanto isso o senhor trabalhava com o seu pai?
R – Não, nesse tempo eu fui jogar, não estava trabalhando mais não. E o meu pai estava...
P/1 – E aí o senhor já tinha terminado a escola?
R – Eu estava estudando ainda.
P/1 – Ah, ainda estava estudando.
R – Estava estudando ainda, aí fiquei lá no futebol. Quando eu tinha meu tempo livre eu ia fazer meu estudo, porque lá na usina tinha escola, eu continuava, jogava e estava no meu estudozinho, estudando, entendeu? Foi o tempo que eu já fui jogar em Palmares, contra o time de lá, aí o senhor Gerson Batista, que era o chefe geral de lá, disse: “Gostei de você, quero você no futebol daqui.” Ele falou com o chefe de lá da usina e ele disse: “Não há problema não, pode levá-lo, não há problema não.” Não pagou não, mandou me trazer, aí eu vim. Quando cheguei lá, fiquei jogando. O senhor Gerson Batista disse assim: “Olha, você é novo, quando você completar seus 17 anos vai ficar trabalhando aqui, pela Rede.” Quando completei 17 anos, eu fiquei só jogando futebol, não fiquei nem trabalhando nem nada, só jogando futebol. Só ganhando do futebol, somente.
P/1 – E quando o senhor entrou na Rede, para trabalhar de limpador, ajudar nos serviços gerais, o senhor jogava futebol, também?
R – Estava jogando. Aí disse assim: “Eu quero que você fique fazendo alguma coisa que estão falando aí que eu estou dando muita colher de chá a você, porque todos os que estão jogando futebol estão fazendo serviço lá dentro, e você não está fazendo. Você fique tapeando lá dentro, fique sempre relando em qualquer coisa só para dizer que você não está parado, entendeu?” Foi um negócio assim: “Limpa aquele banheiro lá, vai para os tornos, limpa os tornos...” Aí fiquei, quando era para jogar eu jogava, e quando era a semana eu ficava tapeando na oficina, assim, sabe? Tapeando lá.
P/2 – Aí o senhor jogava pelo Ferroviário, é isso?
R – É, pelo Ferroviário.
P/2 – Que posição o senhor jogava?
R – Lateral.
P/2 – Esquerda ou direta?
R – Lateral direita.
P/2 – Direita.
R – Aí passou o tempo, o senhor Batista falou assim: “Vá limpar os tornos. Você quer aprender alguma arte, você fica jogando futebol e fica trabalhando na oficina.” “Quero, quero aprender alguma arte.” Um favor para mim, né? Fiquei trabalhando, fui trabalhar de ajudante de caldeireiro, depois eu fui trabalhar de ajudante de serralheiro.
P/1 – E o Ferroviário era de que divisão, aqui do futebol de Pernambuco?
R – Era de Palmares mesmo.
P/2 – Então, mas era o quê? Era amador ou disputava estadual?
R – Disputava assim, cidades com cidades...
P/2 – Ah, era um campeonato de time menor, então.
R – Era um time menorzinho.
P/1 – Ah tá.
R – Aí pronto. Eu, antes de jogar futebol, trabalhei provisoriamente na Rede Ferroviária. Como contrato, era limpador provisório, eu dava lenha às maquinas, limpava os matos. Eu comecei assim, sabe?
P/2 – Mas aí o senhor ficou jogando o futebol só até fazer o curso de maquinista?
R – Foi.
P/2 – Porque quando o senhor fez o curso, o senhor já não jogava mais.
R – Não, depois que eu fui trabalhar de maquinista eu deixei de jogar.
P/2 – Deixou de jogar.
R – Aí eu não fui jogar futebol mais não.
P/2 – Quantos gols o senhor fez na carreira?
R – Não, eu jogava no lateral.
P/2 – Mas não fez gol nenhum? Lateral não fazia gol?
R – Eu nunca fiz gol.
P/1 – Eita...
R – Eu não vou mentir, eu nunca fiz gol. (risos)
P/1 – E como é que era o uniforme, o senhor se lembra? O senhor se lembra como é que era o uniforme do time?
R – Era, assim... Uma listra assim, umas três listras assim. Tem até ali no...
P/1 – Listra o que? Vermelha...
R – Era um negócio assim. Tem até ali na foto. Aí pronto. Eu sei que eu trabalhei um bocado de tempo assim, feito um contrato, sabe? Logo no começo, e depois que eu fiquei jogando futebol eu abandonei, não quis mais. Fiquei trabalhando lá na oficina, aí tomei gosto pela parada, só fazia jogar em tempo de jogo. Quando chegava jogo eu jogava. Mas achei bom ficar trabalhando, aprendendo as artes, aprendendo coisas na oficina.
P/2 – E esse moço que levou o senhor, o Gerson, né?
R – Sim, senhor Gerson.
P/2 – O senhor Gerson era da Rede?
R – Era chefe lá, chefe geral.
P/2 – E vocês jogavam contra que times? O senhor lembra o nome?
R – Jogamos com muitos times. Tinha time aqui até de Recife, um tal de Santa Maria, depois tinham outros times aí. Depois que eu me transferi para Recife, eu fiquei no Sociedade Esportiva Ypiranga Futebol Clube. Não tem um time de futebol de Ypiranga aí? Eu fiquei um tempo com o (_____Machado?), ouviu falar de um tal de (_____Machado?)...(46’17”)
P/2 – Saiu do Ferroviário e foi para o Ypiranga?
R – Quando eu cheguei aqui fiquei um bocado de tempo, principalmente parado, sem fazer nada. Aí eu tive saudade de trabalhar na oficina, de voltar para a oficina de novo. Eu comecei trabalhando de foguista de novo nessa Maria Fumaça.
P/2 – Ah, o senhor saiu um tempinho...
R – Foi, saí um bocado de tempo, só jogando futebol, depois quis voltar para a oficina, quis voltar. Meu futebol caiu mais um pouquinho aí quis voltar para a oficina. Ficava na reserva, fui caindo no futebol, tendo que ficar na reserva, sabe? Sabe o que é na reserva? Aquela pessoa com o futebol meio ruim, aí ficava encostado: “Eu não quero ficar encostado não, eu vou voltar para a oficina.” (risos) Aí voltei para oficina.
P/2 – Não era só quem era ruim, viu, senhor Francisco. Estava ficando ruim, seu futebol?
R – Ficou, caiu um bocado (risos). Caiu um bocado, aí disse: “Eu vou para a oficina mesmo.”
P/2 – Aí o senhor voltou para a oficina.
R – De lá pra cá, eu disse: “Eu vou parar de jogar futebol, ficar na oficina mesmo.” Foi o tempo que eu fiquei trabalhando de foguista, e nesse tempo eu fui fazer curso para maquinista. Cheguei lá e a coisa estava parada, não tinha futebol, não tinha mais nada. Aí fiquei, trabalhando de maquinista até hoje, até quando me aposentei, não quis mais não, abandonei o futebol mesmo.
P/1 – E a outra coisa que o senhor estava falando lá fora é da sua parte musical. Como foi?
R – Sim, eu fui cantor de carnaval. Cantor de carnaval, cantei em muitos, muitos, carnavais. Cantei muito forró, fui cantor de forró, fui cantor de seresta. Se eu soubesse eu tinha trazido até o meu CD de seresta que eu gravei para você ver, um CD de seresta que eu gravei naquele tempo, sabe?
P/2 – Por que o senhor foi para essa coisa de cantar?
R – Porque toda vida eu gostei de cantar. Antes, quando eu era garoto, eu imitava Bob Nelson. Aquele que fazia: “Ui ui ui, tuli, tuli...” Aquele negócio: “Olerich olerich...” Eu imitava, tinha um chapeuzão. Cantava na escola, quando eu fazia parte na escola, pequenininho, com os meus 13 para 14 anos. Eu fazia com o chapéu, dois revólveres de pau, uma calça toda assim, que a professora mandava fazer para mim, e nas festas eu montava em um cavalo de pau, bem grande, assim, em duas rodas e ficava cantando imitando o Bob Nelson: “Ole ole olerich olerich olerich.” Cantando aquelas músicas. De lá prá cá eu fui tomando gosto das paradas, aquelas coisas... Seresta, forró, essas coisas. Cantor de carnaval daqui de Jaboatão dos Guararapes, era eu. Cantei em muitos carnavais, muitos carnavais eu cantava.
P/1 – E como é que era na Rede Ferroviária? Tinha um grupo de músicos?
R – Tinha, tinha a orquestra da Rede Ferroviária.
P/1 – E como é que era, quantas pessoas?
R – Era uma faixa de uns 30 músicos, mais ou menos.
P/1 – E tinha que tipos de instrumentos?
R – Percussão, tinha percussão, tinha baixo de cordas, tinha guitarra − para quando a gente precisava fazer alguma festa −, sax, tenor, pistão, trombone, tinha tudo. Tinha tudo isso, sabe?
P/1 – Era uma escola de música?
R – Escola, e era a banda de música. A gente tocava em todo o canto. Ia em festas e era chamado para tocar em todo o canto.
P/1 – E o senhor tocava o quê?
R – Eu comecei fazendo parte no sax, depois eu desisti do sax, porque faz muito esforço na garganta: “Vou deixar de tocar sax.” Aí deixei. Fiquei na bateria, só na percussão. Percussão e cantando, percussão e cantando.
P/2 – Que tipo de festas vocês iam se apresentar?
R – Cantava em festas de igreja, não tinha as festas de fim de ano? Ia uma banda, duas, três bandas no coreto, tem coreto, né? Ficava no coreto tocando. O povo passeando embaixo e a gente tocando, fazia parte. Em outras festas a gente tocava.
P/2 – Essa banda era aqui em Recife mesmo ou era lá em Palmares?
R – Palmares, depois eu fiz parte da banda de Jaboatão.
P/2 – Tinha outra?
R – Tinha. Deixei de ir lá para tocar na daqui.
P/2 – Havia várias dessas bandas.
R – Tinha, tinha sim, todos os ferroviários tinham uma banda. Tinha uma banda, e muitos músicos ganhavam de músico, ganhavam de música.
P/1 – E quando vocês iam se apresentar por aí tinha que usar uma roupa igual?
R – Era, a gente tinha uma farda da banda. Uma farda toda bonita de gorro e tudo, gravata, tudo direitinho.
P/1 – Mas aí era diferente da do trabalho?
R – Era diferente. Em Jaboatão tinha uma banda muito boa, A Banda Ferroviária de Jaboatão.
P/2 – Antes de voltar, pode fazer uma coisa? Canta uma coisinha, senhor Francisco.
R – Hã?
P/2 – Canta uma coisinha, uma serenata pequenininha.
R – É que agora eu sou evangélico... Uchhhii
P/2 – E não pode mais cantar?
R – Bem, eu posso até cantar...
P/2 – Só por causa da entrevista...
R – Só por causa da entrevista, né?
P/2 – É, só um pouquinho, Deus não vai achar ruim. Só por causa da entrevista.
R – Só vou cantar porque... Eu sou evangélico agora, e só canto música para Jesus.
P/2 – Não tem problema.
R – Mas naquele tempo eu cantava, né? Cantava música de seresta, cantava forró, essa muitas vezes eu cantei para o meu amor. Quando eu conheci esse meu amor, não era evangélico ainda, essa menina que está aí. Eu fui para uma festa e cantei uma música muito bonita para ela, até ainda estava tomando uma cervejinha, naquele tempo eu bebia, mas depois a gente parou. Graças a Deus, Jesus tirou tudo isso de mim.
P/2 – Pode ser, pode ser essa música que o senhor cantou para ela. Pode ser só um pedacinho.
P/1 – Vamos lá.
R – (Cantando)
“Lembro um olhar,
Lembro um lugar
Teu vulto amado.
Lembro um sorriso
E um paraíso
Que tive ao teu lado.
Lembro a saudade
Que hoje invade
Os dias meus.
Para o meu mal,
Lembro, afinal
Um triste adeus
(palmas)
P/1 – Nossa!!
Sou agora, no mar desta vida,
Um braço a vagar...
Onde está teu olhar?
Onde está teu sorriso?
E aquele lugar?
Eu devia sorrir, eu devia,
Para o meu padecer ocultar,
Mas, diante de tantas lembranças,
Me ponho a chorar
Ahhh...
Eu devia sorrir, eu devia,
Para o meu padecer ocultar,
Mas, diante de tantas lembranças,
Me ponho a chorar”
(palmas, risos)
P/1 – Muito bem!!
P/2 – Nossa, senhor Francisco, nossa, que voz linda!
P/1 – Vozeirão, né?
R – Só que agora eu estou cantando para meu Jesus...
P/2 – Que lindo, lindo. Olha, eu fiquei bem emocionada. Muito bonito.
R – Tem uma música, agora que eu saí da vida que eu bebia e estou agora, graças a Deus, com meu Jesus. Fiz essa música que eu vou cantar agora, que parece com a minha vida. Não atrapalha não eu cantar, né?
P/2 – Bem pouquinho.
R – Essa é evangélica: (Cantando)
“Eu já fui do mundo
Hoje eu não sou mais
Como vagabundo
Louvava a Satanás
Mas Jesus chegou
E me socorreu
Graças eu lhe dou
Porque estou no caminho seu
Mas Jesus chegou
E me socorreu
Graças eu lhe dou
Porque estou no caminho seu
E nunca mais
Vou me afastar de ti
E voltar para o mundo não
Nunca mais quero ir
Porque eu sou feliz.”
(palmas, risos)
P/2 – Muito bom, estava muito bom! Está ótimo. Mas muito legal, senhor Francisco. Dá para ver que o senhor cantou bastante, tem uma voz muito bonita. Quer dizer, o senhor continuava trabalhando, mas arranjava esse tempinho...
R – Eu cantava muita seresta. Eles me chamavam para cantar em festas, em tudo. No tempo de carnaval eu ficava doidinho de tanto clube atrás de mim para eu cantar...
P/2 – Ah, que bom, que bom! Aí o senhor arranjava...
R – Eu tinha umas 95 músicas de carnaval na cabeça, decoradas, para cantar no carnaval.
P/2 – Que beleza!
R – Cantei música do Claudionor Germano, cantava tudo, sabia tudo decorado.
P/2 – Ciranda também o senhor cantava?
R – Não, ciranda não, eu nunca gostei de cantar não. (risos)
P/2 – Não? Está bom, então vamos lá... (risos).
P/1 – Agora, sim, podemos voltar para o trem?
P/2 – Podemos voltar para o trem. Um cantor precisa cantar, né? Pelo menos um pouquinho. (risos)
P/1 – Então, eu queria saber se o senhor, nesses anos todos de maquinista, levou alguma pessoa famosa, alguma autoridade, no trem?
R – A gente, uma vez, teve, na época de São João... Naquele tempo tinha trem para Caruaru, tinha a linha, naquela época. Aí foi um povo de Jaboatão, uma equipe só de gente rica, gente mais ou menos, e a gente foi acompanhando o pessoal. Tinha muita gente, o Prefeito, tudo junto. Uma festa muito bonita, levamos para Caruaru, aquele trem que tinha, faz muito tempo isso, porque agora não tem mais linha não. Naquele tempo do prefeito Geraldo Melo, até morreu Geraldo Melo agora a pouco. E outros prefeitos também, a gente levava sempre. Era batucada, gente batendo, sanfoneiro, zabumbeiro, era muita alegria naquele trem, só gente mais ou menos que ia. Ia para passar a noite e voltava no outro dia. Era bonito o trem. Era o trem da alegria.
P/2 – O trem para Caruaru?
R – Era.
P/1 – Ele ia enfeitado?
R – Ia enfeitado, tudo enfeitado, tudo muito bonito o trem. O povo ficava tudo assim, olhando, vendo o trem passar.
P/1 – E o senhor passou por algum acidente na linha?
R – Eu fui uma pessoa tão feliz na minha vida, que nunca peguei ninguém na linha. Única coisa que eu peguei foi um boi e um cavalo. Só. Mas matar ninguém, nunca matei não.
P/2 – E nem teve acidente nenhum...
R – Não, graças a Deus, nunca tive acidente.
P/2 – Mesmo alguma parada, por algum probleminha, elétrico, alguma coisa, o senhor teve?
R – Teve. Parou.
P/2 – Parou? Mas o senhor sabia avisar o que estava acontecendo?
R – Sabia, a gente tem o estudo para gente mesmo fazer o trabalho. Quando não tinha jeito a gente telefonava e chamava um técnico que atendesse para poder fazer. Muitas vezes a gente mesmo quebrava um galho, que já estudou, já fez esse curso para isso mesmo para entender o problema da locomotiva.
P/1 – E se por um acaso o senhor não conseguisse resolver o problema da locomotiva?
R – Nós tentávamos, tentávamos fazer, mas se não tivesse jeito, fosse outros problemas, chamava o técnico daqui de Recife.
P/1 – E como é que o senhor chamava esse técnico?
R – Tinha o telefone.
P/1 – E como é que funcionava esse telefone, não era o celular que a gente tem hoje...
R – Não, nós saíamos e íamos telefonar fora.
P/1 – Ia telefonar fora.
R – Na cidade que a gente estava parado, saía, descia e ia telefonar lá fora.
P/1 – E não tinha aquele telefone que enganchava no fio?
R – Não tinha não, não usava não. Eles inventaram isso muito tempo depois, lá no começo não tinha não.
P/2 – O que dava mais problema a diesel ou aquela Maria Fumaça?
R – Olha, a diesel dava muito problema.
P/2 – Dava?
R – Muito problema.
P/2 – Que problema?
R – No motor dava muito problema. Eu muitas vezes fiquei, fiquei quatro vezes no meio do caminho. Uma vez fiquei em Quipapá, antes de chegar em Quipapá, meia légua mais ou menos. Mandei o guarda freio ficar tomando conta com o foguista e eu fui, com o outro menino, telefonar de lá da cidade.
P/1 – Foi pela linha?
R – Fui, fui. Fui andando, né? Cheguei lá, telefonei e ele veio. Vieram de carro, depois, para ajeitar.
P/1 – E depois aconteceu algum problema de descarrilamento?
R – Comigo houve um descarrilamento, mas foi muito pequeno, a gente mesmo resolveu; com aqueles trabalhadores de linha resolveu. Foi um carro que descarrilou, a gente puxou e colocou no lugar.
P/1 – E as pessoas tiveram que descer?
R – Não, a gente montou no macaco. O macaco que a gente usava e tudo. Agora, como tinha gente, gritavam muito por socorro, gritavam socorro, aí vieram ajeitar.
P/2 – Por causa dos passageiros, né?
R – É.
P/2 – Que lugar o senhor gostava, qual era a estação que o senhor mais gostava de passar com o seu trem?
R – Ah, eu gostava de viajar muito para Garanhuns, gostava de viajar para Maceió, Paraíba, gostava de viajar... E Sertânia, né? Eu também gostava muito de Sertânia. Local pacato, gente boa, sabe? Gostava muito de viajar para lá.
P/1 – E como é que era a relação dos maquinistas com o pessoal de estação?
R – Um povo tudo legal, povo amigo. Pode ser que mudou agora, mas naquele tempo era um povo tudo amigo. O povo tratava a gente bem, sabe?
P/1 – Então o senhor se aposentou quando?
R – Eu me aposentei em 1990.
P/2 – Bastante, né?
R – Em 1990.
P/1 – Todos esses anos de maquinista, depois que o senhor começou a trabalhar de maquinista?
R – Foi, eu me aposentei em 1990.
P/2 – E sempre ficou como maquinista?
R – Sim.
P/2 – Aquele período do começo e depois foi sendo como maquinista.
R – Faz 20 anos que estou aposentado.
P/1 – O senhor chegou a ensinar algum outro...
R – Ensinei, fui tutor.
P/1 – Maquinista...
P/2 – Foi tutor?
R – Fui, passei um tempo só ensinando, sabe? Aí: “Você vai ensinar e daqui a algum tempo o senhor vai voltar para trabalhar.” Mas depois houve um problema, aí a gente não voltou não. Foi somente uma aula que ele mandou a gente ir. Ele chamou a gente para passar, parece que, dois dias só, para fazer o teste lá com os meninos. Mas depois ele disse que teve que ficar trabalhando, depois resolveram não voltar mais, não voltei mais. Dois dias só, só para assanhar a gente, sabe? Só foi assanhar. A gente pensou que ia voltar e ninguém voltou.
P/1 – E como era ser tutor?
R – Era para ensinar a trabalhar.
P/1 – E era difícil?
R – Eu ia voltar a trabalhar, assim, na locomotiva, para ensinar na locomotiva como me ensinaram. Eu ia voltar a fazer isso, mas ele só fez tapear a gente dois dias e inventaram: “Não, vai passar mais não porque vem gente do Rio de Janeiro, não sei de onde, não sei o que lá...” E os meninos que estavam lá aprendendo voltaram. Até nem ficou não.
P/1 – E o senhor chegou a dirigir esses carros de manobra?
R – Qual?
P/1 – Essas locomotivas de manobra?
R – Sim, eu trabalhei, trabalhei muito. Trabalhei em cinco, trabalhei na Central, trabalhei em Jaboatão, trabalhei fazendo manobra... Trabalhei muito.
P/2 – Então, e aí o senhor decidiu se aposentar porque tinha um tempo já, senhor Francisco?
R – Não, porque passou. Eu me aposentei com 36 anos e seis meses.
P/2 – Passou. Aí resolveu se aposentar...
R – Foi.
P/2 – Naquela época já tinha conversa da privatização, senhor Francisco? O senhor lembra, em 1990? Ou só foi depois que o senhor se aposentou?
R – Parece que foi depois.
P/2 – O senhor acompanhou, quando eles começaram a falar em privatizar a Rede?
R – Eu ouvi.
P/2 – O senhor ouviu?
R – Foi.
P/2 – O senhor ficou triste?
R – Não fiquei muito triste não, porque eu já estava pretendo cair fora.
P/2 – Já estava fora (risos). Está certo, simples e objetivo. E a Associação lá, senhor Francisco, o senhor vai à Associação dos Ferroviários do Nordeste (AFN)?
R – Eu sou, sou vice tesoureiro de lá.
P/2 – Ah, e é boa lá?
P/1 – Ali em Jaboatão, né?
R – É muito boa lá. Eu sou vice-tesoureiro
P/2 – Tem bastante gente lá?
R – Tem, tem. Tem dois mil duzentos e poucos.
P/2 – Puxa vida!
R – De sócios.
P/1 – Essa da Associação dos Ferroviários do Nordeste, que fica em Jaboatão?
R – É, em Jaboatão.
P/1 – E qual é a relação dessa Associação com a Associação dos Ferroviários Aposentados do Nordeste (AFAN), que fica aqui no Centro?
R – Esse é por fora. Essa é outra Associação, eu já estive lá. A de Jaboatão é uma associação federal, essa, daqui, é a Associação dos Aposentados. A de lá (AFN) é federal, da parte do Governo, e a de cá (AFAN), esses de cá é dos que fizeram a opção, sabe? A gente não fez a opção, ficou como funcionário federal, porque eu sou aposentado com as duas aposentadorias. Eu tenho a aposentadoria do Ministério e tem a aposentadoria do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), porque lá eu sou aposentado pelo Ministério como agente de serviço de engenharia, e por cá eu sou aposentado como maquinista. Eu tenho uma dupla aposentadoria, eu peguei, Graças a Deus, as duas.
P/2 – E podia pegar, então?
R – Eu peguei. Eu e um bocado de gente, pegamos duas aposentadorias. Agora não tem mais duas aposentadorias, porque só naquele tempo antigo que ainda pegava, né? Eu peguei a do Governo Federal e a do INSS, como maquinista da Rede.
P/1 – O que o senhor mais aprendeu durante todo esse seu percurso de trabalho?
R – O que eu aprendi em trabalhar?
P/1 – É.
R – Alguma coisa?
P/2 – Para a sua vida.
R – Ah, eu trabalhei de pedreiro, eu trabalhei colocando azulejo em banheiro, aprendi colocando pedra em piscina, levantei muita casa...
P/2 – Para a sua vida, que tipo de lição o senhor tirou do trabalho?
R – Tipo de lição? Como?
P/2 – Para a sua vida, quer dizer, nesses anos todos de trabalho, indo nas estações, fazendo amizades... Que tipo de lição isso traz para sua vida, como pessoa?
R – Bem, eu aprendi só a ser, graças a Deus, bem quisto com todo mundo, e todo mundo conhece que eu sou uma pessoa que nunca tive raiva de ninguém, todo mundo gosta de mim. Aonde eu chego todo mundo me elogia, porque eu sou um cara que nunca teve confusão com ninguém, sempre fui um amigo, sempre fui camarada com todo mundo. Sempre ajudei, sempre fui uma boa pessoa, sempre gostei de ajudar todo mundo. Nunca fui...
P/1 – O senhor tinha algum apelido?
R – Na Rede o meu nome era...Ai meu Deus, “Zezo Boca Larga.”
P/1 – Ah, por quê? O senhor sabe?
R – Eu não sei, será que eu tenho a boca grande?
P/1 – Cantor...
R – Me chamavam Zezo Boca Larga (risos). Não sei por que botaram esse apelido em mim, assim (risos).
P/2 – Todo mundo tinha apelido?
R – É, tinha apelido na Rede.
P/1 – O que significou para o senhor ter trabalhado na ferrovia? De ser o maquinista, o cara que está levando o trem para frente?
R – Ah, eu sou muito feliz, graças a Deus. Foi um emprego que até hoje eu dou graças ao meu Papai do Céu, que era eu lá embaixo e fiquei por cima. Porque meu pai era muito pobre, fui lá de baixo e subi. Como pobre eu, hoje, me considero rico, pelo que eu era. Estou certo?
P/2 – Ôpa!
R – Pelo que eu era, eu me considero um homem rico hoje. Tenho meu emprego, sou agente federal, tenho dinheiro certo, o ordenado meu não é tão ruim assim, dá para viver com o meu amor e meus dois filhos, filhos dela, um está com dez anos e o outro vai fazer 12 já. Essa menina aí é o meu segundo casamento.
P/2 – O seu segundo?
R – É.
P/2 – O seu primeiro o senhor teve quantos filhos?
R – Foram 15.
P/2 – Quinze filhos?
R – Agora, com essa menina os filhos não são meus, legítimos, não. Quando eu fui morar com ela, no começo, um tinha três anos e o outro tinha quatro para cinco anos. Agora, ele me chama de pai, porque fui eu que criei, sabe? E eu gosto muito deles como filhos meus, graças a Deus. Gosto deles como meus filhos.
P/1 – Qual a importância, para o senhor, da gente fazer um trabalho como esse, de recolher diversas histórias, de pessoas que trabalharam na Rede? O que o senhor acha disso?
R – De quê?
P/1 – Desse trabalho que a gente está fazendo de recolher as várias histórias de pessoas que trabalharam na Rede para contar a história dessa ferrovia.
R – Esse é um trabalho muito lindo, muito bom. Eu estou achando um trabalho muito bonito que ninguém nunca viu.
P/1 – E o que o senhor achou de ter sentado aí nessa cadeira e ter contado...
R – Estou muito feliz, estou muito feliz...
P/2 – Gostou de dar a entrevista?
R – Gostei, gostei. Estou muito feliz, Jesus abençoe a vocês duas.
P/2 – Amém.
P/1 – Muito obrigada, viu, senhor José.
R – De nada. Jesus abençoe vocês
P/1 – Então em nome do Museu da Pessoa e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a gente agradece a sua entrevista.
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