Ponto de Cultura Museu Aberto
Depoimento de Adalberto Barbosa
Entrevistadores: Maurício Rivero e Tiago Belotto
São Paulo, 27/10/2009.
Realização: Museu da Pessoa
PC_HV196_AdalbertoBarbosa
Transcrito por Tereza Ruiz
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
P1 – Bom dia, senhor Adalberto.
R – Bom dia.
P1 – Bom, primeiramente eu gostaria de saber o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Adalberto Barbosa, eu nasci na cidade de Santo André no hospital Santa Casa.
P1 – A data de nascimento...
R – 17 de agosto de 68.
P1 – Bom, começando a entrevista a gente vai começar falando sobre a sua família, de origem. A sua infância. Eu gostaria de saber o nome dos seus pais inicialmente.
R – Minha mãe tem o nome de Odete Barbosa e o pai não foi reconhecido.
P1 – Ok. Os seus avós?
R – Meus avós são o Pedro, Iracema. Meu avô era de Guaxupé, minha avó era de Goiás.
P1 – Por parte da mãe.
R – Isto.
P1 – Ok. E poderia falar um pouco da atividade profissional da sua mãe, dos seus avós.
R – A minha mãe, pelo tempo de criança que eu a vi trabalhando, foi cobradora de ônibus. Diarista. Esses trabalhos mais simples.
P1 – E os seus avós?
R – A minha avó era do lar, o meu avô era padeiro, trabalhava em padaria no centro da cidade.
P1 – Você se lembra como era na sua infância, trabalhos, acompanhava, chegava a acompanhar?
R – Pelo que eu lembro do meu avô que ele era padeiro. É que ele sempre trazia coisas da padaria. A gente ficava já na expectativa de manhã pelo pãozinho fresquinho que vinha. Normalmente quando ele voltava do trabalho ele trazia sempre um pãozinho fresquinho pra gente.
P1 – Você costumava conversar com ele?
R – Conversava. Meu avô era muito legal. Nós parávamos no bairro, quando ele me via assim com outras crianças ele mandava fazer fila pra tomar sorvete, aqueles sorvetes de copinho.
P1 – E a sua mãe?
R – Minha mãe... Sempre fiquei junto com ela.
P1 – Certo.
R – Sempre. Sempre morei com a minha mãe.
P1 – E como que era na sua casa? Como que era o ambiente, a convivência com a sua família, como é que era?
R – Nós fomos assim, criados sempre juntos, os irmãos com os avós e os pais sempre trabalhando. Era tudo na mesma casa. Então tinha a divisão, minha tia com os filhos dela que são dois e minha mãe com seus quatro filhos e meus avós. E meus avós também tinham casa em Barueri. No interior de São Paulo e tem casa em São Mateus. Então a gente ficava meio tempo em Barueri quando era criança, fazíamos muitas... Passava muitas férias lá. Tinha vez que passava temporada de meses antes de começar a estudar. Quando eu comecei a estudar a partir dos sete anos só fiquei mesmo em São Paulo, só ia pra Barueri em férias.
P1 – E tinha irmãos também?
R – Eu tenho. Eu tenho um irmão que morava em Minas, foi pra morar em Minas, casou. Tenho oito anos mais novo que eu, homem, e outra irmã é quatro anos mais nova que eu, que é mulher. Meu irmão chama Eduardo e minha irmã Adriana.
P1 – São três então, três irmãos.
R – Isso. São três irmãos. Eu e mais três. O irmão que era de Minas é Marcos.
P1 – E pode descrever um pouco a rua, o bairro em que você morava...
R – Morava no bairro de São Mateus chamado Jardim Santa Délia. Um bairro simples, não tem muito comércio, o comércio mesmo é no centro de São Mateus, questão de dez minutos de caminhada. É um bairro que faz três divisas, ele faz uma divisa com Mauá, com Santo André e São Paulo. Então ele fica entre três municípios. É um bairro muito gostoso, minha infância toda foi passada ali. Quando eu era criança não tinha muita casa, então a nossa infância foi passada a maioria dos dias assim no meio do mato, brincando, caçando, nadando, aproveitei bem a minha infância.
P1 – Você tinha muitos amigos?
R – Tinha. Nossa. Nós brincávamos muito. Todas as brincadeiras de criança eu vivenciei. Manual, interativa, de ação, tudo nós fizemos. Então quando... Nessa época quando eu era criança a gente brincava sempre em tudo e tinha espaço assim pra você ir de um bairro pro outro, ou sair da sua rua pra brincar cinco, seis ruas na frente com as pessoas de lá. Então a gente interagia muito entre o bairro inteiro, os amigos da escola, um chamava pra brincar na casa do outro, isso da gente nós íamos fazendo as brincadeiras do dia-a-dia.
P1 – Mas era bem carente a região ou tinha certa estrutura?
R – Não. A gente convivia assim, como nós éramos crianças... Não que a região fosse carente, é que as condições na época do militarismo eram mais difíceis pros nossos pais darem mordomia pra gente. Não tinha esse negócio de aniversário, brinquedo, ganhar brinquedo de aniversário, os brinquedos da gente a gente que fazia. Fazia um carrinho de rolimã, arrumava um peão, uma bolinha, essas brincadeiras assim que eram de baixo que todo mundo brinca. Não era fácil a convivência porque a maioria da alimentação quando a gente fazia era que nem no nordeste, fazia dentro da escola. Muitas vezes a gente se alimentava mais dentro da escola do que em casa, que era onde você aproveitava ali. E dentro dessas brincadeiras eu passava na escola, almoçava, fazia os meus estudos, depois mais tarde a merendeira falava: “Pode voltar aqui de novo se você quiser comer mais pra depois brincar”. Então a gente fazia as nossas brincadeiras, ia pras lagoas fazer as nossas caças, depois voltava de tarde, se alimentava na escola de novo, porque nós tínhamos acesso. Porque era do bairro, tinha amizade, então as mulheres sabiam que a gente podia passar necessidade, elas não deixavam nós passarmos necessidade.
P1 – E você falou que caçava com seus colegas, com seus amigos. Como que era essa brincadeira?
R – Nós levávamos cinco, seis cachorros, estilingue e ia pro mato, começávamos a caminhar. Então nós íamos cercando, colocávamos cada um em cada setor, colocava os cachorros pra correr atrás dos bichos e nisso nós achávamos saruê, que é tipo um gambá, achávamos cutia, galinha d´água, tatu, teiú, preá, rã. Onde tinha bicho nós pegávamos, no final da tarde todos aqueles bichos que nós arrecadávamos na mata a gente fazia um churrasquinho no fim da tarde e ficava ali trocando ideia e comendo churrasquinho de bicho que nós tínhamos caçado.
P1 – E era bom?
R – Ah, era delicioso, nossa... Dava trabalho só pra limpar os bichos depois.
P1 – Então você comia gambá também?
R – Comia tudo. Gambá ele é comestível, mas ele só tem um problema que quando você vai pegar ele, ele tem a defesa dele, é um líquido que ele tem debaixo do sobaco que ele espanta todo mundo, mas até... Depois que está morto é só tirar aquele líquido, limpar, tirar a barrigada certinha dos bichos. Todos os bichos tem seu problema. A gente na hora de limpar tinha muito cuidado de não estourar o fel, se você estourasse o fel do bicho você perdia a carne. Então tinha certas vezes que a gente não conseguia limpar, perdia a carne porque estourava o fel. A carne ficava amarga, de bicho do mato. Era assim.
P1 – Vocês comiam como estava mesmo ou vocês levavam algum temperinho, um sal...
R – Não. Fazia tudo. Fazia tudo. Levava pra casa, preparava, depois nós já arrumávamos as madeiras, fazíamos fogueira e ficávamos ali assando e trocando ideia. Era tudo moleque, não tinha malícia nenhuma, nossa brincadeira era essa daí. Além de brincar com essas brincadeiras manuais, porque são brincadeiras de época. Brincadeira manual. Bolinha tem seu tempo. Passou, passou. Peão tem seu tempo. Passou, passou. Mas a caçada não passava. Todo dia nós falávamos: “Vamos caçar? Vamos caçar”. Juntava todo mundo, ia pra caça e no final da tarde todo mundo ficava contente porque tinha alimento.
P1 – E vocês caçavam e depois iam pra sua casa ou pra casa dos seus colegas...
R - Não. Ficava sempre na casa de um porque normalmente chegava lá pra tomar banho, já fazia aquela fila das crianças pra ir pro banheiro, todo mundo tomava banho porque... Normalmente quando a gente voltava das caçadas a gente voltava tudo sujo. Passava nos brejos, entrava nos rios, pulava rio, andava no meio do mato. Então, quer dizer, a gente tomava banho pra não apanhar também em casa quando chegasse tudo sujo. Então a gente já chegava já limpinho, todo mundo alimentado.
P1 – Além da caça, que outras brincadeiras que você gostava de fazer com seus colegas?
R – Ah, gostava de andar. Andar assim, morava a oito quilômetros de um parque chamado Parque do Carmo, nós juntávamos as crianças também e íamos pra esse parque a pé. Quando não a gente ia pra Santo André, pro Parque da Criança, a gente fazia as caminhadas. Não parava. Quando era criança era muito interativo, era chegar a casa: “Fez o estudo?”. Colocava o material em casa e ia pras brincadeiras.
P1 – E vocês andavam até Santo André a pé?
R – Andava. Andava oito, quinze quilômetros... Sumia quando era criança. Na época quando eu tinha cinco anos eu lembro que quando eu ia pra Barueri nós pegávamos os cavalos andava até Itapevi, Jandira. Pegava cavalo, só colocava um saco de estopa, sentava em cima do cavalo e ia embora. Pra aproveitar a viagem nós passávamos nos conventos, sabíamos onde tinha as igrejas que davam alimento. Então na hora certa do alimento nós chegávamos lá também, encostávamos o cavalo, fazíamos a oração, pegava o alimento, depois ia curtir novas caminhadas, brincadeiras. Quando eu era criança cheguei a nadar no Rio Tietê, na parte do Barueri ali. Nós descíamos pro Rio Tietê, limpávamos os aguapés, nadávamos, nos divertíamos ali e depois voltávamos.
P1 – Certo. Fala-me um pouco assim de como era o cotidiano na sua casa, como que era o dia-a-dia.
R – Sempre fomos família simples. Eu tenho uma lembrança assim bem vaga, mas essa é interessante porque quando eu tinha dois anos, isso há 39 anos, tinha televisão em casa de 29 polegadas. Então quer dizer, hoje em dia é uma novidade. Pra muitos, que ainda nem chegou a sua casa ainda e eu já tinha aquela época. Minha avó trabalhou numa casa, essa casa renovou os seus móveis e sobrou essa televisão pra minha avó. É daquela “televisãozona”, grandona, com tubo. E eu lembro que estava passando o jogo da copa do mundo de 70, a cada gol que saía todo mundo sumia da sala e eu pequenininho ficava lá: “O que está acontecendo?”. E via aquele barulho, aquela gritaria, aquele agito, não sabia o que estava acontecendo, mas já estava sentindo aqueles momentos da alegria que era o futebol, que o futebol trazia alegria e que o povo até hoje tem muita alegria com o futebol.
P1 – E além dessa lembrança que você tem da infância, você tem algum fato assim que te marcou na sua infância, quando criança...
R – Ah, tenho. Uma vez eu viajei com a minha tia, a estrada velha de Santos eu ia pra chegar a Santos ou nós íamos de trem. Normalmente nós íamos de trem porque nós não chegávamos a Santos. Descia até Cubatão, parava no bairro de Vila Paris. Certa vez eu estou nessa Vila Paris com a minha tia e ela foi até a casa de algumas amigas dela, me deixou em casa. À tarde começou a dar esse negócio de maré cheia, foi enchendo, enchendo, enchendo de água onde eu estava, eu como era criança fui subindo, subindo, subindo, quando eu fui ver eu já estava em cima do armário de pé e a água subindo. Passaram uns 15 minutos que começou a dar essa maré cheia, subiu a água muito rápido, a minha tia me chega de barco, quebrando todas as telhas de casa pra me salvar. Ela ficou tão feliz assim de me ver, salvo por si próprio, falou assim: “Você é criança, teve a inteligência de subir no armário...”. Falei: “Eu estou vendo a água subir, eu não vou morrer afogado.” Já procurei um jeito de me salvar.
P1 – Você tinha quantos anos?
R – Ah, eu era pequeno, eu acho que eu tinha seis ou sete anos de idade. Mas o desespero ali de ver aquela água subindo e não ter pra onde correr, eu pensei: “Agora eu morri”. Então foi aonde que eu senti que a primeira vez que eu via morte na minha vida.
P1 – A sua tia demorou pra chegar de barco?
R – Não. Demorou 15 minutos. Ela chegou de barco em 15 minutos, mas em 15 minutos esse negócio de maré cheia, nossa, a água sobe muito rápido. E foi subindo, eu subi na mesa, falei da mesa não dá mais, subi no armário e fui subindo. Quando eu... O armário deve ter o quê? Um metro e 40, um metro e 50, e eu fiquei em cima do armário e já estava ultrapassando já o meu pé. Fiquei com muito medo também.
P1 – Bom, você falou um pouquinho da sua infância, da sua casa, da sua família, e como que era na escola? Você teve prezinho ou foi direto pro primário?
R - Não. Na minha infância assim, pré e creche era tudo longe, longe mesmo, coisa de dois, três quilômetros pra chegar, não tinha essa infraestrutura. Quando eu comecei a estudar foi a partir dos sete anos de idade.
P1 – Foi direto no primário?
R – É. Já fui direto pro primeiro ano. A minha primeira professora, eu lembro como se fosse hoje, ela ensinava a escrever, mas exigia que a gente escrevesse em letra de forma já no primeiro aprendizado. Aquilo lá pra mim até hoje foi válido porque até hoje eu escrevo em letra de forma. Aquilo lá ficou pra minha vida pra sempre. Aprendi a estudar no Caminho Suave, aquelas cartilhas Caminho Suave. Nunca tive dificuldade em escola, facilidades assim com matemática, com contas. Com coisas assim mais simples que é ciências, essas coisas simples assim eu sempre tirei de letra. Nunca fui um mau aluno, fui um aluno assim, desobediente porque aprontar eu aprontava muito na escola. Na hora do recreio... Eu tinha mania assim de ser valente quando criança então abusava das crianças assim em certas... Tomava lanche... Hoje em dia eu me arrependo, já pedi desculpa pra muita gente que eu maltratei quando criança, mas era da infância. A gente juntava, fazia turminha pra brigar. Antigamente podia brigar, bater um no outro, não acontecia nada, era só aquela disputa, era até acertar uma no nariz e sair o sangue, neguinho já parava a briga na hora: “Aparta. Aparta. Aparta. Aparta que está sangrando”. Então essas briguinhas de criança eram normais, pra mim eu achava que era tudo de infância, era tudo normal mesmo.
P1 – E a escola era grande? Como é que era?
R – A escola era no bairro. Foi inaugurada acho que depois de uns quatro anos que eu pude estudar nela. Quando eu era criança eu ficava olhando as pessoas indo pra escola e tinha a maior vontade de ir pra escola quando eu comecei a ir pra escola você perde a vontade porque tira um tempo do seu lazer. Mas ali você vai vendo um aprendizado, você vai tirando referências pra levar pra vida, de aprendizado. Eu comecei a ir à escola, quando eu fiz 14 anos. Eu fui estudar SENAI, foi onde eu ganhei um pouquinho de liberdade. Por quê? O SENAI era no Ipiranga, eu morava em São Mateus, então eu com 14 anos tinha que sair de casa de ônibus, tinha o horário de saída, tinha que levar marmita, ali já começou tipo uma vida profissional. A partir do momento que eu comecei a estudar, cheguei na fase de estudar o SENAI, quando eu terminei o SENAI já entrei na vida profissional. Fui trabalhar em Santo Amaro, então todo aquele ensinamento que eu tive de escola, do SENAI, que foi um grande aprendizado que eu trago muitas coisas até hoje, começou a vida profissional. Fui trabalhar em Santo Amaro na empresa Villares, fiquei seis anos trabalhando nessa empresa, quando ela mudou pra Joinville, Pirassununga, Pindamonhangaba eu não quis ir com a empresa, porque a empresa saiu de São Paulo. Eu mudei de ramo, fui passar pro comércio. Passei pro comércio, no comércio fiquei vários anos trabalhando, trabalhei na baixada, inaugurei várias lojas, trabalhei em quatro redes de lojas. Depois eu fui trabalhar com lista telefônica, trabalhei em várias cidades do interior, aprendi outras profissões, fui trabalhar de conferente, marceneiro e é onde eu terminei agora esse processo de trabalho que a última empresa que eu trabalhei eu estava trabalhando de marceneiro.
P1 – Bom, você começou no... Na sua escola lá você ficou o primário, o ginásio na mesma escola ou mudou do...
R – Eu só mudei dois anos. Que quando eu cheguei com 18 anos eu não tinha me formado ainda, eu estava no primeiro ano colegial. Então eu dei uma parada de estudar e quando eu cheguei ao primeiro colegial não tinha mais vaga pra mim nessa escola, eu mudei de escola. Fiz o primeiro colegial em outra escola e parei de novo. Voltei pra essa escola que eu já estudava que era do meu bairro, chama Professor Adelino José da Silva de Azevedo. E essa escola eu estudei da primeira série até o primeiro ano, o primeiro ano eu não estudei, estudei o segundo e o terceiro. Só que o segundo e o terceiro foi após 15 anos. Foi onde eu fiz. Estava com 35 anos.
P1 – Ah, teve todo esse intervalo depois.
R – Isso. Eu fiquei quase 15 anos sem estudar. Entre viagens, trabalho, eu perdi um pouco o pique de estudo. Voltei com 35 anos, fiz o segundo e o terceiro ano. Terminei a escola em agosto, em setembro já estava na faculdade. E fiz supletivo segundo e terceiro ano. Fiz quatro anos de faculdade direto, sem repetir nenhuma matéria, sem puxar DP em nada, fui muito bem. Formei-me. Em cinco anos eu fiz uma trajetória entre segundo, terceiro ano e faculdade.
P1 – E qual é o fato marcante nos seus estudos na escola? Você tem algum fato que te marcou, algum professor que você se lembre?
R – Ah, tinha um professor que eu estimava muito que ele me deu iniciação no esporte. Quando eu cheguei na quinta série começou educação física e eu vi que eu gostava da coisa, de jogar bola, de jogar basquete, de jogar vôlei, de jogar handball, de fazer natação e esse professor era professor do SESI de Santo André, do prefeito Saladino.
P1 – Qual é o nome do professor?
R – Professor Carlos. A gente o chamava de Carlão. Ele tinha um jeito de tratar a gente assim diferente, ele chamava todo mundo de neném, todo mundo: “Oh, neném!”. Pra ele era neném. Então era muito carinhoso o jeito dele tratar a gente e várias pessoas que estudaram comigo partiram pro lado da educação física. Eu só não tive oportunidade na época, meus pais não tinham condição de bancar uma faculdade pra mim. Senão eu já teria feito educação física também, mas está em projeto ainda de fazer uma educação física, lá na frente ser um técnico de futebol.
P1 – Mas as aulas ele chegava... Você chegava a ir até Santo André lá no SESI?
R – No SESI nós éramos convidados pra ir lá fazer atletismo. Então lá nós corríamos, fazíamos competições, fazíamos natação, usávamos a piscina.
P1 – Muita gente ia fazer lá?
R – Ia. Ele convidava as pessoas pra irem pro SESI, várias pessoas pra iniciar no atletismo. Muitas pessoas que tiveram aptidão continuaram no atletismo.
P1 – E você gostava lá do atletismo? Gostou logo de cara?
R – Eu gostava mais do basquete, eu não tinha altura nem nada, mas eu era bonzinho de basquete. Essas cestas de três pontos, hoje em dia valem três pontos. Daquela linha... Eu já fazia aquelas cestas de três pontos sem valer, valiam só dois. Eu só fazia cesta de longe. Hoje em dia eu acho que eu teria uma boa aceitação porque eu já fazia cesta de três pontos, mas só valia dois.
P1 – E você tinha muitos amigos da escola assim...
R – Ah, no bairro que eu morei todo mundo é meu amigo. Todo mundo. Todo mundo do bairro eu conheço, todos os moradores. Entre adulto, criança, criança que nasce, todas as gerações no bairro que eu morei eu acompanhei. Todo mundo me conhece. Eu digo assim, tem vezes que eu vou com um amigo meu que não é do bairro ele fala: “Meu, você é prefeito aqui? É vereador? Todo mundo que passa você cumprimenta”. Não. Sou nascido e criado no bairro, conheço todo mundo. Quando eu era criança podia entrar numa casa à vontade, fazer visita. Até hoje as pessoas recebem minhas visitas. Veem-me na rua, param pra conversar.
P1 – E quando você ficou um pouco maior, adolescente, você chegava a se distanciar um pouco mais do seu bairro, pra ir a outros lugares, pra passear...
R – Ah, curtia salão. A minha geração curtiu muito salão. Hoje em dia a maioria dos salões virou igreja, a maioria virou tudo igreja da Universal porque a Universal... E outras igrejas também pegaram esses espaços que eram salões de baile e fizeram igreja. Curti Club House, curti (___?), curti Neon Club, curti Palmeiras. Já fui a vários bairros de São Paulo assim, curtir salão, gostava muito de salão.
P1 – Era o seu lazer preferido?
R – É. Salão. De fim de semana nós juntávamos assim uma turma pra ir pro salão. Era gostoso porque a gente esperava a hora da lenta pra começar a ganhar as menininhas dentro do salão, essa hora é que nós aproveitávamos mais.
P1 – Nesses clubes tocava o quê? O que você gostava de ouvir?
R – Ah, rolava muito black, funk. Não esse funk de hoje em dia, aquele funk de antigamente. No comecinho assim da Madona, começou a Madona naquela época lá, já veio uma música assim mais diferente, Michael Jackson. Essa época, eu peguei essa geração toda.
P1 – E além do salão que outras atividades?
R – Se não fosse o salão nós curtíamos indo pro samba. No samba nós íamos pro Bar da Ana, íamos pros barzinhos dos bairros onde fazia pagode, essas coisas. Eu sempre gostei muito de música também. E outro lazer também era campo de futebol. O lazer nosso assim nos bairros tipo onde eu moro que é bem afastado, fundão da zona leste, São Mateus, nós dizíamos que nós tínhamos campo de futebol e salão de baile.
P1 – Era todo domingo, sábado?
R – Todo fim de semana.
P1 – Todo fim de semana.
R – Todo fim de semana nós juntávamos uma turminha: “Vamos pra onde hoje? Hoje vamos pro Club House, amanhã vamos pro (___?)”, já combinava. Tinha uma coisa muito engraçada que quando a gente gostava do salão assim a gente batia cartão, falava bater cartão: “Vamos bater cartão naquele salão”. Ficava um, dois meses, três mesinhos no salão. Enquanto a gente não rodasse as meninas do salão a gente não parava de ir nele. Então a gente ficava disputando quem ganhava mais meninas dentro do salão.
P1 – Você era paquerador?
R – Ah, eu era pegador. Não deixava barato, não. Nós tínhamos uns oito... Nós íamos em uns oito assim, nós só íamos em homem. Quando chegávamos ao salão nós saíamos arrepiando, cada um tinha que mostrar que pegava mesmo. Normalmente toda festa nós ficávamos com uma menininha diferente e era ficar mesmo, não era esse ficar de hoje em dia, não. Ficava, curtia numa festa só, na outra já ia paquerar outra.
P1 – E como é que vocês se vestiam? Como que era a moda na época?
R – Era legal porque tinha um... Eu lembro que a Adidas fez um tênis chamado Marathon. Esse Marathon, nossa, foi uma revolução nos tênis que mudou muito o conceito do tênis. Nós chegávamos a rasgar a calça aqui dos lados, por um courinho assim pra deixar ela boca de sino. Usava muitas camisas xadrez assim, aqueles camisões de flanela, calça de flanela com listras. Usava muito Lee, Levi´s, usava... Andava chique. A gente era moleque assim, mas gostava de ir pra salão bem arrumadinho porque quanto mais arrumado você estivesse, e a sequência de vezes que você fosse nesse salão era que ia fazer a sua apresentação pra você começar a ganhar as meninas.
P1 – Você tem alguma situação pitoresca desse período assim de frequentar esses bailes...
R – Ah, eu gostava muito.
P1 – Você lembra-se de alguma situação que...
R - Ah, eu lembro de uma situação que foi a primeira vez que eu fui. Eu fui numa festa funk, ia rolar muito funk mesmo a noite inteira e eu saí com uma turma e a turma você olhava pra cima pra enxergar as pessoas, porque um tinha um metro e 90, outro um metro e 80. E aquele tempo eu peguei o cabelo, os caras: “Vou por laquê no seu cabelo...”. Laquê, ele encheu de laquê, pegou um garfo assim, levantou meu cabelo ficou desse tamanho: “Agora você está preparado pra ir pro funk”. E eu era criança, quando chegou na frente do baile, mas foi um sacrifício pra por eu pra dentro. Todo mundo queria ser meu responsável: “Não, eu fico responsável, eu fico...”. E eu era criança e já estava curtindo o baile junto com os adultos.
P1 – Bom, então você se divertia lá com o baile, o futebol de fim de semana, retornando um pouco lá pro SENAI. como que foi o curso? Foi curso do que você fez?
R - Ah, o curso que eu fiz? O curso que eu fiz foi de serralheria artística, então vamos supor, pra mexer, fazer portão, grades, janelas, porta, pra fazer box de alumínio, janelas de alumínio, toda confecção que você vê numa casa de portão, tudo que for em alumínio e ferro eu aprendi a mexer no SENAI. Tinha a teoria na parte da manhã, a parte da tarde era a prática.
P1 – Era integral o curso?
R – É. O curso era integral. Nós chegávamos sete horas da manhã e saíamos cinco horas da tarde. Tinha a parte de educação física. E escola como o SENAI, estou pra ver igual até hoje das que eu estudei. Nem faculdade, nem escola no Estado, porque o SENAI a pessoa pode não saber nada, mas chega ali aprende.
P1 – Quanto tempo durou o curso?
R – Um ano e meio. Nesse um ano e meio de curso eu fiz muitas amizades com os professores. Então eu fazia o curso, como eu sempre fui um pouquinho mais adiantado nas tarefas, eu fazia tarefas por fora. Então quando tinha serviços assim, pra fazer externos, eles me chamavam pra fazer os serviços externos também. Então sempre apareciam serviços externos, serviços de precisão externa. Então eu fazia o curso, fazia já serviços externos e ficava naquela atividade. Eu me lembro de um fato muito interessante no SENAI. Eu pedi ajuda social. Eu tinha dificuldade pra chegar no SENAI, fazer alimentação, tudo. Então eu chegava à assistente social, conversava com ela, de tanto eles me ajudarem chegou uma época que eu pude ajudar eles. Eu percebi que não tinha ping pong no SENAI, estava faltando alguns jogos pra gente ter atividades assim, na hora do almoço. Eu fiquei de organizar isso. Tinha um pebolim no SENAI, os ferros todos quebrados, jogadores todos quebrados. Certo dia eu parei no portão do SENAI, arrecadei um real de cada aluno, eu e mais três pessoas arrecadamos, fomos pedindo um real e com esse dinheiro que nós arrecadamos compramos todo o material que faltava pro nosso lazer dentro do SENAI.
P1 – E durante o SENAI ou depois do SENAI você conseguiu algum estágio, algum trabalho dentro da área?
R – Então, o diretor do SENAI me chamou na sala dele. Porque eu tinha muita interação com todos os professores, com a assistente social, com a direção. O diretor falou que tinha uma empresa que estava precisando de quatro funcionários, mas só ia ficar com dois. Eu fui fazer entrevista lá em Santo Amaro, morando aqui em São Mateus. Passei na entrevista, passei a trabalhar nessa empresa, fiquei seis anos. Quando eu cheguei na Villares, tinha parte da empresa que fazia escada rolante, elevadores, motor de navio, de avião e o meu trabalho foi ficar numa sala de instrumentação. Então todas as máquinas da empresa precisavam de instrumentos pra fazer medição das peças que eles fabricavam e essa instrumentação ficava em uma sala com ar condicionado pra ficar sempre em temperatura ambiente. Esses instrumentos, quem fazia a aferição era eu. Eu fazia a aferição dos instrumentos pros funcionários trabalharem nas máquinas.
P1 – Isso foi depois que o senhor saiu do...
R - Depois do SENAI.
P1 – Foi o primeiro emprego depois do SENAI?
R – Isso. Foi meu primeiro emprego após o SENAI.
R – E era muito bom esse emprego. Eu entrei na firma, tipo, dentre os trabalhadores que tinha... Os elites da firma eram ferramentaria, retífica, depois vinha, que era a minha área, que era instrumentação, controle de qualidade, depois vinham os outros funcionários em hierarquia assim, funcional.
P1 – Isso foi em que ano?
R – Eu tinha 15 anos quando entrei na Villares, eu nasci em 68.
P1 – E você se familiarizou rapidamente com o trabalho...
R – Ah, foi fácil porque na sala de instrumentação onde eu trabalhava todos os funcionários da empresa tinham que ir lá antes de começar o trabalho. Vamos supor, terminou o seu turno você vai lá e entrega o seu instrumento de trabalho, esse instrumento vai ficar na sala, vai ser aferido. Vem outro turno, todos os trabalhadores vão ter que ir lá, pegar o instrumento pra continuar o serviço na máquina. E eu trabalhava nessa sala de instrumentação, mas aos poucos fui ganhando espaço dentro da empresa. Meu chefe falava: “Vai fazer inspeção em tal máquina”. Eu ficava conferindo como o funcionário estava usando esse instrumento na máquina, então eu aprendi a olhar pelo menos umas 300 máquinas dentro da firma. Eu conhecia todos os setores da firma, em dois turnos sabia quase todos os trabalhadores em que máquinas trabalhavam. Tipo assim, um trabalhador pegou esse instrumento, eu sei o nome dele: “Ah, eu sei que máquina que ele trabalha”. Eu sa pela empresa, empresa enorme, chegava até a máquina dele pra fazer a aferição. Trabalhei numa sala de instrumentação que ficava dentro da usinagem geral e também trabalhei numa sala de instrumentação dentro da ferramentaria, e na ferramentaria tinha umas 30 máquinas também. A máquina mais bonita que tinha lá chamava eletroerosão, fazia cortes com raio laser. Então eu trabalhava numa sala, essa máquina de eletroerosão também tinha que ficar no ar condicionado, ficava numa sala ao lado da minha e poucas pessoas operavam essa máquina, só duas pessoas na empresa que sabiam operar essa máquina.
P1 – E quanto tempo o senhor ficou nessa empresa?
R - Seis anos.
P1 – Seis anos?
R – É. Só saí dessa empresa porque ela mudou pra Joinville e foi pra Pindamonhangaba.
P1 – Na Villares sempre no mesmo local, na...
R – Isso. Interlagos.
P1 – Interlagos?
R – Isso. Porque tinha outras fábricas, São Caetano. Tem várias fábricas da Villares espalhadas por São Paulo.
P1 – Você tinha vários colegas lá na...
R – Nossa. Muitos. Em seis anos de empresa eu participei de muitas festas de aniversário, a gente fazia time assim pra brincar, fazia festas da empresa, todos os funcionários, juntávamos pra fazer festa em sítio.
P1 – E você continuava morando em São Mateus?
R – Isso. Continuava morando em São Mateus.
P1 – Então o transporte...
R - Ah, o transporte era ônibus. O ônibus pegava na pracinha do São Mateus, nos levava até Santo Amaro. O caminho que fazia era Sapopemba, pegava a 23 de Maio, Rubens Berto(?), Washington Luís, até chegar Interlagos.
P1 – O próprio ônibus da empresa?
R – Isso. Ônibus da empresa. Mesmo assim muitas vezes nós chegávamos atrasados, mesmo com o ônibus da empresa por causa de trânsito porque é longe. São Mateus a Santo Amaro. É lá do outro lado da cidade. Se fosse de condução normal levaria três horas, o ônibus da empresa fazia em uma hora e 20, uma hora dependendo do dia.
P1 – E dentro da empresa teve algum problema tipo greves...
R – Nossa. Várias. Eu lembro que quem comandava essa época era o Luís Antônio Medeiros. O Medeiros certa vez chegou na empresa, queria entrar na empresa por si próprio, que nós fizemos... “Não. Você não entra na empresa sem uma comissão de fábrica”. Ali começou toda uma politicagem. Por quê? Porque os trabalhadores começaram a se organizar, montar uma comissão de fábrica, coisa que nunca foi feita, pra entrar na empresa pra negociar salário. Esse foi um dos motivos da empresa sair de São Paulo, as greves, porque nós chegamos a fazer greve de um mês. Em época de copa do mundo, estava tendo copa do mundo nós em greve um mês e a negociação. Depois veio o aumento real, o aumento real aumentou muito o salário dos funcionários e o Medeiros sempre em cima ali com o sindicato de São Paulo e sempre pedindo mais da empresa. A empresa não aguentou a pressão, saiu de São Paulo. Muita pressão do sindicato. Acho que não só a Villares como muitas empresas sofreram muita pressão de sindicato nessa época e saíram de São Paulo.
P1 – Bom, então você trabalhou no Villares durante seis anos.
R – Isto.
P1 – Depois como é que...
R – Vida profissional?
P1 – É. Depois do SENAI. Por que saiu do SENAI? Do SENAI... Desculpa. Do Villares?
R – Por que eu saí? Eu saí da Villares porque a firma mudou pra outra cidade.
P1 – Ah, mudou pra outra cidade.
R – É. Pra outro Estado e eu não quis acompanhar a firma. Eles fizeram aqueles pacotes pra ver quem não queria ficar na empresa, eu pedi pra sair. Passei pro comércio. Fui aprender a vender sapato. Trabalhei um tempo nas lojas da rede Babuche, depois passei pra rede Besni, rede Kallan...
P1 - Mas quando você saiu do Villares você tentou um outro emprego na mesma área?
R – Na mesma área eu não quis. Perdi o gosto por metalúrgica.
P1 – Ah, por quê?
R – Ah, porque eu tinha uma visão assim de comércio. Porque quando trabalhador eu fui muitas vezes em loja fazer compra e eu achava legal aquele negócio de vitrine. Os vendedores todos arrumadinhos, limpinhos, e serviço de metalúrgico dá dinheiro, mas é um serviço meio sujo, pesado. Aquele aprendizado que eu tive ficou todo pra trás, eu comecei um novo, um novo no trabalho. Eu sempre tive aptidões pra conhecer o novo e a partir do momento que eu conheci esse novo trabalho eu já fui me adaptando a ele. De vendedor passei pra vitrinista. Vitrinista você já tinha um salário a mais, poderia pegar gerência de lojas, muitas vezes eu peguei gerência de lojas. Então ali eu fui me acostumando nesse meio de comércio, fiquei vários anos trabalhando com comércio.
P1 – E no comércio perto da sua casa ou não necessariamente?
R – É. Eu moro em São Paulo, em São Mateus. A maioria das lojas que eu trabalhei foi... Eu trabalhei em Santo André, São Caetano, Mauá, em São Vicente, Gonzaga, Santos e Vicente de Carvalho, isso na baixada.
P1 – Mas continuando morando em São Mateus?
R – Continuando morando em São Mateus.
P1 – Todo dia ia então pro litoral?
R – Não. Ia pro litoral, não. Já alugava casa lá.
P1 – Ah, entendi.
R – Isso. Alugava casa e ficava trabalhando já morando lá em baixo.
P1 – Em Santos mesmo ou...
R – Morei em São Vicente, morei no Guarujá, na Praia Grande. Morei em três cidades em Santos.
P1 – E você teve comércio em todas?
R – Trabalhando em comércio.
P1 – Sempre com... Então foi com sapatos? Sempre com sapatos?
R – Isso. Sempre com loja de calçados. Só teve certa vez que eu morei no Guarujá que não foi... Foi tipo uma fuga que eu fiz, tinha acabado de sair do quartel, fiquei meio com medo de eles me chamarem pra guerra das ilhas Malvinas, fui, fiquei três meses no Guarujá, falei: “Mãe, você nem me viu. Não me chama, não. Se me chamarem, me procurarem fala que eu estou desaparecido, que eu não vou pra guerra, não”. E tinha acabado de sair da aeronáutica. Fazia dois meses, estourou a guerra.
P1 – Mas você ficou onde?
R – O quê?
P1 – Você ficou onde?
R – Eu fui acampar. Fui pro Guarujá, fiquei acampado numa cidade chamada Perequê. Fiquei acampado três meses vivendo só de trabalho assim, montava barraca no fim de semana, chegavam bastante ônibus de excursões, ganhava dinheiro fazendo caipirinha. Fazia seis, 30 caipirinhas, três reais, cinco reais. Ganhava dinheiro pra ficar a semana inteira sossegado.
P1 – Durante três meses?
R – Fiquei três meses acampado só pra fugir da guerra. Depois que deu uma acalmada na guerra, voltei.
P1 – Retomou a...
R – Eu voltei pro trabalho normal, retomei minha vida de novo.
P1 – E esse período da aeronáutica como é que foi?
R – Ah, na aeronáutica foi muito bom. Outro aprendizado. Porque quando eu cheguei na aeronáutica eu tinha essa profissão do SENAI de serralheiro, então eu desmontava e montava aquelas fuselagem de avião. O avião é todo feito de alumínio e pra fixar esse alumínio são vários rebites. Você tinha que tirar todos aqueles rebites, tirava aquela chapa, colocava em cima de outra, tirava o molde da chapa, fazia todas as fundações de novo e recolocava a chapa. Tinha que ser tudo perfeito, por quê? O avião voa em alta tensão. E, pensou? Eu fazer um serviço daquele o avião está lá no alto estoura aquela chapa que eu arrumei. Eu fazia esse serviço de arrumar a fuselagem, fora o ensinamento que nós temos lá que seis meses é período de recrutamento. Nessa época aconteceu um fato interessante porque lá eles escolhem um xerife, o xerife é o que comanda a turma. Nós entramos em 300, o normal de entrar no quartel era 150 a 180, nós entramos em 300. Nós ficávamos em sala de aula, não sentávamos em cadeiras, sentávamos no chão, ficávamos um atrás do outro, não tinha espaço pra mais nada na sala, só pra ficar os soldados. E eu lembro que me chamaram pra ser o xerife, mas eu falei: “Mas por que eu vou ser o xerife?”. “Porque o seu nome é a primeira letra do alfabeto. Começa com A e com B e não tem ninguém primeiro em ordem alfabética. Você vai ser o xerife”. Eu fiquei meio assustado: “O que eu vou ter que fazer?”. “Você vai ter que comandar a turma toda”. De manhãzinha tinha que apresentar pro sargento todo mundo, o sargento fazia a inspeção. Depois daí vamos pra sala de aula, apresentava pro sargento de novo em sala de aula. Depois descia, levava todo mundo pro refeitório, tinha que levar em ordem unida, marchando certinho pelas ruas pra não ter problema. Chegava na frente do refeitório mandava uma fila por fila entrar. Voltava do refeitório tinha que levar todo mundo de novo pra sala de aula. Chegava na sala de aula apresentava de novo de tarde pros sargentos. Então meu serviço era esse , ter que apresentar a todo o momento a companhia pro sargento. E eu que era responsável por todo mundo. E nisso, como você é responsável, você arruma várias brigas porque todo mundo tem a mesma idade, 18 anos, todo mundo tem a mesma energia e eu como xerife eu tinha que ser o responsável. O sargento falava: “Anota nome e número do soldado ali”. Eu, nome e número do soldado, o soldado falava nome e número. No final do dia tinha faxina pra quem eu tinha pegado nome e número, eles ficavam até mais tarde. Muitas vezes a pessoa no outro dia chegava pra mim: “Oh, xerife, o que eu fiz ontem que você me mandou pra faxina?”. Ah, os soldados estavam me enganando, estavam dando nome e número de outro. Eu peguei esse macete. No outro dia eu falei: “Nome e número, sargento, sujeito a confirmar. Levantem as pessoas que o xerife atendeu hoje”. Quando levantaram as pessoas eu falei: “Olha, eu não marquei o nome e número de nenhum desses que levantou”. “Ah, é? De quem que você marcou nome e número?”. “Foi esse, esse, esse. Venham cá vocês. Vocês são muito espertos”. Nossa, tantos exercícios que esses meninos pagaram. Nunca mais ninguém deu nome e número errado. Era pedir nome e número vinha certinho.
P1 – Quanto tempo durou o serviço?
R – Era um ano o serviço militar. Os primeiros seis meses são recrutamento, você aprende a dar tiro, a marchar, as funções que o soldado tem que ter dentro da mata, que nós fomos, descemos à Baixada Santista, fomos até o Guarujá por dentro da mata. Então tinha muito ralo também que a gente fazia no final da pista... Como é que chama a pista? Campo de Marte. No final de Campo de Marte tem um brejo, nós entrávamos nesse brejo porque os aviões... Pousava muito avião ali, então se algum avião ultrapassasse a pista e csse no brejo nós tínhamos que ir lá fazer o salvamento. Então aprendia muita coisa de sobrevivência. Tudo isso aprendia na fase de recrutamento. Depois de seis meses você entrava na fase de trabalho, cada soldado escolhia uma profissão. Então quem gostava de escritório ia pro escritório, quem gostava... Que nem eu, serralheiro, fui pra parte de fuselagem, outros já gostavam de mecânica, pintura, almoxarifado, cada um foi pra um setor depois de seis meses.
P1 – E isso foi lá no litoral? Foi em São Paulo?
R – Não. Isso foi aqui em Santana.
P1 – Santana?
R – Em Santana. Parque de Materiais da Aeronáutica que chamava lá. Quando nós entramos lá estava de mato até aqui assim. Todas as ruas. Fizeram nós abaixarmos todo o mato. Por isso que entramos em 300. Fizeram abaixar todo o mato, plantar rosas no parque inteiro. Agora você vai lá hoje em dia tem rosas o parque inteiro. Chama Parque das Rodas hoje em dia, não chama mais Parque de Materiais da Aeronáutica. Tem rosas pra todo lado lá, e tudo bonitinho. Ficou até hoje daquela época que nós entramos. A ordem que nós colocamos lá, de limpeza. E nessa época também entraram 300 porque o tenente queria formar o brasão da aeronáutica, esse brasão assim das duas armas invertidas com uma asa e, pra formar isso, tinha que ter 300 soldados e nós formamos isso em ordem unida, ia marchando fazia os deslocamentos e formamos isso. Foi filmado tudo na semana da pátria, tirado foto, isso pra fazer bonito, pra mostrar pra outros quartéis que nós conseguíamos fazer isso em ordem unida. Mas foi bem executado isso na época, mas deu um trabalho pra fazer. Ficamos uns três meses treinando pra fazer essa ordem unida marchando. E no dia de sair, saiu todo mundo com o passo errado, parecia cavalaria. Nossa, o tenente ficou apavorado, falou: “Não, não, não. Não acredito que os meus soldados vão me sabotar”. Mandaram parar. Quando mandou parar nós, falamos: “Agora vamos fazer certo”. Só pra dar uma quebradinha no tenente. E também na época eu ganhei uma corrida. Ganhei não, cheguei em décimo quinto, eu gostava muito de fazer atletismo. Então teve uma corrida lá de 25 quilômetros, eu cheguei em décimo quinto. Mas tinha corredor, acho que tinha mais de 700 corredores, eu não sei como é que eu cheguei em décimo quinto, mas cheguei. Na hora de receber a medalha, eu não fui. Nossa, a cara do tenente caiu. Nós gostávamos também de dar umas quebradinhas nos... Porque os caras eram muito patente. O tenente ficou lá me chamando, me chamando, eu não apareci lá pra receber essa medalha. Meu, ele não me tomou a medalha? Depois de uns dias ele chegou: “Oh, soldado, no dia que eu chamei você lá no palco lá pra representar que você tinha ganhado a medalha você não foi buscar, agora sua medalha é minha”. Falei: “Pode ficar, não tem problema, não”. Melhor do que ficar preso.
P1 – Bom, você disse que gosta de esporte, atletismo, você chegou a pilotar avião (___?)?
R – Não, mas voei. Voamos no Hércules. Nossa. Terrível. Você passa mal, trepida demais. Voei no Cênica, aviãozinho de luxo que os presidentes voam. Voei no Tucano, um avião de... Tipo ele foge do radar, ele anda em alta velocidade por baixo do... Em baixo nível. Foge do radar. Mas essas viagens que nós fizemos de avião eram tipo voo teste. A gente consertava o avião, quando terminava de consertar as pessoas que tinham colaborado eram convidados a fazer voo teste.
P1 – E você gostava?
R – Adorava. Pra mim eram as primeiras iniciações em andar de avião. Então quando tinha um voo teste a gente fazia de tudo pra estar envolvido. Tiveram outras regalias também que eu conseguia. Eu conseguia voo teste e com o meu trabalho, vamos supor, o tenente falava pra mim: “Tem um avião ali pra reformar, demora 15 dias pra fazer a reforma desse avião”. Falo: “Não. Eu faço em dez”. “Ah, você faz em 10?”. “Mas eu quero dois dias de folga”. Me dava dois dias de folga. Isso poucos soldados conseguiam, nossa, tinha muitos soldados lá que eu tinha dó, não saíam do serviço, tinham que ficar no plantão. Quase eu não pegava serviço de arma, meus serviços mesmo eram mais os profissionais manuais. Então muitos serviços eles tiravam eu fora porque eu já fazia o manual e tinha esses benefícios também de terminar o serviço antecipadamente, ganhar folga.
P1 – Então você gostava de atletismo. Como que foi essa prática no esporte?
R – Então, quando eu era criança, eu era muito ruim de bola, eu fui aprendendo a jogar bola. Quando cheguei nos 16 anos, eu aprendi a jogar bola mesmo, futebol. Eu fiquei bom de bola. Eu falei: “Ah, mas eu não quero jogar no time de ninguém, vou montar o meu time”. Comprei camisa da Hering, pintei as camisas, montei meu time. Chamei 11 amigos meus pra brincar comigo. E esses 11 eram fiéis mesmo. Nós marcávamos jogo, íamos longe, pegávamos ônibus. Quando nós éramos crianças muitas vezes nós não tínhamos nem dinheiro pra condução, pra alimentação, pra nada, íamos a pé pro campo, não tinha preguiça. E a partir dali eu comecei a montar time. Então dos 16 até os dias de hoje eu monto time, joguei em vários times da várzea, cheguei a disputar, desafiar o Galo que passava televisionado antigamente no canal Gazeta. Campeonato de Paula que era televisionado também na Guilherme Jorge. Só não tive oportunidade assim de jogar profissionalmente, mas na Várzea joguei em vários times e eu aprendi a jogar bola mesmo porque toda vez que eu chegava na várzea, tinha o primeiro e segundo quadro. Eu jogava um, dois jogos eles já me escalavam pra ficar no meio do campo no primeiro quadro. Então eu joguei muito tempo de meio de campo na várzea, mas é. E normalmente os times em que eu joguei ficavam oito, dez meses sem perder. A partir do momento que eu entrava no campo eu fazia de tudo pro time não perder, corria por mim e por todos. Já fiquei muito tempo assim, invicto, sem perder nenhum jogo, demorava pra perder um jogo. Ganhei muito troféu em festival, campeonato, tudo que nós disputávamos nós íamos pra ganhar mesmo.
P1 – Você era meio ofensivo?
R – Não. Jogava mais de volante. E os times que eu montava... Eu sempre montei time com criança, jogava no domingo e montava time no sábado. No sábado eu tinha time, eram 80 crianças que eu cuidava, entre 12 até 16 anos. Quando era treinamento eram 120 crianças. Então tinha todo um custo em levar time. Eu fazia três times. Então era fardamento pra três times, alimentação pra três times, condução pra três times, pagar arbitragem pra três times, quando era campeonato. Tinha campeonato que eu gastava três mil reais em oito meses de campeonato, mas é tudo pra incentivar mesmo a garotada. Daquela... De todas as gerações que passaram pelos meus times a maioria das pessoas todas são pais de família, estão todos formados, todos trabalham. Então eles me veem assim, lembram-se daquela época. É gostoso depois ficar relembrando. Essa época que joga bola, vai junto pra campo, fica naquela atividade.
P1 – Mas era uma vez por semana que jogava?
R – Jogava aos domingos. Eu jogava aos domingos, no sábado eu tinha meus times que eu levava pros campos pra jogar campeonatos. Quando não era campeonato fazia treinamento, jogava amistoso. No sábado eu ficava com as crianças, no domingo eu ia pro lazer, eu ia jogar bola. E a partir dos 16 anos eu comecei a montar time e jogar em time. Antes dos 16 eu não jogava bola, não tinha muito espaço pra jogar bola que eu era meio ruinzinho de bola. Mas hoje em dia fiquei bom, fiquei bom mesmo e tive espaço em todos os times que eu fui e sempre meus times que eu montei meus times se deram bem, nunca tive problema de chegar à final de campeonato. Ganhamos vários, perdemos outros, nem sempre se ganha. Tudo é competição.
P1 – Era fácil montar um time? Tinha número de pessoas?
R - Ah, não era fácil, não, pra montar time. Primeiro, quando eu queria montar um time, eu ia em escola. A minha base toda saía da escola. Então o que eu fazia? Onde tem mais criança? Dentro da escola. Eu ia em três bairros, em três escolas e fazia palestra dentro das salas de aula: “Quem gosta de jogar bola? Estou montando um time, vai ter um treinamento assim, pra tal campeonato...”. Quem aparecesse pra treinar eu treinava já pra montar o time pra campeonato e não era fácil porque muitas crianças chegavam ali sem noção nenhuma, sem fundamento nenhum, tinha que passar todos os fundamentos, ensinar todo o posicionamento. Eu conseguia montar um time em três meses. Depois de três meses já tinha um time mais ou menos formado, até o final do campeonato o time se estruturava. Mas em três meses eu conseguia dar o fundamento pelo menos pra pessoa começar a se iniciar em campo, mas não era fácil, não, passar esse fundamento todo porque criança é muita atividade. Era fácil assim, os de 14 a 12 anos, agora pra eu lidar com os de 15, 16 já era mais difícil. Já era uma idade mais crítica pra entendimento. Mas me fazia entender, eles gostavam de mim, do meu jeito de cuidar deles. E isso foi se passando muitos anos, então já pegou aquele lá: “Vai lá no time dele...”. Os pais depois foram vendo desses que foram crescendo, foram: “Manda lá pra ele treinar lá que ele cuida lá bem”. Fui acostumando os pais mandarem os filhos pra mim. Normal. Chegava o dia de sábado, os pais traziam os filhos: “Está com você”. Ficavam quatro, cinco horas comigo depois iam pra casa.
P1 – Eram crianças de periferia?
R – Isso. Da periferia mesmo. Normalmente é dos bairros próximos lá. Eu morava no Santa Délia, eu pegava do bairro do São Mateus e pegava do bairro do Parque São Rafael. Ia às escolas, chamava as crianças, formava os times, depois que formava os times ia pros campeonatos jogar.
P1 – Vocês treinavam onde?
R – Treinava em campo no Jardim Santa Délia.
P1 – Era campo de terra batida ou era gramado?
R - Campo de terrão, terrão, terrão. Os primeiros times que eu treinei eu fui naquelas lojas que vendem plantas, essas coisas. Os primeiros times que eu treinei todo treino eu trazia quatro saquinhos de grama. Como o campo era terrão, terrão, terrão de tudo mesmo, cheio de pedra, terra, eu fazia a molecada tirar pedra do campo, todo treino eu fazia tirar as pedras e pregava esses saquinhos de grama e ia jogando nos quatro lados do campo. Hoje em dia tem os quatro lados do campo têm grama. Por quê? Porque quando a molecada começava a treinar nós já semeávamos a grama no campo. Hoje em dia pode-se falar, o campo tem grama, mas por quê? Porque eles plantaram. Não que o campo já viesse a ser gramado. E na várzea, pra você encontrar campo gramado só se você fosse dentro de empresa, clube. Na várzea não tem campo de grama.
P1 – Tudo terrão.
R - É. As gramas que nascem são quando os passarinhos trazem sementes e fazem nascer.
P1 – E vocês jogavam com chuva também? Como que...
R – Ah, muitas vezes eu não deixava, não, mas a vontade deles... Não tinha como segurar. “Oh, professor, está chovendo professor”. “Está chovendo, vamos parar”. Porque é o risco de cair um raio porque já aconteceu isso comigo, de eu estar jogando bola, cair um raio e eu não cair, mas eu vi uns oito colegas meus caírem no chão por causa do raio. O impacto, quem sentiu, foi muito forte, veio aquele baque. Quem estava descalço, jogando descalço caiu. Quem estava com tênis não caiu. Então eu sempre achei perigoso jogar com chuva de ter fratura, essas coisas. Graças a Deus, todos os times nunca ninguém se machucou, nunca vi jogador meu ter lesão. Uma porque eu já dei todos os ensinamentos, ensinava a não bater. Pode apanhar porque você vai em jogo em campo fora, você apanha muito, mas não precisa bater, joga bola, faz o seu jogo, mas sem violência. Duas coisas que eu primava muito, não à violência e não ao palavrão. Muitas vezes a gente estava fazendo treinamento eu ouvia um palavrão e falava: “Quem falou?”. Os moleques: “Foi ele, professor. Foi ele”. “Ah, foi ele? Então vem cá, senta aqui cinco minutos, esfria a cabeça, depois você volta pro treino”. E nisso os moleques, ah, melhor não falar palavrão do que ficar cinco minutos lá fora sentado. Eles acostumavam a não falar palavrão dentro de campo e também jogar com disciplina, sem ser maldoso com o adversário.
P1 – E quanto tempo durava o treinamento...
R - Três horas.
P1 – Tem um treinamento antes do jogo?
R – Treinamento normalmente durava três horas. Normalmente a gente começava primeiro falando um pouquinho da Bíblia. Depois vinha aquecimento, aquecimento com alongamento. Depois vinha a corrida em volta do campo. Depois passava os fundamentos, saída com três, um toque de bola, saída com dois, depois vinha cabeceio, bater pênalti, bater falta, bater lateral, posicionamento dentro de campo, esquema tático. Fazia todas as... Todo treinamento fazia esse trâmite, sempre a mesma coisa, não mudava, padronizado. Eu ia até as crianças se acostumarem com os fundamentos tudo certinho, com posicionamento. Quando chegava num jogo todo mundo já estava ciente do que tinha que fazer.
P1 – E qual o campeonato que que mais te gratificou?
R – Ah, todos. Mas a gente disputava... Todos os campeonatos eram legais, porque alegria mesmo era os ver correrem. Quando nós... Antes de começar os campeonatos nós fazíamos, vamos supor, três meses de treino antes. Você não via a hora de chegar o campeonato, você fica na ansiedade como professor, imagina uma criança que está só treinando esperando chegar o campeonato. Nossa, a molecada não via a hora de chegar o campeonato pra começar a correr, ir pra outros campos, conhecer. Tinha muitas crianças que quando chegava no campeonato ia em bairros que não ficavam nem cinco quilômetros de casa mas nunca tinham saído de casa pra ir até esse bairro. Por quê? Os pais sempre no bairro, dali pra li, dali pra cá. Era tudo novidade pra eles ir a outros campos.
P1 – E os pais incentivavam?
R – Ah, incentivavam. Muitas vezes eles mandavam. Tinham pais que chegavam junto mesmo. Ajudavam na alimentação. Não sempre, mas tinha uns que chegavam junto.
P1 – E qual jogador assim... Quais jogadores que te marcaram, você poderia citar?
R – Ah, tinha bastante. Porque, vamos supor, teve criança que ficou comigo até chegar nos 16 anos, começou aos 12. Então ficavam vários anos comigo. Mas eu conheci muita criança boa de bola, muita criança boa de bola. Eu tenho o maior prazer de falar que todos, todos me deram orgulho enquanto eu treinei, todos que passaram comigo, nenhum me decepcionou. Se eu for falar de um é pouco porque todas as crianças me deram orgulho.
P1 – Teve... A maioria ou alguns continuaram jogando no futebol?
R – Ah, jogam até hoje.
P1 – Profissionalmente?
R – Não. Profissionalmente muitos não tiveram a oportunidade, porque o bairro que nós moramos é muito distante.
P1 – Mas tentaram?
R – É. Vários procuraram. Eu conheço alguns que até jogaram já profissionalmente. Podem estar jogando até hoje, mas é... Poucos assim se destacaram pra jogar profissionalmente. O único profissional mesmo que eu conheci quando eu era... Que eu cheguei a ensinar assim, a fazer várias jogadas em campo, foram só o Robinho e o Diego. Isso na baixada quando eu os conheci na praia eles eram moleques, eu ensinei. Por quê? Porque eu tinha time de criança, sabia lidar com criança, eu vi duas crianças jogando bola assim na praia, eu falei: “Esses moleques são bons de bola”. Eu comecei a ensinar pra eles uns dribles, umas maneiras de se portar dentro de campo. Passaram três anos os moleques estouraram no Brasileiro, foram até campeões brasileiros. Então ali foi um aprendizado pra eles, eu vi que eles aprenderam. Por quê? O que eu ensinei pra eles ali no dia eles não sabiam fazer naquele dia, mas eles treinaram pra poder fazer depois.
P1 – Você conheceu na praia eles?
R – Conheci. O Robinho e o Diego. Eram dois molequinhos. Era até brincadeira assim, tem vezes que eu falo que eu ensinei o Robinho a fazer aquelas jogadinhas de pedalada, passar o pé por cima da bola, fazer aquela fita que ele fez no Maracanã, puxar a bola, driblar de lado, um monte de jogada. O Diego bater falta com curva, bater falta por fora da barreira, com curva. Até hoje o Diego bate falta parece que a bola vai três metros fora da trave, quando vai ver a bola cai pra dentro do gol. Até hoje ele bate falta desse jeito e o Robinho continua com os mesmos dribles. Parece que aquilo ali que marcou a vida deles. São os gols de falta que o Diego faz e os dribles que o Robinho dá.
P1 – Mas depois que você os conheceu você os chamou pra eles jogarem no seu time lá?
R – Não. Eles já treinavam nas crianças dos Santos.
P1 – Ah, eles já treinavam...
R – É. O Diego veio do interior. Ele morava no alojamento com os meninos e o Robinho morava em São Vicente. Eu via eles sempre ali pelo Gonzaga ali treinando.
R – E você chegou a acompanhar a carreira deles?
R – Acompanhei depois que eles estouraram. Eu falei: “Olha aquelas duas crianças que eu conheci na praia. Porque quando o Robinho deu aquelas pedaladas em cima do Rogério, aquilo ali já foi dito. Eu falei: “Nossa, o moleque aprendeu mesmo a fazer aquela jogada que eu ensinei pra ele”. E várias outras jogadas que eu o vi fazendo eu falei: “Olha, o moleque aprendeu mesmo, se esforçou pra aprender e conseguiu”.
P1 – Isso de certa forma te deu uma satisfação grande?
R – Deu porque eu sou torcedor do Santos, então o que eu passei pra eles, eles aprenderam, tipo esquema tático de time eu passei pra eles, eles passaram pro Leão. Ninguém fala até hoje, mas o Leão jogava no esquema tático que o Robinho e o Diego tinham passado pra ele, que eu tinha passado pra eles quando o Robinho e o Diego eram crianças. Então, quer dizer, ficou aquele aprendizado, pegou mesmo. Então foi um lance assim. Por quê? Porque o Leão deu ouvido a dois moleques. Por quê? Porque os moleques chegaram lá: “Leão, dá pra fazer assim. Se nós jogarmos desse jeito, o time jogar desse jeito...”. Tanto é que foram campeões de 2002 em cima do esquema tático que eu monto até hoje. Eu jogo no quatro, três, três, não força o time, todo mundo tem liberdade pra jogar, de se movimentar em campo. Então dependendo dos treinamentos que eu faço, esse quatro, três, três não precisa mexer em nada, vira um quatro, quatro, dois, vira um três, cinco, dois. Então várias alternativas dependendo você só muda a posição de um jogador pra mudar a posição do esquema tático.
P1 – E eles aprenderam rapidinho, a jogada?
R1 – Aprenderam...
P1 – Pedalada?
R1 – Aprenderam, tanto é que foram campeões brasileiros, foram campeões brasileiros dentro desse esquema tático. E até hoje acho, que o Santos joga no quatro, três, três. Eu já vi muitos treinadores chegarem ali, saírem e continuarem com o mesmo esquema tático. Não mudou até hoje, desde 2002. Tem vez que eu vou a jogo do Santos e encontro as pessoas da diretoria e até brinco com eles: “Ainda estão no quatro, três, três?”.
P1 – Quem do Santos você conheceu?
R1 – Conheci vários jogadores, que eu descia no CT para... Depois que eu fiz esse contato com o Robinho e com o Diego, eu descia lá, ficava batendo papo com o Diego e com o Robinho, já peguei uma amizade com eles, eles me apresentavam para todo mundo do elenco. Entrava no CT, tinha certo acesso ao CT, porque os torcedores normalmente ficavam em cima do muro, hoje em dia nem em cima do muro dá para você ficar. E foi um negócio legal também que eu levei para a baixada que depois que eu comecei fazer faculdade eu tive uma visão de custo e benefício. Fui lá embaixo e dei um toque para eles fazerem um hotel dentro do CT, que tinha espaço para fazer um hotel e esse hotel está lá, eles fizeram esse hotel, para quê? Para que os jogadores ficassem concentrados no Gonzaga, então tudo que gostava em hotel no Gonzaga, agora eles ficam no hotel dentro do CT. Cada jogador come o que gosta. Por quê? No hotel você só come o que o hotel faz, não tem como você fazer um cardápio para jogador, agora tudo é feito por nutricionista, por seu próprio hotel dentro do CT, as pessoas que vêm de outras cidades não tem um apartamento para morar... Se for do juvenil todos moram lá dentro do alojamento. Que antigamente eles moravam dentro da Vila Belmiro. A Vila Belmiro muita gente não sabe, mas é um campo, mas também é um alojamento, tem vários quartos dentro da Vila Belmiro. Fizeram esse hotel dentro do CT e eu que dei a dica para eles fazerem esse hotel lá, numa certa época que eu fui visitá-los.
P1 – Certo. Então, você falou que começou fazer faculdade.
R1 – Isso?
P1 – Em São Paulo ou no litoral?
R1 – A faculdade que eu fiz, chama-se faculdade Sumaré. Ela fica aqui na Avenida Sumaré, mas eu estudei em unidade, a unidade foi no Tatuapé. Quando eu entrei nessa faculdade tinha, como começou com unidade, tinha acho que 600 alunos. Estava no começo, agora você vai lá tem mais de seis mil, mais de seis mil alunos.
P1 – Faculdade de quê?
R1 – Eu fiz Administração de empresa, mas tinha ciência contábil, tinha ciência da computação, tinha pedagogia. Vários cursos, eu optei fazer administração de empresa.
P1 – E isso ao mesmo tempo em que você tinha seus times.
R1 – Isso, inclusive eu tive que parar com o time quando entrei na faculdade, falando certo. Porque foi assim, quando eu entrei na faculdade, eu entrei pagando, só que eu arrumei uma bolsa de estudo pela escola da família e esse projeto não me deixava ter fim de semana, eu ficava dentro de escola nos fins de semana para pagar a faculdade. Ganhei a faculdade integral e, como eu ficava dentro de escola fim de semana, parei de cuidar dos times. Foi onde eu encontrei dois amigos meus que gostavam de mexer com o futebol também e eram evangélicos. Falei para dar meu time pra uma pessoa assim qualquer eu não vou dar. Eu fui, conversei com essas pessoas e falei: “Vocês podem continuar o trabalho lá e a partir daí fazer os seus trabalhos. Praticar o bem também”. Porque não deixa de ser uma prática do bem quando você faz alguma coisa de bom para as pessoas. Então esse trabalho que eu fazia tinha esse lado da prática do bem social em pôr a molecada em atividade, não deixá-los na rua no final de semana. E esse colega meu abraçou a ideia, falou: “Não, pode deixar comigo que eu cuido”. Ele continuou cuidando do time.
P1 – E fez faculdade quanto tempo?
R1 – Fiquei quatro anos.
P1 – Quatro anos? E trabalhando também e...
R1 – Não, não trabalhei porque eu entrei na faculdade, eu estava em benefício. Eu tive um acidente de trabalho. Tive um acidente de trabalho, me prejudicou o fêmur, então eu já estou seis anos sem trabalhar. Então dentro desses seis anos foi onde eu voltei estudar, fiz a faculdade, foi onde deu esse espaço para eu voltar a estudar.
P1 – E esse acidente foi aonde?
R1 – Trabalhando de marcenaria. Foi o último trabalho que eu fiz, eu trabalhava com construção civil, meu patrão faz prédios. Então dentro desses prédios nós fazíamos as portas, os assoalhos... Então quer dizer, serviço pesado. Serviço pesado, eu fui pegando um desgaste e me prejudicou.
P1 – Mas foi um desgaste que teve...
R1 – É, teve um desgaste no fêmur.
P1 – Lá no trabalho de marcenaria? O senhor disse anteriormente que trabalhou no comércio.
R1 - Trabalhei também.
P1 – Calçados.
R1 – Esse foi o último emprego que eu tive.
P1 – Então na área de calçados você foi para...
R1 – Para construção civil.
P1 – Aqui em São Paulo mesmo?
R1 – Em São Bernardo do Campo.
P1 – São Bernardo. E isso foi há seis anos?
R1 – Isso. Comecei nessa empresa em 2002.
P1 – E como é que foi essa mudança de...
R1 – Diária, só...
P1 – De vida.
R1 – Eu sempre fui... Eu acho que foi assim, quando a gente quer trabalhar... Porque gosta de dinheiro e gosta de não depender dos outros, então vários trabalhos eu fiz para não deixar de ganhar dinheiro. Minha vida profissional... Tudo bem, eu comecei com 15 anos em empresa, mas com sete anos de idade, quando eu aprendi a contar nota já fui para feira. Já fui feirante com sete anos de idade, ajudava um homem que vendia queijo. Então era marreteiro, ele chegava lá, abria o carro dele, o porta-malas, tirava uma banquinha, colocava os queijos lá e eu ficava ali cuidando dos queijos para ele para ninguém furtar, porque pessoa em feira é triste, chega um, dois, três, te distrai, um furta e eu ficava só vigiando e quando ele sa assim para fazer alguma coisa, conversar com alguém na feira. Certa vez também veio o rapa, eu tive que correr, tirar todo o material, pequenino, tirar todo o material dali para o rapa não levar o material dele embora. Quando cheguei fui até gratificado, ele falou: “Por que você desmontou a barraca?”. Eu falei: “O rapa acabou de passar”. Isso com sete anos. Quando deu nove anos, eu peguei um carrinho de ferro velho e perto da minha casa tem uma refinaria de petróleo. Todo dia saía caminhão dessa refinaria de petróleo, estava começando a construir a refinaria. Sobrava muita chapa de alumínio, aquilo lá dava um dinheiro no ferro velho. Eu pegava esse carrinho de ferro velho, com nove anos, subia e descia morro e trazia essas chapas de alumínio e eu ganhava dinheiro para chegar à escola, ter dinheiro para comprar... Até roupa comprava com esse dinheiro do ferro velho. Com 12 anos, fui para um lava rápido. No lava rápido fiquei até os 14 anos. Do lava rápido que eu ganhei dinheiro para começar a fazer o SENAI. Todos os fins de semana eu trabalhava no lava rápido, ganhava dinheiro da condução para fazer o SENAI. E depois do SENAI eu comecei na empresa Villares, fiquei seis anos. Da empresa Villares passei para calçado, do calçado passei para outra empresa, fui trabalhar com conferência, de conferência depois voltei para os calçados. Trabalhei um tempo com lista telefônica. Lista telefônica era um serviço legal, você podia viajar todo o interior de São Paulo, porque nós chegávamos numa cidade, tinha que fechar a cidade, entregar lista telefônica em todos os quatro cantos da cidade, em todas as residências. Então a partir d eu conheci muita cidade do interior. Mais de 50 cidades no interior de São Paulo eu conheci através da lista telefônica. Eu cansei de lista telefônica, falei: “Não. Eu tenho que arrumar um emprego que me deixa em São Paulo”. Foi aonde que eu voltei e comecei a ser marceneiro, entrei nessa empresa.
P1 – Adalberto... Quer retomar, Adalberto? O que você estava falando...
R1 – Estava na empresa...
P1 – Isso. Marcenaria...
R1 – Então, para chegar à marcenaria eu estava na lista telefônica.
P1 – Como eram... Que cidades você conheceu?
R1 – A lista telefônica? A mais bonita de São Paulo que eu acho, em minha opinião, Campos do Jordão. Campos do Jordão é lindo, maravilhoso. Atrás de Campos do Jordão tem São Bento de Sapucaí, Santo Antônio do Pinhal. Vim descendo Pindamonhangaba, Taubaté, Caçapava, São José. Vem descendo Caconde, São João da Boa Vista, Mogi Guaçu, Mogi Mirim, Campinas, Sumaré, Bauru, Jaú, Botucatu, Pirassununga, São Carlos, interior de São Paulo quase todas as cidades eu conheço. Então quer dizer, eu viajei muito, muito o interior de São Paulo e tinha que ficar pelo menos 15 dias em cada cidade, até fechar a cidade com as entregas.
P1 – Você aproveitava para conhecer um pouco?
R1 – Ah, aproveitava para conhecer todos os pontos turísticos da cidade, os lugares que têm movimento, restaurante, porque... Os hotéis. A gente dormia em hotel, comia em restaurante e tinha que trabalhar na cidade, se locomover. Conhecia muito bem as cidades. Todas as cidades que fui eu tenho muitas lembranças porque trabalhava, todo dia tinha dinheiro no bolso. Lista telefônica funciona da seguinte maneira, você faz uma entrega gratuita, mas você pede uma gratificação, uma contribuição espontânea das pessoas, as pessoas colaboravam com um real, cinco, dez, vinte centavos, trinta centavos, no final do dia você chegava a cem, cento e vinte, cento e oitenta reais. Então quer dizer, todo dia você tinha dinheiro para alimentar, para ficar na cidade, sobrava dinheiro em 15 dias para você trazer para casa, fora os seus gastos.
P1 – Você conheceu o povo da cidade.
R1 – Conhecia muito, eu passava em duzentas casas por dia. Então quer dizer, duzentas casas, eu passava por dia, em 15 dias conhecia, vamos supor, três mil, três mil pessoas, quatro mil pessoas. Tinha cidade que eu fechava sozinho. Certa vez eu fui para São Carlos, do lado de São Carlos tem uma cidade chamada Ibaté, o cara falou: “Você fecha a cidade lá para mim?”. Eu falei: “Eu fecho”. Fui lá fechei a cidade inteirinha de Ibaté sozinho.
P1 – Quanto tempo você...
R1 – O quê?
P1 – Para percorrer a cidade assim?
R1 – Eu demorei oito dias. Eu tinha que fazer as entregas de listas, então eu fechava os fundos, pegava os fundões primeiro, num dia fazia um fundo, no outro dia fazia outro fundo, depois fechava o centro. A cidade não é muito grande assim, vamos supor cidade de duas mil listas. Então fechava, pegava um carrinho enchia de listas, duzentas, trezentas listas, já saía, ia até o final da cidade e depois voltava fazendo. E a cidade Ibaté foi interessante porque eu tinha que ir de Ibaté para São Carlos. O lugar que eu guardei as listas, tinha que ter um lugar para guardar, a mulher não queria mais me deixar vir embora, ela me fez morar na casa dela. Então os dias que eu fiquei na cidade eu fiquei morando na casa dela. Você pegava muita amizade assim, de morar na casa dos outros sem ter um conhecimento, sem ter coletividade, sem nada. Muitas vezes eu fui convidado para morar em casa de várias pessoas, chegava às cidades falava: “Ah, não estou mais a fim de ficar no hotel, não”. “Pode vir morar aqui em casa, aqui tem espaço”. As pessoas não deixavam você comprar nada, dar nada, falavam: “Não, você agora é meu hóspede”. E muitas vezes ganhei estadia em várias cidades. Ganhava estadia assim, ganhava as coisas. Muitas vezes as pessoas não queriam dar dinheiro, falavam: “Tem almoço, senta ali”. Muitas vezes almocei em beira de piscina, aquelas casas luxuosas, entrava, ficava até com vergonha: “Não. Pode entrar, pode entrar, o patrão falou para vocês...”. Uma vez eu fui à casa da Fernanda Montenegro em Campinas. A Fernanda Montenegro saiu, eu tomei aquele baque, ela falou: “O que você quer, moço?”. Eu falei: “Eu só vim entregar sua lista”. Falei: “Mas estou com fome. Ela falou: “Espera”. Ela mandou o empregado trazer lanche para mim. Nossa, o empregado me trouxe um lanche que eu não precisei... Do café da manhã, não precisei nem almoçar. O lanche da mulher, um copão de laranjada desse tamanho, um lanche desse tamanho, meu Deus do céu, foi o almoço e o café da manhã junto. E a casa da Fernanda Montenegro é uma casa linda, uma casa térrea baixa, não é sobrado, tem um campinho de futebol, uma quadrinha de tênis, uma piscininha, parece um sítio assim, a casa dela em Campinas e é do lado do estádio do Brinco de Ouro. E o bairro do Brinco de Ouro é coisa linda, umas casinhas tudo simplesinhas assim, mas tudo casa alto padrão. Conheci muitos bairros, muitas vezes eu fui na casa, eu vi o sobrenome da pessoa na lista, falava: “Opa. O Goulart de Andrade”. Eu estou aqui em Botucatu, olha a casa do Goulart de Andrade. Eu vou lá na cidade de Ibaté, Helen Ganzarolli: “Opa. Onde é a casa da Helen Ganzarolli?”. Já vou lá primeiro. Chegava lá a Helen Ganzarolli saía no portão. Eu falava: “Nossa, você aqui? Você é linda”. E batia papo. Muitas vezes fui à casa do filho do Wilsinho Fittipaldi. Então muitas vezes você chegava na cidade, você já percorria a lista, pelo sobrenome você já via: “Opa, esse aqui é famoso. Nesse aqui vai vir dez”. Eu vivia de gorjeta: “Nesse aqui é dez”. Muitas vezes cheguei a ganhar até de cinquenta reais. Pessoa muito assim, do dinheiro falava: “Não. Toma cinquenta reais”. Em igreja, muitas vezes as igrejas chegavam junto também. Muitas vezes chegava em igreja de cidade, o padre: “Não. Sei qual é a sua luta, sua batalha, seu corrido do dia-a-dia. A igreja pode doar para você cinquenta reais, não tem problema, não”. Mas muitas vezes também eram cinco centavos, dez centavos. Acontece. Mas pela lista, a gente sabia quem era famoso ou não, falava: “Opa, nessa casa aqui vai virar”.
P1 – A pessoa se mostrava bem receptiva?
R1 – Ah, tinha gente que não, viu?
P1 – É?
R1 – Uma vez eu cheguei numa certa mansão lá em Campos do Jordão, o playboy estava na piscina lá falou assim para a empregada: “Vai lá atender ele”. A empregada desceu, eu falei: “Senhora, o negócio é o seguinte, eu preciso da assinatura do seu patrão que o nome dele está aqui e com a assinatura dele eu confirmo que eu entreguei, porque o local aqui é de difícil acesso, difícil chegar para a entrega, eu preciso da assinatura do seu patrão”. A empregada subiu lá falou com o patrão, o patrão: “Pô, mas para que eu tenho empregada se a empregada não consegue nem receber uma pessoa no portão...”. Veio o dono da casa, com uma sunguinha, com uma toalhinha assim na mão, veio me atender, todo queimadinho bronzeado. Antes disso passou pelo empregado deu uma comida de rabo nele porque ele puxou o freio de mão do carro: “Não é assim que mexe com meu carro”. Falei: “Nossa, esse homem é violento”. Quando ele chegou lá no portão: “Bom dia”. “Bom dia, senhor, tudo bem? Eu estou aqui fazendo um trabalho, estou entregando lista telefônica. Você sabe que o custo de vida em Campos do Jordão é muito alto. Para você ficar em um hotel aqui é de 60 a 70 reais no mais... Alimentação aqui também é... A gente tem nosso gastinho aqui. O senhor pode colaborar hoje?“. Não é que o rapaz estava assim, debaixo daquela sunguinha, debaixo da mão dele, na toalhinha assim, pela educação que eu conversei com ele, ele tirou a toalhinha da mão assim, tinha uma notinha de dez lá e me deu. Toda aquela arrogância, toda aquela... Chegou, compareceu com meus dez reais de gorjeta, fiquei feliz da vida, contente, tratei ele bem, fui bem tratado também, acabou a entrega. Muitas vezes chegava na entrega... Fui à casa de uma mulher, bati no portão, chamei o marido porque estava o nome dele na lista, veio a mulher: “O que é? O que você quer?”. Falei: “Calma, senhora, só vim entregar sua lista”. A mulher voltou para dentro: “Bem. Bem. Eu saí lá fora, o rapaz está mandando eu ter calma com ele que não sei o quê”. Meu, o cara já saiu. Eles estavam brigando lá dentro de casa. Já saíram os dois brigando comigo. Chamaram até a polícia. Chamaram a polícia, a polícia chegou, eu falei para a polícia: “Olha, senhor, eu cheguei aqui o casal já estava no maior quebra pau lá fora, eu chamei o homem, o homem mandou a mulher. A mulher veio brigou comigo, chamou o homem, o homem brigou comigo, quer dizer, os dois estão brigando, eu vim aqui fazer minha entrega e entrei no meio da briga, não estou sabendo de nada”. O cara: “Vai continuar seu serviço que nós conversamos com eles”. Ficou lá a polícia conversando com o casal que tinha brigado, deu até delegacia para eles, para mim não deu nada. Você via de tudo, fora os cachorros, você tinha que ficar esperto, a cada entrega era cada cachorrão que vinha. Uma vez eu estou numa chácara, entrei na chácara, isso em Pindorama, em Suzano, em Pindorama. Nossa, entrei três metros na chácara veio um leão. Um leão mesmo, um cachorro desse tamanho, aqueles Fila, colou assim em cima de mim, parou, me olhou, falei: “Nossa, agora vai me dilacerar”. O dono lá de longe deu um assovio, o cachorro só ficou me cheirando. Também ali, olha, nem piscava, fiquei imóvel, falei: “Não vou sair daqui, não, mas enquanto esse cachorro está só cheirando está bom, quando começar morder...”. O dono chegou: “Não faz mais isso, não. Não entra na chácara assim, não, que os cachorros avançam mesmo. Se eu não estivesse de longe para dar o assovio o cachorro tinha te estraçalhado”. Eu falei: “Não. Tudo bem. Mas o que o senhor tem de bom na chácara?”. “Tem verdura, mas não dá gorjeta, não. Não dá gorjeta, não. Veio uma japonesinha magrinha com dois sacos de verdura assim, pois no chão. Quando colocou no chão já falou: “Você não vai conseguir carregar”. Falei: “O quê? Você magrinha desse jeito vem com esse saco brincando, eu não vou conseguir carregar?”. “Não consegue. Não consegue carregar, não”. Peguei o primeiro saco e não consegui tirar do chão. Passei a maior vergonha. Falei: “Põe um saco aqui, o outro aqui, eu vou equilibrando e levo embora”. Eu sofri para trazer aquele saco de verdura. Como pesa saco de verdura. E ganhava as coisas, trazia.
P1 – Então com esse trabalho da lista telefônica o senhor voltou pra...
R1 – Eu voltei, falei: “Eu quero um trabalho agora que seja do...”. Foi até interessante, comigo assim mesmo pensando, eu quero um trabalho que seja o trabalho do pai de Jesus. Eu quero trabalhar com madeira. Foi onde eu comecei a aprender a fazer entalho, entalhar madeira. Comecei a entalhar madeira, a mexer com entalho, entalho, eu fui para Campos do Jordão, vi um monte de placas, todo lugar em Campos do Jordão tem uma placa de madeira, falei: “Que tanta placa de madeira é essa?”. Se tem aqui vai ter em outros lugares também, comecei a fazer as pessoas gostarem e quererem também adquirir, já comecei a ganhar dinheirinho também, fazer plaquinha. Eu estou passando numa marcenaria, entrei nessa marcenaria para pedir um pedaço de madeira. Falei para o cara: “Você tem um pedaço de madeira para me dar?”. “Não.” Ele falou: “Para que você usa?”. “Eu faço entalho”. “Você faz entalho? Você gosta de madeira mesmo?”. Falei: “Gosto”. “Então vem trabalhar aqui comigo. Mas tal dia você vem aqui”. Eu fui lá outro dia e ele: “Não está precisando ainda, não. Tal dia você volta?”. “Tal dia eu volto”. Fui lá outro dia: “Tal dia você volta?”. “Volto”. Acho que eu fui umas seis vezes nesse emprego, na sexta vez o cara falou: “Não aguento mais te ver aqui, vai começar hoje. Eu estava na porta lá e chegou o cara na mesma hora que eu cheguei para arrumar um emprego, o cara chegou: “Está pegando?”. Ele falou: “O que é?”. Falei: “É marcenaria, o cara falou que vai me contratar hoje”. O cara falou: “Vou esperar ele também que eu sou marceneiro”. Calhou assim de bater no mesmo dia assim, entrar eu e um marceneiro novo nesse emprego, foi o último emprego. E quando nós entramos, eu falei para ele: “Você é marceneiro profissional? Eu não conheço bem a profissão, não. Mas daqui a três meses eu acho que eu vou ser o profissional e você vai ser o ajudante”. Ele deu risada, eu também dei risada, mas foi dito e feito. Eu com meus conhecimentos, com as minhas habilidades, eu fiquei só olhando o jeito dele trabalhar, deu três meses o rapaz falou: “É melhor ele ficar de profissional e você ficar de ajudante dele”. Mudou. Por quê? Porque quando eu peguei a profissão, peguei mesmo para aprender e aprendi e desempenhei. E depois daqueles três meses, virei profissional na profissão.
P1 – Que produto que era?
R1 – Nós fazíamos porta, assoalho, fazia deck de piscina, tudo de madeira, muitas portas eram para fazenda, aqueles portas de... Veneziana com janela de correr. Tinha certas vezes que nós terminávamos uma porta, mas porta para fazenda mesmo, coisa grande, que nós não conseguíamos levantar depois. Terminávamos o produto e não conseguíamos levantar, tinha que pegar aquela turma, levantar com aquela turma e por em cima do caminhão. Nós não conseguíamos segurar o peso do material de tão pesado que ficavam as portas depois.
P1 – O desgaste do fêmur veio desse esforço?
R1 – Veio de pegar peso. Pegava muito peso nesse trabalho, só mexia com madeira maciça. Meu patrão tinha uma fazenda em Rondônia. Então vinham três, quatro caminhões de madeira, de Rondônia e nós processávamos essas madeiras, e as madeira de cinco, seis metros, só tora mesmo, cada torão. Então nisso de manusear isso eu fiquei doente, deu desgaste no fêmur.
P1 – Quanto tempo de trabalho?
R – Fiquei nessa empresa uns seis anos. Trabalhei uns dois anos direto e agora eu estou na caixa faz quatro anos.
P1 – Ah, entendi.
R1 – Quatro, cinco anos já estou na caixa.
P1 – E durante esse período, continua mantendo contato com o esporte, visitava o seus amigos e de...
R1 – Os jogadores?
P1 – Os jogadores.
R1 – Eu vou sempre à baixada. Sempre quando eu vou à baixada ou eu fico no Gonzaga, ou dou uma passadinha no CT. Sempre quando eu vou ao CT eu entro lá, fico conversando com as pessoas. Agora no Gonzaga é fatal, se eu ficar lá uma semana, três vezes por semana tem treino. Última vez que eu vi treinando, foram as meninas do futebol do Santos. Agora eu as vi treinando na praia, foi um dia da semana, acho que foi uma quarta-feira, então foram as meninas do profissional e mais três escolinhas. A praia ficou lotada de mulher treinando futebol, mas eles quando vão à praia não treinam muito com bola, é mais parte física, fazer corrida, pique, fazer... Mais goleiro que tem os fundamentos. Agora as jogadoras quase não tem contato com bola quando vão à praia, é mais físico mesmo, eles puxam pra fazer o físico na areia.
P1 – E você assistia jogo de futebol? Do Santos?
R1 – Assisto. Já fui em vários estádios de São Paulo, já fui ao Pacaembu, Morumbi, o Brinco da Princesa, no Rio Claro, Vila Belmiro, no estádio do Mogi, em vários estádios, da Portuguesa.
P1 – Sempre acompanhando o Santos?
R1 – Sempre acompanhando o Santos. E já fui muito também em Taça São Paulo de Futebol. Gostava muito de ver a Taça São Paulo no (___?) Daniel, maioria dos jogos que eu assistia da Taça São Paulo no (___?) Daniel, no São Caetano.
P1 – E qual fato marcante nesses trabalhos na área de calçados, nessa da marcenaria, que te marcou?
R1 – Na época de calçado o que marcava muito era os lugares que eu ia trabalhar. Que nem, quando eu fui trabalhar em São Vicente, nós fomos para inaugurar a loja. O fato que mais marcou que teve comercial na televisão. Então quer dizer você chega lá na baixada com um novo conceito de loja, loja grande, espaçosa, com todo um visual novo. Quando a Kallan chegou à baixada foi a primeira loja de São Paulo, a primeira loja de São Paulo a descer para baixada, agora já tem Besni, já tem Babuche, já tem várias redes de loja de São Paulo. Torra-Torra, um monte de loja desceu para baixada, mas a primeira de São Paulo a descer, a levar material daqui para baixada foi a Kallan e eu inaugurei essa loja. Então eu lembro que tinha um tênis que se chamava Dharma, ele custava 40 reais na Kallan e nas lojas da baixada custava 70 reais. Então quer dizer, foi uma explosão de vendas. Nossa, nunca tinha vendido tanto na minha vida. Aqui em São Paulo chegava a vender 30 mil, lá eu vendi foi 72 mil, a cinco por cento. Então quer dizer, eu estava na baixada, na primeira quinzena eu tinha tanto dinheiro no bolso que eu não sabia nem o que eu fazia com o dinheiro. Ia para quiosque todos os dias, saía do trabalho, ia para os quiosques comer porção, tomar cervejinha, nós parecíamos os reis na praia, depois que recebemos o primeiro vale, porque todo mundo tinha mais de dois mil no bolso. Então quer dizer, foi uma época que eu ganhei muito bem, a loja não parava de vender, vendia muito, muito mesmo porque tinha produtos diferentes. Os produtos que tinham em São Paulo começaram a ter na baixada e na baixada não tinha quase todos os produtos que tinham em São Paulo. Então esse é o fato mais interessante que eu lembro de loja. Agora na marcenaria, o fato mais interessante é esse mesmo de eu começar como ajudante, não conhecia a profissão, ter insistido para conseguir tê-la. Consegui, aprendi a profissão, posso me dizer... Posso ter uma empresa de marcenaria que eu consigo desempenhar as funções, porque eu aprendi a profissão e o fato de eu estar nessa empresa até hoje. Eu estou registrado por ela, enquanto eu não operar e não ter liberação dos médicos, eu estou empregado nessa empresa, não posso ser mandado embora e não posso arrumar outro emprego porque eu já estou nesta.
P1 – E qual é a previsão de retorno?
R1 – Bom, esse desgaste de fêmur quando veio meu médico falou para mim: “Você, a opção é operar após os 40 anos”. Então já tenho cinco anos esperando. E após os 40 anos eu posso aguardar enquanto eu não estourar de vez porque quando está no último limite que eles operam. Por quê? Porque além de ter uma fila de três, quatro anos para você ganhar a prótese do governo, ainda tem a fila também das pessoas que têm mais idade que você. Então quer dizer, se ainda eu consigo me locomover, meu problema é mais com dor, que as dores são muito fortes, se eu consigo me locomover e não tenho tanta dificuldade, eu ainda continuo dando espaço para outras pessoas se operarem antes de mim. Então isso eu vou aguardando, vejo o médico só uma vez por ano. Meu médico que vai fazer a operação mesmo, só vejo uma vez por ano. E é nessa vez por ano ele faz pedido de chapa, vê como é que está, avalia e me recomenda ficar mais um ano no aguardo. E assim vai indo, enquanto eu não chegar à idade certa, eles preferem operar após os 45 anos. Prótese dura dez anos, com 45 anos eu opero, com 55 vai fazer outra operação. Com 65 é outra operação, só faz duas. Após 65 não opera mais. Então quer dizer, eu só posso fazer duas operações. Então quanto mais eu segurar, mais eu vou ganhar em qualidade de vida lá na frente depois. Posso sofrer agora, mas lá na frente eu vou ter uma qualidade de vida melhor.
P1 – E, Adalberto, por que você saiu do ramo de calçados pra ir para marcenaria?
R1 – Não, eu saí do ramo de calçados e parti para a lista telefônica. Isso. Porque foi mais um novo, mas pelo novo de ter também a liberdade de conhecer novos lugares. Então eu falei assim: “Nossa, eu estou passando minha vida e não conheço quase nada em São Paulo”. E essa lista telefônica me dava essa opção de ganhar muitas vezes, até mais do que eu estava ganhando na loja e de ter essa liberdade de sair conhecendo novos lugares. Porque dentro de loja, todo tempo que eu fiquei por mais que eu fosse para outras cidades para não ficar numa rotina, sempre estava mudando de cidade, é São Caetano, é Mauá, Santo André, baixada. Para não cair na rotina da loja. Quando já não estava aguentando mais essa rotina de loja caí pra lista, na lista me deu liberdade para viajar muitas cidades do interior. Eu fui viajando, chegou uma hora também que eu cansei, falei: “Não, agora eu quero voltar, ficar quietinho de novo num lugar só”. Foi onde que eu voltei a trabalhar na marcenaria.
P1 – Eu me esqueci de fazer uma pergunta. Os jogos que você acompanhava pelo Santos, qual... Você acompanhou os títulos 2002...
R1 – Isso.
P1 – 2004...
R1 – Vários jogos.
P1 – Qual o jogo que te marcou mais?
R1 – A final, Corinthians e Santos. Nossa, quando Robinho deu aquelas pedaladas eu me lembrava de que eu tinha ensinado ele e ele fez aquilo certinho. Porque a questão não era eu ter ensinado a pedalada, era ter ensinado a pedalada e entrar dentro da área para receber o pênalti na hora certa. Pode ver que é tudo calculado ali, ele estava naquela proximidade da área a pedalada vai humilhar o jogador, naquela humilhação, quando o jogador cansar de tomar o drible... Você entrou na área, quando você entrou na área o jogador vai te bater meu, porque ele já foi humilhado ali atrás. E foi dito e feito, ensinei a jogada para ele, ele treinou para fazer aquilo, chegou numa final do campeonato ele fez, logo na final. Então quer dizer, aquilo ali me marcou demais, eu falar: “Pô, de muitas jogadas que eles fizeram, a maioria das jogadas eu dei ideia para ser feito, mostrei como fazia, ensinei, só foi mais ele treinar para fazer igual”.
P1 – Você fez aquele quadro para a equipe do... Para presentear os jogadores?
R1 – Isso. Quando eu conheci o Robinho e o Diego, eu prometi que quem chegasse primeiro na seleção iria ganhar um quadro que eu faço de entalho, mas para ganhar esse quadro você tem que ser campeão, porque só o campeão tira foto na final, o vice não tira, você não vê foto de muito vice-campeão, você vê a do campeão. Então eles foram campeões, saíram na foto, a foto que eu falo é o pôster, aqueles pôsteres quando saem em revista. Eu peguei aquele pôster em revista, encaixei numa madeira, tirei a posição de todos os jogadores e fiz entalhado em madeira, e levei para o Diego, porque o Diego... Ficou a opção entre o Robinho e o Diego de receber esse quadro, mas o Diego recebeu porque chegou à seleção primeiro e foi o que eu tinha combinado com eles, quem chegar na seleção primeiro vai receber o quadro. eu fui levar para o Diego, nesse dia que eu levei para o Diego, estava tendo treino normalmente, ele me recebeu dentro do CT, chamou até um jornalista da Lance para eu contar essa história de ter conhecido eles na praia quando eram novo e tudo, falei: “Não, Diego, não precisa não de deixar essa história com o repórter, não, porque é comigo e com você, na mesma humildade que eu te conheci, eu quero continuar tendo esse contato com você, na humildade, quando eu chegar, você me ver, me reconhecer, me cumprimenta de boa, não quero nada além mais do que isso”. Foi onde que ficou só isso. Eu passei para ele o quadro, ele me passou a camisa e toda vez que ia à baixada nós tínhamos o contato de me chamar pra ficar dentro CT e ficar lá junto com os jogadores.
P1 – E você os vê com frequência, Robinho... Quando estão aqui no Brasil?
R1 – Quando está... Ultimamente não tenho visto mais, não. Até 2004, até 2005 ainda tive contato com o Robinho, porque o Diego já tinha saído do Santos. O Robinho saiu para o Barcelona, para o Barcelona não, para o Real Madrid nunca mais o vi, nunca mais tive contato. Tenho vontade num dia assim que for jogar a seleção que eu sei que ele vai desembarcar lá em Cumbica, de ir lá dar um alô para ele. Mas já fui já muitas vezes a aeroporto ver jogadores saindo para ir para outros jogos, já acompanhei também jogos, vou muito à torcida jovem do Santos. Quando tem jogo internacional, não tem SporTV em casa, vou na torcida jovem, lá eles põem o telão, a bateria fica lá fazendo aquela bagunça. Então é um lugar animado para assistir jogo dos Santos. Muitas vezes também eu vou assistir na torcida jovem que fica na Radial.
P1 – Dá saudade da época da formação dos jogadores? Dá saudade desse período?
R1 – Da formação dos meus times, ou do...
P1 – Dos seus times.
R1 – Eu tenho saudade. Tanto é que agora para não ficar assim, longe, eu estou cuidando de um time feminino. Tenho 18 meninas, mas meninas adultas. Então nós fazemos muitos jogos fora. Há duas semanas fomos jogar em Santo Amaro, semana passada fomos jogar em Caieiras, final de semana agora foi três a três o jogo. E eu comecei a cuidar dessas meninas faz pouco tempo, mas nesse pouco tempo até agora está invicto o time depois que comecei a cuidar. Já fui, já implantei dois treinamentos, já pus meu esquema tático e eles estão correndo dentro daquele esquema tático e está invicto até agora.
P1 – E tem muita diferença com o futebol masculino?
R1 – Olha, vou falar para você, não perde em nada as mulheres para os homens. Se for por assim, em parte física a mulher perde pro homem, mas em futebol, habilidade, jogada, desempenho não perde em nada, não, para homem.
P1 – Certo. Poderia falar um pouco da sua família? Senhor é casado?
R1 – Eu tenho uma filha, tem 15 anos. Fui casado seis anos.
P1 – Certo.
R1 – Mas, casado assim, amigado, sem papel, sem nada, sem relações. Agora minha filha está com 15 anos, não mora comigo, mora com a mãe dela.
P1 – Quanto tempo de separado?
R1 – Faz uns dez anos.
P1 – E como é que o senhor conheceu sua...
R1 – Minha esposa? Em loja. Foi em São Caetano. Trabalhava numa loja de calçado em São Caetano, naquela lá de pega fila, vai para lá, vem pra cá, vai trabalhando todo dia, aquele contato ali, pegamos uma amizade e começamos a namorar. Fomos morar juntos, tivemos a nossa filha, depois com o tempo não deu certo, separamos.
P1 – E como é que foi ser pai assim, como foi?
R1 – Ser pai, hoje em dia eu não ligo muito, não, porque criança até uma certa idade você tem um passo, uma doutrina, passa ideias assim, ela aceita. Hoje em dia minha filha já não aceita tanta ideia, já está com 15 anos, já está naquela idade que acha que sabe tudo, que já viveu tudo e está começando só uma vida. Mas quando era pequena, sempre foi muito boa a relação. Todos os parques de São Paulo eu já levei ela, era até um resgate também nos lugares que eu já tinha ido. Certa vez eu levei minha filha no Butantã, nossa que apavoro, ela falou: “Nunca mais me traz nesse lugar”. É só cobra, rato, jacaré, ela não gostou muito, não. Agora levar no zoológico ela gostava, Playcenter, os parques da Luz, Ibirapuera, esses parques ela adorava ir, parque do Carmo. Então, mas tem certos lugares quando ela não gostava, ela já falava logo: “Nesse lugar não me traz mais, não”.
P1 – E na hora que ela nasceu, qual foi a sua sensação na hora do parto assim, que...
R1 – Eu vou ser sincero pra você, criança quando nasce é feia viu. Baita de um cabeção, falei: “Não, isso não é minha filha, não”. Falei: “Não, não, não, de jeito nenhum”. Mas depois o médico falou: “Não, isso é uma parte do cérebro que fica ali deslocado, depois volta ao normal, fica normal”. Depois de dois dias fui ver a criança, nossa, que coisa mais linda, parece uma boneca e até hoje ela é linda, parece uma boneca. Ela tinha um jeitinho de bebê assim, aquele bebezinho bem angelical. Tinha uma formação assim, uma feição linda, linda, linda a menina, até hoje. Hoje em dia, todo lugar que eu vou: “Você é o pai dela? Você não é o pai dela? Que essa menina é muito bonita, você é feio”. Mas a menina é linda demais, não puxou muito ao pai, não, mas tudo bem.
P1 – A sua filha estuda atualmente?
R1 – Estuda em Santo André.
P1 – Em Santo André. Colegial?
R1 – Está no colegial. Já está no primeiro colegial.
P1 – E você a vê com frequência?
R1 – Vejo mensalmente, uma ou duas vezes por mês. Tem mês que passa eu não vejo, mas quando vê assim, ela vem em casa passa o fim de semana, ou eu vou na casa deles, passo o fim de semana. A relação entre famílias ainda é boa. Separei, mas tenho contato até hoje, sempre tive contato, com a mãe dela, com os parentes dela, e elas com meus parentes também.
P1 – E o fato de ser pai, mudou? O que mudou na sua vida?
R1 – Mudou a liberdade. Porque quando você tem um filho e está casado você perde a liberdade. Eu já não tinha mais aquela liberdade para fazer as viagens que eu gosto. Sempre gostei de viajar, passear, viagens longas, já viajei vários estados, então isso me tirava muito. Eu sentia falta dessa parte da liberdade, parece que você fica meio preso quando você está casado, mas é muito... Olhando assim aquela convivência que você tem do dia-a-dia, tudo certinho, tudo arrumadinho, tudo organizadinho, vocês dois combinando as coisas tudo ali no dia-a-dia. Não é que nem você estar na sua família que todo mundo tem seu padrão. Você tem que fazer seu padrão de vida a partir daquele momento que você está junto com a pessoa, mas soubemos dividir bem a vida enquanto estávamos juntos.
P1 – Você disse que arrumava emprego com facilidade, não é?
R1 – Sim.
P1 – Você enfrentava filas de...
R1 – Olha, eu vou falar para você, todo emprego tem uma dificuldade para você arrumar. Tipo, falo assim muito de apresentação, como você vai falar, o que você vai dizer. Então eu sempre tive uma formação, fiz SENAI, trabalhei na Villares, isso é uma base, já é uma boa referência para você entrar em outras empresas. E todas as empresas que eu fui, sempre fui bem aceito, nunca tive problema em processo de seleção, mas já passei por seleções difíceis. O Wall Mart, quando chegou no Brasil, ele montou loja em Santo André, em São Caetano, foi montar uma loja aqui perto da Vila Prudente e eu fui concorrer para essa loja. Peguei uma fila mais de dez mil pessoas, para sair 300 pessoas. Então naquele momento de entrevista ali eu já sabia que estava concorrendo com mais de mil pessoas para minha vaga, então naquele momento é o seu momento de você passar o seu carisma, passar a sua ideia, passar a sua imagem para a pessoa. Ali eu fui bem aceito. Já teve outras empresas também de eu ter... Passar por fila assim, de 15 mil pessoas e passar por essas filas e conseguir o emprego. Mas por quê? Chegava na hora ali, mostrava o currículo, na hora da entrevista passava uma boa imagem, bom carisma, as pessoas me cediam a vaga do emprego. Mas que não foi fácil, não foi. Empregos eu conseguia, mas sempre teve uma dificuldade. Agora para a lista telefônica nunca teve dificuldade, porque sai uma cidade você já podia ir. Hoje vai ter entrega lá em Mogi. Vamos lá para Mogi, vamos para Mogi. Acabava Mogi, nós vamos para Campinas, íamos para Campinas. Acabou Campinas vamos para Araçatuba, íamos para Araçatuba. Então onde tinha cidade, entrega, os listeiros estavam.
P1 – E você sempre tinha um bom relacionamento com seus chefes, de modo geral?
R1 – Ah, sempre. Eu acho que era sorte também e mais a dedicação. Todos empregos assim, eu começava de peão. Começava peão que eu digo assim, começava ir, rapidinho já subia na hierarquia. Muitas firmas eu entrava de ajudante, passavam três meses já estava de chefia. A maioria das empresas foi assim, trabalhei em cargos de chefia, mas mais pelo jeito de me portar dentro do emprego. Teve certa vez eu estava numa empresa, o cara me deixou na máquina sozinho, só que não fazia duas semanas que tinha conhecido aquela máquina, uma máquina de corte, cortava chapas de ferro e a máquina está trabalhando e de repente eu paro a máquina, porque ela fazia lata de óleo, essa... Uma passou mal pintada, eu parei para tirar aquela chapa que estava mal pintada, vieram dois homens atrás de mim: “Você parou a máquina por quê?”. Falei: “Parei porque eu vi que passou uma peça aqui que não está no padrão, na inspeção da firma”. O cara: “É mesmo? Põe a máquina para funcionar de novo”. No outro dia me chamou no escritório, falou: “Olha, vou te dar uma seção, dez funcionários para você cuidar”. Falei: “Não, mas eu estou bem...”. “Não, você vai ficar agora nesse setor aqui porque você demonstrou ser uma pessoa responsável que cuida das coisas da firma”. Muitas vezes entrava nas empresas, olhava as máquinas assim: “Eu conheço como é que máquina funciona, essa máquina é perigosa”. Estava com correia assim, tudo exposto, vamos fazer um projeto para fazer uma coisa que proteja a pessoa de ter contato com essa parte da máquina. Vai que uma pessoa está passando aqui, se enrosca, a máquina puxa ela, mata a pessoa, muitas vezes acontece acidente de trabalho com máquina. Então eu entrava nas firmas já olhava as máquinas que precisava fazer proteção, já tinha essa visão. Então eu passava, em todas as firmas que eu entrava já passava essa visão. E nisso de eu passar essa visão de proteção, de organização, as pessoas me convidavam para subir no cargo a mais.
P1 – Você fala muito de desafios, novas atividades, novos empregos, não é?
R1 – Isso.
P1 – Qual foi o maior desafio que você enfrentou?
R1 – Em emprego?
P1 – Isso. E na sua vida de um modo geral assim.
R1 – Olha, cada um tem suas particularidades. No meu primeiro emprego o maior desafio foi aprender a lidar com os instrumentos, que é coisa muito melindrosa. Vamos supor, o cara quer um micrômetro, um micrômetro mede um fio de cabelo, centésimos, milésimos. Então, uma coisa que era muito minuciosa, um milésimo que seja, a milésima parte de uma medida que fosse errada ali, quer dizer, a culpa cairia em cima de mim. Pensou? Eu dou um instrumento para o cara, o cara vai lá e faz uma peça. Aquela peça que ele faz custa 100 mil, 200 mil, aquela peça é a peça mais importante no componente do motor, eu vou, dou o instrumento de medição para o cara, o cara vai lá mede a peça, a peça sai toda fora de especificação. Quem é o culpado do cara ter matado a peça? O instrumentista que deu o instrumento fora de inspeção para ele. Então o maior desafio era sempre trabalhar de acordo com os padrões da empresa, em toda empresa é assim, você tem que trabalhar de acordo. Quando era na lista telefônica, era atendimento pessoal, você tinha que atender bem as pessoas, não deixar de entregar a lista porque: “Passaram os listeiros aqui, mas não entregaram na minha casa”. Ah, isso já dava maior B.O.: “Pô, passou no meu bairro inteiro, entregou para todo mundo e não entregou para mim”.
P1 – Adalberto...
R – Então, dentro das profissões que eu exerci teve uma profissão que nem a marcenaria, muito perigosa, nossa, qualquer falta de atenção ali você poderia perder um dedo, dois, três, a mão, entendeu? Cada profissão tem a sua própria peculiaridade e seus riscos. Então você tem que saber ter respeito. Eu respeito todas as máquinas, não desrespeito nenhuma. O que é pra eu fazer ali, eu vou e faço. Porque se você quiser fazer coisa diferente do que é pra ser feito, você vai se prejudicar. Certa vez eu estava em uma máquina, estava forjando... Forjar era assim, a gente esquentava o carvão, aquele carvão se aquecia, você colocava uma barra de ferro lá e estou ali forjando uma talhadeira. Estou forjando, você põe ela pra esquentar o ferro e forja a madeira. Tudo bem. Acabei de forjar a peça, pus no óleo quente e levei pro esmeril pra fazer a fiação. Quando eu estava fiando estava com uma luva, porque sai faíscas de... Fagulha. Aquelas fagulhas de ferro queimam a mão. Essa luva enroscou no esmeril. No que enroscou no esmeril eu tirei a mão, a luva foi no rebolo, ralou toda a luva. Numa dessa daí eu nem ia ter mais vida profissional porque foi lá no comecinho. E se a minha mão vai junto no esmeril? Já tinha me deixado deficiente, já ia me dificultar pra vida inteira de trabalho. Então quer dizer, tem que respeitar as máquinas, os seus limites. Certa vez eu estou passando tinha a área de segurança da máquina. Eu estou passando fora da área de segurança, eu passei só sinto aquele negócio na cabeça, tum. Começou a descer sangue pra todo lado, mas por quê? Era uma tesoura de corte, o cara estava cortando a barra de ferro, quando cortou desceu a alavanca, só que essa alavanca passava 15 centímetros da faixa de segurança. Então quer dizer, o cara estava dentro da faixa de segurança, quando desceu a alavanca, eu estava passando fora da faixa de segurança, quando eu passei eu recebi aquela pancada. Mas eu estava fora da faixa de segurança. O que fizeram? Aumentaram a faixa de segurança. Então, quer dizer, a imprudência não foi minha, foi da faixa de segurança que não estava no local certo. Porque aquela máquina passava da faixa de segurança. Então certas coisas acontecem, não é imprudência do homem, é imprudência de quem fez a faixa ali que não acertou até onde devia ser feito, porque se tivesse a faixa de segurança no local certo eu passava por fora dela não tinha me acontecido nada. Então todas as profissões têm seus riscos. Muitas vezes você está entregando sua lista, você põe a lista pra dentro da casa o cachorro vem e pega sua mão. Ou você está andando na rua você pode ser atropelado antes de chegar no serviço. Acidente de trabalho não acontece só no serviço, as dificuldades que você tem não são só no serviço, antes de chegar nele também você tem toda uma dificuldade. Que é de trânsito, estar pegando uma condução, poder cair de um ônibus, ser atropelado na rua. Você pode sofrer um atentado, um assalto. Você está num ponto de ônibus um ônibus sai ponto e te atropela. Acontecem várias. Então a todo o momento a gente tem que estar atento.
P1 – E agora como é que está seu dia-a-dia sem poder trabalhar regularmente?
R – Bom, o que eu faço muito em casa é artesanato. Aprendi a fazer bastante artesanato. Então eu pinto tela, faço meus entalhos, mexo com reciclagem de jornal.
P1 – Na própria casa mesmo?
R – É. Eu fico em casa, eu fico fazendo esses trabalhos, eu fico mais em repouso. Ultimamente estou com esse time de futebol feminino. Quando chega o verão é gostoso. Três vezes por semana, eu moro perto do SESC do Itaquera, vou lá, visito o SESC Itaquera, lá tem bastantes atividades que eu aprendo bastante coisa lá dentro do SESC. Eu saio da inclusão digital, tem os computadores lá e eu uso. Eu uso a praça de esporte, que eles têm quadra, têm tudo, têm praça de alimentação, têm refeitório, tem a piscina com toboágua. Então quer dizer, está muito calor? Você entra na piscina, você refresca um pouco, depois vai pra sala de computador. Então isso é o que me distrai. De vez em quando eu vou ao Parque do Carmo que é do lado de casa também, faço os exercícios, respiro um ar. Então a minha vida está se resumindo a isso, a de vez em quando ir a um parque, num clube e fazer artesanato dentro de casa.
P1 – De onde veio esse interesse por artesanato?
R – Olha, quando eu era criança foi meu primeiro pedaço de madeira que eu entalhei. Eu me lembro como se fosse hoje. Minha avó tinha uma faquinha, aquelas facas de cortar pão de ferro. Aquela faca de ferro quebrou, minha avó jogou fora no lixo. Eu fui lá, peguei a faca, peguei uma pedra assim, comecei a afiar. Aquela faca criou uma ponta como se fosse um formão. Eu peguei aquela faca e comecei a bater na madeira, fiz um desenho assim, gostava muito de desenho do Walt Disney. Naquela época eu era bom de desenho. Eu ficava olhando desenho desde criança. Olhava um desenho assim, reproduzia o desenho, o ampliava. Eu fiz aquele desenho do Walt Disney do Pato Donald, fiz o Mickey e o Pateta. Eu desenhei os três numa madeira e essa madeira era uma carteira de escola. Aquelas escolas antigamente tinham aquelas carteiras assim de você sentar assim, sentava um de um lado, outro do outro e tinha a base da carteira. Eu peguei essa base de carteira, de uma quebrada, e fui fazer o meu entalho. Meu primeiro entalho foi com uma base de carteira de escola. Eu comecei a entalhar. Então ali foi o meu primeiro artesanato que eu fiz. Depois eu passei pra argila. Nós íamos muito, andávamos muito no meio do mato, muito na beira de rio, quando nós íamos à beira de um rio assim que tinha argila, mergulhava, ia lá pegava a argila, trazia, ensacava, chegava em casa fazia cinzeirinho, fazia bonequinho. Ficava brincando com argila em casa. Depois da argila comecei a pintar. Eu ficava olhando os quadros que as pessoas faziam, nossa, ficava admirado. Como é que faz uma nuvem? Como é que faz uma paisagem? Como é que faz esse desenho? A perspectiva. Hoje em dia eu sei que você começa lá pelo fundo, depois vem trazendo o começo. O que você vê, a imagem, você consegue reproduzir com mínimas coisas assim. Tudo é técnica. Eu fui numa aula da Acrilex, tinha 14 alunas. Essas 14 alunas estavam fazendo diferenciados trabalhos, trabalho em pano, trabalho em tela e essa professora da Acrilex: “Vem comigo. Fica do meu lado aqui. Você só vai poder vir hoje que a aula é só pra mulher, mas hoje nós vamos liberar”. Mas foi a maior briga pra eu entrar nessa aula da Acrilex. Entrei nessa aula da Acrilex, a partir dali, já fiz muitas telas, muitas mesmo, uma mais linda que a outra. Com uma aula peguei todas as técnicas. Então, quer dizer, eu tenho facilidade pras coisas. Você me ensina e eu aprendo. Tudo que eu aprendo eu procuro depois só me especializar mais e me incentivar a ficar melhor. A gente procura fazer as coisas bonitas. Não adianta você fazer um artesanato, entregar pra pessoa e a pessoa: “Ah, obrigado”. Normalmente quando eu entrego alguma pra alguém o olho brilha. Você vê uma alegria na pessoa de estar recebendo aquele... “Nossa. Que bonito. Oh, não sabia que isso ficava bonito assim. Nossa. Já me dá mais dois”. Já encomenda mais dois. E assim vai.
P1 – E quais foram as principais lições que o senhor tirou com essa trajetória de vida?
P2 – Tem o que eu vi aqui. Você parece que fez um grupo, você está fazendo um grupo... Recuperação de dependentes químicos. (___?) contar...
R - Isso. É psicólogo. Eu fui a um psicólogo que eu tive muito problema assim com o uso de tóxico, porque na infância da gente a gente conhece de tudo. Eu conheci o álcool e droga. Conheci a maconha. Num certo tempo eu parei com a maconha, mas fiquei o álcool. Esse negócio psicossocial chama CAPS. Você vai no CAPS, conhece psicólogos, ali você vai tendo atividades psicossociais. Já fiz psicodrama. Psicodrama que a gente fazia era tipo um teatro. Ali você conta a sua história de vida, as passagens que você teve com álcool, o que já te aconteceu. Quando a gente é dependente de álcool a gente sofre muito. Tipo várias vezes que eu cheguei em casa eu não sabia o caminho que eu fiz. No outro dia até eu lembrar demora uma semana. Você cai muito no esquecimento, muitas vezes você perde a vontade de fazer certas coisas e esse CAPS me ajudou muito, me reestruturar, porque enquanto eu estava fazendo a faculdade eu tinha que me reestruturar de novo pra voltar forte pra sociedade e o alcoolismo quebra um pouco essa rotina. Então é onde que eu falei: “Vou tentar um tratamento pra ver minha melhora”. E consegui. Hoje em dia, vamos supor assim, álcool, bebida forte, não uso. Mas num fim de semana assim, ninguém é de ferro, dá pra tomar uma cervejinha, duas, sem abusar, sabe seu limite. Se eu tomo uma cervejinha eu fico alegre, fico contente, diurético, me deixa mole as palavras, as palavras saem mais facilmente e não me prejudica em nada. Agora não é mais aquela coisa de alcoolismo, de você ficar ruim, ruim, ruim de não aguentar nem chegar em casa, depois três, quatro dias de ressaca. Nada que não seja mais aceitável. Uma cervejinha, duas no fim de semana, só no domingo. Não fico mais em boteco. Aqueles 15 anos que eu perdi de estudo foi porque eu estava no alcoolismo, ficava só em boteco. Quer dizer, você está ali todo dia no boteco, boteco, chega do serviço vai pro bar, chega do serviço. Você perde a vontade de estudar. Você faz aquelas amizades, ali ficam aquelas amizades ali e parece uma coisa que não vai nem pra frente nem pra trás, você fica estático naquilo ali. Então hoje em dia já não entro mais em bar. Só entro na sede do time, no domingo e só tomo cerveja no domingo. Não tenho mais esse costume de chegar no bar: “Me dá um aperitivo”. Já começa um da manhã, um da tarde, um da... Quando chegava de noite você estava sem noção do que estava fazendo porque já tinha bebido o dia inteiro. Então quer dizer, a parte desse tratamento que eu estou fazendo agora já não fico mais dentro de bar. Prefiro mais tirar meu lazer em parque, passeando, fazendo outras atividades do que ficar dentro de boteco, como se diz assim, ouvindo conversa fiada. Eu aprendi que boteco não leva você a lugar nenhum, não te dá um nada, só te tira. Tira todo seu dinheiro, tira toda sua vontade de viver, sua vontade de ir pra frente. Você só perde. Nunca ganha.
P1 – E tinha muitas pessoas que frequentavam o CAPS?
R – Tem.
P1 – Tem.
R – Tem muitas pessoas. Eu acho que esse trabalho que eles fazem tem que ser mais aberto porque... Teria que ter muito mais porque tem muita gente que precisa desse trabalho. Nossa. Em São Paulo todo, no Brasil todo. Tinha que ter tipo um a cada três bairros, porque o que você vê de pai de família se destruindo.
P1 – O senhor respondeu rapidamente ao tratamento ou demorou um pouco?
R – Demorou. Eu já estou em tratamento já faz um ano e tanto tempo, mas os primeiros quatro meses assim são um pouco de dificuldade, mas depois você vai acostumando. Eu optei por não usar remédio. Porque lá eles têm uma disciplina assim, mais dentro do meu íntimo mesmo, da minha força de vontade de ter essa disciplina de me controlas sem o uso de medicamentos, mas tem as pessoas lá que chegam lá em certo grau que só o medicamento as ajuda. Mas você vê as pessoas chegando lá debilitadas, caídas, depois de uns três, quatro meses já ficam de pé de novo, já está pronto pra reiniciar a sua vida. Porque muitas vezes a pessoa é profissional, se perde um pouco no alcoolismo ali, já perde a vontade de trabalhar. O CAPS entra nisso. Já resgata a pessoa, ajuda ela a voltar ao trabalho e ter uma vida social de novo. É o que eu procuro agora, ter minha vida social de novo. Que nem, eu estava meio desanimado assim, vamos supor, você fica em casa pode dar uma depressão, pode dar várias coisas em você e eu estou há quatro anos sem trabalhar. Então, quer dizer, se eu ficasse esses quatro anos, ao invés de ficar dentro de casa quietinho, dentro do boteco, nossa, teria me acabado. Então, agora eu estou procurando minha melhora, daqui pra frente. estou com 41 anos, eu pretendo viver até uns 80. Então se eu for na disciplina, arregado direitinho, continuar praticando esporte, coisa que eu sempre gostei eu acho que eu chego até uns 80, até passo. É mais uma vida que eu já tive. Até os 40 uma etapa, dos 40 pra frente outra com mais qualidade de vida.
P1 – Lá no CAPS, que é o Centro de Atendimento Psicossocial, era sessão com psiquiatra mesmo?
R – Tem psicólogos, psiquiatras, enfermeiros. É todo um trabalho. Na parte da enfermaria você faz exames, exames de todo tipo que você precisar, do pé à cabeça, ou eles encaminham ou eles fazem lá, já tem a médica que vai fazendo os pedidos.
P1 – Era uma vez por semana isso?
R – O quê?
P1 – Lá no CAPS?
R – Não. Quando você entra... Tem trabalhos que (___?) tem outros que não. Que nem, no caso eu vou duas vezes por semana, fico duas horas lá. Você tem livre escolha, você entra e sai a hora que quer e são mínimos os horários. Agora tem pessoas que já requerem mais tratamento, já ficam o dia todo. Entra oito horas da manhã e sai cinco da tarde. Já fica no intensivo, tratamento intensivo. Agora eu não sou intensivo, eu vou lá, fico uma, duas horinhas depois vou pra casa. Depende o que eu estou fazendo. Agora estou fazendo trabalho comunitário e mais uma sessão lá que eu ainda não comecei. Mas antes eu estava fazendo jornal e grupo de memória. Através desse grupo de memória que eu vim aqui. Esse grupo de memória faz os resgates das nossas memórias. Então através desse resgate das memórias que eu estou conseguindo passar assim, a metade das coisas que eu estou conseguindo passar pra vocês agora. Através das técnicas que eles já me trabalharam lá.
P1 – Ou seja, cada membro desse grupo trabalha com a memória.
R – Olha, nesse grupo de memória tinha seis pessoas. Duas contavam muito assim fase que eles passavam assim em fazendas, interior, essas coisas e tinha mais dois. Um tinha faculdade que nem eu, Letras, o outro tinha seu trabalho, tinha sua empresa de ferragens. Todos com problema de alcoolismo. Então cada um tinha sua atividade, já tinham filhos, todos tinham filhos, todos tinham suas atividades. Ali dentro daquele grupo nós fazíamos esses resgates de memória. Então a cada semana nós passávamos uma vivência e já vinha com outra pra repassar na outra semana.
P1 – Certo. Está há um ano mais ou menos com o tratamento?
R – Estou. E está maravilha. E não pretendo parar não, só quando eles mandarem embora.
P1 – Derem alta.
R – É. Quando me derem alta, eu saio, mas acho que vai demorar porque eles gostam de mim lá, eu ajudo, interajo com todo mundo. Esse fim de semana agora nós fomos a uma copa, chama Copa da Inclusão. O pessoal do CAPS vai jogar futebol, eles vão lá ao SESC nós passamos o dia no SESC. Faz torcida pro time, fica lá agitando, depois vai tirar um lazer. Eu já vou direto lá, estou até acostumado já. Então foi só uma atividade a mais pra eu estar envolvido.
P1 –Então retomando, quais principais lições que o senhor teve com essa trajetória de vida?
R – Tudo que eu aprendi assim de ter lições de vida começou com a minha avó porque a maioria das coisas que eu sei, que eu aprendi é que a minha avó falava assim, ela falava as coisas, explicava e eu levei pra vida até hoje. Por exemplo, a ser honesto, ser humilde, dar atenção às pessoas, estar sempre ajudando. Então isso eu já aprendi desde criança. Na minha trajetória de vida eu sempre fui assim, sempre fui honesto, nunca tirei nada de ninguém, procurei trabalhar pra ter minhas coisas porque nunca esperei nada, vir de mão beijada. Nunca nada veio de mão beijada, sempre corri atrás dos meus objetivos. Quis usar uma roupa bonita, um calçado bonito, corri atrás pra buscar. Minha primeira bicicleta fui eu que comprei. Tudo na minha vida foi com esforço, mas um esforço recompensado. Sempre batalhei pra conseguir minhas coisas. E sou um batalhador até hoje. Estou batalhando ainda pra sobreviver nesse mundo que não é fácil.
P1 – E o que você achou de ter dado esse depoimento aqui, ao Museu da Pessoa?
R – Bom, eu conheci o Museu da Pessoa, não tinha uma base assim, sobre o Museu. Vim aqui, fiz um acolhimento, nesse acolhimento eu aprendi pra que era. Eu acho interessante porque eu como pessoa, como cidadão paulista, ou se eu fosse de outro Estado ou de outra cidade, é um espaço que você tem pra você poder mostrar quem foi você. Que nem, minhas vivências eu conto pras pessoas, mas agora eu sei que vai ficar gravado, muitas outras pessoas vão poder conhecer a minha história. Eu conto a história pros meus filhos, eu conto a história pros meus amigos, eu conto a história pra novas pessoas, mas nem sempre... Sempre fica uma coisinha ou outra pra trás. Nós começamos aqui há algumas horas, mas se fosse pegar a fundo cada história ficaria um dia em cada uma, ou um dia em cada ano da vida. Mas foi válido hoje. Demais. Estar passando essa história pra vocês da minha história de vida. Não foi uma história fácil. Tiveram seus momentos de lazer, seus momentos de responsabilidade, que é o trabalho, seus momentos de alegria que foram certos momentos da vida, sempre alegre, correspondendo... E a vida é essa mesma. A gente tem que passar nossa história pra outras pessoas terem um aprendizado de vivência de vida. Eu vivi bem minha vida e vou viver bem mais agora, daqui pra frente. Daqui a cinco, dez anos eu posso voltar aqui com muito mais histórias.
P1 – Sim. Está ok. Então em nome do Museu da Pessoa agradecemos aqui a sua entrevista.
R – Obrigado. Obrigado pela oportunidade. Eu agradeço.
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