Projeto Conte Sua História - SESC
Depoimento de José Francisco Folco
Código: PSC_HV022
Revisado por Fernanda Regina Ferreira
P/1 - Folco, para começar a entrevista, fala seu nome completo, a data do seu nascimento e onde você nasceu.
R - Eu nasci na cidade de São Paulo, no bairro da Penha, no dia 20 de março de 1951, um dia depois do dia de São José, por isso que minha mãe me colocou o nome de José, porque ela esperava que eu fosse nascer no dia 19, mas eu nasci no dia 20.
P/1 - E qual o nome completo?
R - José Francisco Folco. Meu pai também chama Francisco, mas eu tenho esse José porque quase nasci no dia de São José.
P/1 - Me fala, então, o nome do seu pai e da sua mãe.
R - O meu pai é o Francisco Folco, minha mãe é Maria de Lourdes Cespe Folco.
P/1 - Qual origem deles? Eles nasceram onde?
R - O meu pai também é penhense, nasceu na Penha; minha mãe nasceu em Campinas. O pai da minha mãe, meu avô materno, era artista sacro, ele pintou a igreja da Penha, as paredes, o teto, todos aqueles motivos religiosos, bíblicos, da igreja. Ele veio para São Paulo para fazer a pintura dessa igreja. Foi quando minha mãe veio para cá, ainda criança, menina. E o meu pai já nasceu aqui na Penha, meu avô quem veio para Penha, meu avô veio da Áustria. Quer dizer, no passaporte dele, na documentação dele tinha como austríaco, mas hoje a cidade que ele nasceu, Bolzano, pertence a Itália. É uma cidade que estava sempre entre a Áustria e a Itália. Quando ele nasceu era Áustria, depois o Mussolini tomou de volta para Itália.
P/1 - E qual o nome, então, do seu avô que pintou a igreja?
R - Alfredo Cespe, que pintou a igreja. Meu avô paterno é o Guilherme Folco.
P/1 - E das suas avós, então, o nome delas?
R - A minha avó era Romana (Bolzaquini) [00:02:00], bem italiano, que é a avó paterna, e a Regina de Oliveira Cespe, que era minha avó materna.
P/1 - A parte da sua mãe era italiana também?
R - É, também é italiana. (Chespe) [00:02:20].
P/1 - Então, tanto de um lado quanto do outro a origem é italiana?
R - Origem italiana.
P/1 - E na sua infância, teve influência dessa origem?
R - Com certeza. A minha avó, ela falava com aquele sotaque italiano bem carregado, uma senhora contadora de história. Ela era paralítica, eu nunca vi minha avó andar, e ela não queria a cadeira de rodas, ficava sentada numa cama, na rua Caquito aqui na Penha, mas eu tinha uma relação afetiva muito gostosa com ela. Ela era uma senhora contadora de histórias, eu me deliciava de sentar ao lado dela e ela ficar contando as histórias. Eu lembro uma história que me marcou bastante, foi quando ela me contou a história do Titanic, como é que tinha acontecido, e essa história me marcou tanto que quando eu assisti ao filme… Uma babaquice aquele filme, uma história de amor com o motivo do Titanic, porque a verdadeira história do Titanic, a minha avó contava que o homem desafiou Deus, o homem fez um navio indestrutível, e dentro do navio estava todos os valores da época, era uns automóveis, aquele luxo todo, e as pessoas tinham esquecido de Deus, e de repente... um iceberg. Eu ouvia aquela história assim. Minha avó contava muitas histórias, com aquele sotaque bem italiano. E a minha avó Regina, avó materna, eu não tinha muito contato com ela, mas ela morreu cedo, eu tinha cinco anos de idade quando ela morreu. Então, foi mais com a minha avó materna mesmo essa relação.
P/1 - Vocês moraram com ela, com a sua avó?
R - Não, não. Eu lembro vagamente até, acho que até uns cinco anos de idade, eu morava numa espécie de edícula na casa dessa minha avó materna, mas depois o meu pai já tinha comprado o terreno, já tinha construído a casa na Arnaldo Vallardi Portilho. Meu pai, na época fez uma loucura, porque ele comprou um terreno num lugar de elite aqui da Penha, uma coisa muito cara, ia todo o salário dele para pagar o terreno, mas a minha mãe era professora, e professora na época ganhava muito bem. Então, a minha mãe que sustentava a família. Minha mãe, pouco tempo depois se tornou diretora da escola, e o salário de professora, na época, era muito bom. A gente tem casa aqui na Penha... verdadeiras casas, quase mansões que eram de professores. Professor construía uma casa bonita, grande, nos velhos tempos da dignidade do professor. Então, graças ao salário da minha mãe, meu pai conseguiu então comprar o terreno e construiu a casa.
P/1 - Seu pai trabalhava em quê?
R - Na Light. Meu pai era engenheiro eletricista, trabalhou na Light. Ele se formou engenheiro graças a um tio que ele tinha, o tio brasileiro que ele tinha, irmão do meu avô, porque meu avô achava que ele não precisava estudar, como todo europeu. Como meu avô era alfaiate, então meu pai tinha que ser alfaiate também, e meu pai chegou até a fazer um terno. Aí, por influência desse tio brasileiro, o João Folco, ele chegou a ser prefeito da cidade de Cajamar, ele era procurador do estado. Então, por influência dele, meu pai estudou. Teve também um pessoal da Light que ajudou muito ele. Ele conseguiu cursar então, fez o curso de engenharia. Depois, mais tarde, meu primeiro emprego foi nesse prédio aqui. Bom, deixa eu falar mais um pouquinho da infância, daqui a pouco eu falo.
P/1 - Seu pai entrou para trabalhar na Light. Ele ainda não era engenheiro?
R - Não, ele entrou como mensageiro, com 14 anos, em plena época da segunda guerra mundial. Nenhuma empresa pegava funcionário nessa época, mas a Light estava em expansão, e foi lá que os engenheiros gostaram muito dele, os canadenses gostaram muito dele, e deram licença para ele poder fazer a escola de engenharia.
P/1 - Que bom.
R - Ele trabalhava nos fins de semana para compensar, coisas assim. Ele recebia uma ajuda muito boa dos canadenses, os canadenses gostavam muito dele. E minha mãe era diretora numa escola que ficava aqui na Penha. Nessa época, minha mãe me criou com um certo sacrifício porque não tinha creche. Eu fui para esse São Vicente de Paula, uma escola de freira. Naquela época tinha o prézinho com cinco anos de idade, e antes disso a minha mãe me levava na escola, que na verdade era um parque infantil, era um parque de recreação. Minha mãe me levava escondido, e eu era criado pelas ninfetas lá, as menininhas da escola, meninas de seis, sete anos.
P/1 - Você, bebê?
R - É, desde bebê. Depois crescendo com dois, três, sempre indo para escola da minha mãe escondido. Quando aparecia alguma visita oficial, um vereador, alguma coisa, as meninas me levavam para o toalete e me escondiam lá. A minha mãe, a geração da minha mãe era assim: a minha mãe era a única mulher casada, com filho, que trabalhava, porque nessa época da minha mãe, todas as colegas dela eram solteiras ou solteironas, têm aquelas que eram solteironas, mas as solteiras casavam e saíam.
P/1 - Entendi.
R - Era o hábito da época. A minha mãe foi uma pioneira em ser uma mulher casada e com filho a trabalhar, e dirigir, ter carro. Eu tinha vergonha de sair de carro com a minha mãe porque o pessoal mexia com ela. “Ah, não sei o quê, vai lavar roupa”, foi o início da mulher dirigir um automóvel. Ainda na zona sul de São Paulo, Ibirapuera, tudo bem, mas aqui na Penha era...
P/1 - E a relação da sua mãe com seu pai nesse sentido, assim, como que acontecia? Porque ela era pioneira.
R - Sempre foi uma relação muito romântica. Segunda-feira era o dia sagrado deles irem ao cinema. Acho que tinha um cinema, e o hábito de ir ao cinema. As pessoas naquela época tinham o hábito de ir ao cinema. Não ia no cinema assistir tal filme, não, era dia de ir ao cinema, e assistia o que estava passando lá. Aí voltavam, “ai, que filme bom”, ou “que filme porcaria”, mas era o hábito de ir ao cinema. Meus avós tinham esse hábito, eu também, de criança, tinha esse hábito de ir na matinê. Às vezes era um filme legal, as vezes não era, mas era o hábito. Não tinha essa coisa de ficar na televisão. Eles eram um casal muito romântico, foram assim a vida inteira: muito românticos.
P/1 - E eles com você, assim, que lembranças você tem da sua mãe em relação a você, além dessa de você ir para escola escondido com ela… e do seu pai, assim, marcantes para você? Da sua mãe e do seu pai?
R - O meu pai, ele foi como engenheiro, meu pai era um cientista. Então, ele me ajudava muito. Os presentes que meu pai me dava eram câmera fotográfica, luneta, microscópio, aquela coisa de cientista, mesmo. Então, meu pai me incentivou muito nisso. A minha mãe, com leitura. Então, eu graças a Deus tive uma formação na infância boa por ter uma professora e um cientista. Meu pai chegava do trabalho (ele tinha uma oficina), ia para essa oficina, ficava enfurnado lá. Ele era um hacker do tempo dele, tinha um domínio da eletrônica incrível. A gente chegou a ter, numa época que a televisão era uma coisa cara e poucas pessoas tinham TV, nós chegamos a ter cinco aparelhos de TV em casa, porque ele ia na Santa Efigênia comprar as peças e montava a TV. E a TV não tinha caixa, você via as válvulas, era só tubo, a caixa era cara. Então ele montava a TV em casa, o que a molecada faz hoje com computador. Meu pai era um hacker no tempo dele. Antena. Eu lembro que eu era criança, eu lembro que meu pai pegou um rádio portátil - naquela época o rádio portátil era um negócio grande porque a bateria era grande - a gente foi lá na avenida Miruna, porque eles queriam ver a nova antena da rádio Record, estavam testando a antena, aquelas coisas loucas. Ele consertava a TV dos amigos, esse tipo de coisa. Teve uma época que a Rádio Eldorado lançou um programa, que seria como se fosse hoje um decodificador que você colocava no rádio, e você tinha música ambiente o dia inteiro, sem propaganda, e você pagava isso por mês. Pois meu pai conseguiu copiar esse negócio e a gente tinha essa música ambiente sem pagar. Aí, alguém mais deve ter feito isso e a rádio Eldorado mudou a codificação do aparelho. Meu pai ficou doido da vida, ficou lá na oficina, mas conseguiu fazer o aparelho novo e pegar. E uma lembrança que eu tenho dele também, foi a invenção do forno de micro-ondas. Foi assim, ele falou “só tem um emissor, um receptor, de micro-ondas, se eu colocar qualquer coisa no meio vai mexer nas partículas de água e a coisa vai se aquecer”, e ele fez isso na oficina dele, botou um emissor, um receptor, botou um pedaço de pão no meio. A gente saiu, porque micro-ondas é mortal, fechou a porta da oficina, ele ligou uma chave lá fora, deixou uns 30 segundos, ligou, entramos e o pão estava quente. Só que o meu pai não sabia como isolar a micro-onda, não sabia como isolar. Depois, quando surgiu o forno de micro-ondas, meu pai olhou “puxa, eu podia ter inventado esse negócio, eu não tinha como isolar isso”, que você não vai fazer um forno que você tem que sair de casa para ligar a chave. Mas ele tinha um conhecimento assim, cientifico, de eletrônica, de eletrotécnica, maravilhoso.
P/1 - E você ficava perto dele, assim, quando ele ficava mexendo nas coisas?
R - Eu não entendia nada. Agora, a gente está com um material lá no Memorial que era a caixa que ele testava válvula, está lá ainda, no Museu de Eletrônica. Ele carregava aquele negócio lá, quando tinha uma TV, algum problema na TV, ele ficava testando as válvulas nesse aparelho.
P/1 - E você se atrevia a fazer, também, essas coisas?
R - Eu cheguei a montar um rádio com muito sacrifício, não era muito a minha praia, não. Ele me encheu a paciência lá, num dia, de eu montar um rádio para mim, e como o rádio era para mim, eu acabei tendo um pouco de motivação, mas eu sofria naquele negócio de solda, de soldar peça, soldar resistência, queimava o dedo, eu não tinha essa habilidade que ele tinha. Inclusive, ele e um amigo chegaram a fazer uma coisa muito louca, que talvez tenha sido a primeira transmissão de um concerto pela TV em som estereofônico, que não existia na época. Porque foi assim, eles tiveram a ideia de a TV Cultura transmitir o concerto por um canal, e o rádio transmitir outro canal. Então, se você ligasse a TV e o rádio, você ia ouvir em estereofônico...
P/1 - Eles fizeram...
R - … e a rádio Cultura chegou a fazer essa transmissão, da TV com o rádio, então você ligava a TV e ouvia o rádio, você tinha o som estereofônico, que ainda não existia a transmissão do som estereofônico.
P/1 - Ele fez em parceria com TV Cultura, ou não, foi uma experiência que ele fez?
R - Não, foi uma experiência. Esse amigo era da TV Cultura. Eles tiveram essa ideia de testar um negócio desse aí, conseguiram. Olha, não sei, não há registro disso, pode ser até que foi a primeira transmissão de TV em som estereofônico na época.
P/1 - E sua mãe, que lembranças você tem, assim, em relação a você principalmente, dela?
R - Bom, a minha mãe era muito mandona, por conta de que nessa época você não tinha a facilidade que você tem hoje, de comida pronta, esse tipo de coisa. Então, você imagina a minha mãe trabalhar o dia inteiro e chegar em casa ainda ter que preparar jantar. Minha mãe cozinhava mal, eu não gostava da comida dela. Eu não gostava de arroz e feijão, só mais tarde que eu descobri que o arroz e feijão era gostoso. Olha, a comida dela era muito ruim, coitada, eu entendo, porque a dificuldade era diferente de uma mulher que faz a comida com maior carinho para família, não, ela fazia aquilo porque era obrigada a fazer. Eu lembro, teve uma época que a gente tinha, sempre teve uma empregada em casa para fazer um almoço, quando minha mãe trabalhava. Eu lembro que uma vez tinha uma empregada que era alcoólatra, ela começava a beber de manhã e na hora do almoço ela ficava meio bêbada, a gente ficava com medo dela. Nós atravessávamos a rua e ia pedir ajuda numa vizinha, que era uma turca que fazia uma comida maravilhosa, eu ficava até torcendo para empregada ficar bêbada para ir almoçar lá na vizinha. Uma coisa também, que eu lembro é que tinha o costume de três horas da tarde, três e meia da tarde, tomar o café da tarde, era um costume na época. E a gente estava jogando bola na rua, época de férias, e as mães apareciam lá “tomar café”, a minha mãe não aparecia, a minha mãe estava trabalhando, então eu estava sempre indo tomar café e, sabe, eu sofria até um certo preconceito, que as pessoas falavam assim “nossa, mas sua mãe trabalha”, era como se meu pai fosse um frouxo, sabe, como se meu pai fosse um incompetente. "Como é que um homem pode deixar uma mulher que tem filhos, trabalhando". A gente tinha esse preconceito. Eu lembro que eu machuquei, uma vez, o joelho na escola, e aí eu mostrei para minha mãe, “machuquei o joelho, tal”; a minha mãe, coitada, precisando trabalhar, cheio de coisa, falou assim “ah, passa aí um Merthiolate que está bom”. Eu sei que o negócio infeccionou, começou a doer, e o diretor da escola, do Liceu Santo Afonso aqui na Penha, pediu para dois funcionários da escola me levarem ao hospital. Aí me levaram no hospital, “vamos levar para casa. E a sua mãe?”, “minha mãe está trabalhando”, “trabalhando?”, era assim o preconceito. Mãe não podia trabalhar. Claro, a não ser mulheres pobres, lavadeiras, porque, como meu pai dizia, era a mulher lavando roupa e a criança chorando, “a criança está chorando e a mulher lavando roupa”, "a mulher lavando roupa e a criança chorando", mas com vínculo empregatício, uma mulher com filho, não tinha esse vínculo empregatício, tinha trabalho. Então, a gente tinha esse preconceito, da minha mãe trabalhar, dirigir... chamava a atenção da vizinhança a minha mãe chegando com o carro.
P/1 - Você era o único filho?
R - Não, duas irmãs, com quatro anos de diferença uma da outra. Os exatos quatro anos eram porque a cada quatro anos a minha mãe tinha licença prêmio, então ela juntava a licença prêmio com a licença de gravidez, ficava uns nove meses em casa. Então, a minha mãe resolvia ter um filho na época da licença prêmio.
P/1 - De você para uma irmã tem quatro anos?
R - Quatro anos, depois para mais nova...
P/1 - Você é o mais velho?
R - É, eu sou o mais velho.
P/1 - E como era a convivência com suas irmãs?
R - Muita briga, muita briga.
P/1 - Por que?
R - O filho mais velho sempre é aquele que carrega o piano, e a minha irmã mais nova era a que tocava piano. Nos afazeres domésticos, então, a minha irmã lavava a louça, a irmã do meio. Eu enxugava a louça. A minha irmã do meio já fazia comida com 12, 13 anos. E a minha irmã mais nova lá no piano.
P/1 - Literalmente?
R - É, literalmente. A gente tinha piano em casa, minha irmã do meio também estudou piano, eu tocava também, de ouvido, nunca fiz aula.
P/1 - Você gostava de piano?
R - Gostava. Eu toco até hoje, de ouvido. Eu tenho um ouvido bom para música, eu ouço música uma vez só e guardo.
P/1 - Mas como é que descobria, como é que funciona isso?
R - É no ouvido. A minha mãe conta que, quando eu cheguei bebê em casa, meu pai ouvia música erudita o dia inteiro, o dia inteiro. E meu pai falava assim para minha mãe, “eu não vou abaixar o som, ele vai ter que se acostumar”. Minha mãe conta que eu me acostumei. Eu fiquei com o ouvido hiper lapidado, então, eu com cinco anos, meu pai me fazia passar aquela vergonha, assim, com cinco, seis, sete anos, ficava me exibindo para as visitas, “quer ver uma coisa?”, punha lá um concerto, “quem é o compositor?”, “esse é o Mozart”, “que música é?”, “é o concerto número 40”, e meu pai ficava “nossa, que menino prodígio”, sabe. E aí você vai lapidando o ouvido. Para você ter uma ideia, eu cheguei a dar um curso de musicologia, sem entender de música, sem conhecer partitura, eu cheguei a dar um curso de musicologia para músicos que não conseguiam mais ouvir; porque chega um determinado momento que o músico começa a ler a partitura, ele não ouve mais o que está tocando, ele vai seguindo automaticamente a partitura. Então, eu cheguei a fazer um trabalho com eles para ouvir. E eu tenho um ouvido musical excelente. Eu tocava, a gente tinha uma banda de rock, eu era o baterista, e todo mundo tocava ali, de ouvido. Eu pegava uma música, por exemplo, uma música dos Beatles e mostrava para cada um como que tinha que ser o instrumento, como que o instrumento tocava. Eu dizia “o baixo tem que fazer assim, tum tum tum”, aí o acompanhamento “tem dem tem dem”, eu imitava o som do instrumento, porque eu conseguia dividir os sons da banda. Meu ouvido foi bem lapidado. E o meu avô, esse avô paterno... A minha mãe estava me enchendo a paciência de ir também estudar piano e tal, eu lembro que o meu avô falou assim “não, não deixa ele estudar que ele vai perder o ouvido”, olha que interessante. Mais tarde que eu fui entender o que o meu avô tinha dito, essa questão do ler partitura e o ouvido para música, a diferença.
P/1 - Agora, como que passa do ouvido para tocar?
R - Você acha a nota. Você "tom, tim, tom tom", essa nota, a segunda, "tom tom tom", essa, você vai achando a nota. Depois, no decorrer do tempo, você começa a achar a nota, assim, com mais facilidade. Por exemplo, começa uma música que eu conheço, claro, no segundo, terceiro acorde da música eu já sei que música que é, mas é assim, você vai, chega no teclado "tom, tom", você vai achando a nota. E aí, vou dar um exemplo, às vezes eu imitava uma determinada música, de um compositor, de um cantor, sendo cantada por outra, no meu estilo. Então, vou dar o exemplo do que tocava as músicas todas iguais, o Ray Conniff. Ele, para mim, era tudo igual, tudo igual, estilo Ray Conniff. Então, eu fazia assim, “quer ver o Ray Conniff cantar o hino nacional brasileiro? Ta ram, tan ran tan tan”, pela sequência da musicalidade do grupo eu incorporava, assim, numa outra música, mas faço tudo isso de cabeça, tudo isso aí na cabeça.
P/1 - E sai depois de tudo isso?
R - Sai. Olha, eu pego o metrô e vou lá para o Guarujá, para o Jabaquara, o trajeto é longo da Penha até o Jabaquara, eu ouço música de cabeça, não ponho fone, não ponho nada, eu pego uma música e vou, pego uma Bachiana do Villa Lobos e vou ouvindo ela.
P/1 - De memória?
R - De memória. Então, por isso que não é nada difícil você entender como o Beethoven conseguia compor surdo. E como o Beethoven ouvia sem estar ouvindo. Eu acho possível, é uma questão de hábito. Eu acho possível qualquer pessoa do mundo. Não sinto isso um privilégio, não, eu acho que é uma questão assim, de você pensar numa música e começar a seguir essa música, de cabeça. Vai ouvindo a música, não é possível, gente, pega uma música e vai ouvindo ela de cabeça.
P/1 - Muito bom.
R - Mas isso, volto a dizer, foi graças ao meu pai, que lá de bebê eu ficava ouvindo música o tempo todo, e música, música, música; e quer queira, quer não, lapida bem o ouvido os tons musicais.
P/1 - Muito bom.
R - Então é isso.
P/1 - Fechou, por enquanto.
R - Nossa, eu falei num monte de coisa que não tinha nada a ver, eu comecei a falar de música.
P/1 - Folco, agora uma história engraçada de quando você era criança, brincando na rua de bola, tem alguma? Não precisa ser jogando bola, você brincava muito na rua?
R - Na minha rua eu tinha uma relação com o feminino muito grande. Eu tinha duas irmãs, eu fui, durante muito tempo, o único neto homem; na minha rua só tinha menina, tinha muita menina; tive duas filhas; uma coisa assim, com o feminino, muito forte. Eu tinha dois amiguinhos, eram poucos na infância, tinha muita menina lá, brincava com as meninas, aquela coisa de mãe da rua, de pega-pega, mas as brincadeiras de roda eu não gostava muito porque era bem feminino mesmo, as brincadeiras de roda lá. A minha rua era o único trecho da rua que era plano, a rua (Novair Portira) [00:25:44] tem uma descidinha assim, depois ela vem plana, e tem outra descidinha, era a parte mais plana, então toda molecada ia para lá para jogar bola, então ia jogar bola lá. Eu tive uma infância, tirando o São Vicente, a escola que eu estudei, que era uma escola de freira, educação muito rígida, educação católica rígida, tinha que rezar antes da aula, rezar no intervalo, rezar na saída, e eu tinha uma angústia muito grande quando terminava a aula, que era se ia ter alguém para me buscar, porque minha mãe trabalhava e deixava para alguém me pegar, um tio. Esse tio quando via uma mulher bonita na rua, seguia ela e me largava lá. Eu tinha uma angústia muito grande, na saída, assim, os pais todos esperando as crianças e eu estava naquela angústia. E umas três ou quatro vezes não apareceu ninguém para me buscar, e a freira me levou para um lugar horrível, sabe, um lugar escuro, cheio de santo, era horrível. Eu peguei uma aversão ao catolicismo por causa disso durante muito tempo, apesar do meu avô ter sido um artista sacro, minha mãe ser uma pessoa hiper católica, minha mãe é muito católica, eu peguei uma aversão por causa disso. O único senão da minha infância era o São Vicente, o São Vicente era uma escola muito tétrica.
P/1 - Foi a primeira escola?
R - Foi. Então, porque o São Vicente na época era a única escola que tinha a pré-escola, eu entrei com cinco anos. E fiz todo - na época chamava curso primário - lá. Depois, eu fui para o ginásio, no Ateneu Ruy Barbosa, cujo diretor era meu padrinho de batismo, por coincidência. Precisavam arrumar alguém para me batizar, na hora cataram ele lá, mas eu lembro muito das festas da Penha, das festas de oito de setembro, a Penha era um bairro que tinha muita atividade para gente da nossa idade. Jogava bola aqui também, no campinho do seminário. Uma vez nós jogamos contra os padres, e os padres jogando de batina, não tiravam a batina para nada, nem para jogar bola. Era muito engraçado ver os padres jogando bola com aquele saião. A gente ia aos cinemas, ao Rio Tietê, passeio de barco...
P/1 - Passeou de barco no Tietê? Era limpo?
R - Era assim, não era limpo, mas ainda não era sujeira química, ainda tinha peixe, não era uma sujeira química. Tinha dias que quando ficava muito tempo sem chover, vinha um cheirinho fétido de esgoto, então já não era assim tão limpo, mas ainda tinha peixe, porque o peixe sobrevive ao esgoto, não sobrevive ao esgoto industrial. Ainda não tinha, o Tietê ainda não era o esgoto da cidade como é hoje, hoje o Tietê, infelizmente, é o esgoto da cidade. E a Penha era um bairro muito festeiro, muitas festas, era uma festa atrás da outra, várias quermesses, aqui no Largo do Rosário sempre tinha alguma coisa, desde um parque infantil, trem fantasma, roda gigante, sempre tinha alguma coisa.
P/1 - Os parques eram montados?
R - É, eram montados tudo no Largo do Rosário, o Largo do Rosário era uma festa. Então, a Penha era um bairro assim, muito festeiro. Eu frequentava a Legião de Maria, um negócio assim, mas só por causa do rock, porque a gente tinha uma banda de rock lá, com os instrumentos, a gente ensaiava de sábado, eu ia na Legião de Maria só por causa do rock. Depois que acabou a banda, não quis mais saber daquele negócio lá, mas eu compensava, porque rezávamos lá uns 15 minutos e depois ia tocar rock.
P/1 - Quem organizou essa banda de rock?
R - Não entendi.
P/1 - Quem organizou a banda de rock?
R - Eram uns colegas de escola, era Os Caveiras. Eu fui "beatlemaníaco", eu peguei a geração dos Beatles, então a gente basicamente tocava Beatles, não gostávamos muito de jovem-guarda, Roberto Carlos, não era chegado muito nisso, não. Eu gostava dos Beatles, de Rolling Stones...
P/1 - Vocês tocavam onde?
R - Esse prédio é onde fica o cartório hoje, que era o antigo cinema, é um prédio que é da igreja que fica um pouquinho ali para baixo, naquela época chamavam de Legião de Maria. A gente chegou a tocar em baile, também, no Clube Esportivo da Penha, baile, como é que fala, matinê, coisa de cinco horas da tarde, chegamos a tocar.
P/1 - E você tocava qual instrumento na banda?
R - Eu tocava bateria só. E minha bateria era de jazz, então o baixo era grande, ele era estreito e grande, normalmente os baixos são assim, compridos, ele era grande, como se fosse um bumbo de banda. Uma vez esse bumbo, eu tocando a bateria, me empolgando, aí quebrou não sei o quê lá do baixo, e ele caiu, rodou no palco, e eu tinha na época uns 15, 16 anos, você morre de vergonha, numa idade dessas você dá um furo desse, nossa, mas eu morri de vergonha, não queria mais tocar em baile, a vergonha que eu fiquei. E uma vez, também, a gente foi tocar lá no Esportivo e chegou, olha, nessa época tinha o Juizado de Menores, não tínhamos autorização para ficar em palco tocando. O Juizado de Menores não deixou a gente se apresentar.
P/1 - Acabou com o show.
R - É, com o nosso, inclusive foi outra banda de adulto. Aqui no São Geraldo, também é uma outra coisa que eu lembro, no São Geraldo, a gente era amigo do gerente, o São Geraldo é na minha rua ali, nós éramos amigos do gerente e ele deixou eu assistir meu primeiro filme proibido a 18 sem ter 18. Eu fui lá na casa das máquinas, na janelinha, porque se o Juizado de Menores pegava, fechava o cinema. E o filme era proibido a 18 por causa de droga, e olha o que era a nossa ética na época, nossa educação; a hora que eu vi a cena, o cara pegava uma caixinha de fósforo e começava a fumar maconha, eu fiquei vermelho. Olha, eu fiquei vermelho de vergonha, eu não podia estar lá vendo aquilo. Porque eu estava louco para ver o filme proibido para 18, mas de mulher pelada, não de cara puxando fumo, aí deixou eu assistir, e ao invés de eu ver mulher pelada, eu vi o cara lá puxando fumo, e eu fiquei com vergonha, fiquei vermelho de vergonha.
P/1 - Vocês… além da banda de rock nessa fase de adolescência, quais eram as diversões? As festas na Penha, a banda, e tinha mais alguma outra atividade? Ou diversão, atividade?
R - Eu fazia judô, tinha competições, levando em consideração a minha altura, porque o judô foi feito para baixinho. Levando em consideração a minha altura, até que eu fui bem no judô, mas chega uma hora que não dá mais, porque quando você é alto, você cai para caramba, e dá uma dificuldade. O judô foi feito para baixinho, para o japonês, o sujeito alto é uma oportunidade para você ser derrubado o tempo todo. Eu cheguei até a ganhar medalha no judô. Então, o que eu comento dentro da arte e da educação, o que tira a molecada hoje da rua, é educação física e educação artística. Então, eu tinha uma educação artística no sábado, a noite a gente fazia cinema na garagem de alguém, tinha projetor de cinema, passava filme. Então, você tinha uma atividade artística, e tinha atividade física, que no caso era o judô. É o que tira a molecada da rua, se a molecada não tem educação física e educação artística, fica aí perambulando pelo shopping, sem nada o que fazer.
P/1 - E você, essa parte artística de passar filme, assim, como que começou, como que era?
R - Com meu pai, meu pai. Eu tenho até um museuzinho do cinema lá em casa, meu pai sempre foi ligado em cinema. Eu tenho até filme que preciso restaurar, não sei onde ainda, que é um padrão diferente da (Pater nove milímetros e meio) [00:34:04], que é um padrão da (Pater) [00:34:07] francesa, para filme caseiro. Eu tenho filme com um ano de idade, minha festinha de um ano de idade, coisa que na minha idade ninguém tem. De um ano de idade, com três, com paisagem da Penha, minha mãe passeando no Ibirapuera de carro, de óculos escuro gatinho, lenço na cabeça, e eu precisava restaurar isso, eu não consegui ainda restaurar. Talvez a melhor restauração fosse escanear quadro a quadro, porque vai ser difícil passar esse filme, projetar e gravar desse filme. Então, meu pai sempre gostou de cinema, eu tenho lá no museuzinho desde o projetor manual, passar o filme na mão. Aqueles filmes antigos, quando tinha legenda, a legenda usava três ou quatro quadros só, porque o sujeito parava a máquina, você vê como a lâmpada está fraca. Se fizer isso hoje, queima o filme. Então, parava lá e continuava passando. E eu tenho, também, uma filmadora que era à corda, dava corda e filmava. Então, meu pai foi muito ligado assim, em fotografia, e em cinema, e eu peguei essas coisas dele.
P/1 - E você que organizava essa projeção, para quem vocês passavam, conta um pouco.
R - Para os vizinhos, para molecada da rua, era Gordo e Magro, aquelas comédias assim. Tinha um menino que ele tinha um parente que trabalhava na TV Excelsior, na antiga TV Excelsior, ele pegava filme lá, emprestava um filme, aquele rolo. Só que ele tinha um projetor só, então quando terminava, tinha que colocar, ou dava aquele tempo para mudar o rolo, depois rebobinava tudo, punha um pano branco lá, fazia a tela, e a gente fazia o cinema.
P/1 - Na garagem da sua casa?
R - Na garagem de um vizinho, porque ele tinha uma garagem maior.
P/1 - E ía só a moçada assistir, ou ia mais gente?
R - Era o quê?
P/1 - Ia só a moçada?
R - Só, só. Só molecada. A gente pegava filme para moleque, mesmo, era comédia, a gente pegava coisa assim. A gente só não gostava de Elvis Presley, que as meninas pediam filme de Elvis Presley e era um saco. Filme de Elvis Presley era um saco. Apesar que os filmes do Elvis Presley sempre tinha meninas muito bonitas, cheio de menina bonita, mas era um saco assistir o Elvis.
P/1 - Você lembra o primeiro filme que você assistiu no cinema?
R - Eu não lembro.
P/1 - Ou a primeira vez que você foi ao cinema?
R - Eu ia no cinema assim, pequeno, para fazer companhia para minha mãe, porque ela queria ver o filme e minha mãe, acho, que não tinha onde deixar, levava lá que eu ficava dormindo, ficava resmungando, filme chato. Uma lembrança que eu tenho, foi inesquecível isso, isso foi inesquecível. Eu tinha ouvido falar do tal do Cinerama, então um dia meu pai falou “você vai conhecer o Cinerama”, meu pai já tinha ido lá. A gente pegou o bonde (naquela época ainda tinha o bonde), pegamos o bonde na Penha, e ele parou bem na frente do cinema, Cinerama, Cine Comodoro. O prédio ainda existe, abandonado. E eles preparavam a gente para o Cinerama, foi uma coisa assim, emocionante. Sentamos, tal, aí abriu a cortina (naquela época tinha cortina o cinema); abriu a cortina e começou o filme. Para mim era um filme comum. O sujeito chegou no aeroporto, entrou no avião, o avião subiu… a hora que o avião estava no céu, nossa, abriu toda a cortina, ela era daqui até aqui, olha, eu conto isso e me arrepia, a tela era daqui até aqui, você segurava na cadeira assim, parecia que você estava no avião, uma coisa assim, emocionante mesmo, aquela experiência do Cinerama foi uma coisa louca. A tela era, eu sempre faço confusão de côncavo e convexo, e o filme ia daqui até aqui. Tem até um filme, aquele 2001 - Uma Odisseia no Espaço, que uma menina comentou “ai, eu assisti ao filme e achei tão bobo aquela nave passando ali, ficou lá uns três minutos passando a nave”, então, aquele filme foi feito para Cinerama, que você está no Cinerama, vê a nave e ela começava ali, passava por toda a tela e saía do lado de lá. Você ver numa telinha desse tamanho, não tem graça nenhuma. O próprio Ben-Hur, Os Dez Mandamentos, eram filmes já feitos assim, para telas de grande proporção. O que está acontecendo hoje com o futebol na TV. Hoje eles estão mostrando o futebol, como os aparelhos de TV são grandes, então não tem mais aquela de a câmera ficar acompanhando o jogador. Não, eles estão mostrando o jogo como um todo. Aí, quando você vai numa televisão pequenininha, você não vê a bola, se não consegue entender, tem criança que não consegue mais ver a bola.
P/1 - Folco, e da escola, assim, quando você saiu da escola São Vicente aí...
R - Fui para o Ateneu.
P/1 - ...ginásio, segundo grau, você teve algum professor que te marcou?
R - O professor de História me marcou, acho que todos, principalmente o professor de História.
P/1 - Por que?
R - Ele tinha uma didática muito legal, transformava a sala num jornal. Então, a gente tinha um jornal que chamava Bossa Velha, fazíamos uma pesquisa histórica, como se fôssemos repórteres, e fazíamos o jornal. Nossa, a gente aprendia para caramba, a didática dele era muito legal. Era uma redação de jornal, a gente escolhia as notícias, piadinhas, tudo, seção esportiva. Então, pesquisava lá quem tinha sido campeão naquele ano.
P/1 - Você viveu a ditadura?
R - Vivi. Vivi a ditadura.
P/1 - Tem alguma lembrança que você acha importante comentar?
R - Eu lembro assim, o padre Calazans organizou lá uma reunião com os operários dentro da igreja, apareceu a cavalaria do exército, cercando a igreja, minha mãe falou “entra para dentro, não sai mais”. Tinha aquela coisa assim, de você estar conversando entre quatro, cinco pessoas na calçada e a polícia passava “vai circulando, circulando”, você não podia conversar na rua em três ou quatro pessoas. Um dia eu estava passando na Praça da República, eu tinha uns 17 anos, e apareceu um cara da polícia do exército, dava medo esses caras, eles pareciam nazistas, sabe, parece que escolhiam a dedo, eram brancões assim, loiros, altos, parecia nazista mesmo. E aí “cadê sua reservista?”. Como eu era alto, eu aparentava sempre ser mais velho do que era, eu falei “eu não fiz exército”, “como não fez exército? Que ano que você nasceu?”, “nasci em 51”, ele vira para o outro “os nascidos em 51?”, “vai se alistar o ano que vem”, “some daqui”, era assim. Foi um período difícil.
P/1 - Aqui na Penha, você lembra de, além dessa situação que você contou da igreja, teve alguma outra marcante?
R - Não tinha, porque a Penha era um reduto de direita. A Penha era um reduto de direita, é até hoje. A Associação Comercial, o pessoal estava tudo... na época que o Maluf construiu esse prédio aqui, foi destruída a mansão da família Prates, que poderia ter sido o Centro Cultural nessa mansão, mas eles eram muito progressistas, aquela coisa “a Penha precisa progredir”, compraram essa ideia de progresso, que na verdade (inint) [00:41:46], mas sempre foi um reduto de direita. Então, um fato só que eu também lembro, foi na rua Caquito, o Eugênio, que é o dono da Gazeta Penhense era repórter da época, do jornal, que era do pai dele, e aí ligaram para o jornal dizendo que tinha tido um assassinato la na Caquito, e ele correu para lá, para fazer a foto. No que ele chega lá, estão os caras estirados, uns quatro caras mortos no meio da rua. Quando ele chega para fazer a foto, chegou junto um fotógrafo da Folha. O fotógrafo da Folha olhou e falou “vamos embora daqui, não vai fotografar, não”, porque ele sabia que era crime político, “e se você fotografar não vai poder sair no jornal”. Aí, o fotógrafo da Folha, como era mais experiente, viu e falou assim “vamos embora que isso é crime político”
P/1 - E se eles fotografassem, como seria?
R - Seria censurado, não poderia sair no jornal, de jeito algum.
P/1 - Entendi.
R - Não vai perder o tempo lá, além de ser mal visto. Então, tinha esse cuidado. Eu estudei no Mackenzie, eu fiz engenharia no Mackenzie, e naquela época daquela luta, a famosa luta Maria Antônia, eu estava do lado do Mackenzie. Eu cheguei, acredite se quiser, eu não acredito que eu fiz um negócio desse, eu cheguei a jogar uma bomba Molotov, porque o cara jogou na minha mão e disse assim “você não está fazendo nada, joga esse negócio aí”, eu peguei e joguei. Sabe, o cara me pegou de supetão, “você não está fazendo nada, joga esse negócio aí, você é alto, com braço comprido”, eu peguei e joguei, sem mirar, sem nada, só joguei. Mas o Molotov era com garrafinha de guaraná, com caco de vidro tampado com pressão, quando ela batia dava uma explosão. Então, eu estava no Mackenzie nessa época dessa luta, do Zé Dirceu. Eu estava lá no dia que um rapaz tentou invadir o Mackenzie pulando o portão e ele levou um tiro. Esse menino era secundarista sabe, um menino bobo, que estava de bobeira lá. E aí o Zé Dirceu pegou a camisa ensanguentada dele e saiu em passeata, queimando carro, fazendo o diabo. O Zé Dirceu era um cara bonito e a mulherada adorava ele, você sabe que ele fez plástica em Cuba.
P/1 - E ele era do Mackenzie também?
R - Não, ele era da USP, porque a Filosofia da USP ficava em frente ao Mackenzie. E olha, eu vou contar para você, eu vi o começo da briga, ninguém vai acreditar, claro que o motivo não foi esse, mas os ânimos políticos já estavam bem acirrados. Eu estava na padaria, e era uma padaria que juntava o pessoal da USP e do Mackenzie para tomar café. E aí, um cara do Mackenzie mexeu com uma menina que era da USP, que estava com o namorado, o cara não sabia, o namorado veio “seu folgado”, começou uma discussão entre os dois. Aí, um deles tinha o ovo cozido, que a padaria vendia, ele catou o ovo cozido e pá, no cara. Aí o cara pegou mais não sei o quê e atirou. Aí veio ajuda dos dois lados, começou o pau ali na padaria, saiu, tomaram conta da rua, e começou a batalha. Eu vi assim, o começo da batalha da Maria Antônia, começou assim, claro que o motivo não foi esse, mas eu estava lá no momento que começou. Era um barril de pólvora, que no momento aquela briguinha de namorado, acendeu. Aí começou a guerra lá, de jogar rojão um no outro, o ginásio de esportes do Mackenzie virou um hospital dos queimados, as meninas ajudando os dois lados, foi uma loucura aquilo.
P/1 - Folco, e você participava, além do rock, do cinema, tinha alguma outra atividade que você participava na sua juventude? Mesmo nessa época de faculdade?
R - Olha, uma coisa que eu gostava e que eu acompanhava com meu avô… meu avô morava no Largo do Arouche, isso é uma coisa muito importante também, meu avô morava no Largo do Arouche, e o Largo do Arouche naquela época era um lugar cult da cidade, perto do cinema, do teatro, esse meu avô que pintou a igreja da Penha. Eu adorava passar o fim de semana lá com ele, para ir para cinema, teatro, comer em restaurante. Naquela época, você passava assim, na Praça da República, uma hora da manhã, tranquilo. De manhã cedo, na Praça da República, era um reduto de artistas mesmo, colecionadores de selo, de moeda, ia com meu avô lá, aprendi muita coisa de arte com meu avô, visitando galeria, pinacoteca, aprendia. O meu avô foi meu grande professor de arte. E meu avô, por ser um artista sacro, pesquisava muito a simbologia das religiões, etc. O meu avô ia em tudo quanto é igreja para ver o culto deles, para ver os símbolos, tudo quanto é igreja, seja espírita, não importa. E eu gostava de estar com ele nisso. Ele frequentava também, a Sociedade Teosófica de São Paulo, às vezes eu participava de reuniões com ele também. Meu pai não gostava muito, meu pai achava que tudo isso aí… que meu avô era meio doido. Meu pai não gostava muito dessa, meu pai era aquela coisa de engenheiro. O meu avô, como era mais artista, um cara mais doidão assim, meu pai via assim com um olho meio atravessado esse negócio de eu estar com meu avô para lá e para cá, e quando eu começava a fazer uma besteira, ele falava “está vendo? Fica andando com o avô dele”, mas eu adorava sair com meu avô nos fins de semana também, foi uma coisa muito importante na minha formação. Então, eu lembro, e foi uma coisa que mais tarde, depois, eu fui estudar a filosofia do oriente, inspirado nesses momentos, porque eu lembro que eu tinha uns 14, 15 anos, estava lá com meu avô e o cara começou a mostrar na lousa a simbologia da trindade; Pai, Filho e Espírito Santo; em várias religiões. Todas as religiões tinham uma trindade, todas. Com os nomes, Brahma, Shiva e na Índia, então assim. Nossa, eu fiquei fascinado com aquele negócio. Depois de ter estudado em escola de freira, você descobre que eles não são os donos da verdade. Eu fiquei fascinado, mais tarde eu fui estudar filosofia do oriente também, gostei muito disso.
P/1 - Folco, ainda entre a adolescência assim, a pré-adolescência e a adolescência, teve alguma história assim, engraçada, que aconteceu?
R - Antes, só te contar uma historinha - que eu comecei a namorar uma menina - com relação a ditadura militar, eu comecei a namorar uma menina, e a irmã dela foi desaparecida, ela era ativista, e sumiram com ela. A polícia andava todo dia, dando uma passada lá na casa. Aí eu fugi. Eu era louco por aquela menina, mas eu estava morrendo de medo, porque sumiram com ela, estavam lá de olho, ela era ativista e sumiram com ela. Isso é uma das coisas que eu lembro que aconteceu mesmo, sumiam com as pessoas. Tinha um rapaz também, na nossa rua, que também era ativista, sumiu, desapareceu. Até hoje não sabe o destino dele, sumiu. Isso aconteceu mesmo.
P/1 - Aqui na Penha não tinha movimento, além dessas reuniões da igreja...
R - Tinha, mas assim, muito camuflado, você não tinha conhecimento, como foi o caso aqui da rua Caquito, que mataram o pessoal. Eu nem podia imaginar que tinha alguma coisa lá na rua Caquito. Alguém descobriu, delatou, e normalmente era um vizinho que delatava, porque uma coisa muito importante o pessoal saber é que na ditadura militar, o golpe de 31 de março, eu era adolescente mas eu lembro, foi tendo o respaldo popular, não foi uma ditadura, o pessoal invadiu, não, teve respaldo popular. Todo mundo bateu palma de eles tomarem o poder.
P/1 - Você lembra do dia, como foi?
R - Lembro.
P/1 - Descreve para gente.
R - Foi um clima pesado, porque o Brizola era o governador do Rio Grande do Sul, e o João Goulart fugiu para lá, ficou no Rio Grande do Sul, e o Brizola dando apoio para ele. Eu lembro de acompanhar no rádio, o exército descendo para o Rio Grande do Sul, para cercar o Rio Grande do Sul. E o pessoal já comprando estoque de coisa, a revolução estava prestes a acontecer, porque se o Rio Grande do Sul resistisse, com certeza ia ser uma revolução. As aulas foram suspensas, não tinha aula, estava um clima tenso na rua, minha mãe falava um monte para gente não sair de casa, estava um clima tenso, a qualquer hora podia ser a revolução. Eu lembro do alívio que foi quando o João Goulart então se refugiou no Uruguai, e o Brizola saiu do Rio Grande do Sul, então não tinha mais a possibilidade da revolução. Na minha idade era muito difícil entender o que tinha acontecido, sei sim e lembro sim que tinha o respaldo popular, o pessoal morria de medo do comunismo, e na época do João Goulart, o pessoal falava assim “os comunistas vão vir aqui, vão tomar conta da sua casa, vão dividir sua casa para quem não tem”, e isso na classe média, pegava. O pessoal morria de medo do comunismo, morria de medo do João Goulart. Então, quando o exército tomou o poder, todo mundo se sentiu aliviado, teve respaldo sim, todo mundo bateu palma. E com a ajuda dos Estados Unidos, com dinheiro, o milagre brasileiro aconteceu, só que era um milagre brasileiro feito com dinheiro do exterior. Então, a classe média foi muito bem favorecida, o meu pai foi muito bem favorecido, eu falo para o meu pai até hoje “tudo que você ganhou na época da ditadura militar, eu estou pagando a conta agora”, todos nós estamos pagando essa conta, que foi uma época, olha, para vocês terem uma ideia, meu pai comprou um apartamento no Guarujá, financiado pela coisa da habitação. O governo dava lá um credito hiper facilitado para adquirir a casa própria, meu pai comprou um apartamento no Guarujá; comprou uma casa de campo em Arujá assim. Ele viajou para caramba, ia para Europa, para tudo quanto é lugar, numa época que o dólar estava baixo em relação ao cruzeiro. Então, meu pai foi daquela classe média que deitou e rolou na época da ditadura, tudo isso feito com dinheiro americano. Na hora de pagar essa conta, os militares devolveram o poder, aí veio a tal da abertura, porque a coisa ia explodir, como realmente explodiu, uma hora ia ter que pagar a conta. Porque os americanos jogaram dinheiro aqui, mas eles queriam o dinheiro de volta, eles queriam o dinheiro de volta, isso não ia ficar de graça, e na hora de pagar a conta...
P/1 - E você viveu essa transição, Folco? Você viveu essa transição econômica como você está falando?
R - ...ah, sim. Então, eu quando… também, quando me formei, nossa, eu ganhava bem para caramba, ganhava muito bem. Aqui foi meu primeiro emprego.
P/1 - Aqui onde?
R - Aqui no Centro Cultural, eu trabalhei na biblioteca, e quando eu estava no último ano de engenharia, prestei o concurso público, entrei na biblioteca, eram seis horas por dia, dava para conciliar. Então, eu saí daqui, que era um salariozinho bom, eu lembro que eu ganhava 700 cruzeiros, acho que é cruzeiro, rodou tanta moeda que eu não lembro. Eram 700 cruzeiros. Quando eu fui trabalhar como engenheiro, foi para 2800, para um cara solteiro, era dinheiro para cacete, era muito dinheiro. A gente ganhava muito bem. Então, foi uma época muito boa para classe média, péssima para o pobre.
P/1 - Por que?
R - Porque a miséria no Brasil, você percebia nas ruas, muita pobreza, muita miséria na rua. Então, você tinha uma classe média que estava sendo subsidiada. Bom, a gasolina era subsidiada, a Embratur, você podia passear para Bahia subsidiado, sabe lá o que é isso? Você ficava num hotel em Salvador, subsidiado pelo governo. Tudo isso era uma mentira, era um subsídio com dinheiro americano, para fazer de conta que o Brasil estava progredindo, que estava todo mundo feliz. Tanto que depois, quando começaram a quebrar o subsídio, o leite era subsidiado, o açúcar; quando começaram a quebrar o subsídio, todo mundo entrou em parafuso, porque todo mundo estava acostumado com o ótimo. O bom é crise, se você está acostumado com o ótimo, o bom é crise. Quando começou a cair esses subsídios, a classe média entrou em desespero.
P/1 - E aí, Folco, voltando agora para o mais específico, antes da gente passar para o seu encontro com o Movimento Cultural Penha, você falou que teve uma namorada, e depois como é que você conheceu sua esposa?
R - Ela era minha vizinha, a gente se conhecia assim, de criança. Amiguinho, amiguinha, e aí foi assim, a gente descobriu a sexualidade juntos. Coisa rara na minha geração, eu nunca tinha tido relação com prostituta, coisa rara, a minha geração tinha. Era aquela coisa assim “eu vou me casar com uma mulher que tenha os mesmos requisitos da minha mãe, sexo eu vou fazer com prostituta”, não foi assim. Eu e a minha então namorada, a gente descobriu o sexo juntos. E ela, de madrugada, como era vizinha, fugia de casa e ia para a minha. Eu morava numa edícula no fundo de casa, e lá a gente descobriu as coisas juntos.
P/1 - Você lembra, assim, se pudesse descrever um pouco dessa sensação da primeira vez, assim, a gente tem uma pergunta assim nas entrevistas...
R - Da sexualidade?
P/1 - … fala da parte do corpo.
R - Eu acho que é uma sensação indescritível, porque como foi assim, uma descoberta do corpo um do outro, então foi uma coisa muito prazerosa. Eu lembro, a primeira vez, eu ainda não tinha tido penetração, nada, foi só no amasso, agarrão, não sei o quê a primeira vez; aí tive um orgasmo, e eu levei um susto, de repente saiu um negócio na minha calça, "lambeando" tudo, e eu nunca tinha tido isso, nossa, foi uma coisa. E aí, quando você tem uma coisa maravilhosa dessa, aí você quer ter mais, não quer parar de ter. Eu lembro que eu joguei fora a cueca, para minha mãe não ver. Eu mesmo dei uma lavada na calça, porque a primeira vez, quando você tem o primeiro orgasmo, mas é muito, sai muito, depois que a gente fica velho sai só um pouquinho, mas a primeira vez sai muito, e você não quer parar mais. E aí vai, naquela época a gente usava camisinha...
P/1 - Usava?
R - Tinha medo da pílula. A pílula na época, era uma coisa perigosa ainda, já tinha tido casos de mulher que engravidou tomando pílula, e a criança nasceu com defeito, tinha umas coisas assim. Então, pílula era uma coisa problemática, as mulheres tinham medo ainda. Então, o negócio era calendário e camisinha.
P/1 - Para não engravidar, não tinha doenças que assustavam.
R - Não, não tinham. Pelo menos assim, meus amigos que transavam com prostituta estavam sempre com gonorréia, sempre estavam com gonorréia. Estava lá no Mackenzie, daqui a pouco estava lá o sujeito com a calcinha molhada, ou com pus, eles iam em farmacêuticos, que receitavam antibióticos. Chegava outro lá “a mulher falou que a prostituta era limpinha, nova, acreditei”, o pessoal não usava camisinha, coisa de louco, não usava.
P/1 - E Folco, você casou com essa pessoa?
R - É.
P/1 - Teve filhos?
R - Sim, temos duas meninas.
P/1 - Com ela você teve duas meninas?
R - É, temos as meninas.
P/1 - E vocês são casados até hoje?
R - Não, a gente se separou. Foi em 2004. Ela tinha uma profissão que eu adorava, ela era arte-educadora, e a gente fez uma escola de arte, ficou muito legal na época. Onde é o Memorial hoje começou com uma escola de arte.
P/1 - Então conta um pouco essa história.
R - Então, era a (Viveka) [00:59:45] escola de arte e criação, a gente fez essa escola de arte, foi uma referência na região, chegou até ser contratada pelo (NAI) [00:59:53] para dar reciclagem para professores, foi uma referência na época.
P/1 - Na época?
R - Da existência dela, começou em 95.
P/1 - Mas a escola foi contratada pelo (NAI) [01:00:06], na época de alguma administração?
R - Foi na época do PT, o PT tem um, sem fazer nenhuma propaganda política, o PT é educação e cultura, e o PT nesse ano, teve um ano, acho que foi na Marta, não lembro, eu sei que foi no PT que tinha um dinheiro muito grande para cultura, para educação e cultura, e o (NAI) [01:00:33] teve verba e contratou a gente para fazer uma reciclagem nos professores de artes. Fizemos muitos trabalhos de reciclagem. Apesar assim, eu sentia um pouco de má vontade dos professores, estavam indo porque ganhavam ponto, não sentia uma vontade deles de crescerem na profissão. Eu lembro até de uma situação de uma mãe que falou assim “olha, me desculpe, mas eu vou entrar com o celular porque eu sou mãe”, a minha mãe me criou e não existia celular, vocês dois aqui também, vocês não são da época de mãe com celular, e ela “eu vou entrar com o celular porque eu sou mãe”. Então, tive essa escola de arte, eu invejava a profissão dela, porque eu queria ser também, eu gostava muito de arte e eu era engenheiro. Então, deixa eu voltar um pouquinho para trás, lembra quando eu comentei que meu avô queria que meu pai fosse alfaiate e não precisaria estudar? Então, o meu pai fez a mesma coisa comigo, eu queria fazer jornalismo, “não, você vai ser engenheiro”. Como ele era engenheiro, ele falava assim “você quer ganhar dinheiro, você vai ser engenheiro. Você vai ser jornalista, você não vai ganhar nada”, ele falava para mim. E como eu era um filhinho de papai, ou seja, na minha época não tinha faculdade a noite, só de dia, ía me pagar um Mackenzie, para entrar num Mackenzie, então, uma vez que o meu pai pagava o curso, eu tinha que estudar o que ele queria. Meu pai foi assim, eu fui filhinho de papai, mas ele nunca me deu carro, nada, nada, mas o que eu quisesse estudar, ele estava lá. Fiz curso de inglês, paga, curso de alemão, faz qualquer coisa, meu pai estava lá me ajudando. Agora, eu tinha que fazer engenharia. Eu fiz engenharia, e quando eu comecei a trabalhar, aí você fica entusiasmado, como eu falei para você, o salário era muito bom, não tinha engenheiro no mercado. Foi uma época que até fizeram a FEI, Faculdade de Engenharia Industrial de São Bernardo, estava cheio de indústria automobilística e não tinha engenheiro mecânico no Brasil. Na Light, estava cheio de italianos, estavam trazendo italianos para cá, não tinha engenheiro no mercado. Quando eu me formei, eu escolhi o lugar para trabalhar, eu resolvi trabalhar na então Light porque era aqui na Penha, perto de casa.
P/1 - Aqui era uma seção da Light?
R - Era.
P/1 - Era importante a Light aqui na Penha?
R - Era. Era importante.
P/1 - Por que? Vamos falar assim, um pouco da Penha em relação até a essas mudanças que você foi vendo.
R - A Light… Para começar, o bonde chegou na Penha em 1901, e a Light foi uma empresa que veio para o Brasil para explorar o bonde. Só que para você ter o bonde elétrico, você precisa ter energia elétrica, e a Light começou então a fabricar essa energia elétrica. E as indústrias que também precisavam de energia elétrica, começaram a pedir para Light vender, e ela entrou no ramo de eletricidade por conta disso.
P/1 - Mas aqui na Penha, como começou esse cenário?
R - Por conta do bonde, a primeira linha de bonde, a Penha. Então tinha uma subestação que está no mesmo lugar até hoje, a subestação Penha, que recebia energia elétrica de Furnas; e fazia, então, para você ter uma ideia, a energia elétrica de toda região leste aqui, saía da Penha. A luz chegava fraca para caramba lá em São Miguel, Itaí, Itaquera, porque saía da Penha até lá. Hoje, todos esses bairros tem uma subestação.
P/1 - Saía da Light?
R - É, da Light.
P/1 - Mas você trabalhou… voltando ao trabalho, você trabalhou antes de se formar no Centro Cultural da Penha?
R - É, de atendente de biblioteca.
P/1 - Mas você veio trabalhar na época que você estava estudando, fazendo engenharia? Você veio para cá?
R - No último ano, a engenharia era a noite.
P/1 - Sim, e você resolveu trabalhar o Centro Cultural como?
R - Eu fiz o concurso e entrei, estava desesperado para trabalhar, era horrível depender de dinheiro de pai e de mãe, eu não via a hora de trabalhar, e estudando engenharia não tinha como. No último ano é a noite para você fazer estágio durante o dia. E, por incrível que pareça, assim como estava fácil arrumar emprego, era difícil arrumar estágio. Ninguém queria ter trabalho com estagiário, era difícil. Então, eu prestei o concurso, entrei, e vim trabalhar aqui ao invés de estar fazendo estágio de engenharia, eu estava trabalhando aqui de atendente de biblioteca.
P/1 - E seu pai, o que achou?
R - Meu pai achou, ficou até satisfeito porque ele sabia da minha ansiedade de trabalhar, queria ganhar o meu dinheiro. Eu andava sempre durão, porque eu não tinha a cara de pedir dinheiro.
P/1 - E você disse que se entusiasmou em ganhar tão bem, mas você invejava sua esposa, e daí para frente, conta o que foi que aconteceu, lá nessa escola de artes.
R - Então, a escola de artes se desenvolveu muito bem, era meu hobby, eu chegava do trabalho e trabalhava para escola de arte, montava, no início do PowerPoint quando começaram a aparecer essas apresentações; então eu comecei a preparar essas apresentações para as aulas de História da arte, e com o conhecimento que eu já tinha da História da arte com meu avô, eu só não tinha formação. E aí virou uma empresa-família. O nosso casamento entrou numa crise por conta da minha filha, que engravidou com 16 anos. Quando minha filha engravidou com 16 anos, eu fui avô com 37. O Raí, aquele jogador de futebol bateu meu recorde depois, ele foi avô com 34, eu fui avô com 37. Isso mexeu no casamento, na estrutura, eu culpava muito ela por isso, porque minha filha estava namorando esse menino e eu achava que tinha muita liberdade. Eu comecei a me arrepender de não ter sido um pai mais enérgico. E os caras estavam muito grudadinhos, eu falava “isso aí, qualquer hora, pode dar zebra”, e deu. Aí, se casaram, resolveram assumir a minha netinha, resolveram assumir. A gente fez uma casa, onde é o Memorial hoje, lá no fundo naquela edícula, então mexemos e eles foram morar lá. Mas também o casamento não durou muito porque o nível social era muito grande, quando você tem 14, 15 anos o amor é lindo, mas a minha filha foi estudar economia, fez faculdade, foi crescendo, hoje ela é gerente executiva do Itaú Personnalité, e ele era vendedor de livro numa livraria, não saía daquilo. Sabe, aquela pessoa que nasceu para ser pobre, eu falo pobre não é no sentido espiritual, no sentido material mesmo, “está bom isso aqui”, e minha filha tinha outras ambições, não só em questão de dinheiro, mas de intelecto. Minha filha teve um momento que começou a ter vergonha dele, marcava encontro com uma amiga, tinha vergonha dele ir junto, porque ele era bem caipirão... eu estou ofendendo os caipiras, ele era muito brutal. Passou até a ter vergonha dele. Hoje ela está muito bem casada com meu genro, um cara muito legal. Ela está morando em Jacareí.
P/1 - E aí o seu casamento acabou não dando certo?
R - É, começou a ter muito conflito e isso abalou muito o casamento, começou a abalar a sexualidade, começou a abalar tudo, mexeu em tudo. Chegou uma hora que não deu mesmo. E aí, então, ela ficou com a escola de arte em Tatuapé, e como essa casa aqui era herança de família, eu tinha comprado um apartamento, mas essa minha filha que foi mãe cedo que foi para esse apartamento. Ela alugou um imóvel, hoje está com uma irmã dela num imóvel grande lá no Tatuapé, foi com a escola para lá. Quando eu fiquei sozinho, fui para Europa e fiquei um ano lá na Holanda. Começou com um curso que estavam devendo para mim, faz tempo, na Philips, que quando eu entrei na Light, cheguei a trabalhar com um projeto de iluminação. Eu acompanhei a introdução da lâmpada a vapor de mercúrio, depois a vapor de sódio, a chegada dessas lâmpadas novas que a Philips produzia no Brasil, e a Philips estava me prometendo um curso lá. E eu fui.
P/1 - Você trabalhava ainda nessa área da engenharia?
R - Não, já tinha saído, mas eles prometeram o curso e eu cobrei. Só que na verdade eu aproveitei muito pouco o curso, porque eu ficava mais na escola de arte em Utrecht do que lá. A Philips fica em Eindhoven, que é uma cidade Philips, e Utrecht, onde é a universidade, dá uns 40 minutos de trem.
P/1 - Aí você realizou seu sonho de estudar arte.
R - Às custas da Philips. Essa parte às custas da Philips. Deixa eu só te contar uma coisa que eu acho engraçado...
P/1 - As melhores partes são essas, dos casos interessantes.
R - Vou te contar uma delícia que foi burlar a burocracia. Eu sempre burlei a burocracia, eu gosto de burlar a burocracia, eu só não fabrico dinheiro porque dá cadeia, mas eu comentei com você que eu trabalhei na prefeitura ao invés de fazer estágio. Eu precisava fazer esse estágio senão, não tinha o diploma de engenheiro, eu estava devendo esse estágio para o Mackenzie. Aí, eu estou lá passando em frente à secretaria, e está um menino lá para buscar o certificado dele, e a menina falou para ele assim “então, você me entregou o papel do estágio? ”, “eu entreguei para você, na sua mão, a semana passada, assim, assim, assim”, “ai, é que eu não estou achando”, “mas eu entreguei”. Aí a menina deu o certificado de conclusão de curso para ele, acreditando que ele entregou o estágio. Eu, “opa”, fui lá e fiz a mesma coisa, “eu vim pegar meu certificado”, porque antes de ter o diploma tem o certificado de conclusão, “você não me entregou o papel de estágio”, “entreguei para você na semana passada”. A menina achou assim “meu Deus, eu perdi um monte de papel desse”. Ela me deu o papel do certificado de conclusão do curso, e eu entrei na Light com esse papel, como engenheiro já formado graças a ludibriar essa burocracia, mas eu vou contar uma outra historinha também, que eu adoro burlar a burocracia. Foi assim, eu peguei uma oficina de fotografia em São Miguel. Naquela época, cada subprefeitura passou a ter uma espécie de secretário, coordenador da cultura. Então, cada subprefeitura que fazia a contratação das oficinas. Seria como, por exemplo, quem contratava as oficinas daqui seria a subprefeitura da Penha. Então, o pessoal lá de São Miguel, que já tinham ouvido falar de mim, já tinha dado oficina aqui na Penha e tudo, me chamaram, eles me chamaram para dar oficina de fotografia lá em São Miguel, e eu fui. Entrei com a papelada e tal, e o sujeito lá, que era da subprefeitura que não entende nada de contratação, não entende nada, ficou olhando tudo, então, está faltando um documento aqui”, “que documento que é?”, “você precisa me apresentar um certificado de professor de fotografia”, mas ninguém se forma professor de fotografia. O que eu fiz? Peguei o meu certificado holandês, fui na internet e peguei a logo da universidade de Utrecht. Eu fiz um certificado em holandês, que eu tinha me formado professor de fotografia, fiz a tradução em inglês, e levei para ele, “está aqui ó”.
P/1 - Você era um professor de fotografia.
R - Eu era um professor de fotografia. Não, e eu já tinha dado oficina aqui, eu já tinha sido contratado pela prefeitura. É aquelas coisas que eu gosto de brincar com a burocracia, com a "burrocracia". Que a burocracia nada mais é do que a falta de confiança. Quando você não confia, você cria burocracia.
P/1 - Folco...
R - Pode falar.
P/1 - ...não, eu ia perguntar outra coisa. Que horas são? Que a gente só fez as perguntas para ele...
P/2 - 02:13hr.
P/1 - 02:13hr. Você acha que até umas duas e meia?
P/2 - É, tem umas duas e pouquinho ainda.
P/1 - Então...
R - Agora eu vou falar do Memorial...
P/1 - Não, eu ia... antes de entrar no Memorial, como que você começou com a fotografia na tua vida. Você contou um pouquinho que seu pai te inspirava, primeira câmera, umas experiências na tua casa que sua mãe ficava brava... Como que você foi chegando a ser, hoje, um professor de fotografia.
R - Assim, na verdade eu não sou um professor de fotografia, eu sou um arte-educador que usa a fotografia como suporte, essa é uma grande diferença. Eu não sou professor de ficar dando aula de abertura, velocidade, ISO, lente, distância focal, não. Claro que eu dou aula disso também, que eu tenho que ensinar o sujeito a mexer numa câmera, mas não é nisso que eu foco. Tanto que, nas minhas oficinas, eu começo com três modos de fotografar sem câmera, que é aprender a olhar, aprender a observar. E aí, eu entro na questão da arte, a arte ajuda. Quando você estuda a História da arte, a História da composição, como que o artista vai compor, então você começa a desenvolver o olhar, você começa a perceber um olhar diferente. Como, por exemplo, agora, nesse mesmo instante, tem uma fotografia muito legal que vai daqui até aqui. Está muito legal, um equilíbrio legal dessa coisa escura, e você um pouco mais clara aqui, então um equilíbrio muito legal. Você começa a olhar de um jeito diferente, começa a ver mais a estética das coisas. Nisso a arte ajudou bastante. E quando a gente fez essa oficina, foi na época da Marta, eles queriam fazer uma oficina de fotografia que tivesse essa conotação mais artística, não ficasse só na parte técnica. E eu e mais duas pessoas então, criamos essa oficina. Um deles foi para Coimbra, e hoje, essa mesma oficina que eu dou, é dada em Coimbra também, que foi uma coisa, também, que eu trouxe de Utrecht lá da oficina de fotografia em Utrecht. Lá na Europa, eles usam muito a questão compositiva, é muito mais importante. O Cartier-Bresson, o grande fotógrafo do século 20 dizia que a composição deve ser a nossa primeira preocupação com a fotografia, depois vem o resto. Eu tenho um amigo falecido, foi uma perda muito grande, um grande fotógrafo, Eduardo Garofalo, ele me visitava, a gente ficava umas três horas conversando sobre fotografia, em nenhum momento a gente falava de câmera ou lente. Isso que é legal.
P/1 - Do que vocês falavam?
R - Uma vez, sobre composição, sobre modelo, ele estava com um projeto de fazer fotos com as heroínas, e o modelo, a roupa que usava, que tipo de luz… E uma vez eu fui numa palestra de uma fotógrafa inglesa, que fotografou vulcões, lá no Centro Cultural Banco do Brasil, gostei muito do trabalho dela, da pesquisa dela e quando termina é aberto para perguntas, e vem aquela pergunta de sempre “que câmera que você usa?”, e a resposta dela foi maravilhosa, “qualquer uma, a que tiver na mão”. A que tiver na mão, pode ser celular, pode ser uma caixa de fole, o que tiver na mão. Na hora que o vulcão entrar em erupção, o que tiver na mão vai. Achei muito legal a resposta dela, que a questão compositiva é importante, como é que você vai fotografar o vulcão, de que ângulo, de cima, de baixo.
P/1 - Tem uma foto especial que você fez, ou algumas que você fez...
R - Olha, por incrível que pareça...
P/1 - Conta a situação.
R - ...eu perdi, eu sou um dinossauro da fotografia digital. A primeira exposição de fotografia digital do Brasil foi feita aqui, eu que fiz, eu só soube que era a primeira porque uma jornalista da Folha veio e saiu na página inteira sobre essa exposição. Então, quando eu cheguei no Brasil com um negócio desses, sabe, todo mundo “ah, você não está certo, isso aí não sei o quê, isso aí não vai para frente, isso aí é um brinquedinho”, xingavam minha mãe. E, na verdade, a fotografia digital substituiu a câmera de filme comercialmente falando, porque é outro equipamento. Você está falando de revelação de filme, é outra coisa, é outra linguagem, é tudo diferente, é que comercialmente uma substituiu a outra. Então, eu fui um pioneiro assim, da fotografia digital. E eu usava um programa chamado Photo Studio , que antecedeu o Photoshop. Nem existia o Photoshop e eu já fazia edição.
P/1 - Foi quando você...
R - Eu perdi muita foto, porque nessa época, a gente guardava em disquetinho. Eu demorei muito para tirar esses disquetinhos. Para você ter uma ideia, eu tinha foto que ocupava 12 disquetes. Você punha um disquete, enchia, botava o segundo, o computador pedia o terceiro, o quarto, fazia uma foto assim, que tinha um monte de disquete. E para você abrir aquela foto, você tinha que enfiar todos os disquetinhos. Um disquetinho no meio disso, que dava um problema, perdia a foto. Alguns também, que eu salvei depois em CD, aí quando eu fui passar para outra mídia, já não estava mais abrindo, então eu perdi muita foto.
P/1 - ...isso era foto digital?
R - É, então, uma foto que estava aqui nessa exposição, que chamava Muito Além do Jardim, que foi uma foto que eu fiz no jardim de casa, com uns efeitos; vamos dizer assim, para você fazer uma foto linda, você não precisa ir para Europa, para Ásia ou para lua, pode fazer no jardim da sua casa. Uma dessas fotos, eu tenho impressa lá no Memorial, guardada até hoje, num quadrinho. É a única coisa que eu tenho: aquela foto impressa, que eu preciso escanear, porque o arquivo já se foi faz tempo, está meio perdido. Nessa época que eu estava na Holanda, fiz uma foto do pôr do sol em oposto a lua cheia, na época, - isso aí é uma babaquice hoje - era alta tecnologia. Eu peguei a câmera e fui fotografando assim, do pôr do sol até a lua do lado de lá, deu mais ou menos umas 40 fotos. Tinha que pegar bastante foto por causa do dégradé da cor do céu. Fui para o computador, e na época o computador não estava preparado para isso, dava um trabalhão danado, às vezes assim que você fechava a foto, punha para salvar, ficava três horas salvando, você ficava e o reloginho lá, e você torcendo para não dar falha energética. Aí, consegui montar aquela foto, que foi salva num monte de disquetinho. A KLM, empresa de aviação holandesa, gostou da foto, e pediu para eu fazer, porque ficou um painel vertical que estava a lua de um lado, o sol do outro. Eles me pediram para colocar um avião da KLM no meio. Eu fotografei esses aviões que ficam na agência de turismo, sabe, tinha um avião lá da KLM, eu fotografei e inseri no céu. Esse painel ficou no aeroporto de Schiphol, lá em Amsterdã. E foi engraçado porque no crédito, colocaram Volco com V, mas no holandês o V tem som de F, que nem "Fan" Gogh, então eles falavam o Folco. Ela escreveu V-O-L-K-O. É que tudo que você fala em som de F lá, eles acham que é V. Eu estava lá na época que aquele jogador de futebol, o Vampeta, jogou no PSV. Então, perguntaram para o Vampeta, “como é que o pessoal falava seu nome lá?”, “Fampeta, igual "Fan" Gogh”, lá ele era o "Fampeta". E eu era o Folko, com V. Foi um orgulho isso. Mas, hoje eu não fotografo mais, só assim, foto turística, não fotografo mais, mas eu fotografo meus alunos. Meu maior prazer é ver a foto dos alunos, é fazer curadoria de exposição. Eu fiz a curadoria de um livro de foto de São Miguel. Fiz curadoria de um fotógrafo lá da Holanda, que fotografou o Porto de Rotterdam, fiz a curadoria do livro para ele, tudo daqui. Hoje, eu adoro assim, mexer com a foto dos outros, ver o olhar dos outros, me encanta isso, eu não tenho mais assim. Agora, eu fotografo muito de cabeça, eu tenho fotos na minha cabeça, sei lá, de fazer o registro, de fotografar e aquela imagem ficar. Têm umas fotos lindas, eu estou lembrando agora de uma que eu fiz assim, de cabeça, eu estou com ela na cabeça até agora, na hora eu não estava com a câmera, de uma menina sentadinha lá, olhando no celular no metrô do Tatuapé, com ângulo assim, que estava muito legal. Eu lembro também de uma foto que eu estava no ônibus, tinha um ônibus assim, com um carro deu uma trombada, bateu assim, na traseira do ônibus. A propaganda que estava no ônibus era de uma concessionária Fiat, “Concessionária não sei o quê, lugar de Fiat é aqui”, e o carro que bateu era um Fiat. Cara, que foto. Eu não tinha um celular, não tinha nada, mas essa foto ficou até hoje na minha cabeça. “Lugar de Fiat é aqui”. Uma outra também, que eu lembro, aquelas placas da estrada, “variante”, e ao lado da placa “variante”, tinha uma Variant capotada. Tinha a placa “variante” e tinha uma Variant capotada.
P/1 - Folco, hoje você casou de novo? Sim?
R - Sim.
P/1 - teve mais filhos?
R - Não.
P/1 - Quantos netos você tem?
R - Eu fiz vasectomia logo depois que nasceu minha segunda filha, eu tive que mentir para fazer, porque ninguém faria vasectomia num jovem com apenas duas filhas mulheres. Eu menti para o médico...
P/1 - Você tinha que idade?
R - Eu falei que eu tinha cinco filhos, e ele fez. Eu tinha 29 anos.
P/1 - E você tem quantos netos? Um neto?
R - Duas netas.
P/1 - Duas netas?
R - É.
P/1 - Folco, a gente vai entrar...
R - Uma de cada filha.
P/1 - ...sim. Você quer perguntar alguma coisa de toda essa história?
P/2 - Eu queria saber assim, como seu interesse pela fotografia acabou também, atraindo esse olhar para o Memorial, a formação do Memorial?
R - Ajudou bastante porque foi assim, como eu comentei com vocês, eu fui um pioneiro de câmera fotográfica digital, e eu queria fazer uma foto da pintura da igreja do meu avô. Então, eu usei o equipamento digital e comecei a fotografar as pinturas do meu avô na igreja, antes que acabasse. Naquela época, a câmera tirava só sete fotos, eu tinha que voltar, descarregar a câmera e voltar de novo. Indo e vindo, indo e vindo, então a memória, naquela época, era pequena. Acabei descobrindo lá no fundo da igreja, um monte de foto antiga da Penha, tudo mofada, estragando, e elas estavam com um adesivo e não tinha como escanear. Então, o jeito foi fotografar, eu fui fotografando essas fotos. Levava, editava, tirava os rasgos, deixava bonitinho… fui criando esse acervo de fotos. Então, na verdade, uma coisa puxou a outra. Foi o interesse de um portfólio para o meu avô, mais ter um equipamento na época que pouca gente tinha, de fotografar, que ajudava a fazer isso. Então comecei a fazer, isso foi na época da escola de arte, nem tinha o Memorial, nem tinha pensado em Memorial ainda, comecei então, a fazer esse acervo de fotos antigas da Penha, fui criando isso.
P/1 - E esse trabalho só foi possível porque a câmera era digital?
R - Sim, porque a câmera digital tem uma sensibilidade a luz maior do que a câmera de filme. Para eu fazer isso com câmera de filme, eu teria que levar em um estúdio, preparar luz, filtro para compensar a cor daquela luz, ia ser muito mais trabalhoso. Na câmera digital, bastava eu ajeitar lá com um pouco de luz, depois a gente tentava recuperar isso no Photoshop, com pouca luz. E graças a tecnologia digital, câmera de filme não dá, porque a câmera de filme é assim, por exemplo, se você faz uma foto aqui, digital, com aquela luz forte daquela janela e ali escuro, na foto vai aparecer aquela luz clara e aqui escuro. Na câmera de filme, ou ali ficava claro e aqui ficava preto, você não via nada; ou então a fotografia todinha ficava escura, ou é claro e escuro, porque a luz impregnava todo o filme.
P/1 - Aí você fez a foto de todas essas fotos...
R - Isso...
P/1 - Tatou...
R - Tratei.
P/1 - E ainda era escola de arte. E como é que foi chegar onde o Mauricio te encontrou?
R - Depois que eu me separei, acabou a escola de arte. Quando voltei para cá, eu comecei a participar de um fórum de preservação do patrimônio criado aqui, na Casa de Cultura, pela Lígia, na época a diretora. A gente fez vários projetos, inclusive conseguimos trazer o DPH para cá. O DPH não tinha o mínimo conhecimento do acervo, do patrimônio que a gente tinha aqui na Penha. Então conseguimos trazer.
P/1 - Fala o que é DPH, para eu deixar aqui.
R - Departamento de Patrimônio Histórico da prefeitura. Para um Departamento de Patrimônio Histórico, a história de São Paulo começa a partir do Pátio do Colégio, a Praça da República, chega na avenida Paulista, e a Penha, como localidade isolada, foi esquecida da história paulistana, então você não encontrava nada ali. O pessoal veio para cá, eles ficaram maravilhados com o patrimônio que tinha aqui, realmente precisava de um tombamento. A gente ajudou, foi um trabalho voluntário de engenheiros e arquitetos, para fazer o levantamento que culminou no tombamento. Acho que foi esse ano, começo desse ano, começou isso em 2004, agora finalmente chegou ao tombamento.
P/1 - No tombamento, o que foi tombado? (inint) [01:29:14], posso continuar? Folco, o que foi tombado aqui na Penha, quando veio o Departamento de Patrimônio?
R - O centro histórico que envolve a Praça oito de setembro, aqui o Largo do Rosário, a Praça Nossa Senhora da Penha com as igrejas e aquela rua do seminário, esse quarteirão aqui, que envolve também a Basílica, que é onde está a maior riqueza do patrimônio da Penha.
P/1 - Folco, por que você começou a participar dessas reuniões aqui no Centro Cultural, que você descobriu seu interesse nas reuniões, qual foi sua motivação?
R - Foram amigas que estavam aqui, arquitetas, e que sabiam já desse meu acervo de fotos, que tinham conhecimento desse acervo de fotos, então me convidaram e eu vim. O que me ajudou muito na participação e o que eu pude oferecer de bom para essa participação, foi essas fotos que eu tinha recolhido, foi esse meu acervo de fotos antigas do bairro, que ajudou também no levantamento.
P/1 - Ajudou como, fala só um pouquinho. Você tinha esse acervo de fotos, elas estavam guardadas, ou estavam expostas?
R - Não, elas estavam em arquivo, estavam tudo em arquivo, não estava exposta em lugar algum, estavam em arquivo. Eu trazia em CD, eles entregavam o CD para o pessoal poder olhar.
P/1 - E como você acha que essas fotos ajudaram a culminar no tombamento?
R - Então, nessa época, antes da Cidade Limpa, era cheio daqueles front light tampando a frente das lojas, e pela fotografia antiga você sabia como que era aquele prédio, se arrancasse aquela tranqueira lá. Então, a gente começou a fazer um trabalho aqui, a Loja das Bagunças foi a primeira a arrancar, apareceu uma fachada bonita. Em um hotel do lado, a proprietária do hotel não sabia, quando ela tirou a fachada, proprietária do hotel não, do prédio onde ficava o hotel, quando ela arrancou a placa lá do hotel, embaixo estava o nome do pai dela, (Paxá) [01:31:23] 1922, o ano do prédio. Ela ficou emocionada, não sabia que estava o nome do pai ali gravado, em alto relevo, no prédio. Mas aí, veio o Kassab com a Cidade Limpa, e resolveu nosso problema, porque a Penha ficou bonita.
P/1 - Mas vocês que começaram, você fala “nós começamos”, quem era o nós, que começou a pedir, como foi esse movimento?
R - Desse fórum, fazia parte eu mais duas arquitetas que tinham acabado de se formar em restauração de patrimônio, o José Amorélio, o Paulo Jardim, moradores aqui. E a Lígia, ela tinha um interesse muito grande na restauração da igreja do Rosário, então a gente chegou a fazer projeto. Como a igreja do Rosário era o único edifício tombado do Centro, não considerasse tombamento também o entorno, então a gente começou a fazer um projeto também, de restauração do entorno. Não foi para frente, mas a gente conseguiu trazer, com isso o DPH, e conseguimos fazer um trabalho mais amplo, que não ficou só no Largo do Rosário.
P/1 - E você acabou de contar que vocês convenceram os moradores, os proprietários dos prédios, a tirarem a placa.
R - Alguns, muito pouco, porque a maioria, o comércio aqui na Penha nessa época, grande parte já estava na mão de coreano. E os coreanos não estão nem aí, o negócio deles é ganhar o dinheirinho. Eles não têm nenhuma preocupação com paisagem urbana, nada. O coreano, você não vê o coreano, normalmente ele está lá no caixa, você não vê, depois que você descobre que a loja está na mão de coreano. Tem muito coreano aqui. E agora eles têm muitas fabriquinhas aí, espalhadas pela Penha, com mão de obra escrava de boliviano, a Penha está cheia de boliviano e você só os vê domingo, dia de semana eles somem, você não vê um na rua, estão todos trabalhando enfurnados nas oficinas, fazendo roupa. Quando chega domingo, enche a Penha, tem uma feira de bolivianos aqui embaixo, você vai no (Solga) [01:33:38] domingo à noite, eles estão lá, você vai nas áreas de lazer aqui na Penha, estão todos lá, jogando futebol, enche de boliviano na Penha.
P/1 - E vê os coreanos também? No final de semana, vocês veem?
R - Não, não. Os coreanos você não vê. É engraçado que, o coreano, já foi o boliviano de hoje.
P/1 - Aqui a Penha, a gente está falando de Penha?
R - Na Penha e lá no Bom Retiro, só dava coreano. É que hoje, eles subiram na ascensão social, agora eles escravizam os bolivianos e peruanos.
P/1 - E vocês conseguiram como convencer, assim, como foi esse processo das pessoas tirarem a placa e enxergar que tinha...
R - Mostrando que a fachada, tinha uma fachada bonita que seria o diferencial para loja dele. E outra coisa, ninguém olha placa na rua, as pessoas olham a vitrine. Você está andando na rua, você não vai ver a placa com o nome da loja, sabe, é uma mania que tem. Na verdade, essas placas eram para esconder a necessidade de uma reforma no prédio. Aqui na João Ribeiro, a gente chegou a ver um prédio com três "front light". O cara colocou um, veio o segundo e ele botou na frente do outro, veio o terceiro e botou na frente do outro. Estavam os três lá, não teve nem o trabalho de arrancar o anterior, já pôs em cima.
P/1 - E com o tombamento, vocês conseguiram, o Kassab fez...
R - O Kassab fez aquela Cidade Limpa, fez todo mundo arrancar tudo isso.
P/1 - E depois houve restauro de alguma parte?
R - Alguns procuraram restaurar. A Casas Bahia, por exemplo, não. Eles puseram azulejo, tem uma moda de azulejo, encheram de azulejo em volta, tem uma escola aqui também, encheram de azulejo...
P/1 - Fica a critério de cada proprietário?
R - É, a lei era arrancar a placa, mas a lei não contemplava nada na questão da restauração de patrimônio, porque ainda não era tombado.
P/1 - Depois que foi tombado, teve alguma iniciativa do poder público de restauro de alguma propriedade?
R - Não, isso ainda está tramitando. Vi no jornal, acho que foi domingo passado ou retrasado, que eu vi que a prefeitura está estudando a possibilidade de isentar imposto predial dos imóveis tombados. Lá em Santos, a prefeitura incentiva, tem meios através de impostos de incentivar a restauração do prédio. A coisa é mais ou menos assim, você vai pagar tanto de imposto predial, porém tudo que você gastar na restauração do prédio debita do imposto predial. Eles têm uma política que ajuda, aqui em São Paulo ainda não tem.
P/1 - Fica a critério do proprietário, o restauro. Não tem uma iniciativa da prefeitura fazer.
R - Nem de fazer, nem de incentivar.
P/2 - Folco, você falou dessa série de ações que você, junto com essas pessoas, começaram a tomar a respeito do patrimônio, de alguma maneira, da Penha, na verdade. Como foi a aproximação com o Movimento Cultural Penha?
R - A primeira aproximação foi burocrática, porque quando criamos o Memorial, a gente não queria abrir empresa, não queria essa burocracia. Claro que a gente já tinha uma parceria com eles, na realização de ações, da festa do Rosário por exemplo, mas na criação do Memorial, eu falei “olha, eu não quero abrir, não vamos abrir empresa, nada, vamos ser só um conselho curador do Movimento Cultural Penha, que já existe, que é uma ONG, já tem tudo isso”, e foi assim que a gente entrou como um conselho curador do Movimento Cultural Penha, para não ter que abrir empresa, não abrir ONG, nada, abrir conta no Banco do Brasil, todo aquele enchimento de saco. Tanto que os projetos que a gente pegou para o Memorial foi via o Movimento Cultural Penha, eu dei aqui um espetáculo de tango para fotografia, com dançarinos, música ao vivo de tango, que entrou pelo Movimento Cultural Penha; eu fiz um trabalho de rastro de luz, que era uns dançarinos dançando com laser no escuro, e fazendo o registro fotográfico do rastro de luz. Também foi através do Movimento Cultural Penha. Eles depositam o dinheiro para o Movimento Cultural Penha e a gente paga os artistas envolvidos. Foi essa parte de ajuda burocrática, vamos colocar assim. A partir disso, claro que atuamos em conjunto nas ações. Ultimamente, coisa de uns dois anos para cá, um ano e meio para cá, tem tido mais uma ação do Movimento com o Memorial do que o contrário. Porque, a história do Memorial, o início do Memorial, tudo aquilo que eu contei para vocês, chegou uma hora que cada um vai atrás do seu dinheiro, as arquitetas foram atrás de dinheiro, uma foi morar no Rio, a outra foi morar no Canadá, e eu fiquei sozinho. E quando você fica sozinho, você não tem ninguém para conversar, ninguém para dialogar, e foi muito importante o Movimento Cultural entrar agora com esse projeto. Eles estão recriando o Memorial novamente.
P/1 - O Memorial qual? Fala o nome do Memorial.
R - Memorial Penha de França.
P/1 - Então, a gente pulou como é que você criou o Memorial.
R - É, então, a partir daquele fórum, nós tínhamos então aquele fórum. A Marta… na gestão da Marta, perdeu a eleição. Perdendo a eleição, a gente achava que as coisas aqui no Centro Cultural iam parar, então era bom a gente sair daqui, para não perder o fórum. A gente continuaria isso em outro lugar. Foi a ideia de criar o Memorial Penha de França, porque eu tinha lá o imóvel disponível, herança de família, “vamos para lá?”, “vamos”, “vamos criar um Memorial?”, “vamos”, “vamos fazer um acervo de fotos?”. Então, o nosso trabalho de fórum continuou lá. O pessoal que frequentava o fórum aqui, foi para lá. Então, só que a gente não queria abrir empresa, aí que se enganchou com o Movimento Cultural Penha, que começou a ressurgir nessa época, no mesmo ano. Foi o ano do ressurgimento do Movimento Cultural Penha, que depois eles vão contar a história.
P/1 - E o que era? Era uma casa, com um monte de fotos, várias - um monte é um modo de dizer...
R - Uma exposição de fotos.
P/1 - Um acervo. Ainda era um acervo de fotos dentro do computador, era isso?
R - Não, tinha painéis.
P/1 - Já?
R - Saiu a exposição...
P/1 - Quando o Memorial se constitui, já existia esse espaço transformado, você começou. Então, foi essa parte que a gente pulou.
R - Foi iniciativa minha, eu fiz tudo com o meu dinheiro. Gastei, era dinheiro meu mesmo, eu coloquei lá por uma, olha, eu estava separado, minhas filhas não dependiam mais de mim, eu era um homem livre. Muitos colegas que saíram da empresa, se aposentaram na mesma época que eu, tiveram opções assim, de comprar sitio, comprar isso, um foi criar galinha, não sei o quê, está todo mundo morrendo, e eu quis fazer uma coisa diferente, eu gastei meu dinheiro lá.
P/1 - Lá, e o que você fez?
R - Foi um lugar que eu pudesse continuar trabalhando, que eu não posso ficar sem trabalhar, gosto de trabalhar. Até contei para você, passei tantos anos frustrado, trabalhando só por dinheiro, porque tinha família, precisava sustentar, pagar as despesas; e hoje eu vivo, da hora que eu acordo até a hora de ir dormir, só fazendo o que eu gosto, é diferente, eu nunca tive essa chance. Então, eu coloquei todo o meu dinheiro, cada coisa que tem lá, cortina e tal. Eu só precisava manter isso, eu falei “olha, eu pagar tudo isso, tudo bem, mas como é que eu vou manter isso todo mês?”. Foi então que a gente criou, eu tive a ideia e falei em dar as oficinas cobrando, um preço baratinho, mas cobrando, oficina de fotografia, História da arte, cobrando por esses cursos, aí ajudava a pagar a conta de luz, conta de água, conta de telefone, Internet, esse tipo de coisa.
P/1 - E essa exposição toda que tem lá de fotos, foi nessa época?
R - Foi, foi nessa época. A gente acabou se transformando num ponto de referência de pesquisa. Lá do Memorial saiu uma série de pesquisa de pós graduação, hoje tem esses livros lá, das pessoas que procuraram o Memorial como pesquisa. E essa pesquisa vai gerando mais material para as futuras pesquisas, e vai crescendo até de forma geométrica. Então, hoje a gente tem um acervo também criado por pessoas que estavam fazendo pesquisa em busca da história da região.
P/1 - O acervo, a ênfase do acervo é qual? Para deixar registrado.
R - Então, são esses documentos e imagens. Tem tomada de depoimento de moradores antigos, que já estão ricos, em função de que, mais ou menos uns 70% já morreram. Então, quando as pessoas morrem, o acervo fica valorizado, porque aquilo não vai acontecer mais. É como um artista, por que o artista fica famoso depois que morre? Porque ele não vai pintar mais, então o que ele pintou vai subir o preço.
P/1 - Folco, vocês começaram nesse fórum, defendendo o patrimônio aqui. Aí sede ficou sendo lá no Memorial Penha de França. Por que chama Penha de França?
R - É que o nome do bairro é Penha de França, é o nome do bairro...
P/1 - Conhecido como Penha.
R - É, mas em mapas está Penha de França, referência a Penha de França. Porque a Penha de França é diferente da Penha lá do Rio. O bairro chamado Penha, ele tem uma origem portuguesa. O Penha de França, tem origem da Espanha para Lisboa, porque a Penha de França fica perto de Málaga, na Espanha. É uma colina, uma penha, uma colina, que os espanhóis chamam de Penha de França porque, na época de Carlos Magno, os mouros invadiram aquela região e os franceses fugiram e foram para essa colina. Então, os espanhóis chamavam aquela colina de Penha de França, porque estavam os franceses apoderados daquela colina.
P/1 - Por que o bairro aqui chama Penha de França, você sabe?
R - Então, porque é a imagem de Nossa Senhora da Penha de França, que é diferente da imagem de Nossa Senhora da Penha, do Rio, que ela fica em cima de uma serpente, parece. Ela mata uma serpente porque a lenda portuguesa é diferente da lenda da Espanha.
P/1 - E a Penha de França de vocês, existe a igreja Nossa Senhora da Penha.
R - Igreja Nossa Senhora da Penha de França, em Lisboa também tem um bairro chamado Penha de França. Se você, inclusive, digitar no Google “Penha de França”, vai ter muito mais o bairro de Lisboa do que...
P/1 - E a sua relação com essa igreja, desse bairro, com esse patrimônio, você consegue sintetizar?
R - É uma relação pessoal, afetiva, cultural. Eu falo penhense, penso como penhense, o meu estilo de vida é penhense, o estilo de vida penhense é assim.
P/1 - Assim como?
R - Com simplicidade, eu não tenho automóvel, gosto de andar por essas ruas, encontro um, encontro outro. Uma coisa ainda de cidade de interior, que nem cidade de interior, mais tem. Cidade de interior hoje, com aquela calma do interior, cidade até quatro, cinco mil habitantes. Qualquer cidade do interior, hoje, de 30 mil habitantes, já é todo mundo de carro para la e para cá, todo mundo.
P/1 - Aqui, você ainda tem esse...
R - É, o shopping Penha por exemplo, é um shopping. Eu já tomei café no shopping para pagar depois. Mandei, uma vez, fazer um óculos no shopping, o cara me deu o óculos de presente porque era o dia do meu aniversário. Isso, dentro de shopping, nenhum shopping vai acontecer um negócio desse.
P/1 - Você é bem conhecido, Folco.
R - Esse negócio de eu ganhar o óculos, de graça, é que eu já tinha feito dois óculos lá e levei uma pessoa que precisava fazer um. “Vem cá, te apresentei o gerente”. Eu fui lá buscar o óculos, na hora de pagar, naquela época era o cheque, eu fui fazer o cheque, e falei “hoje é meu aniversário”, “é mesmo? Então não faz o cheque, não, toma de presente”. A gente tem uma boa relação com o shopping Penha também. Veja, é diferente do que acontece hoje nessas cidades do interior, que todas essas relações são sempre políticas, aqui não tem nada disso.
P/1 - Como assim?
R - Assim, eu me relaciono muito bem com o pessoal aqui, de direita e de esquerda. Me relaciono bem com os dois, eu respeito os dois, e eles me respeitam, justamente por eu ter uma postura apartidária, que é uma característica do penhense também. Na hora de votar, ele vota, mas, então a gente procura ter essa relação apartidária, eu ouço os dois lados, eu vou lá na associação comercial em dias de reuniões do Viva Penha, eu escuto um monte de porcaria, um monte de lixo, mas às vezes eu consigo contra argumentar. Vou dar um exemplo para você, eu tinha conversado com um dançarino que dançou num espetáculo aqui do Rastro de luz, tinha acabado de conversar com ele e tinha uma reunião na associação comercial. Quando eu cheguei na associação comercial, é um lugar machista, departamento feminino é para cuidar da tarde da beleza, sabe, aquela coisa bem machista. E tinha lá as mulheres, as esposas dos caras da associação comercial, com um sujeito lá bem "gayzão" assim, tratando sobre a tarde da beleza. Eu cheguei na reunião e eles brincaram comigo, “você vai aqui na reunião dos homens ou você vai naquela ali do...”, “não, eu vim aqui para essa reunião”, aí eu sentei e falei “você sabe que eu estava até agora conversando com o Leandro (Spiz) [01:48:58], vocês conhecem ele, aquele dançarino que vocês assistiram ao espetáculo dele e gostaram. Então, eu estava conversando com ele até agora. Você sabe que o Leandro é gay, e vou dizer uma coisa para vocês, nesta sala aqui não tem nenhum homem mais homem do que ele”. Ficou todo mundo me olhando. “O Leandro é um sujeito trabalhador, honestíssimo, um grande artista, uma pessoa sensível, educadíssima e gentleman. Teve um dia que ele precisou levar a minha esposa até em casa, ele acompanhou minha esposa até em casa, um gentleman, ele é mais homem do que qualquer um de vocês aqui”, ficou todo mundo assim. Opção sexual, problema dele, sabe. Então, de vez em quando eu consigo dar meus trocos, a gente ouve muita besteira, mas dou meus trocos. Então, eu consigo me relacionar muito bem aqui com o pessoal do shopping, com a OAB, e eles têm esse respeito comigo, porque eu não saio por aí passando santinho para ninguém.
P/1 - Folco, e agora voltando ao Movimento Cultural Penha, como que você ainda agora continua se relacionando com o movimento? Qual a sua participação? O que é o movimento para você?
R - O Movimento Cultural Penha, ultimamente, tem sido o suporte do Memorial. Como eu comentei com você, eu estava sozinho, estava meio perdidão lá. O Centro Cultural, a Patrícia, o Júlio, vieram para criar um alicerce, mexer no alicerce mais forte. E para mim, é mais uma parceria; para mim o Movimento Cultural Penha e o Memorial, agora é uma coisa só. Eu vou poder até viajar, sabe. Eu sei que o Movimento Cultural Penha vai estar lá no Memorial para atender um estudante, atender uma pesquisa, eu não vou estar mais sozinho, eu fiquei muito preso. Eu não tenho carro, não tenho cachorro, não tenho nada para não me prender, e de repente o Memorial estava me prendendo. Eu não estava mais conseguindo sair, por estar sozinho. Tanto que foi difícil eu fechar, fechar para reforma. E vão fechar, está até para eu colocar no Facebook lá, “fechado para reforma”. Ia colocar, vinha um agendamento importante de um trabalho escolar; ia colocar, vinha outro agendamento, estava difícil fechar o Memorial. E agora, até a semana passada, eu passei a semana inteira no Guarujá, fugindo dos pedreiros, (meus pais tinham apartamento lá) fugindo dos pedreiros. Agora eu consigo ir até o Guarujá, mas antes eu estava muito preso.
P/1 - Você estava sozinho. Quanto tempo você ficou sozinho, que você falou que o pessoal (inint) [01:51:53]
R - Uns quatro anos para cá, o pessoal foi.. é porque o pessoal tem que ir atrás de um dinheiro, eu tenho o privilégio de estar aposentado, recebo complementação salarial da Fundação Cesp, eu tenho esse privilégio, mas o pessoal precisa ir atrás de um dinheiro, não dá só para ficar fazendo trabalho voluntário.
P/1 - Você quer perguntar especificamente do Movimento, acho que você vai conseguir mais.
P/2 - É. Não, eu acho que...
P/1 - É?
P/2 - É.
P/1 - Então, ainda assim, em relação ao Movimento, o que é o Movimento, já que agora está tão junto, o que é o Movimento Cultural Penha para você? Como que você vê o Movimento?
R - Como o próprio nome diz, é um movimento, é um motor que faz as coisas acontecerem. Até numa reunião que o rapaz perguntou “por que chama Movimento?”, eu falei “porque é um movimento, não é uma associação, não é um clube”, é um movimento, e a ideia é o movimento, é o motor, é fazer as coisas acontecerem.
P/1 - Que coisas?
R - Tudo, desde esse próprio trabalho, feito agora com o Memorial Penha de França à festa do Rosário, os cursos, palestras do, como chama o projeto?
P/2 - (Ururay) [01:53:25]?
R - Não, o (Ururay) [01:53:23], o projeto está junto com o que o Memorial faz parte agora.
P/2 - Heranças Periféricas?
R - Oi?
P/2 - Heranças Periféricas?
R - Heranças Periféricas, esse projeto de Heranças Periféricas são coisas que estão mexendo, estão fazendo acontecer. Eu sou um pouco, assim, alienado com relação a Facebook, esse tipo de coisa. Um dia a minha filha falou, comentou não sei o quê, eu falei “eu não estou sabendo”, “ai pai, você não sabe dessas coisas, você não vê”. Eu citei para ela o que eu tinha lido num livro, como se referisse assim “um homem inteligente sabe de tudo o que acontece. O homem criativo, faz as coisas acontecerem”, e eu faço mais o tipo de fazer as coisas acontecerem do que ficar sabendo o que está acontecendo, e esse é o papel do Movimento Cultural Penha, é fazer as coisas acontecerem.
P/1 - Entendi. E o (Ururay) [01:54:27], você tem alguma relação com o grupo (Ururay) [01:54:31]?
R - Tem toda uma relação, o (Ururay) [01:54:36] vem com uma ideia de um Memorial mais amplo na região, e eu gostei muito dessa coisa do (Ururay) [01:54:45], porque quando começou esse movimento aqui da região, com relação ao patrimônio, alguém citou qualquer coisa de Memorial da Zona Leste, qualquer coisa assim, e eu não gostei nada disso, porque eu pensei “Memorial da Zona Leste, que é que da zona oeste ou da zona sul vai querer visitar o Memorial da Zona Leste?”. Ficaria legal se fosse, por exemplo, o Memorial do Tropeiro, diferente, você faz o Memorial do Tropeiro, o caminho do Tropeiro, Memorial do Caminho Real, sei lá, mas qualquer coisa que qualquer pessoa de qualquer lugar, lá de Santo André, venha conhecer o Memorial do Tropeiro. Não vai vir conhecer o Memorial da Zona Leste, o Memorial do Tropeiro ele vai conhecer. Então, essa coisa do (Ururay) [01:55:34] veio em encontro a isso, o (Ururay) [01:55:37], sai aquela coisa de zona leste. Eu até não gosto do nome, eu já faço uma crítica, eu não gosto do nome Zona, porque zona não é, eu moro numa região eu não moro numa zona. Porque a zona identifica, por exemplo, uma zona comercial, uma zona agrícola, zona de prostituição. Você não fala "a zona norte do Brasil", "a zona sul da Europa", "zona oeste dos Estados Unidos", não, é região. Foi um prefeito que dividiu a cidade em zona e acabou ficando essa palavra zona, zona, zona.
P/1 - Mas você acha que as pessoas não viriam para zona leste ou qualquer zona, pelo jeito de denominar? Zona sul, vamos para o Memorial da Zona Sul...
R - Não, não. Eu também não iria no Memorial da Zona Sul, entendeu? O Memorial da Zona Norte, fica parecendo uma coisa… fica estranho. Agora, o Caminho das Águas, Memorial do Japão, eu dou uma referência. Eu quero dizer assim, a zona não é referência, não é uma referência cultural, é uma coordenada geográfica, zona é coordenada geográfica, não é referência. Por isso que eu não gosto do nome Zona, é uma coordenada geográfica só.
P/1 - E quando veio essa ideia do (Ururay) [01:56:56], como que você lembra desse momento e depois, que conversa faz com o Memorial Penha de França? Como foi para você “ah, então não é mais Memorial Zona Leste, é o Memorial”...
R - É (Ururay) [01:57:12].
P/1 - ...“é (Ururay) [01:57:13]”. Conta um pouco disso, do seu ponto de vista.
R - Para falar a verdade, a gente ainda não conversou como poderia conversar, essa conversa ainda vai acontecer, porque primeiro precisava acontecer o que está acontecendo agora, essas mudanças no Memorial. O Memorial, primeiro, precisava ser mais consistente para gente começar a dialogar. Porque, a partir de agora, o (Ururay) [01:57:38] vai conversar com o Memorial. Antes, o (Ururay) [01:57:41] ia conversar com o Folco, é diferente. Agora não, agora você vai ter o (Ururay) [01:57:48], porque o ele surgiu num momento em que o Folco está sozinho no Memorial. Agora, com essa cristalização, graças ao que o Movimento Cultural Penha está fazendo no Memorial, vai ter esse diálogo. Por enquanto...
P/1 - Está institucionalizando mais, é isso, quando você fala que não é mais o Folco?
R - Não, está formalizando, está criando um corpo, está criando uma organização. Para você ter uma ideia, se alguém fosse procurar uma imagem, espero no futuro, quando alguém for procurar uma imagem de uma coisa qualquer do passado, encontre. Hoje, ele precisa de mim, porque só eu sei onde está. Faltava até isso, porque quando eu organizei essas fotos, eu organizei assim, eu cheguei a fazer pasta com o nome do doador, como é que ele vai achar uma foto numa pasta com o nome do doador? Então, eu sabia onde estava a foto, mas não pode ser assim, não pode estar guardado onde eu sei que que está. Tem que ter uma organização de biblioteconomia.
P/1 - E o que vai possibilitar ter isso que você está falando? Não é só uma parceria de estar junto, para ter tudo isso que você está falando, de uma nova organização, de uma institucionalização maior, o que aconteceu, objetivamente, assim? Não foi só o nome, não foi só o CNPJ, entendeu o que eu estou perguntando? Falando de gestão agora.
R - Foi uma convergência mesmo, foi uma convergência de ações, uma convergência de atitudes.
P/1 - E no caso com o (Ururay) [01:59:38], o que que um ajuda no outro, um vai ficar maior que o outro, como que é essa relação?
R - Eu acredito que vai ser de parceria também, vai ser de parceria. Vamos dizer que o Memorial vai ser um pedacinho do Ururay, o Ururay é uma coisa maior. E pode ser até que o Ururay seja uma inspiração para que outros memoriais aconteçam, com relação, assim como você está fazendo, o Museu da Pessoa, que tenha o museu, ali, do bairro, da região, da comunidade. As vezes a pessoa fala para mim, às vezes eu recebo visita, o pessoal olha aquelas fotos, olha aquilo, não sei o que, “ah, você não tem nada do Jardim Popular?”, eu falo “olha, o Jardim Popular, eu lembro dele, começou nos anos 70, 80, eu passava ali de ônibus e começou a aparecer lá o Jardim Popular. Os primeiros moradores estão lá, começa você, vai lá, conversa com os antigos moradores, pega depoimento deles: como que chegou o ônibus aqui, o primeiro comércio, está lá, a história está viva, vai lá, começa a fazer. O bairro é novo, o pessoal está lá ainda”. Na Vila Ré foi a mesma coisa, o pessoal veio me procurar para saber se eu tinha coisa da Vila Ré. A única coisa que eu tenho de lá, na memória, é que meu avô tinha uma casa de campo lá, esse meu avô alfaiate que eu contei para você, ele fugia lá para casa de campo dele, para fazer os ternos. Eu estava conversando isso antes de vocês, o meu avô pegou, de cara, olha quem viveu nesse período, ele pega a guerra de 14 que foi terrível, a revolução de 24, a revolução de 32 e a segunda guerra mundial. Meu avô foi para o mato, fugiu da civilização porque não aguentava mais. Num período pequeno de espaço, a pessoa que viveu nesse período, meu Deus, foi terrível, sai de uma guerra e entra em outra, entra em outra… Aí ele fugiu, foi lá para o meio do mato, que ficava na Vila Ré. Agora, na Vila Ré, você tem que ir lá e pegar, tem gente com foto antiga, e começa a fazer isso.
P/1 - Folco, o que você acha que o Memorial, para as pessoas que vão lá, para os moradores daqui, da região… O que você acha que significa para eles, o que você já ouviu?
R - O pessoal idoso vai numa relação afetiva emocionante, matar a saudade. O pessoal jovem vai para saber que raio de lugar é esse, como é que começou, quer saber a origem da Gistória. Eu noto, assim, uma indignação do pessoal jovem de ver o que era e o que ficou.
P/1 - O que eles falam mais forte do que era o do que ficou?
R - Com relação ao rio Tietê, com relação a paisagem, de verde, dos bosques, “como é que vocês deixaram ficar assim?”. Uma vez, naquele bonde de Santos, tinha um menino. O cobrador do bonde, era um jovem. Entrou um velho no bonde, “que maravilha, o bonde, isso aqui nunca devia ter acabado”. O jovem vira para o velho “por que vocês deixaram acabar?”. E essa indignação que eles têm com o pessoal, não da minha geração, da geração do meu pai, que foi aquela geração de modernização das coisas, eles entraram numa dessa. "Olha só, destruíram a paisagem do rio Tietê, destruíram a riqueza que tinha no rio Tietê, para construir marginal para que as pessoas da zona sul pudessem chegar mais rápido nos seus iates da zona norte, e nós ficamos aqui sem nossos barcos, sem nosso lazer do rio. Falam para eles que era progresso, e eles acreditaram que ia ter progresso." Então, eu percebo assim, no pessoal jovem hoje essa indignação. Bom, para você ter uma ideia, tinha gente que olhou o rio, o pescador... “o rio Tietê? Não, não pode ser”, é. O mais grave, “você sabe o que é um rio?”, “é para onde vai o esgoto”, olha. O rio é para onde vai o esgoto, eles não têm ideia do que é um rio. Se você pegar, eu tive vontade uma vez, isso aí vai dar um trabalho danado no Photoshop, vai dar tendinite na mão, mas eu vou acabar fazendo isso, eu tenho vontade de pegar as paisagens de cidades europeias, por exemplo, o Tâmisa de Londres, o Sena em Paris, e contar assim “e se Paris fosse igual a São Paulo?”, eu rasgaria assim, em torno do Sena, faria a marginal, sabe. Londres, “se Londres fosse igual a São Paulo?”, arrancava o prédio do parlamento, o Big Ben, fazia a marginal, com aqueles prédios horríveis de shoppings, acabaria. Eu costumo dizer, você vai para Paris, você vai para Londres, você não vai para entrar em shopping, você vai para ver o patrimônio, você vai lá para ver o Louvre, aquela Torre Eiffel, aquelas coisas velhas, antigas. Shopping é tudo igual no mundo inteiro. E um patrimônio diferencial de um bairro, aquilo que faz a diferença no seu bairro, você tem que preservar, porque o resto é tudo igual. Por que uma pessoa vai sair lá da Lapa para vir nas Casas Bahia aqui da Penha? Lá também tem uma Casas Bahia. Agora o Largo do Rosário só tem aqui, o edifício Santos Dumont só tem aqui, a rua João Ribeiro, a mais antiga do Brasil, só tem aqui. Está chegando alguém aí? Vocês estão olhando para porta.
P/1 - Fala, você acha que precisa perguntar mais alguma coisa, do Movimento?
R - Faltou contar um causo. Faltou contar um causo.
P/1 - Daqui da Penha.
R - É.
P/1 - Então, vamos lá.
R - Então...
P/1 - Você viveu ele? Ou te contaram?
R - Não, história que vão contando, contando, contando… Não, não viveu, é da época do Brasil colonial, fazenda de café. Tinha uma fazenda de café aqui na Penha, e o dono dessa fazenda morreu muito cedo, deixou um filho de 18 anos tomando conta. Diz que esse filho era ruim para "chuchu", muito ruim. E que ele, um dia, chegou para mãe e falou “mãe, eu quero minhas botas engraxadinhas porque eu vou no baile que tem hoje à noite no cassino”. O cassino era aqui no largo do Rosário, aquele prédio que tem lá de 1904. Bom, ele foi para roça, e quando voltou, foi lá vestir a bota. A bota estava suja de terra. “Mãe, por que não engraxou minha bota?”, “ah, filho, eu tinha tanta coisa para fazer”, então ele catou a bota assim, catou a cabeça da mãe e falou “lambe essa bota, vou fazer você lamber essa bota para nunca mais esquecer de limpar, de fazer o que eu mando”. A mãe rogou uma praga nele, que quando ele morresse, nem a terra haveria de aceitar. Passaram anos, e anos, e anos, ele ficou velho e morreu. Foram enterrar ele aqui no cemitério da Penha. No dia seguinte, o corpo estava para fora. Chamaram o padre Benedito de Camargo, foram lá “ó, enterraram e o corpo está para fora”, “vamos enterrar de novo”, enterraram e no dia seguinte o corpo estava para fora. Uma pessoa que sabia da história da mãe - que praga de mãe pega, não tem jeito - contou que ele tinha uma praga de mãe: a mãe disse que no dia que ele morresse e fosse enterrado, nem a terra haveria de aceitar. O padre Benedito de Camargo falou “então, o único jeito é pegar esse corpo e pendurar lá na torre da igreja, deixa lá para os urubus acabarem com ele, eu vou fazer o quê?”, naquela época não tinha crematório, e a terra não vai aceitar, o que vai fazer? Pendura na igreja. Então, diz que penduraram o cara lá na igreja. Aí, diz que nos anos 30, quem subia a ladeira da Penha ao meio dia, ouvia as 12 badaladas do sino, olhava lá para torre, via a caveirinha lá. Esse é um dos causos da Penha.
P/1 - Muito bom, Folco. Então, eu vou pedir para você fechar agora. Você quer falar alguma coisa que a gente não te perguntou, que você acha que é muito importante registrar?
R - Não, eu acho que, eu sei que a gente não esgotou o assunto, mas por enquanto, acho que o mais importante foi dito, eu acho que tem coisa que até falei até demais. Acho que o mais importante aqui é a questão, a relação da gente com a Penha, vocês perceberam que eu realmente sou bastante penhense. Aquela coisa que eu comentei com você da música, é uma coisa muito penhense também, e italiana. A coisa da música... o italiano é muito ligado à música, muito ligado. Acho que, basicamente é isso. Agora, aqui na Penha teve também colônia árabe. Grego, por incrível que pareça, gregos, espanhóis, portugueses, aquela colônia ali da igreja Nossa Senhora de Fátima é uma colônia de portugueses, e os negros, e japoneses… uma colônia japonesa enorme, os japoneses que estão em Itaquera saíram daqui da Penha, da região do Tiquatira.
P/1 - Muito bom.
R - Então, não era só italianos que tinha aqui, não.
P/1 - E se você fosse falar a imagem que traduz a Penha, já que você está ligado nas imagens. Que imagem traduz a Penha para você?
R - Um outeiro do Brasil colonial, é um outeiro. Como aquela Praça Tiradentes lá em Ouro Preto, é um outeiro, e a gente gosta muito desse centrinho, essa "ruinha" estreitinha, queremos preservar isso. E tem uma coisa bem egoísta também, não é só preservar na questão histórica, é preservar também pela qualidade de vida, porque nos bairros novos hoje, seja de rico ou pobre, eles rasgam aquele avenidão com os bancos, tudo nesse avenidão… saem as travessas, o pessoal mora nas travessas, não tem mais praça, não tem mais nada. Não tem mais praça, não tem beco, não tem nada, tudo igual. E a gente tem esse diferencial aqui, a gente não quer perder, porque quer queira, quer não, isso mexe com a nossa qualidade de vida. Antigamente, as famílias mais nobres - isso aconteceu na Penha também - as famílias mais nobres moravam perto da igreja, era sempre perto da igreja. Hoje não, hoje as famílias nobres moram lá no Morumbi, longe para caramba de igreja.
P/1 - Folco, então a gente vai terminar. O que você achou de contar a sua história, desse jeito? Você já deve ter contado muitas vezes, mas hoje, desse jeito?
R - Não, eu não conto história assim, como eu contei hoje aqui, não. É mais a história da Penha mesmo, eu sou contador de história da Penha. Acho que é a primeira vez que eu falo sobre a minha vida, coisas assim, nunca falei mesmo. Sempre história da Penha, história dos tropeiros, passagem dos imperadores por aqui, história que eu já contei um monte de vezes, mas sempre da Penha.
P/1 - Agora você contou a sua, que é daqui.
R - E contei um causo também.
P/1 - E o que você achou, espera aí, o que você achou de contar?
R - Oi?
P/1 - Como foi a experiência, o que você achou, se foi bom, se foi ruim, se foi mais ou menos...
R - Foi boa, nossa, foi boa, foi ilustrativa, terapêutica, cultural, inspiradora, estou saindo daqui bem inspirado...
P/1 - Será?
R - Sim, bem inspirado.
P/1 - Por que?
R - É importante você, de vez em quando, lembrar quem você é. Às vezes você esquece. Esse trabalho aqui fez assim, você lembrar quem você é. Eu sou o Folco, foi nesse negócio todo aí. Antes de vir para cá, eu era apenas o sujeito que amanhã tem uma cirurgia para fazer na boca; terça-feira eu tenho um exame; na segunda-feira logo cedo eu tenho um exame na Clodomiro Amazonas, sete e meia da manhã, eu não sei nem como chegar lá. Estou com pedreiro em casa, e de repente aqui “opa, espera um pouquinho, eu sou o Folco”, é um trabalho que faz a gente lembrar de quem a gente é.
P/1 - Muito bom, obrigada, viu, Folco.
R - Eu é que agradeço a presença de vocês.
P/1 - Parabéns pela sua história, e pelo seu trabalho.
R - Obrigado pelo trabalho, obrigado pelas perguntas, pelo acompanhamento, obrigado por fazer de mim, sentar aqui com foco. Foco no Folco.
P/1 - Muito bom.
R - Obrigado.
[02:13:43]
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