Projeto Perpetuando a Rede LAC
Entrevista: María Elena Ovejero
Entrevistada por Immaculada Lopez
São Paulo, 18 de Novembro de 2006
Realização Museu da Pessoa e Rede LAC
Código: RedeLAC_HV_003
Tradução: Andréia Menezes
Revisado por: Nataniel Torres
P/1 - Para começar, gostaria que você me...Continuar leitura
Projeto Perpetuando a Rede LAC
Entrevista: María Elena Ovejero
Entrevistada por Immaculada Lopez
São Paulo, 18 de Novembro de 2006
Realização Museu da Pessoa e Rede LAC
Código: RedeLAC_HV_003
Tradução: Andréia Menezes
Revisado por: Nataniel Torres
P/1 - Para começar, gostaria que você me dissesse seu nome completo, a data e o local onde você nasceu.
R – Meu nome completo é María Elena Ovejero e o local onde eu nasci é Invernada Sul, no Departamento de Figueroa, Província de Santiago del Estero.
P/1 - Como é esse lugar?
R – É um lugar com um clima muito quente. Nos meses de dezembro, janeiro, tem temperaturas muito altas. Era um lugar de bosques e agora as árvores são cortadas para fazer carvão e para fazer lenha. Porque nós éramos produtores agropecuários e tínhamos um sistema de irrigação que quebrou. E isso afetou muito nosso departamento.
P/1 - Quantos graus?
R – É uma temperatura muito alta. Quarenta, quarenta e cinco graus. E hoje vemos isso com grande preocupação. Isso de sair por aí, ao meio-dia, sem proteger o rosto, o corpo, sem uma roupa adequada, prejudica muito, machuca a pele.
P/1 - E como é a paisagem?
R – A paisagem é planície. Temos árvores de algarobo, e um pouco de quebraço. A madeira do quebraço, vermelho e branco, é explorada porque é uma madeira muito dura que é usada para fazer postes para as cercas e muitas outras coisas.
P/1 - E no departamento, vive muita gente?
R – O Departamento de Figueroa tem mais ou menos 17 mil pessoas e quase todas moram em zonas rurais. Contando com a comunidade de Invernada Norte e de Invernada Sul somos aproximadamente mil famílias.
P/1 - Qual é a cidade mais perto?
R – A cidade de Bandera Bajada fica a 27 quilômetros de Invernada, onde vivem 900 pessoas. Aí fica o Hospital mais próximo que é pequeno e onde são atendidas as comunidades da zona. Também fica a única escola de ensino médio e uma de magistério para a formação de professores de ensino fundamental.
P/1 - A que distância está das casas das pessoas?
R – Depende da comunidade onde cada um mora. De onde eu moro, são 27 quilômetros, mas tem comunidades muito mais distantes. O hospital não é bem equipado, lutamos por isso. O tema da saúde sempre é um problema, necessitamos ter um hospital muito melhor.
P/1 - E toda sua família nasceu lá, seus pais, seus avós?
R – Há muitos anos atrás, por volta de 62, talvez um pouco mais atrás, eram zonas irrigadas. Tinha esteiros, cruzavam como lagoas de água. As pessoas que estavam mais distantes, numa zona mais seca onde não chegava a água do banhado dos rios, levava seus animais para lá, quando as águas acalmavam. Trazia das zonas mais altas por causa da comida, por causa do pasto. Trazia para engordar. Daí vem a palavra “invernar”, porque traziam seus animais para invernarem. É a história que nós conhecemos.
P/1 - De onde vem a família do seu pai?
R – Meu pai não é de Invernada, mas de uma comunidade vizinha. Então se mudou para outro departamento vizinho, porque aqui se trabalhava na obra. Como lenhador, ia trabalhar lá. O pai da minha mãe também era lenhador, e minha mãe, sendo jovem, vinha com meu avô como cozinheira, para fazer o trabalho de cozinheira quando meu avô ia trabalhar. Assim conhece a minha mãe.
P/1 - Antes de falar sobre como seus pais se conhecem, queria te perguntar o que você sabe da vida de criança do seu pai?
R – Meu pai me contava que trabalhava desde muito pequeno, porque sua mãe era sozinha. Ela era mãe solteira. E, desde muito pequeno, ele se dedicava ao trabalho de lenhador.
P/1 - Como é o trabalho de lenhador?
R – Nessa época havia muitas árvores de quebraço, do branco e do vermelho. Ele me comentava que era delas a madeira usada para os dormentes das vias do trem, para as linhas do trem. Tinha muita lenha, era uma madeira que tinha uma certa medida, era quadrada, eles tinham que cortar assim, quadrada. Eles tinham que dar essa forma e fazer uma madeira quadrada. Isso servia para os dormentes, para a linha do trem.
P/1 - E seu pai começou a trabalhar desde criança?
R – Desde criança.
P/1 - Não pode estudar?
R – Não, não pode estudar. Meu pai sabia muito pouco, apenas escrever o nome. E a minha mãe não sabia nada.
P/1 - E a mãe do seu pai, você a conheceu? Como se chamava?
R – Ela se chamava Plácida, era uma parteira da região. Porque em nossa região não tinha assistência médica para ter os filhos, e ela trabalhava com isso, ajudava nos partos das mulheres.
P/1 - O que ela contava desses partos?
R – Na verdade, eu admirava ela. Eu lembro que quando criança, ela me convidava para acompanhar ela nas visitas às suas parturientes, às mulheres que estavam esperando seus bebês. Porque ela fazia um trabalho como o de médico, tinha que perguntar como estavam, como se sentiam... E eu me admirava que ela, só tocando o ventre delas, sabia de que sexo seriam e se estavam próximas do parto... Fazia seus cálculos, tocando o ventre da mulher. E sabia muito claro de que sexo seriam.
P/1 - Ela ganhava por esse trabalho?
R – Claro, por esse trabalho ganhava. Pagavam em dinheiro. Outros pagavam com animais ou alimentos.
P/1 - Ela sustentava a casa?
R – Sim, minha avó.
P/1 - Com o trabalho de parteira?
R – Com o trabalho de parteira, isso.
P/1 - E, pelo outro lado, a família da sua mãe, em que trabalhava?
R –Também, meu avô era lenhador, como eu te falei antes.
P/1 - Como se chamava?
R – Gumercindo. Também era um homem que trabalhava muito. Nessa época, o que sempre me contam da família, dessa década do meu pai, é que eles trabalhavam muitas horas. Para eles, o horário de trabalho era desde o amanhecer até o pôr-do-sol. E isso, com o tempo, foi mudando, e hoje, talvez os jovens com idade para trabalhar fazem só umas oito horas e controlam o relógio. Eles, não.
P/1 - Eles entravam no bosque em busca de madeira?
R – Sim.
P/1 - E como a madeira era carregada?
R – Vinham tratores carregar elas porque eles eram contratados por pessoas, por empresas. E depois eles, levantando com as mãos, com a ajuda de outra pessoa, carregavam os tratores.
P/1 - E comiam lá mesmo?
R – Sim, lá mesmo. O que sempre observei era que eram muito sábios. Como moravam nas montanhas, era como se entendessem todas as mensagens da natureza.
P/1 - Que tipo de coisas?
R – Quando ia chover e todas estas coisas que eles sabiam. Qual canto dos pássaros anunciava chuva, quais eram mensagem de um presságio de algo ruim que iria acontecer. Todas essas coisinhas eles percebiam no canto dos pássaros.
P/1 - E a sua avó, a esposa do seu avô Gumercindo, como se chamava?
R – Ela se chamava Benigna.
P/1 - O que ela fazia?
R – Ela também era assim uma artesã, como a minha mãe, uma artesã da tecelagem.
P/1 - Como era esse trabalho?
R – Era um trabalho muito duro, e digo pela minha mãe, que continuava com este trabalho que fazia a minha avó. A tecelagem de lã de ovelha. É um trabalho duro, porque doem muito as costas, sacrifica muito as costas, os pulmões.
P/1 - E a tecelagem era feita na casa dela mesmo?
R – Na casa dela mesmo.
P/1 - Tinha uma máquina?
R – Não, é uma espécie de uma vara, um pau que você vai girando com uma mão no chão. Quando o fuso gira, com a outra mão você vai dando forma de fio à lã de ovelha, moldando e dando forma.
P/1 - Sua avó teve muitos filhos?
R – Muitos filhos.
P/1 - Quantos?
R – Meus tios eram dez, dez filhos.
P/1 - E como era essa casa com dez filhos?
R – Bom, normalmente, nessa província, as famílias rurais são muito numerosas, com dez, doze filhos, e o trabalho é muito duro, especialmente para as mulheres. Nem nós, nem nossas mães e nossas avós, eu acho, tinham a vantagens que hoje as mulheres têm. Por exemplo, isso de não lavar fraldas, porque existem fraldas fabricadas. Antes tudo era lavado. O processo da comida, da alimentação, era todo baseado na colheita de trigo, de milho, todas essas coisas... e tudo isso tinha que ser processado. Tinha que trabalhar para preparar, e hoje talvez já nem se comam essas coisas.
P/1 - Você conheceu a sua avó quando você era criança?
R – Sim, sim.
P/1 - E como ela era?
R – Era assim gordinha, com a pele mais clara que a minha e que a da minha mãe também. Os irmãos da minha mãe eram mais morenos, outros um pouquinho mais claros. E alguns eram bem altos, e alguns eram baixos.
P/1 - E que lembranças você tem dessa avó?
R – Era uma avó muito carinhosa, muito trabalhadora. Disso eu lembro.
P/1 - Você estava me contando sobre como os seus pais se conheceram. Como foi?
R – Minha mãe ia acompanhando o meu avô lenhador que ia trabalhar na montanha, e meu pai também quando jovem era lenhador e ia trabalhar na mesma obra que o meu avô. Lá que eles se conheceram.
P/1 - O que a sua mãe fazia lá?
R – Ia cozinhar para o meu avô. Acompanhava ele para cozinhar, para lavar. Para as coisas que o meu avô precisava…
P/1 - Desde pequena?
R – Desde pequena.
P/1 - E ela também não pôde estudar?
R – Não. Ela não sabia nada, não sabia ler. Não só ela, mas outras mulheres também. E tem um diálogo que eu sempre ouvia. Por ser mulher, diziam: “Você não precisa ir para a escola porque você é mulher”. E a mesma coisa com a identidade, com o documento, não tiravam para a mulher. Diziam que o homem precisava porque tinha que fazer o serviço militar e as mulheres, não. Então, nem identidade tínhamos, não podíamos votar. Não tínhamos assinatura, nem minha mãe, nem minhas avós.
P/1 - E, seus irmãos homens estudavam?
R –Não, não, não, não.
P/1 - Nem os homens, nem as mulheres?
R – Não, não. Talvez fosse pelas distâncias. Tinha poucas escolas. Queria comentar que também, em algumas famílias, tem irmãos com sobrenomes diferentes.
Porque, se era homem, o pai tirava documentos para ele e, se era mulher, não. Então, acontecia que algum vizinho, por ser boa pessoa ou para fazer uma coisa boa para a mulher, dizia: “Mesmo não sendo seu pai, vou tirar o documento para você porque você pode precisar”. Assim, podia ter irmãos com sobrenomes diferentes.
P/1 - E o que mais a sua mãe conta sobre a juventude dela, sua época de criança?
R – Que elas eram assim de trabalho, de muito trabalho. Eles não viviam com alegria. Não tinham tempo para brincar. Mas, à medida que iam crescendo, de acordo com suas capacidades, já iam ajudando com a casa. Não tinham liberdade para brincar. E pior ainda se fosse mulher porque temos muitas coisas para cuidar na casa: a atenção que tem que ser dada aos homens porque eles vão para o trabalho e o trabalho da casa é muito pesado. E, então, a filha mulher tem que ajudar de algum jeito, sempre.
P/1 -
- Que coisas?
R – Lavar roupa, passar, cozinhar, a comida. Tinha que ser cumprido um horário porque quando os homens chegavam do trabalho, já tinha que estar tudo preparado. Tudo para a higiene pessoal, tudo já tinha que estar preparado. Isso era sempre muito trabalho.
P/1 - Você conheceu a casa onde a sua mãe cresceu?
R – Muito pouco porque, depois, minha mãe foi morar longe dali.
P/1 - Ela se casou com quantos anos?
R – Minha mãe não se casou, eles estavam unidos assim como casal, mas não eram casados legalmente.
P/1 - E se uniram muito jovens?
R – Deve ter sido com dezoito anos, muito jovens.
P/1 - E eles foram morar onde?
R – Ficaram aqui em Invernada, por causa do trabalho que tem na região. Produziam algodão.
P/1 - E seu pai continua trabalhando como lenhador?
R – Ele continua como lenhador. Mas depois, quando começa o trabalho agropecuário na região, ele começa a trabalhar a terra e a cultivar a terra, sempre. Então, ele passa de lenhador a agricultor. Passa a trabalhar pelo salário do dia.
P/1 - Que tipo de trabalho?
R – Por exemplo, arar a terra, cultivar as plantas. Porque lá se cultivava plantação de algodão, milho, se trabalhava com o arado, com os cavalos.
P/1 - E sua mãe?
R – Minha continuava como artesã. Também lavava roupa em casa. E o processamento do milho, porque nesta região, naquela época, quando se trabalhava com o arado, com os cavalos, a comida era à base de muito milho. Se preparava milho torrado, milho moído no pilão, assim como os milhos processados, pisados, moídos para cozinhar a mazamorra, porque isso era como a sobremesa, vamos dizer, base de todo trabalhador. Diziam que isso lhe dava força para poder trabalhar, para não se cansar.
P/1 - O que é a mazamorra?
R – A mazamorra é uma comida cozida com milho, o grão de milho triturado. Com um pilão.
P/1 - E é misturado com o que?
R – É cozido com água. Era feito todos os dias e se misturava com leite de cabra, leite de vaca, como sobremesa.
P/1 - E antes da sobremesa, qual era a comida típica?
R – A comida típica era a carne de boi cozida com milho, com trigo. Se colhia muito trigo nessa região, que era levado para moer. Era uma vida em abundância porque tínhamos muita farinha para fazer pão e coisas tão boas que foram se perdendo com o tempo.
P/1 - Seus pais se casam e vão morar em outro lugar. E logo nascem os filhos?
R – Sim, sim.
P/1 - Você é das primeiras?
R – Eu seria a quinta.
P/1 - Quantos irmãos foram?
R - Seis.
P/1 - E como era a casa? Onde você nasceu?
R – Era um lugarzinho pequeno e bom. Uma moradia muito precária.
P/1 - De que material?
R – De barro, de palha, de alecrim do campo.
P/1 - Alecrim do campo?
R – Alecrim do campo é um arbusto que cresce naquela região e que usamos para fazer os tetos. E, em cima disso, vai um pasto e depois vai a terra.
P/1 - E as paredes?
R – As paredes, de barro, e também pode ter algumas de adobe.
P/1 - E o chão?
R – Terra, terra.
P/1 - E como era a casa com oito pessoas?
R – Era tudo desconfortável, porque, na verdade, tinha uma cama grande e do lado outra caminha que dividíamos com nossos irmãos. Numa cama dormiam duas pessoas.
P/1 - E o que contam do seu nascimento?
R – Minha mãe foi ajudada pela minha avó paterna. E, não sei se por cultura, mas minha mãe me comentava que, quando nasciam as meninas, a própria família ou os vizinhos, era como se não ficassem felizes. Quando sabiam que nascia um menino, ficavam contentes.
P/1 - Você foi a primeira menina?
R – Não, tenho duas irmãs mais velhas. Meu primeiro irmão é homem, depois uma mulher, depois outro homem, depois seria eu, e uma irmã mais nova.
P/1 - De quando você era criança, qual a lembrança mais antiga que você tem?
R – Quando minha mãe ia trabalhar, cortar milho. Era um trabalho que se fazia sentada. Eu lembro que quando ela estava sentada, eu ia, me aproximava dela e pegava o peito da minha mãe. É que minha mãe nos dava de mamar até os cinco anos. Lembro que eu pegava o peito, assim de lado, até os cinco anos. Todos nós mamamos até os cinco anos.
P/1 - E que outras lembranças da sua infância?
R – O que lembro dessa época, que meu pai, quando chegava do trabalho de lenhador, me trazia sempre muito mel, me trazia mel de pau.
P/1 - Que ele pegava?
R – Ele pegava enquanto trabalhava. Quando ele vinha, eu ficava muito feliz porque sabia que ele me trazia isso.
P/1 - O que você gostava de fazer quando era criança?
R – O que eu gostava muito era quando nos juntávamos com outras meninas, mexer com barro, uma terra umedecida com água. Eu gostava muito.
P/1 - O que você fazia?
R – Moldar, trabalhar, fazer bonecas. Isso era em nossa região. Tiravam água do poço, cavavam o poço e quando esse barro vermelho secava era macio para trabalhar. Então, quando cavavam o poço, sempre a gente ia com as amigas pegar esse barro para trabalhar e fazíamos bonecas e depois colocávamos elas no sol para secar e tínhamos nossas bonequinhas. Me lembro disso. Fazíamos o cabelo delas, e queríamos o cabelo liso, ondulado, isso dependia do gosto de cada uma. E lembro que, às vezes, de tanto que a gente se animava com o barro, a gente até comia e tem um gosto muito bom.
P/1 - Tem gosto de que?
R – Era assim algo gostoso, um sabor de terra, mas não era nem amargo, nem salgado, era assim como uma pasta doce, assim como algo macio, mas muito saboroso. Quando acontece de encontrar com alguma, lembramos: “Lembra que a gente comia barro?” Dizem que não nos fazia mal, porque de repente podíamos ficar doentes, mas não, não fazia mal.
P/1 - E as filhas começavam a ajudar as mães no trabalho?
R – Lembro que desde muito criança. Começo a ir para a escola… Eu gostava muito da escola.
P/1 - Onde ficava a escola?
R – Ficava a dois quilômetros da minha casa. Eu ia caminhando e às vezes alguma companheira me levava a cavalo.
P/1 - E como era a escola?
R – Não era uma escola muito confortável, vamos dizer assim, se comparada com as de agora, porque era um prédio pequeno. Não eram muitos alunos, porque era uma comunidade que tinha se formado fazia pouco tempo. Quando eu começo a ir, tinha três classes na escola.
P/1 - Você cresceu nesse lugar mesmo?
R– Isso, cresci nesse lugar mesmo.
P/1 - Como foi a sua juventude?
R – Antes eu te conto um pouco da escola. Eu gostava muito, eu gostava muito de história, não tanto de matemática como de história, toda a história daquela época. Tínhamos uma matéria, como se diz agora, que era história e era esse momento o que eu mais gostava da escola.
P/1 - O que era?
R – A história, a história argentina dos próceres, todas essas. Tudo o que se pode ensinar da história.
P/1 - O que você pensava quando estudava?
R – É porque eu gostava de conhecer sobre os próceres argentinos que eram muitos, na sua luta pela liberdade dos nossos estados, eu gostava muito disso. E eu lembro que sobre essas coisas nos ensinavam. Para mim, escrevia meu ditado e era como se já ficasse gravado. Quando vinha, só fazia uma revisão e era como se eu guardasse, tudo ficava na minha mente.
P/1 - E tinha livros?
R – Eu lembro que tinha um livro velhinho, deteriorado. Para mim era muito difícil aprender as primeiras letras. Primeiro: porque meu pai não podia ajudar, ele sabia muito pouco. Minha mãe, então, não sabia nada. Aí, tinha que recorrer a uma vizinha para que ela me ajudasse a conhecer um pouquinho as letras. E era muito difícil para mim, porque ela era uma boa pessoa, mas talvez tinha a sua forma de ser, que ela era muito apressada, apressada. Na hora que está trabalhando na cozinha para preparar a comida, me dizia: “Senta do meu lado e quero que preste muita atenção porque não gosto de repetir as coisas”. Talvez, por causa do medo que eu tinha de perder alguma coisa, tinha que ficar muito atenta porque ela me dizia que ela não gostava de repetir.
P/1 - E o que ela dizia?
R – Bom, ela me ensinava as letras, as vogais. Isso foi um pouco difícil para mim até que consegui aprender as letras.
P/1 - Até quando você ficou na escola?
R – Eu gostava tanto da escola e, quando tinha nove anos, minha mãe me disse que não dava mais para eu continuar na escola. Me disse que na casa onde minha irmã trabalhava precisam de uma menina para babá, para cuidar de um menino. Porque a minha irmã já trabalhava na cidade. Ela devia ter uns quinze anos. Então, abandonei a escola e fui, aos nove anos, cuidar de uma criança. E, depois de estar mais ou menos um ano no trabalho, voltei para a minha comunidade e fiquei um tempo. Digo para a minha mãe que eu queria continuar a escola e outra vez entrei na escola. Depois de perder um ano, mesmo assim podia acompanhar bem, me adaptava bem às aulas. Lembro que uma vez me deram um prêmio, como um presente de melhor aluna, pelo melhor comportamento, por coisas assim. E depois minha mãe me dizia: “Você já está grande, já não dá mais para ir à escola”. E eu tinha doze anos. E, então, outra vez me mandou trabalhar e por isso não, não pude continuar a escola. E agora penso, e digo hoje, que se eu tivesse tido a oportunidade de estudar, de terminar a escola primária e continuar meus outros estudos, eu teria estudado direito. Eu gosto de defender os outros e lutar pelos outros. Eu teria sido uma advogada, se tivesse podido continuar... Mas não, não pude e assim como eu, talvez muitas pessoas. Vejo que tanto mulheres como homens, na região onde moro, ficaram assim frustrados na época, porque não tiveram a oportunidade, mas tinham muita competência. Eu também gostava de poesia.
P/1 - É?
R – Eu adorava dizer poesia.
P/1 - Onde você aprendeu?
R – Aprendia de acordo com o acontecimento, o dia dos próceres, o juramento da bandeira, do libertador do nosso país.
P/1 - E você recitava?
R – Isso. E não é fácil ficar na frente recitando poesia. Às vezes você fica com vergonha.
P/1 - Mas quando você recitava?
R – Nas festas pátrias.
P/1 - Você ficava na frente?
R – Ficava, ficava.
P/1 - E recitava?
R – Isso, recitava, recitava.
P/1 - Você lembra de alguma?
R – Não neste momento, não me lembro das poesias, mas talvez... Como eu falo agora para as minhas filhas, naquela época, dava só uma revisada algumas vezes e já decorava.
P/1 - Você lembra de alguma vez que você foi recitar?
R – Lembro de ter feito poesias para o dia onze de setembro, dia da professora, dia do professor no nosso país. Lembro de ter dito uma vez uma poesia para o professor.
P/1 - E, depois da escola, como você continua?
R – Continuo trabalhando, fazendo serviço doméstico. Era mais velha, quinze anos, depois fui a uma cidade maior, a Buenos Aires. Também trabalhei no serviço doméstico.
P/1 - E você morava no trabalho?
R – No trabalho.
P/1 - Como foi chegar em Buenos Aires?
R – Foi um grande momento. É uma cidade muito bonita, mas eu sinto muita saudade da vida do campo. Não me adapto à cidade. Sei que é confortável, tudo lindo, as comodidades que te oferece, mas eu não gosto, me sinto melhor morando no campo, na zona rural.
P/1 - Por que?
O que tem no campo?
R – É mais livre, tem mais liberdade. Eu não tenho medo das coisas. Andar de noite aqui no campo, não tenho medo. Mas andar na cidade grande, por exemplo, em Buenos Aires, tenho medo. Agora justamente é difícil por causa da insegurança que tem por causa das pessoas, por causa dos jovens que hoje estão nas drogas, cada dia mais. Capaz que te peçam uma miséria de dinheiro e você não tem nesse momento e te matam. Deste tipo de coisas, tenho medo. Mas, aqui no campo, ando super bem de dia, de noite e não tem risco.
P/1 - E quantos anos você morou em Buenos Aires?
R – Bom, fiquei mais ou menos uns três anos.
P/1 - Já mocinha...
R – Fui com quinze anos, devo ter voltado com dezoito anos.
P/1 - E qual era a sua diversão quando jovem?
R – Eu sempre gostei, desde muito mocinha, de dançar.
P/1 - Dançar o quê?
R – De tudo, tudo.
P/1 - Quais eram os momentos de dançar?
R – Nos fins de semana porque durante a semana trabalhava. Os domingos eram os dias que eu tinha tempo para poder sair.
P/1 - E onde você ia dançar?
R – Ia para algum lugar assim, alguma discoteca em Buenos Aires. Então, nos juntávamos com jovens da minha província.
P/1 - Que tipo de música?
R – Bom, na província de Buenos Aires, escutam os ritmos das províncias, cúmbia. Nós temos um ritmo que é da nossa província, a guaracha. E outro ritmo de outra região é o chamamé
P/1 - E é dançado em casal?
R - Isso, isso, é dançado em casal.
P/1 - E logo depois dessa época em Buenos Aires, como você continua?
R – Depois, volto para a minha província, e começo a trabalhar na colheita de algodão para ter alguma renda.
P/1 - Como é a colheita de algodão?
R – Te pagam de acordo com os quilos que você colher.
P/1 - É manual?
R – Manual, manual, isso, isso. Nisso, trabalhávamos com a minha mãe e, desta maneira, tínhamos um dinheiro.
P/1 - O dia inteiro colhendo?
R – Saía muito cedo e ia até o meio da tarde.
P/1 - E qual é a roupa de trabalho da mulher?
R – A minha mãe não queria vestir só calça. Ela colocava um vestido e debaixo punha uma calça porque ela dizia que a calça era para as mais mocinhas. Eu me lembro de vestir calça, camisa assim de manga comprida... Tem que ser porque, se não, com o algodão, quando você põe a mão no meio das plantas, as folhas, pode ter algum ramo meio seco e te machucar o braço.
P/1 - Com chapéu?
R – Com chapéu, cobrindo a cabeça, com algum pano sempre no rosto, porque sempre o sol é muito forte.
P/1 - E você mora muitos anos mais no campo?
R – Moro dez, oito anos, depois, tenho minha primeira filha.
P/1 - Quando?
R – Devia ser mês de outubro do ano de 73.
P/1 - E como foi o nascimento da sua filha?
R – Me lembro que tinha ido para a cidade capital da minha província, para um hospital regional, porque sempre censuravam as mulheres jovens que engravidavam pela primeira vez sem estar casadas ainda.
P/1 - Como se chama a sua filha?
R – Cláudia.
P/1 - Você lembra do dia que ela nasceu e como foi?
R – Lembro, estava sozinha. O pai dela não tinha me acompanhado porque não estávamos juntos. Estava com a minha mãe e com a minha tia Cláudia. E para mim foi uma alegria apesar de estar sozinha. E assim como eu, que estava sozinha, também havia outras mulheres. Bom, fazíamos companhia uma para as outras. Me lembro que, com ela assim pequenininha, minha bebezinha, viajei da capital até a minha casa, a casa da minha mãe.
P/1 - No campo?
R – Isso, e vi o que a minha mãe viveu quando eu nasci. Tinha algumas famílias que ficavam felizes pelo nascimento da minha filha e algumas que não ficavam muito felizes porque não era um menino, mas uma menina.
P/1 - Mas você ficou feliz?
R – Eu fiquei, porque eu era a mãe. Eu sempre digo que para uma mulher, quando é mãe, ser menino ou ser menina, é a mesma coisa porque é seu filho.
P/1 - E sua rotina muda muito com o nascimento da Cláudia?
R – Muda, mas mesmo assim eu continuo trabalhando, com os trabalhos feitos no campo, as colheitas.
P/1 - Como você fazia com uma criança pequena? Você a levava?
R – Minha mãe cuidava dela e eu podia trabalhar. Não dava mais para trabalhar as duas porque ela tinha que ficar com a minha filha.
P/1 - Depois da Cláudia?
R – Depois de Cláudia nasceu um filho homem. Lembro que eu tive ele na minha casa porque não deu tempo para eu chegar no hospital mais próximo.
P/1 - Na casa da sua mãe? Com a sua mãe?
R – Isso, com a minha mãe. E me ajudou uma tia que era prima da minha avó que trabalhava ajudando em partos. Lembro que eu teria tido ele sozinha. Minha mãe tinha saído para trabalhar e eu tinha avisado ela que não me sentia bem e que eu precisava ficar sozinha. Quando queria ter os partos dos meus filhos, era como se eu precisasse ficar sozinha, me sentia melhor. E minha mãe chegou quando eu já tinha tido meu filho. Então, chamamos a minha tia para avisar que tinha tido um menino.
P/1 - Como se chama?
R – Omar. E minha mãe ficou muito feliz e saiu correndo para avisar as vizinhas que eu tinha tido um bebê e que era um menino. E meus vizinhos também ficaram muito contentes.
P/1 - E por que essa alegria é maior quando são meninos?
R – Não sei. É como uma cultura, sempre ficam felizes. E nós mesmas as mulheres... eu vejo que tem avós e mães também que quando são meninos ficam felizes, parece que quando são meninas não ficam felizes.
P/1 - Quem mora na casa quando nasce o Omar? Estão você e a sua mãe?
R – Eu me casei no quinto filho.
P/1 - Até então, você continua morando com a sua mãe e seus irmãos também?
R – Não, não. Meus irmãos, já adultos, foram trabalhar em Buenos Aires.
P/1 - Então, estão na sua casa sua mãe e você?
R – Isso.
P/1 - E quem sustenta a casa?
R - Meu pai. Meu pai trabalhava e minha mãe também. E eu também saía para trabalhar. Quando ela ficava, eu ia trabalhar. Esses trabalhos do campo, nós dizemos trabalhar com a enxada, cortando tudo que é planta, junto com o algodão, esses trabalhos.
P/1 - E vocês cultivavam a sua terra também?
R – Nós não tínhamos nosso pedacinho de terra para trabalhar, sempre fazíamos para outras pessoas.
P/1 - Quando nasce seu terceiro filho?
R – O terceiro, bom, era uma menina também.
P/1 - Como se chama?
R – Ela se chamava Adriana, é uma das minhas filhas falecidas, a Adriana. Já tinha catorze anos, estava estudando o segundo grau, estava meio alojada num colégio religioso. A cada quinze dias voltava para casa. Num fim de semana longo, foi onde aconteceu o acidente, um caminhão atropelou ela quando ia atravessar uma estrada. Catorze anos... O nascimento dela lembro que me acompanhou minha tia, mas quando eu já tinha tido ela. Veio somente para me ajudar a cortar o umbigo.
P/1 - Como era cortado?
R – Com alguma tesourinha que ela tinha sempre reservada somente para o uso de cortar umbigos.
P/1 - Já nascia e você já ficava com ela?
R – Isso, isso.
P/1 - E também tomava banho, a menina?
R – Isso, isso, tomava banho, sempre se dava banho em todos.
P/1 - Você também amamentou a sua filha?
R – Amamentei, amamentei todos os meus filhos.
P/1 - Até que idade?
R – Até os dois anos. A cada dois anos, apesar de estar grávida, dava de mamar do mesmo jeito. E eu te digo: uns meses, três meses antes de meu próximo filho, parava de amamentar.
P/1 - E vem a notícia do quarto?
R – Isso, o quarto filho.
P/1 - Quem é?
R – Meu quarto filho se chama Pablo, que também morreu, faz dois anos.
P/1 - Na estrada?
R – Hum.
P/1 - E como foi ficando essa casa com tantas crianças?
R – É, uma casa tão pequenininha.
P/1 - Eles estudavam, eles iam à escola?
R – À escola primária, sim.
Menos a última. A última que tive. Seriam oito filhos, mas ela teve uma doença no sangue, teve leucemia. Com três anos e meio, assim, de repente, ficou doente. Uma menina que, desde que nasceu nunca tinha dado sinais assim de estar doente, adoeceu um dia, assim, de repente, e ficou uns dois, três dias, assim, num estado de coma e faleceu.
P/1 - Pequenininha?
R – Isso, três anos e meio. Cláudia, minha primeira filha, depois vinha o Omar, o terceiro foi a Adriana, que faleceu, o quarto foi o Pablo, que faleceu, e a quinta filha, eu também tive em casa. Era um dia chuvoso, tinha chovido muito e a minha mãe tinha saído para trabalhar e eu estava sozinha e então tenho minha criança e uma coisa me chamou a atenção: que quando nasceu, senti que não tinha chorado e então me assustei porque não sabia o que tinha acontecido. Até pensei que podia ter nascido morta e depois vou tocar a parte da cabeça e o susto foi grande, porque quando toquei a cabecinha dela, era algo estranho. Tinha entrado uma vizinha para me perguntar como eu estava e eu lhe digo: “Aqui estou, já tive meu bebê”. E foram procurar uma mulher vizinha para me ajudar, para cortar o umbigo. E quando ela chega, eu lhe digo: “Você não sabe, não sei porque será, mas meu bebê não chora” e ela vem assim assustada, rapidinho, e olha ela. Bom, eu não queria olhar, eu tinha apalpado, bom, com as minhas mãos e, quando olha ela, me diz: “Sua filha nasceu num manto”. É algo que nós temos como um pano que cobre a nossa cabeça e me dizia que não eram todos os filhos que nasciam com isso, que são alguns dos filhos e que tinha que se conservar isso. Depois, tirou da cabeça dela. E quando tira isso, ela começou a chorar. E, depois que lavou com sabão, colocou estendido isso para secar. E, depois, a mesma mulher que me ajudou, pegou, pôs uma moeda dentro dele e colocou numa sacolinha e me disse que sempre conservasse ele guardado e que depois quando minha filha ficasse adulta que entregasse para ela. Este manto ela tem que carregar, que traz sorte. Foi como uma crença.
P/1 - Como se fosse uma membrana?
R – Isso, uma membrana. Na verdade, fiquei muito assustada. E depois de acontecer todas essas coisas, de viver tudo isso, me dizia, tanto a minha mãe, como as vizinhas, que não posso ficar em casa para ter os meus filhos, que tenho que ir para um hospital, que encontrasse um jeito de ir. Que se não tenho um lugar, nem uma família para ficar na cidade, que eu vá para o próprio hospital e que diga que não tenho um lugar para ficar e que me dêem a internação com antecipação. E, bom, e depois com os três últimos filhos, foi assim, nasceram no hospital.
P/1 - E você continua trabalhando durante todo esse tempo também?
R – Sim, trabalhando. Com trabalhos pesados. Hoje penso nestas jovens que às vezes têm umas gravidezes tão complicadas e seus filhos muito doentes. Eu, ainda bem, apesar de ser pobre, viver de um trabalho pesado, partos em casa, tudo isso, nunca tive um problema.
P/1 - Quando você estava grávida continuava trabalhando até o final?
R – Continuava trabalhando.
P/1 - Com a barriga grande?
R – Isso, isso.
P/1 - No campo?
R – Minha mãe me dizia: “O que você tem que fazer sempre é
caminhar, caminhar e fazer o trabalho de pilão, colocando o milho no pilão”. Às vezes, nós usamos o pilão para moer uma carne. Bom, para moer, isto me dizia, você tem que moer, moer e assim sua barriga vai meio se moldando, me dizia. E, meus filhos, eu tinha assim em casa, sem fazer drama, e nunca tiveram nenhum problema de saúde. Minha quinta filha, quando ela tem quinze anos, também quase teve uma morte acidental. Quando ela descia de um ônibus, quando passava detrás do ônibus, não olhou e do lado contrário vinha um veículo e pegou ela e jogou ela pela estrada abaixo. Também teve uma pequena fissura de crânio que por milagre não morreu também. Hoje tem vinte e quatro anos e ainda está viva, mas a vida dos meus filhos tem sido muito acidentada, ela se salvou por milagre.
P/1 - E as mulheres, suas filhas, vivem uma realidade diferente da sua e da da sua mãe?
R – Sim, uma realidade diferente.
P/1 - Como começa o trabalho com outras mulheres, Elena?
R – Depois de viver tudo isso, com dois filhos falecidos, eu vivia muito triste, com a autoestima no chão. E um bom dia escutava através dos meios de comunicação que iam vir para o nosso departamento umas mulheres da cidade para orientar grupos de mulheres.
P/1 - Pelo rádio?
R – Pelo rádio. Escutava que iam para o nosso departamento. Isso foi em 96, 95. Estas mulheres estavam trabalhando desde 90, mulheres da zona urbana trabalhando no nosso departamento, promovendo através de uma ONG, que se chama Prodemur, Promoção de Mulheres Rurais. Foi assim que no ano de 95, em maio, num 23 de maio, que foram convidadas pela primeira vez a vir para a nossa comunidade. Nos reunimos num Centro de Saúde. Quando convidamos elas, dizem que tem que ser um lugar público, pode ser na escola, num galpão ou debaixo de uma árvore. Tínhamos um centro que estava fechado porque não tínhamos uma enfermeira. E então, quando nos emprestavam as chaves para abrir a porta, nos reuníamos dentro do centro. Quando não, nos reuníamos fora, debaixo de uma árvore.
P/1 - Quantas mulheres participaram dessa primeira reunião?
R – Dessa primeira vez, aproximadamente doze mulheres.
P/1 - E o que você lembra dessa reunião?
R – Para mim, foi muito lindo. Era uma forma de poder ter um lugar nosso, das mulheres. E assim, aos poucos, fomos conversando, porque sempre quando alguém se reúne, é porque sempre tem uma necessidade. E a nossa necessidade, entre tantas que temos, é o tema da saúde. E elas eram pessoas que tinham conhecimentos no tema da saúde. E, aos poucos, fomos conversando com elas, contando nossa problemática e assim, nos conhecendo, fomos nos capacitando no tema saúde. E podíamos sair para visitar as famílias e transmitir o que tínhamos aprendido.
P/1 - Que tipo de coisas?
R – Por exemplo, um tema que interessa muito às mulheres é o tema saúde sexual e reprodutiva e do uso de anticoncepcionais. Isto interessa muito. É um tema que não é fácil de falar para uma mulher normal, mas que é uma necessidade. Por que? Porque as mulheres estão muito cansadas de ter tantos filhos, e tão seguidos. Não tinha jeito, o que sempre tínhamos falado era que não tinham recursos para comprar um anticoncepcional. E, ainda bem, com o tempo, o grupo me delega para ir à cidade e discutir toda esta problemática que vive. E, depois, foi aprovada a lei da saúde sexual e reprodutiva em nível nacional onde o governo nacional provém as províncias de anticoncepcionais.
P/1 - E se reuniam com muita freqüência nestes primeiros anos?
R – Isso, nos reuníamos a cada quinze dias.
P/1 - E as famílias, os homens, o que diziam sobre essas reuniões?
R – Isso também não foi fácil porque normalmente dizem que a mulher se reúne para falar coisas sem importância. Que coisas nós podíamos falar como mulheres? Lá, dizem que falávamos coisas sem valor, fofocas, que falávamos coisas que não vale a pena falar. E eu também lembro das próprias esposas de outros companheiros que também diziam: “Para que vocês vão lá em vez de ficar fazendo suas coisas?” E lembro que meu esposo me dizia: “Para que você quer ir, em vez de ficar fazendo suas coisas em casa, para se reunir e perder seu tempo? Fique lá, não volte aqui, fique lá com as mulheres, façam um rancho por lá...”
P/1 - Mas você continuou?
R – Continuei.
P/1 - Por que?
R – Porque eu tinha a esperança que, com o tempo, ele ia saber me entender. Era o único problema. Às vezes, era como se ele ficasse bravo e tinha atitudes agressivas comigo. Quando voltava, às vezes, ele dizia coisas, mas eu me calava, me calava assim, ficava em silêncio. E eu fazia isso. Assim eu conseguia que não ficasse mais agressivo, me calava. E, aos poucos, fui aprendendo, e assim também as outras companheiras, depois de dizer as coisas. Porque sempre tinham me ensinado que meu esposo é meu esposo e que ele é tudo para decidir sobre mim e que não tenho porque dizer nada para ele. E, aos pouquinhos, fui aprendendo conhecimentos das coisas, me dando conta de que não era assim. E então, aos poucos, fui dizendo para ele as coisas com jeito, lhe dizia que não, que o certo é que eu também tenho o direito de poder me reunir, que eu também tenho essas necessidades de poder me reunir com as companheiras, contar as coisas que acontecem comigo, porque tem coisas que acontecem com a gente e que ninguém escuta a gente, ninguém. É como se ninguém se interessasse pelo o que o outro passa. E assim, aos poucos, fui convencendo ele. E os meus filhos também, eles também compreenderam. E depois, quando eles já estavam ficando adultos, eles também diziam para ele: “Minha mãe precisa que você dê essa liberdade para ela poder ir se reunir”. E, assim, não foi fácil, mas aos pouquinhos fui conseguindo. A própria família foi mudando através do diálogo, de poder nos dizer as coisas e isso foi mudando com o tempo e meus filhos também me ajudaram. Antes, todos esperavam que eu tivesse que vir correndo fazer as coisas, para servir as coisas para eles. E, depois, através do diálogo, fui mudando essa realidade e com o tempo consegui que eles também pudessem me ajudar, e meu esposo também, que pudesse ajudar a fazer as coisas.
P/1 - Porque você continuava trabalhando.
R – Claro, sim, sim.
P/1 - No campo também?
R – Isso, isso.
P/1 - Com essas atividades extras?
R – As reuniões, sim.
P/1 - É voluntário esse trabalho?
R – É. Mas me fazia feliz poder ir, é como se eu tivesse uma motivação de dizer, “bom, hoje vou trabalhar, vou fazer mais rápido as coisas”, fazia mais esforços para poder cumprir também com minhas obrigações, mas assim também conseguia tempo para poder ir.
P/1 - E o trabalho do grupo foi mudando?
R – Primeiro, nos capacitamos em saúde, depois fizemos outro projeto e saiu isso da saúde reprodutiva, que é muito importante para a mulher rural. Depois, também, trouxemos trabalhos em grupo, fazendo desenhos, transmitindo através de desenhos gráficos conhecimentos que íamos adquirindo como grupo, falando nesses diferentes assuntos, nos assuntos dos direitos da mulher rural. Isso foi algo muito importante para nós, porque chegou a mudar, a mudar a realidade que vivíamos.
P/1 - Por exemplo?
R – Poder conhecer nossos direitos e poder exercer a cidadania. A partir daí, vem isso de eu me sentir cidadã e de dizer, bom, como cidadã, tenho esses direitos.
P/1 - Algum tipo de conquista?
R – Conseguimos, por exemplo, poder superar o medo para poder falar, para conseguir coisas para melhorar a qualidade de vida. Pudemos comprar para nós, por exemplo, ferramentas de trabalho ou pela primeira vez trazer algo para nossa casa, pensar com nossas próprias idéias.
P/1 - Por exemplo?
R – Porque, como não lidamos com a parte econômica, sempre é como se os homens são os que têm que decidir o que querem comprar. Como nós não temos esses recursos, às vezes temos outra idéia, de querer outras coisas, e não podemos, porque nós não lidamos com a parte econômica. E então, vindo um projeto no nosso nome, aí nós decidíamos o que queremos comprar. Compramos animais como vacas, compramos chapas para recolher a água da chuva. Esse é um dos nossos grandes problemas.
P/1 - Chapas?
R – Chapas para fazer um teto e fazer umas canaletas para juntar água e melhorar um pouquinho a qualidade da água. Porque, quando chove, com o teto de chapa, recolhemos em nossos tanques, nossas cisternas, a água para armazenar. Esta água é um pouquinho mais doce porque a que é recolhida do poço é muito salgada, de péssima qualidade.
P/1 - E sempre com um apoio dessa ONG?
R – Dessa ONG e dessas coisas onde adquirimos ferramentas de trabalho, tudo isso foi de um programa de nível nacional, apoiado pelo governo nacional.
P/1 - E quando surge o contato com a Rede LAC?
R – A partir daí, do ano de 96, talvez por me ver tão pra baixo, tão deprimida por tudo o que estava vivendo e de participar como iniciante no grupo, aparece assim, de repente, um convite para vir para o Brasil. Segundo a história, a Rede começou no ano de 90 pela primeira vez na Argentina e depois daí foi feito um processo até o ano de 96. Então, para nossa organização, as técnicas nos dizem: “Tem um grupo de mulheres argentinas que vão ir para o Brasil, para Fortaleza, mas talvez vocês não sejam consideradas pelo fato de serem muito novas. Dizem que estão trabalhando para conseguir recursos financeiros para viajar e talvez em outra oportunidade vocês possam ir”. E, bom, assim, um dia, de repente, as coordenadoras de nível nacional de Buenos Aires mandam um relatório para as nossas técnicas dizendo que há uma possibilidade para viajar outra mulher mais e no nosso departamento havia um grupo que já tinha vários anos de trajetória. E, então, convidam uma mulher que eles acreditam que podia vir para este encontro, porque era a vez desse grupo porque tinha muitos anos mais que o nosso, mas a companheira que foi convidada diz que não pode ir, porque não era fácil uma mulher sair assim, de um momento para o outro. Tinha que mandar o nome para fazer os trâmites para a viagem, para as passagens e tudo isso. A companheira tinha um filho que tinha uma deficiência física e então, para ela programar a viagem em dois dias, não era fácil. Uma mulher que nunca tinha se separado de seu filho. Então, disse que não podia ir. A técnica diz: “Vamos convidar este grupo que é novo e que o grupo decida quem pode ser essa pessoa”. Justo eu não estava nesse dia na reunião porque tinha viajado para ver uma filha que estava estudando em outro lugar meio longe e, quando estou lá, me telefonam. E as companheiras decidem ser María Elena, dizem: “Nós decidimos por ela”.
P/1 - E como você recebe a notícia?
R – Primeiro, elas vêm na minha casa e conversam com meu esposo. Ele estava. Dizem: “Olha, Virgilio, tem uma possibilidade da María Elena viajar para o Brasil. Você aceita?” E, bom, diz ele: “Se ela quer ir, que vá, não tem problema”. Depois, na nossa zona, não tinha telefone, elas voltam para a cidade e pedem o telefone da minha casa, dessa filha que estava em outro lugar. Estava numa casa de família e pedem esse telefone, me telefonam e me dizem: “María Elena, tem uma possibilidade de você viajar para o Brasil”. “Para o Brasil?”, lhes disse. A verdade é que meio que me assustei, não sei o que sentia, eu... para o Brasil? “Agora te dizemos que fomos na sua casa, informamos o seu esposo e ele diz que sim”. Porque eu não podia dizer nesse momento que sim, porque eu não tinha conversado com ele. E como eu era tão nova no grupo e não tinha aprendido ainda a tomar decisões por mim, não teria sido fácil, se eles não tivessem vindo conversar primeiro com ele. E, bom, lhes digo: “Se ele disse para vocês que sim, eu aceito”. Bom, já me pedem os dados e me dizem: “Passe os dados que necessitamos”, e eu passei pelo telefone. Volto no outro dia para a minha casa e ele me diz: “Estavam te procurando”, me diz, “para você viajar para o Brasil”. “E o que você disse?”, lhe digo para ver o que dizia. “Se você quiser ir, sem nenhum problema”. Mas eu já sabia porque tinham me comentado pelo telefone que ele tinha aceitado. E depois tinha uma reunião prévia em Buenos Aires antes de vir para cá, para o Brasil.
P/1 - Como foi esse processo de preparação para ir?
R – Com toda a vontade que eu tinha, sabia que detrás de mim tinha um grupo a quem devo tudo, que tinham me delegado. Digo, aqui vou carregar as pilhas, vou aprender tudo detalhadamente o que este grupo está preparando e vou ir. E assim foi.
P/1 - Quantas mulheres eram nesse momento?
R – Doze mulheres, uma delegação de doze mulheres.
P/1 - Quantas no seu grupo?
R – Naquele momento, éramos doze também. E depois, com o tempo, fomos aumentando, aumentando, e hoje somos quarenta mulheres.
P/1 - E você vai para Buenos Aires para essa reunião?
R – Vou para essa reunião preparatória. Foi muito difícil para mim porque elas entendiam mais sobre o assunto, estavam mais preparadas. E, para mim, assim, de repente, vir, entrar, não foi fácil, mas com a boa vontade que eu estava, consegui entender as coisas. Às vezes, tinha que ficar muito atenta a tudo e ainda bem que tive um bom grupo. Porque o afeto que me ofereceram as mulheres é o que me faz sentir bem, me faz muito bem, e consegui me adaptar muito rápido com elas.
P/1 - Viaja então para o Brasil?
R – Viajo para o Brasil.
P/1 - Como foi a primeira viagem?
R – Para mim, foi muito impactante. Escutava em silêncio todos, todos os depoimentos de vida que contavam as mulheres com suas lutas. E, com do que eu vinha com os meus dois filhos falecidos, de vir disso e escutar tanta luta, tanto sofrimento... isso, então, era como se me fortalecesse, de pensar que eu não era a única pessoa que sofria nesta vida. E um dos que lembro, que guardo até agora, é o de uma mulher, já senhora, que me comentava a sua história. Um dia, nos juntamos, assim, de repente, como essas coisas da vida. Me sentei assim do lado dela sem saber nada e estávamos assim conversando, conversando, e me diz: “Você sabe, eu tinha onze filhos e dos onze só ficou um, porque o resto desapareceu. Eu tinha um esposo”, diz, “que aqui no Brasil a polícia perseguia e mataram, meu esposo e um dos meus filhos. O mais velho também morreu junto com meu esposo e, depois disso, escapamos todos, um para um lado, um para outro, e até eu também escapei porque me perseguiam. Então, no final, fiquei sem meus filhos”. Diz que não sabia o que tinham feito, onde estavam: ”todos estávamos escondidos”, diz. “Dez anos”, diz: “Dez anos! Fiquei escondida”. Ela teve que trabalhar na prostituição porque não tinha como comer e era jovem, diz: “Então, trabalhei como prostituta para poder fazer alguma coisa, para poder ter vida, para poder ter algum dinheiro”, diz: “Para poder comer e para depois algum dia poder procurar meus filhos. E depois, quando pude mais ou menos sair, quando mudou o processo do governo e tudo isso, pude ir aos meios de comunicação para dizer que procurava meus filhos. Desses onze, sobraram dez, porque um morreu junto com o pai, o mais velho”. Então, sobraram dez, desaparecidos, e recorrendo a esses meios de comunicação, conseguiu encontrar um. Tinha ficado um e do resto não ficou nenhum. A verdade é que isso me impactou tanto, tanto o que ela me contou. Como não ter vontade de viver? E eu digo também vou lutar para poder continuar e, bom, da mesma forma que desapareceram dois dos meus filhos, digo, a mim ainda me resta algo, então tenho que lutar por eles. Bom, assim pude superar, superar e participar das coisas tristes, não tanto como essas, mas tinha outras mais, e escutava isso, e isso me fortalecia, me fortalecia. E foi aí que vi as mulheres, num certo momento, dançando numa recreação que tínhamos, e me ver no meio dessas mulheres me fazia tanto bem, porque a verdade é que estava tão cansada de viver assim, em algo tão vazio, e de verdade que isso me fez muito bem. Poder compartilhar com elas e escutar que ali se assumia um compromisso de lutar para poder sair da situação na qual nós, as mulheres rurais, vivemos. Digo sim, aqui tem algo para ser feito. Alguém precisa de mim e essas são minhas companheiras, minhas mulheres, eu assumo a tarefa de que vou lutar por elas. Daí por diante, tive a possibilidade de participar na comunidade, na província e, além disso, quando são realizados esses foros de estudantes universitários, me convidam para participar, para poder dizer as coisas que vivem as mulheres rurais.
P/1 - E, depois que você volta de viagem, muda algo no seu trabalho?
R – Muda, muda.
P/1 - O que muda?
R – Por exemplo, essa vontade de fazer alguma coisa, de trabalhar, coisas para melhorar a minha qualidade de vida, poder trabalhar a terra e poder ter minha própria hortinha, e de conversar com outras companheiras para elas também poderem fazer e, assim, continuar a atividade. Antes, na situação na que eu estava, não tinha vontade de trabalhar, nada dessas coisas.
P/1 - Entre o primeiro e o segundo ENLAC, Elena, o que acontece de importante? Você continua se comunicando com a Rede? Como é isso?
R – Sim, sim, continuou a comunicação. Depois, teve o convite para participar em 2003 da Marcha das Margaridas. Isso foi algo muito bom para mim.
P/1 - Onde foi?
R – Em Brasília. Ver tantas mulheres organizadas, com essa fortaleza de dizer as coisas que vivem, que elas querem que mudem, tudo isso e, bom, isso de se colocar para pedir mudanças, de ter propostas concretas do que podemos fazer como mulheres.
P/1 - Esse convite de participar veio pela Rede LAC?
R – Isso, pela Rede LAC
P/1 - Como vocês se comunicam?
R – Nós temos um e-mail para receber o relatório. É numa cidade onde mora uma técnica. Então, ela recebe a informação e nos faz chegar aqui na zona onde vivemos.
P/1 - Ela imprime a mensagem? Como faz?
R – Isso, sim, sim. E depois me fala por telefone e me informa. Nesta zona, nós não contamos com internet. Só com um pouco de rádio, e também de telefone celular.
P/1 - E essa comunicação é enviada por quem?
R – Por uma técnica.
P/1 - Quem escreve?
R – Do Brasil, mandam a mensagem, escrevem para a técnica, e ela é quem me informa.
P/1 - E Marcha das Margaridas também foi importante?
R – Muito importante para mim. Algo muito difícil de poder dizer com palavras para descrever.
P/1 - Como foi?
R – Era algo impactante. Tinha muitas mulheres enfileiradas, caminhando. Para mim, era uma alegria porque vinha da minha província, da minha zona no mês de agosto, na época da seca, onde há muita terra, muito pó, vir e estar em Brasília. Quando vínhamos caminhando, desatou uma chuva e, para mim, sentir essa sensação da chuva e caminhando debaixo de chuva foi algo impactante. Ver tantos rostos reclamando por algo tão justo que é o que as mulheres merecem. Nunca imaginei ver tantos rostos de mulheres lutando.
P/1 - E, depois da Marcha das Margaridas, o que acontece na rede?
R – Depois, continuamos trabalhando, sempre nos comunicando com todas estas coisas que seguem. Aqui, na secretaria, sempre continuamos procurando projetos para o bem de todas nós e, qualquer novidade que tenha, sempre estamos nos informando.
P/1 - Que tipo de novidade?
R – Por exemplo, que este projeto vinha sendo apresentado para poder escrever nossa história de vida, todas estas coisas interessantes. Coisas muito concretas e importantes para nós.
P/1 - Você participa da preparação do segundo ENLAC?
R – Não. Nossa organização em nível nacional participa em diferentes regiões. E, na região em que estamos, nos reunimos duas vezes ao ano. Em 96, era Cristina Juárez, a companheira que hoje está comigo aqui, e uma técnica, María Elisa. Então, elas desde 96 têm os contatos com a Rede LAC. Depois, a preparação para o segundo também esteve a cargo dela e este ano seria no mês de março. A secretaria manda um relatório para ver a possibilidade de continuar, se continuam as mesmas pessoas ou se mudam. Isso está sob nossa decisão. E aí foi onde se decidiu poder mudar, que fossem duas campesinas ou uma técnica e uma campesina, isso estava a nosso critério. E, bom, discutimos e decidimos que fosse uma técnica e uma campesina e fizemos a eleição por voto secreto. E, então, as companheiras, todas, votam e ficamos agora como novas representantes. Em primeiro lugar, ficou a Cristina. A técnica que acompanhava a Cristina ficou em primeiro lugar. Mas ela dizia que, por motivos muito particulares, preferia não ir e que podia continuar a que ficou em segundo lugar.
P/1 - Isso depois do 2º ENLAC?
R – Depois do segundo.
P/1 - Você foi ao México?
R – Isso, isso; e fiquei em segundo.
P/1 - Ah! Isso que você está me contando é antes ou depois?
R – Depois, depois.
P/1 - E do 2º ENLAC, o que você me conta?
R – Também foi importante, porque também tivemos a oportunidade de poder nos reunir, debater a problemática que hoje nos afeta dia a dia.
P/1 - Temas diferentes?
R – Temas diferentes.
P/1 - Mas não muito?
R – Não muita diferença. Um dos temas que foi debatido foi o da água e da terra. Foi muito discutido o que fazer para melhorar esta situação. E outra coisa que também me impactou é do que é hoje na América Latina o tema da violência que vivem as mulheres e, mais que tudo, as crianças. São seqüestradas para serem submetidas à prostituição. E, quando se falava disso, vinha na minha cabeça coisas que vivemos no nosso país. E foi aí que meio que encontrei a resposta de porque no nosso país tem crianças que desapareceram, nunca se soube mais delas, do que aconteceu com as suas vidas. Tem outros países que também viveram essa mesma situação e, com o tempo, encontraram suas crianças no trabalho da prostituição. É uma forma de trabalho que eu respeito quando uma mulher está numa situação, numa idade para poder trabalhar nisso. E se fizer isso, respeitarei. Mas o que me doía muito era que eram crianças que foram contra a sua vontade, foram seqüestradas.
P/1 - E esta foi uma percepção em meio à discussão?
R – Sim, disso eu me lembrava: quantas crianças desapareceram na Argentina e nunca mais se soube delas.
P/1 - Quando você volta do 2º ENLAC, o que mais você traz?
R – Na bagagem, na mala...
P/1 - Sim... Outras idéias, aprendizagens?
R – Outra coisa que me impactou foi isso da água, que dia a dia vamos vivendo, a falta de água. O que na verdade me impactou é que se dizia lá que a segunda guerra vai ser pela água. E isso realmente me preocupa porque na Argentina temos boas reservas de água. E sabe o que era o que me preocupava?
Era que o encontro foi no mês de setembro, nos primeiros dias de outubro terminou, e no mês de dezembro do ano de 2005, Bush estava visitando a Argentina e foi algo que se discutiu muito porque tinha uns que estavam de acordo, as próprias pessoas na Argentina, e outros que não estavam de acordo. E eu estava do lado dos que não concordavam. Para que ele ia para lá? Com tudo o que eu tinha escutado, que tinha discutido, com tudo o que tinha vivido as companheiras da Bolívia, com a água privatizada. Para mim, era que ia pelo interesse em nossas águas na Argentina.
P/1 - O que a Rede LAC pode fazer com relação a esse tema, quais foram as propostas?
R – Isso foi um dos temas que apareceram e foi o compromisso que assumimos como Rede LAC: poder tomar uma posição, poder lutar pelo tema da poluição da água. E, sobretudo, conscientizar as pessoas quanto ao uso da água, nos perguntarmos: o que eu faço pela água? Algo que nos propomos, que nos perguntamos e queremos perguntar ao demais também: o que estão fazendo?
P/1 - É uma história muito recente, o 2º ENLAC foi no ano passado...
R – Isso, isso.
P/1 - É algo importante na trajetória da rede?
R – Isso foi bom. Também vir aqui para São Paulo. Para mim, isto foi também como uma surpresa para mim: receber uma notícia de que se conseguiu um projeto para poder escrever nossas histórias e poder contar. Para mim, isso foi algo muito importante, porque eu jamais teria imaginado que, algum dia, poderia fazer o que hoje estou fazendo: poder contar, escrever minha história junto com outras companheiras. Não foi um trabalho fácil, porque tem certas coisas que você tem que levar em consideração, mas isso é muito importante para o crescimento da pessoa, para ir descobrindo você mesma, a capacidade que você tem. E, talvez, se você nunca entrar nisso, não vai poder descobrir.
P/1 - E olhando para o futuro, o que você sonha para a Rede, o que você sonha para o seu grupo?
R – (RISOS)
P/1 - O que você sonha para você?
R – Para meu grupo, sonho uma vida melhor, melhores condições de vida, melhorar a qualidade de vida porque a situação na que vivemos, quer dizer, as mulheres não merecem isso, não merecemos. Nós merecemos algo melhor, ainda que seja a última coisa de nossa vida. Poder transformar essa realidade, ter uma moradia melhor, ter trabalho para nossos filhos, poder transmitir a eles, ensinar a eles como nós trabalhávamos. Em alguns grupos, em comunidades, se perdeu essa cultura do trabalho, que nossos pais ensinaram para nós, isso de viver com humildade. Antes de tudo, isso é o que eu quero recuperar. Porque viver tantos anos com um mesmo governo, em Santiago del Estero, tivemos 50 anos com um mesmo governo, e foi o que nos levou a viver submetidas a este clientelismo político e a viver esperando que o Estado tenha que me dar a mercadoria pelo voto e assim não trabalhar. Isso é ruim e isso me deixa mal, me deixa triste e eu não quero que vivamos assim.
P/1 - E para a Rede?
R – Para a Rede, sonho que sigamos este tipo de projetos e poder transmitir aos demais. Tomara que o que hoje pudemos conseguir, de poder escrever, contar, possa chegar a outras mulheres e elas também possam se juntar a nós, porque estou convencida de que nos unindo e estando todas juntas vamos conseguir muitas coisas.
P/1 - E para você?
R – Para mim, talvez, sonho ter conseguido isso. Hoje me sinto feliz de saber que deixo algo mais, algo escrito, algo contado que no dia de amanhã, possam ver, escutar, ler minhas filhas, meus netos e que digam: “Este era o sonho da minha avó, da minha mãe” e que eles possam continuar.
P/1 - E que tal a entrevista?
R – – Muito boa, muito boa.
P/1 - Que tal poder contar um pouco da sua história?
R – Para mim, me faz bem. Sobretudo gosto quando outra pessoa pode me escutar, isso me faz muito bem. Sinto que muitas vezes nós, mulheres, temos algo muito escondidinho e poucas oportunidade de poder dizer o que sentimos.Recolher