Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Mestre Conga
Entrevistado por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 19 de setembro de 2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV823 _ rev.
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Vamos começar então, Mestre? Con...Continuar leitura
Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Mestre Conga
Entrevistado por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 19 de setembro de 2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV823
_ rev.
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Vamos começar então, Mestre? Conversar, não é? Qual é o seu nome completo, onde você nasceu e em que data?
R – Meu nome inteiro é José Luiz Lourenço, mais conhecido por Mestre Conga. Sou nascido em Ponte Nova, nascido em Oratórios... Dizem que hoje já está emancipado, mas até então era Distrito, Ponte Nova. Em 2 de fevereiro de 1927.
P/1 – O senhor nasceu como? Nasceu em casa? No hospital?
R – Eu não me lembro. Mas eu acho... Tudo indica que eu tenha nascido em casa, porque antigamente eram as parteiras que faziam os partos e a minha avó era parteira. E eu acredito que ela é quem tenha cortado o meu umbigo, não é? A mãe da minha mãe.
P/1 – Te falaram como foi esse parto?
R – Não, não. Não saberia e nem sei te responder, porque... Mas eu tenho a impressão de que foi parto normal, porque a minha irmã mais velha, eu e meu irmão mais novo, os umbigos foram cortados por minha avó, que até então a gente morava em Ponte Nova, em Oratórios. De maneira que todos nascemos em casa.
P/1 – Qual era o nome da sua mãe?
R – Minha mãe era Cacilda Lourenço.
P/1 – Cacilda Lourenço...
R – É...
P/1 – A família dela fazia o quê?
R – Eram todos lavradores. Eram lavradores de Oratórios. Era uma época em que os lavradores trabalhavam para os fazendeiros. Era o tal meeiro (risos), mas sempre a vantagem ficava para o fazendeiro, não é? (risos). Assim eu ouvia contar, porque eu não participei. Vim aqui para Belo Horizonte... Eu cheguei aqui em... Não sei se 1930 ou 1931, ou 1932, nessa parte... Logo, logo que terminou a revolução de 1930, meus pais se transferiram de Ponte Nova para Belo Horizonte.
P/1 – Seu pai, qual era o nome dele?
R – Luiz Balduíno Felipe.
P/1 – Como é que era a família dele? Meeiros também?
R – Era tudo meeiro, trabalhava para fazendeiro. Eu não entendo bem essa questão de meeiro, mas pelo que eu ouço falar, o pessoal aqui plantava roça com fazendeiro. Não sei se é metade ou 40%, eu não sei, eu sei que no fim era: “Agora não preciso mais dos seus serviços” (risos), não é? Porque usa colheita, colheita sempre para o lado do fazendeiro, não é?
P/1 – Mas o senhor se lembra quando era bem pequeno?
R – Não me lembro. Eu vim para aqui muito pequeno, muito novo. Não sei se foi... Como eu disse há pouco, com quatro ou cinco anos de idade, então eu não lembro.
P/1 – Para Belo Horizonte?
R – É.
P/1 – E o senhor tem uma irmã e um irmão?
R – Atualmente, eu só tenho uma irmã. Mas nós éramos uma família de dez irmãos, hoje só restam dois: eu e uma irmã. O mais velho e a caçula.
P/1 – Queria perguntar para o senhor como era a sua casa quando o senhor veio para Belo Horizonte, o senhor se lembra?
R – Ah, eu tenho uma vaga lembrança. Você me pergunta lá em Ponte Nova ou aqui em Belo Horizonte?
P/1 – Quando vocês chegaram em Belo Horizonte...
R – Quando nós chegamos aqui em Belo Horizonte, a gente desceu ali na Estação Central, na Praça da Estação, Praça Rui Barbosa, não é? E dali nós viemos morar na Vila Maria Brasilina. Hoje se falar Vila Maria Brasilina bem poucos sabem quem foi Maria Brasilina, qual é o bairro que era (risos). Hoje não chama Vila Maria Brasilina, hoje chama bairro Sagrada Família. E de maneira que eu vim para ali, me parece que em 1933; de 1933, dali, da Vila Maria Brasilina, nós mudamos para o bairro Cruzeiro. Meu pai foi trabalhar em uma chácara, em uma padaria que se chamava Padaria Brasil, a padaria de uns alemães. Mas com a declaração de guerra, esse pessoal foi muito perseguido e teve até que fechar a padaria, porque eles eram alemães... Naquela época, alemão, italiano e japonês sofriam (risos).
P/1 – Ah, é?
R – É, sofreram porque foram muito perseguidos, não é? Porque quando o governo brasileiro declarou guerra à Alemanha, os ‘pracinhas’ brasileiros - a Força Expedicionária Brasileira - foi lutar lá para o exército americano, não é? Combatendo os alemães, lá em...
P/1 – Na Itália.
R – Lá na Itália, não é? A gente só descobriu aqui... Porque, naquela época, era um regime de exceção e a gente nem ficou sabendo... A gente só ficou sabendo que a Força Expedicionária Brasileira entrou na guerra quando eles desembarcaram em Nápoles, que a gente viu no jornal: “Forças brasileiras desembarcam em Nápoles”. Quer dizer, os mais atrasados, por assim dizer, não diria analfabetos, mas naquela época era tudo mais ou menos em sigilo, porque foi um regime de exceção, não é?
P/1 – Você se lembra de como foi a viagem de Ponte Nova para Belo Horizonte?
R – Me lembro pouco, uma vaga lembrança. Porque primeiro veio meu pai, que veio trabalhar aqui em Belo Horizonte. Ele tinha um irmão - meu tio - que já morava em Belo Horizonte, então esse meu tio trouxe meu pai para cá e, posterior, veio a família toda.
P/1 – Vocês vieram de trem?
R – Foi de trem. O trem da Maria Fumaça. Ainda era o tempo... Porque hoje não tem mais a Maria Fumaça.
P/1 – Todos os seus irmãos juntos?
R – Primeiro veio o meu pai. Nós éramos três irmãos, aliás, quatro irmãos - duas meninas e dois meninos - que éramos eu e meu irmão, que já é falecido. Nós viemos para cá, o primeiro lugar em que moramos aqui foi onde eu te disse: Vila Maria Brasilina. A gente chegou aqui, foi até uma surpresa: meu pai não estava esperando a gente na estação, nós chegamos podia ser umas 22h, 22:30h. Era noite. Tivemos que passar a noite ali, encostados ao lado da estação. No outro dia, minha mãe foi atrás do meu pai e encontrou. E nos trouxe para Vila Maria Brasilina.
P/1 – Como é que é esse negócio que o senhor falou que vocês viviam em um estado de exceção e não sabiam?
R – A maioria sabia. Nós, que éramos crianças, não sabíamos nada sobre política, sobre governo. Mas eu falo do regime de exceção porque nós viemos para aqui em 1934, 1935... Ou melhor, não... Viemos aqui na faixa de 1933, por aí... 1933 ou 1934. Não. Entre 1932 e 1935. Eu tenho mais ou menos a vaga lembrança... A primeira escola em que eu fui matriculado foi lá na Escola Estadual Augusto de Lima, lá na Serra. Quando eu fui para lá, eu já estava com seis ou sete anos, acho que sete anos. Sete anos. E daí é que a gente ficou um tempo morando lá na chácara da Padaria Brasil e depois o meu pai mudou para a Vila Anchieta e lá nos ficamos um tempo até nos transferirmos para a Vila Concórdia.
P/1 – Seu pai trabalhava na chácara de várias culturas?
R – É, meu pai trabalhava na chácara da Padaria Brasil. Era uma padaria dos alemães, que era na Avenida Afonso Pena.
P/1 – Era uma chácara?
R – Era uma chácara da padaria, dos proprietários da padaria, que eram os alemães. Ali onde é o Shopping BH, na Afonso Pena, aquela descida ali, Carandaí... Aquele triângulo ali... Afonso Pena, Carandaí, Alagoas... Ali um pouco acima é o Shopping, não é? É Shopping Belo Horizonte ou Shopping BH? É um shopping que tem ali.
P/1 – O Central Shopping, não é?
R – É, acho que sim. Não sei, não guardo bem minha lembrança, não. Eu sei que é ali, entre o término da Avenida Carandaí, chegando na Afonso Pena, e ali na rua Alagoas. É aquele shopping que tem ali. Ali era a padaria, uma padaria muito famosa em BH, mas com o advento da guerra esses alemães sofreram. Não foram só os alemães... Alemães, italianos e japoneses, foi o pessoal que sofreu.
P/1 – Nessa época, Belo Horizonte quase só tinha chácara, então...
R – Não, o centro já tinha muita coisa. Mas Belo Horizonte, naquela época, era só dentro da Avenida do Contorno. Tanto que... Eles falam, não é? Eu não sei, estou vendendo pelo preço que comprei... Que quando traçaram BH, traçaram a cidade e a Avenida do Contorno contornando a cidade, mas não esperavam que Belo Horizonte fosse crescer o tanto que cresceu.
P/1 – Mas o senhor e a família do senhor moravam fora do Contorno?
R – Fora. Fora da Contorno era considerado periferia, só era considerado urbano o pessoal dentro do perímetro da Avenida do Contorno.
P/1 – Mas dentro do Contorno, o pessoal - como o senhor falou - tinha chácara dentro, ou o pessoal tinha o quê ali?
R – Não, não. A chácara era fora. Era ali no bairro Cruzeiro - hoje é bairro, mas até então era só Vila Cruzeiro. Tinha a rua Cruzeiro, a Vila Anchieta de um lado, e do outro lado era o Cruzeiro. Eu não sei se era Vila... Era Vila Cruzeiro. Hoje tem outra Vila Cruzeiro, mas não é a mesma, hoje é bairro Cruzeiro.
P/1 – E o senhor estudava na escola...
R – Até então não estudava, era garoto, estava nos meus cinco anos, por aí. Quatro para cinco anos. Até então eu não estudava. Mas foi depois, quando eu completei sete anos, é que eu fui matricular lá na Escola Estadual Augusto de Lima. Era uma escolinha pequena, hoje me parece que o grupo estadual mudou para a Avenida Contorno, mas até então era lá atrás da Paróquia Senhora Santana. Era uma escolinha nos fundos da Paróquia Senhora Santana. Hoje, essa escola estadual, colocaram na Avenida do Contorno, me parece. Eu passei uma vez de carro e vi lá: Escola Estadual Augusto de Lima.
P/1 – E o senhor gostava dela? Como é que foi?
R – Gostava, gostava. Gostava tanto da escola quanto, também, lá de onde a gente morava, na Vila Anchieta. Costume, não é? Até a gente mudar para a Concórdia. Quando nós mudamos, a gente sentiu muito. Um lugar a que você estava acostumado, familiarizado, depois vai para uma Vila - hoje é bairro, mas até então era Vila Concórdia. No começo, não tinha água, nem luz - luz era querosene, lampião e lamparina, os mais pobres usavam lamparina, agora os melhorezinhos usavam lampião.
P/1 – O senhor brincava na rua?
R – Brincava, mas a gente não tinha muito tempo de brincar porque meus pais sempre foram muito severos, sabe? Meu pai, minha mãe.
P/1 – Ajudava em casa?
R – Era menor, não é? Criança com seus seis, sete, oito anos... É, tinha que fazer os deveres de casa. Até então, saía da escola, que a gente foi transferido da Escola Estadual Augusto de Lima para o Grupo Escolar Flávio Santos, que era na Concórdia. Mas a minha mãe, meus pais, sempre foram muito severos, não deixavam a gente brincar na rua. Cada hora eles inventavam um trabalho para a gente fazer só para a gente não conseguir ficar na rua. E assim foi. Depois que a gente cresceu um pouco, apanhou mais idade, a gente já foi começar a trabalhar, já para ajudar em casa, uma coisinha aqui, aprender um ofício.
P/1 – Como é que o senhor ia para o Centro?
R – Lá da Concórdia para a Floresta era rápido, era fácil.
P/1 – Mas o senhor ia como? De ônibus?
R – Ia a pé. Uma hora passava a pé. Ia pela rua Jacuí, outra hora ia pela Avenida Silviano Brandão.
P/1 – Era asfaltado?
R – Não. Era um brejo medonho, depois ele foi criado ____ [18:32]. Eu me lembro, tinha até colegas que trabalharam na criação da Avenida Silviano Brandão, que aquilo ali era um brejo e depois é que foi aberta... Aquele lodo, aquele barro de argila, que tudo ali era aquela terra argilosa.
P/1 – O senhor ia de manhã e voltava de noite?
R – Até então a gente estudava na aula da manhã - na parte da manhã – e, assim que chegamos na faixa de doze anos, fui aprender ofício, trabalhar em sapataria, sapataria de conserto, depois fui trabalhar em fábrica de calçados.
P/1 – Tinha muito rio?
R – Hein?
P/1 – Tinha muito rio na cidade de Belo Horizonte?
R – Não, sempre foi... Nem era rio, era o Ribeirão Arrudas. Tinha córregos, não é? Tinha alguns, que eu me lembro... Tinha um que descia lá da via da rua Professor Moraes, pegava a Afonso Pena e desaguava ali em frente ao teatro... Aquele teatro ali da Afonso Pena com Carandaí, eu esqueço o nome... Teatro Francisco Nunes, hoje é o Palácio das Artes. Então... Vinha um córrego da rua Professor Moraes e desaguava ali, na Afonso Pena com Alagoas. E a Avenida Carandaí terminava ali.
P/1 – E na volta, o senhor fazia como? Voltava a pé também?
R – Voltava a pé. Da Vila Concórdia a gente ia até lá, na rua Alagoas, esquerda de Alfredo Balena, ali em frente ao Pronto Socorro. Agora imagina, não é? Naquela época, a gente andava essa distância. Hoje para a gente andar 300, 400 metros está cansado (risos).
P/1 – E como é que o senhor começou a ser de Guarda de Congo, essas coisas?
R – Eu participei da Guarda de Congo, estava com meus 12 para 13 anos. Treze anos. E tinha uma Guarda de Congo ali na Floresta, na rua Jacuí, esquina de São Manoel, que não era o que é hoje, tudo era mais rústico. E aí, o senhor, o capitão da Guarda, convidava ‘meus filhos’ para participar. Mas meu pai nunca foi de Conga, ele era de baile, dançava muito, mas era o tempo da sanfoninha de oito baixos. Aí, o capitão da Guarda Nossa Senhora do Rosário chamou e ele, então, falou: “Não, eu não vou não, vão meus filhos”. Aí ia eu, o meu irmão, que é falecido, e meus primos. Mas depois eles pararam, todo mundo parou, só eu continuei um certo tempo. Depois também o capitão - que a gente chamava de capitão - o contramestre achou que eu estava participando com má vontade, mandou que eu ficasse em casa uns tempos. Eu fiquei uns tempos e esse tempo está até hoje fora da Guarda Nossa Senhora do Rosário.
P/1 – Mas mesmo assim o pessoal te apresenta como Mestre Conga.
R – É. Esse apelido foi interessante, porque era turma, não é? A gente jogava bola na rua, pelada, não é? A gente jogava pelada, aí tinha aqueles colegas, muito encarnadores, fazedores de hora ali, ficavam: “Ah, o Conga, Conguinha e Congadinha”. Quer dizer, eu era o Conga, porque eu era mais velho que o meu irmão e o Conguinha era ele. E ficou aquela encarnação, quanto mais a gente achava ruim, aí é que pegou mesmo. Chegou um certo tempo que era “Conga, conga, conga”. Aí eu falei: “Ah, é Conga mesmo”. E ficou. Falei: “Não vou brigar, criar problema, criar caso com os outros”. Ia para a escola era Conga, ia para o futebol, até amador, futebol amador, era Conga, tudo era Conga. Pensei: “Ah, então fica isso mesmo. É Conga, é Conga mesmo”.
P/1 – Nessa época, o senhor conheceu, chegou a conhecer ou ouviu falar de pessoas que estavam vivas e que foram escravizadas?
R – Isso na escola mesmo a gente tinha aula de História, no primário, no básico, mas não contava. A escola não contava a história, fazia um resumo, mas não contava o que foi a escravidão, falavam só por alto e através de livros também que a gente lia. Como diz o samba lá da Mangueira: “A história que o povo não conhece”. Foi isso. De uns tempos para cá, a gente vai adquirindo... Teve mais esclarecimento do que é a vida. Não era a escravidão, mas a minha raça, a raça negra, saiu da escravidão mas continua no preconceito.
P/1 – Mas eu digo assim... O senhor não conheceu pessoalmente, pessoas? Porque na idade com que o senhor estava...
R – Não. Não cheguei a conhecer nenhuma pessoa que foi escrava. Nem os meus próprios avós mesmo, que já eram bem mais velhos, nem eles chegaram a ser escravos.
P/1 – O senhor jogava futebol?
R – Não. Corria. Eu corria. Pelada, não é? Nossos colegas, nossos companheiros, às vezes, organizavam um time infanto-juvenil, aí eu participava. Mas futebol mesmo, assim, amador, não cheguei a jogar.
P/1 – Mas torcia?
R – Ah, torcer sempre torcia. Sempre a gente tem, nos bairros onde a gente é radicado, tem os clubes, sempre tem um time com o nome do bairro, como lá na Concórdia tinha o Vila Concórdia, que era um time muito bom, foi até campeão do DFA, não sei se em 1937 ou 1938. Então, a gente torcia mas depois que a gente ficou adulto, cada um passou a ter o seu time, não é? Eu, por exemplo, hoje em dia eu gosto muito do Vila Nova, mas é um time que sempre está na rebarba do Atlético-MG, do Cruzeiro, do América, mas está aí, não é? Dessa turma profissional, até hoje quem não caiu, com todas as dificuldades, foi o Vila Nova. Está sempre aí (risos). Sempre aí, junto com os grandes, com o Atlético-MG - com o Galo - Cruzeiro, América. América está caído, estava na segunda, mas agora voltou.
P/1 – Você começou a buscar trabalho na Floresta, é isso?
R – É, comecei a aprender ofício de sapateiro lá na Floresta.
P/1 – Como é que era o bairro da Floresta?
R – A Floresta era aquilo mesmo, só que hoje desenvolveu mais. Ali para os moradores da... Não sei se ali é... Ali está entre Norte e Leste, não é? E, morador de lá, Floresta é o ponto, fica no meio, de qualquer maneira tem que passar na Floresta, pela Jacuí ou pela Cristiano Machado. Mas é um bairro muito bom. Eu não sei contar a história do bairro Floresta, mas me parece que, por ser um bairro, assim, que a maioria dos trabalhadores e operários da Central sempre tinham que passar... Quem vinha dos bairros Renascença, parte da Concórdia, Sagrada Família, tinha que passar no Floresta, através da rua Itajubá, da rua Conselheiro Lafaiete...
P/1 – Tinha o que mais? Lojas, casas...
R – Aquilo mesmo, só que aumentaram as lojas. O comércio aumentou muito, porque até então era mais simples. Era um bairro mais simples.
P/1 – Você foi sapateiro, então?
R – Fui sapateiro.
P/1 – Como é que era isso?
R – Ah, é um ofício, não é? Um ofício como outro qualquer. Mais tarde, eu mudei, parei de trabalhar em fábrica... Trabalhei em oficina de consertos, em fabriquetas e fábricas de calçados. Depois entrei para o serviço público. Você já ouviu falar no SAPS? SAPS era um órgão do Ministério do Trabalho, de Previdência Social. Mas depois do movimento de 1964, aí acabaram com o SAPS. Lá, foi um dos últimos lugares em que eu trabalhei. Quer dizer, dos últimos, assim, de serviço público. Assim que veio o movimento de 1964, mais tarde o SAPS acabou, passou para a Companhia Brasileira de Alimentos, que é a COBAL. Hoje me parece que é CONAB, não é nem COBAL mais. Era Companhia Brasileira de Alimentos, acho que hoje é Companhia Nacional de Alimentação, um negócio assim. Não procurei saber, não trabalhava lá mais, não é? Porque lá a gente foi na ilusão de ser funcionário público e acabou; com o movimento de 1964, acabaram com o SAPS.
P/1 – Como é que era sapateiro? Você trabalhava de dia?
R – Sempre de dia. Eu trabalhava em fábrica de calçados, depois abri uma sapataria de conserto, trabalhei bastante tempo na sapataria de conserto e depois entrei para o serviço público, como eu estou dizendo - o SAPS. Depois o SAPS acabou e voltei a trabalhar em serviço comum, trabalhador braçal.
P/1 – O senhor ouvia rádio na época?
R – Ah, sempre ouvia. Desde que o... Lá em casa, por exemplo, o primeiro rádio que a gente possuiu foi em 1940 ou 1942. É, acho que 1942 ou 1943.
P/1 – Vocês ouviam o quê?
R – A música, não é? Samba, novela... Porque novela, antigamente, era só rádio, a gente não via. Hoje pela televisão é que ouve a fala e vê o corpo; antigamente não era assim. No rádio, você só ouvia a voz. Mas eram tempos que, para a época, a gente gostava. Em ponto de pobre, a gente gostava.
P/1 – Nessa época, o senhor começou a ter relação com o samba?
R – É... Eu comecei a me relacionar com o samba a partir do samba de rua, de movimento de rua, de escola de samba... Foi em 1946.
P/1 – Depois da guerra?
R – É, depois da guerra. Com o término da guerra, começaram a pipocar blocos, escolas de samba. Antes do Brasil entrar em guerra, tinha os movimentos de rua - por volta de 1935, 1936, 1937, a época que eu me lembro. Então a gente saía participando de cordão, saía através do arrastão, através de bateria de bloco, bateria de escola de samba. A gente ia no arrastão. Mas com a criação... Aliás, com a volta dos movimentos de rua, começou a surgir escolas de samba e eu, então, participei da escola de samba lá na divisa do Horto com Floresta - Escola de Samba Remodelação da Floresta. Mas já existia em 1938, existia a Escola de Samba Pedreira Unido, foi a primeira escola de samba. Depois houve um racha lá, então ficou a Escola de Samba Pedreira Unida, que era dirigida por Chuchu, Coquinho, Zé Pretinho, Paulo Corcunda e vários outros... Popó... Mas depois Popó se desentendeu, ele morava lá na Barroca e criou uma escola de samba lá na Barroca. Mas a Barroca não era o que é hoje (risos). Era, por assim dizer, uma vila popular. Uma vila popular. Aí, ele mudou para lá e criou a escola de samba dele lá. Então ficaram duas escolas: a Pedreira Unida, e ele colocou o nome da escola dele lá na Barroca, de Escola de Samba Primeira. Mas por causa dele, não é? Porque ele era um escuro bem relacionado.
P/1 – Você falou que tinha duas escolas. Quais eram?
R – Eram duas escolas. Era a Escola de Samba Pedreira Unido que, aliás, era Escola de Samba Pedreira Unido, depois houve o racha, um dos componentes, o Popó, criou a escola de samba dele lá na Barroca. Colocou o nome de Escola de Samba Primeira. Na verdade, a Escola de Samba Primeira era a Pedreira Unida que foi lá na Pedreira, e ele criou lá a Escola de Samba Primeira.
P/1 – E eles desfilavam aonde?
R – Na Avenida Afonso Pena. Sempre na Avenida Afonso Pena. Aliás, escola de samba em BH surgiu em 1938, a primeira escola.
P/1 – Você estava no primeiro desfile?
R – No primeiro desfile da escola, não é? Da escola de samba. Não existiam escolas de samba, existiam blocos. Blocos. Lá no Rio, eles chamam de Rancho, aqui chamavam de Bloco Choro. Tinha aqui, tinha em Sabará, até hoje existe. Em Ouro Preto... Esses lugares todos têm bloco.
P/1 – Você ia nesses blocos?
R – Não, não fui. Estou vendendo pelo preço que comprei. Mas até hoje existem os blocos lá. Mas aqui existiam blocos. Como o bloco Líder, que foi um bloco muito bom; Guaracati, lá no bairro São Pedro, do saudoso senhor Afonso Paulina. E o Líder, lá na Concórdia, que era o saudoso José Martins. E foi assim. Teve também o bloco do Zé Reis, que esqueci o nome agora, era um casal - Zé Reis e dona Raimunda.
P/1 – Mas o senhor foi no primeiro desfile de escola de samba?
R – Não, quando eu fui as escolas de samba já existiam. Quando surgiu, em 1938, eu não participava. Eu via minha mãe, meus pais... Minha mãe com as minhas tias me levava... E a gente era novo - eu e meu outro irmão. Ali na Avenida Afonso Pena era o desfile, mas até então eram só blocos. Depois é que veio - de 1938 para cá - que passou a ter a Escola de Samba Pedreira Unida.
P/1 – Como é que era esse desfile? Para quem não estava lá?
R – Era só um desfile mesmo, tinha música, muita música e o bloco organizado, não é? Muito baliza, muito passista, casal de baliza, as pastoras... A gente chamava de pastoras.
P/1 – Por quê?
R – Pastoras são as pessoas que, a maioria, é parte feminina; tinham os comandantes, os versantes, improvisadores, por exemplo, que entram na escola dentro do cordão - cordão é dos lados - lado a lado. Hoje é que a escola de samba é feita em alas, tem alas com 90, 100 pessoas, mas, antigamente, era só o cordão mesmo. E na frente era o porta-bandeira. Em bloco era chamado de porta-estandarte, escola de samba era porta-bandeira. E era muito bonito, era um sucesso, o pessoal, a maioria com fantasias, com aquelas capas de cetim, decoradas, nas beiradas, de arminho. Era muito bonito. Aqueles casais... dez, doze casais, todos vestidos de príncipe e princesa. Era muito bonito. Depois foi mudando. Depois de 1938 surgiu a Escola de Samba Pedreira Unida, aí já um tipo mais rústico, menos batido. Porque os blocos tinham sempre instrumentos de sopro - a escola de samba não tem instrumento de sopro. Escola de samba é só a couraça. Uns tamborins... Vários instrumentos e um surdo, surdo de resposta: primeira, segunda e a resposta, terceira...
P/1 – O que esses blocos cantavam? O senhor se lembra?
R – Ah, eles faziam música própria, não é? Muitos cantavam músicas gravadas, mas havia muitos blocos que tinham as músicas próprias, como a escola de samba. A escola de samba, a maioria... O próprio nome indica, é escola, não é? Então, a gente tinha que fazer samba, cada um fazer o samba. Mas o samba não era como hoje, como uns tempos atrás. Bem mais atrás, o samba era só o primeiro estribilho, estribilho que fala, não é?... A quadra, a primeira quadra, e o resto era improviso. Sempre fazia aquela coisa: “Você não me quer mais” (cantando). E vai por aí. “Salve Pedreira, o morro onde eu nasci, salve Escola de Samba Pedreira Unida, a primeira que eu conheci” (cantando). Aí vinha o improviso, mas a primeira quadra era... Uns chamam de estribilho, outros de quadra, o refrão, não é? Só o refrão é que era todo mundo, mas nas respostas era improviso. Quando tinha dois improvisos, um fazia o primeiro verso, o outro respondia no segundo. Era uma coisa mais rústica, mas era gostoso; para a época, era gostoso.
P/1 – O senhor se lembra ou podia cantar alguma quadra da sua época?
R – Eu cantei aqui já. “Salve a Pedreira” (cantando). Essa é a primeira escola que surgiu aqui, ali na Pedreira Prado Lopes, chamada Escola de Samba Pedreira Unida. Mas aí depois veio... Vou fazer só o samba, a primeira quadra e o improviso. “Salve Pedreira, o morro onde eu nasci, salve Escola de Samba Pedreira Unida, a primeira que eu conheci” (cantando). Aí eu trabalhava o improvisador: “Você me chamou de feio e eu não sou tão feio assim, fui olhar para uma feiosa que pegou feiura em mim. Menina, se tu soubesses como eu te quero bem, tu não ias nem brincar mais perto de mim com ninguém. Oh, salve Pedreira” (cantando). E as escolas também, cada uma fazia sua quadra, mas no momento eu não estou lembrado. É sempre a primeira que fica, não é? Mas sempre tem as outras que eu não me lembro mais.
P/1 – Então o senhor não foi para a guerra?
R – Não, a guerra foi bem antes de mim.
P/1 – Você era muito novo?
R – Era. A guerra terminou em 1945. Em 1945 eu estava acho que com 15 anos, 15 ou 16 anos, por aí. Ainda nem tinha me alistado no Exército ainda.
P/1 - E durante a guerra teve Carnaval?
R – Teve uns tempos, depois foi proibida a manifestação de rua. Quando a FEB - a Força Expedicionária Brasileira - entrou na guerra, aí foi proibido o movimento de rua. Carnaval, tudo foi proibido. Carnaval só nos clubes.
P/1 – Mas por quê?
R – Talvez seja por resguardo. Agitação, sabotagem, talvez seja por isso. Isso foi no governo Getúlio Vargas.
P/1 – O Carnaval era um evento de negros ou não?
R – Não, era misturado, sem preconceitos (risos). Nas ruas, não é? Agora nos clubes, cada um tinha lá suas regras, seu regulamento. Mas na rua era tudo misturado. Os movimentos de rua. E nem tinha como separar.
P/1 – O senhor ia em clube também?
R – Ah, em clube eu fui mais tarde. Mas até então, quando eu era menor de idade, eu participava só na rua mesmo. Carnaval de rua, desfile de rua. Que, aliás, é o mais gostoso.
P/1 – Por quê?
R – Porque é mais liberdade. É mais livre. Tanto na mistura masculino e feminino, tudo era mais fácil com a liberdade. Naquele tempo, a gente era mais jovem também, não é? Estava com todo o gás (risos). Ia atrás das meninas, das namoradas, tinha muita liberdade. Carnaval é uma expansão, não é? Do corpo e da alma? (risos)
P/1 – Como é que fazia para conquistar o pessoal nessa época? O que vocês faziam?
R – Conquistar como assim?
P/1 – As mulheres.
R – Ia encostando de lado (risos). Mas eu sempre fui um cara muito acanhado, bastante tempo, até hoje ainda sou acanhado. Mas chegou um momento em que aprendi um pouquinho a dançar dança de salão, depois também passei a participar de escola de samba. Aí, de acanhado fui para assanhado.
P/1 – Você namorava muito na época?
R – Ah, só para o gasto (risos). Tinha toda a facilidade, não é? Do movimento, assim, da nossa classe, movimento operário, movimento trabalhador. Eu era também mais jovem, as meninas também mais jovem, então a gente aproveitou o que pode.
P/1 – Aí o senhor fez 18 anos...
R – Aliás, já nos meus 16 anos eu tinha minha liberdade, não é? Porque eu perdi o meu pai muito cedo. Não tão muito cedo, mas perdi meu pai eu estava com 16 anos. E mãe, por muito enérgica que seja, nunca tem aquela mesma autoridade do pai. A gente respeita mais o pai, não é? Mas ele dava liberdade para a gente - eu e meu irmão. Porém, mais era eu. Meu irmão não era muito de dança, não. Eu aprendi a dançar mais cedo, então eu tinha mais a minha liberdade. Mas aí acontece que ele faleceu, perdi meu pai eu estava com 16 anos, 16 anos e pouco. Logo, logo que ele morreu fui me alistar, fiz o alistamento no Exército, mas fui julgado incapaz por causa de acidente na vista. Um problema visual. E foi assim...
P/1 – O senhor não entrou... Então você sempre teve algum problema de visão?
R – Não, foi em trabalho, na fábrica de calçado, um arame veio e me atingiu a vista. Dei muita sorte que não vazou.
P/1 – E o Carnaval depois da guerra, voltou a poder sair à rua, então?
R – Hein?
P/1 – Depois da guerra, o Carnaval pode sair à rua de novo?
R – Isso, voltou. Logo, logo que os pracinhas chegaram aqui, podemos dizer, assim, vitoriosos, não é? Lá da Força Expedicionária, aí que abriu o leque, voltaram todos os movimentos de rua. Dali para cá foi só movimento de rua.
P/1 – E de 1946 para frente o senhor passou a participar mais do Carnaval, então?
R – É isso, passei a participar. Em 1946 eu já... Como se diz... Já tinha minha liberdade, porque meu pai já havia morrido. Mesmo ele vivo, também não me prendia, não. Só não deixava perder dia de serviço, paliar do serviço, não. Podia chegar a hora que fosse, mas a marmitinha tinha que estar por debaixo do braço e ir trabalhar. Aí foi, de 1946 para cá.
P/1 – Como é que você começou a se envolver, então?
R – Comecei a me envolver por causa dos colegas, não é? De futebol. Aí passamos a aprender a dançar dança de salão, que até então a gente só via, assim, acompanhava os desfiles de bloco, de escola. Como eu falei, escola de samba era uma escola só que tinha - a Pedreira Unida - depois é que veio o racha. Popó criou a escola de samba dele lá na Barroca, e a Pedreira Unida continuou na Pedreira. Mas é... O que você me perguntou?
P/1 – Quando o senhor começou a se envolver em escola de samba?
R – Foi assim... Porque veio logo, logo... Com a volta dos pracinhas é que a liberdade de rua, do movimento de rua, voltou; a abertura... E aí, os colegas me levaram... Porque até então eu estudava à noite. Aí os colegas me levaram, não é? De futebol. A gente tinha um time de futebol juvenil lá na Concórdia, aí eles começaram a aprender a dançar e acabaram me levando para participar de aulas de dança, porque a gente era menor de idade e só entrávamos nas aulas de danças. Mas, sábado e domingo, não podia. Porque o baile ia até às 2:30h, 3h da manhã, e a aula era de 20h às 23h, então comecei a aprender a dançar assim. Eles me levaram para a aula de dança e daí para cá não parei mais. Da aula de dança, que era dança de salão, depois me levaram... Logo, logo que terminou a guerra, me levaram para a escola de samba, uma escola de samba lá da Lagoinha, da Pedreira, ali onde é hoje... Não sei se você conhece a sede do Sindicato dos Tecelões; ali era um terreno de escola de samba. Aí me levaram - a turma da Concórdia - também não era tão longe, era mais ou menos perto, aí minha turma me levou e eu gostei, não saí mais. Mas até então eu participava só de dança de salão, que era um clube que tinha ali na Avenida Santos Dumont, onde é o BH Resolve, você conhece ou não? Você conhece, não é? BH Resolve, na Avenida Santos Dumont. Ali que eu comecei a aprender a dançar, de segunda a sexta era a aula de dança.
P/1 – Qual escola de samba na Lagoinha?
R – Hein?
P/1 – Qual era essa escola de samba?
R – Ah, a escola de samba era na Lagoinha mesmo. Uma escolinha que tinha lá, que também foi um racha. Tinha a escola de samba Pedreira Unida, que era escolão, foi a primeira escola que surgiu em BH, em 1938. Aí depois da guerra, eles criaram essa escola de samba lá na...
P/1 – Lagoinha?
R – É... Todas as duas eram da Lagoinha: uma era na Pedreira, porque Pedreira e Lagoinha ali, não é?
P/1 – Pertinho...
R – Pertinho.
P/1 – Mas qual era o nome dessa onde o senhor começou?
R – Onde eu comecei foi na Escola de Samba Surpresa. Mas não comecei lá não, lá eu só saí uns dias, depois arrumei uma ‘brigaiada’ danada, aí saí. Quando foi no ano seguinte, os colegas, também de baile lá de salão, é que criaram, não é? Fundaram uma escola de samba lá na Floresta, na divisa do Horto com Floresta, lá na rua Pouso Alegre - final da rua Pouso Alegre. Aí me levaram, me levaram lá para os ensaios, dos ensaios eu não saí mais. Isso foi em 1948; de 1948 até hoje. Até agora não, em 2007 eu parei.
P/1 – Vocês fundaram qual escola?
R – Remodelação da Floresta.
P/1 - Remodelação da Floresta.
R – É. Tinha a Escola de Samba Unidos da Floresta, antes da Remodelação, e os membros da Unidos da Floresta se desentenderam e criaram essa escola - Remodelação da Floresta - lá no final da Floresta, na divisa de Floresta com Horto.
P/1 – E o senhor estava lá fundando?
R – Estava com os meus colegas. Eles foram para lá, me arrastaram e eu fui... Para onde iam os colegas, nós íamos também.
P/1 – E como é tocar uma escola de samba? O que tem que fazer?
R – Ah, tem que participar dos ensaios e aprender a tocar tamborim, surdo...
P/1 – Você teve que aprender a tocar?
R – É, porque eu entrei na escola de samba na bateria e fui aprender a tocar o tamborim. Porque, antigamente, tinha aqueles tamborins quadrados, assim, a gente mesmo que fazia o tamborim. Lá na escola mesmo, eles que faziam. Enquadrava a ripa, ripa de telhado, enquadrava e pegava uma tachinha de sapateiro, esticava o couro, descia no cortume e comprava o couro de bezerro, não é? De bezerro ou de cabrito, mas o melhor para tamborim era o de cabrito. Cabrito, carneiro, mas na época era cabrito. E a gente mesmo fazia em casa. Quando ia perdendo som, tinha que estar sempre com uma folha de jornal no bolso, riscava o fósforo, esquentava e dava som de novo. Era assim. Até que, mais tarde, surgiram os tamborins de tarraxa. Tamborim, surdo...
P/1 – Quais são os instrumentos que tem na bateria?
R – O tradicional é o surdo, o reco-reco, tamborim, pandeiro. Mais tarde, criaram a frigideira e o apito do mestre de bateria.
P/1 – Quantos componentes são na bateria, geralmente?
R – Varia, não é? Não tem um tanto certo, não. A bateria quanto maior, melhor, o som é melhor. Mas aí dá um trabalho porque para você ensaiar uma bateria, você tem que ter, pelo menos, uns quatro a cinco meses, começar bem antes do Carnaval, porque quando o mestre de bateria é bom mesmo, um tamborim, numa bateria de 100 pessoas, ele sabe qual é o tamborim que está errado, qual o instrumento que está errado. Surdo, por exemplo. Surdo então, é o mais fácil, porque é o diferencial da bateria.
P/1 – Qual foi o primeiro tema da Remodelação, você se lembra?
R – Naquela época, não existia tema dentro de escola de samba, não existia enredo. Era só a bateria, o samba feito pela gente mesmo, samba de autoria da gente mesmo, não tinha samba gravado. Aliás, hoje não tem, não é? Porque hoje o samba de escola de samba que é gravado, onde o compositor, às vezes, até recebe uma coisinha... Mas aqui, em Belo Horizonte, direito autoral, as escolas... Também é muito difícil desfile aqui, tivemos uma parada de dez anos, de uns anos para cá é que voltou. Mas sambista esperar dinheiro de direito autoral é ter... (risos) Toma uma xícara de leite e vai lá.
P/1 – Você se lembra de algumas canções que vocês cantaram na Remodelação, que você fez?
R – Eu não fiz... Até então eu não fazia, mas eu lembro da Remodelação, tinha um samba que era “Agora vou remodelar” (cantando), deu até o nome de um colega meu que já é falecido, presidente, que foi um dos fundadores da escola... “Agora vou remodelar, a Floresta de novo vai ensaiar, não é isso que você queria? Não é mais aquela velha diretoria, agora vou remodelar, meninas, você foi embora, eu fiquei no meu sentido, hoje que você voltou, já estou com o espírito prevenido, vou-me embora, vou-me embora, que me dão para levar, levo penas e saudade, no caminho eu vou chorar. Agora vou remodelar...” (cantando). E ia por aí. Isso foi a primeira escola que eu saí... Não, a segunda, não é? Porque na Surpresa, que eu saí, saí lá uns dias só, mas na outra não, na Remodelação fui de corpo e alma.
P/1 – O senhor fazia de tudo lá então?
R – Não. Lá eu entrei como passista, entrei dançando como passista, aí tinha um concurso aqui individual... Dois concursos: um, individual feminino; e o outro, individual masculino. No individual feminino era escolhida a Rainha do Samba e individual masculino, o Cidadão Samba. Não sei o que houve que eles falaram que não ficava bem, então ficou Cidadão Samba e eu fui Cidadão Samba em 1948; daí para cá, eu comecei a tomar gosto pelo samba e não saí mais. Agora que eu afastei, não é? Depois dos 90 anos não dá mais. Só olhar para a avenida e assistir os companheiros desfilando.
P/1 – O senhor falou para mim que acabou indo para o Rio de Janeiro nesse período, não é?
R – Eu fui para o Rio de Janeiro em 1952, parece-me que foi em agosto de 1952.
P/1 – E o senhor, em 1952, ainda estava no Remodelação?
R – Em 1952 ainda... Não, eu já estava no Inconfidência Mineira - Escola de Samba Inconfidência Mineira. Porque a Escola de Samba Inconfidência Mineira foi um racha da escola mineira com a Remodelação da Floresta, a Remodelação da Floresta foi um racha da escola de samba Unidos da Floresta, os sambistas liderados pelo... Odorico, o sambista Odorico, o nome dele mesmo era Ildeu - Ildeu Amado da Silva - mas a gente só o chamava de Odorico. Aí, ele se desentendeu na Unidos da Floresta e desceu mais com a divisa do Horto e criou a escola de samba Remodelação da Floresta.
P/1 – Agora me conta, por que a Remodelação rachou? O que aconteceu?
R – Comigo? O racha é pelo seguinte... Racha é só o nome porque eu saí de lá, mas como eu participava... Era um bom passista, modéstia à parte falando, eu era um bom passista... Aí, nesse concurso individual de associados, que era a escolha do Cidadão Samba, aí eu me sagrei Cidadão Samba de 1948, morando na Concórdia. Concórdia não tinha bloco, não tinha nada. E aí cismei e falei: “Ah, vamos criar uma escola de samba no bairro Concórdia”. Que tinha lá uma escolinha, chamava (Descimento?) [1:04:48] da Concórdia, parece, mas muito pequena. Falei: “Ah, vamos criar uma escola de samba lá”. Eu e mais outros companheiros: uns companheiros de uma outra escola, que se chamava Monte Castelo; e eu, da Remodelação. Falei “Ah, vamos criar uma outra escola?” “Ah, vamos, vamos”. Aí juntamos eu e mais uns sambistas, a também saudosa sambista - que foi uma grande sambista de BH - essa sambista foi para o samba de BH o que a Tia Ciata foi para o samba do Rio de Janeiro, ela chamava-se Lourdes... Lourdes Maria. Ela tinha o apelido de, não na presença, mas o apelido era Lourdes Bocão. E ela era uma grande sambista. Dançava, sambava, cantava, improvisava, então aí... Por isso que eu digo que ela foi para o samba de BH o que a Tia Ciata foi para o samba no Rio de Janeiro. Só que o Rio de Janeiro é uma cidade mais ampla, mais antiga e com uma população bem maior, e ela aqui em BH, não é? Uma cidade mais... Até então, era uma cidade assim, mais acanhada, uma Capital mais acanhada. Mas foi uma grande sambista. Então... Eu, ela e mais uns companheiros criamos a Escola de Samba Inconfidência Mineira. Tinha o Fefê, o Cici, Zé Pretinho, Arroz - saudoso companheiro Francisco Chagas, mas tinha apelido de Arroz - e mais outros. Mas eu estou assim falando os... E a Lourdes, não é? Aí, criamos a Escola de Samba Inconfidência Mineira. Mas era assim, era uma época que aqui em BH se criava uma escola hoje, ano que vem... Quando fosse no ano seguinte já tinha rachado e criado outra escola de samba, era assim. Escola de samba não tinha, assim, muita firmeza. Não tinha personalidade jurídica, era só mesmo o movimento de pessoas, não é? Mas não tinha registro, não tinha... E assim foi, aí eu criei a Inconfidência Mineira.
P/1 – E o senhor foi para o Rio de Janeiro por quê, então?
R – O Rio de Janeiro foi até uma história engraçada. Eu tinha vontade de conhecer o Rio, mas houve uma época em que... Que chegou aqui um cineasta com a ideia de fazer um filme, até esse filme seria filmado lá em Nova Lima, foram filmadas várias cenas, sabe? Mas depois, o cineasta, chamado Gino Palmezano, não conseguiu terminar o filme, acabou, foi embora. Terminou a filmagem... Não chegou a concluir. E aí a turma, cada um foi para um lado. E eu tinha vontade de conhecer o Rio... Nesse filme, vieram várias pessoas do Rio de Janeiro, sambistas, não é? Vários sambistas e alguns... Os cineastas, as pessoas que participavam da parte elétrica, da câmera - os cameraman - vieram todos do Rio de Janeiro. Aí, quando eles foram embora, me deu a vontade também de conhecer o Rio de Janeiro. Eles foram embora e acho que meses depois me deu a vontade de ir, eu fui. Aí, eu fui. Porque eu já conhecia alguns companheiros que vieram de lá para participar do filme, fiquei lá na parte de dois anos e seis meses.
P/1 – Então o pessoal veio aqui, foi embora, o senhor quis, ficou com vontade?
R – É. Vieram filmar o filme, esse italiano. Mas depois me falaram que nem italiano ele era - parece que ele era egípcio - mas nós o conhecemos aqui como italiano, o Gino Palmezano.
P/1 – E aí o senhor foi para o Rio...
R – É...
P/1 – Como é que era o Rio na época? O senhor ficou aonde?
R – Ah, eu cheguei lá na cara e na coragem. Cheguei lá eu tinha alguns amigos aqui de baile, da temporada das madrugadas dos bailes daqui. E a maioria deles trabalhava, assim, com limpeza de carro, não é? Lavador de carro. Eu sabia o endereço deles lá no Rio, aí eu fui na cara e na coragem, cheguei lá na Esplanada do Castelo e encontrei alguns amigos lá. Não tinha nem lugar para dormir e fui dormir lá na beira, onde uns outros colegas dormiam, e depois é que fui me ajeitando. Fiquei lá dois anos e seis meses, depois vim embora.
P/1 – O senhor fez o quê lá? O senhor ia...
R – Lá eu trabalhava no meu ofício mesmo, que eu sempre fui sapateiro.
P/1 – E Rio de Janeiro era diferente de Belo Horizonte?
R – É, algumas coisas
eram bem diferentes. Mas lá tinha o movimento... O encontro dos artistas lá, em um bar chamado Vermelhinho, não sei se vocês já ouviram falar. O Vermelhinho lá em cima, na rua Araújo Porto Alegre, em frente à ABI. E cá embaixo tinha a... Tinha não, tem a Cinelândia. Mas lá a gente encontrava, a maioria... Era artista de renome, artista falado e aqueles que fazem ponta, não é? Cheguei lá e encontrei alguns companheiros, aí fui me adaptando, sabe? E nessa brincadeira, fiquei lá quase três anos.
P/1 – Tipo quem que você conheceu lá de artista?
R – Ah, conheci os que vieram aqui, por exemplo. O Gilberto Martins, o Renato Restier Junior, Zé de Arimateia, tinha o Samaritana e tinha vários lá. E tinha também aqueles que foram, assim, como eu... Do Rio de Janeiro foram levados numa turma de lá, fazendo ponta. Eles falam ponta. Participando, não é? Participantes. Aí, chegando lá, encontrei com uns colegas e fui me adaptando.
P/1 – E lá você viu o Carnaval do Rio de Janeiro?
R – Vi. Nessa época, o desfile ainda era na Avenida Presidente Vargas. Depois, quando eu vim embora, passou o desfile para a Avenida Rio Branco. Até, depois, eu ainda fui lá - eu e alguns companheiros aqui de escola de samba - fomos assistir ao desfile lá na Avenida Rio Branco. Depois, não voltei mais não.
P/1 – Como é que era o desfile na Presidente Vargas?
R – A mesma coisa. Só que evoluiu muito. Assim... Porque não tinha arquibancada, era só na corda, não é? Tinha corda na Rio Branco, por exemplo. Mas era muito movimento, muita gente. E depois é que criaram, quando passou lá para a Marquês de Sapucaí, criou o Sambódromo, foi na gestão do... Aquele que foi governador do Rio, cunhado do Jango, lá...
P/1 – Brizola?
R – Brizola, exatamente. Foi ele quem criou o Sambódromo.
P/1 – E que escolas que havia no Rio nessa época? Tinha alguma de que você gostava mais?
R – Ah, para mim todas eram boas. Eu sempre fui... Gostava da... Gostava, não, gosto, admiro, a Mangueira, Portela, Acadêmicos do Salgueiro. Essa escola que foi falada hoje, nem existia. Mas não tinha o nome que tem, que é a... Lá do Joãozinho Trinta, como é que chama?
P/1 – Beija-flor?
R – Beija-flor. Beija-flor era uma escola que nem era conhecida, depois é que ela cresceu. Mas as famosas lá eram a Portela, Mangueira, Acadêmicos.
P/1 – Teve algum samba carioca que lhe marcou? Algum enredo?
R – Não. Para mim, todo enredo eu gostava. Eu gostava não, gosto. Para mim, o importante é o desenrolar do enredo, se tem alguma falha, se está bonito, se está falando realmente a história. E aí, de lá, quando eu vim do Rio para cá é que começamos a colocar o tema, colocar enredo em desfile de escola de samba. Porque até então, não tinha. Foi daí para cá que nós criamos. Samba, a gente fazia só a primeira quadra, e aí passamos a fazer o samba direto, samba inteiro. Mas ainda tem as dificuldades, não é? Mas foi uma coisa boa. Eles falam aí que eu vim do Rio e vim trazendo, implantando os desfiles de samba do Rio, aqui em BH. Eu acho que, na verdade, até que foi mesmo. Porque até então, a gente só fazia como eu falei: só o refrão. E o resto improvisava. Depois é que passamos a fazer. De 1956 para cá, passamos a fazer o samba enredo direto, contando o que a escola estava apresentando: o tema. O tema da escola, não é? Alegoria, tudo. A emoção, o enredo, o samba-enredo falando, contando a história do enredo. E foi isso tudo aí, modéstia à parte, foi quando eu vim do Rio para cá, vim copiando o Rio e vim fazendo. Não saía igual mas até que então melhorou, dali por diante. Isso foi na década de 80, aí melhorou bastante o desfile de rua de Belo Horizonte, mas sempre, assim... Uma cópia do Rio. Porque não fomos só nós aqui, em BH, o paulista também copiou muita coisa do Rio. Hoje, se você vê uma escola de samba de São Paulo é a mesma coisa que estar vendo uma escola de samba do Rio de Janeiro. Mas é porque eles investiram muito nos sambistas do Rio, não é? Levando... Fazendo uma ponte do Rio de Janeiro para São Paulo. Concorda comigo? Ou eu estou falando mentira? (risos). E foi aí que o samba cresceu em São Paulo. São Paulo, antes da década de 80, ninguém conhecia São Paulo como desfile de rua, de escola de samba, não. Foi na São Paulo quatrocentona - eu estive lá - nessa época, eu participava do teatro do saudoso Solano Trindade, teatro popular, teatro folclórico. Nós fomos lá participar nas festas do São Paulo Quatrocentão, isso tem muitos anos, não é? E não era. Depois disso é que eles começaram a investir em sambista do Rio. E hoje, a escola de samba de São Paulo é uma mini-escola de samba do Rio de Janeiro. Uma mini, não, quase que uma escola mesmo. Escola de samba de São Paulo hoje está desfilando com umas mil pessoas, mil e tantas pessoas. Aliás, tem mais. Mil nós chegamos a desfilar aqui em Belo Horizonte. Mas lá em São Paulo deve ser umas 2000, porque lá no Rio é 3000, 3500, 4000.
P/1 – Como é que foi essa história que o senhor acabou de falar, do Abdias do Nascimento, do Solano Trindade? Como é que o senhor os conheceu?
R – Eu os conheci no Rio. Com o Abdias, eu tive pouco contato, eu conheci mais o Solano Trindade. O amigão, não é? Gente boa, pernambucano, arretado (risos). O poeta Solano Trindade e a dona Margarida Trindade, esposa dele. A filha dele mora em São Paulo, a Raquel Trindade. Não sei. Muitos anos, não é? Não sei se são vivas, nem a dona Margarida, nem a Raquel, não sei se são vivas. Eu acredito que a Raquel esteja viva.
P/1 – O senhor virou ator então, por um tempo?
R – Não. Eu não sou ator não, sou mais à toa (risos). Quem dera que eu fosse ator. Eu já participei de filmes, de teatro, já participei. Mas quem sou eu para ser ator?
P/1 – Mas esse tempo que você ficou com o Solano, o que vocês faziam?
R – O teatro folclórico era o teatro mais, assim, tipo musical, sabe? Dança e baseado mais no candomblé, na dança de candomblé. Nos ‘Santos’. Por exemplo, Iemanjá, Xangô, Ogum... Era um teatro mais ou menos dessa época. Porque para fazer um teatro folclórico como na época lá, lembro-me da saudosa Mercedes Batista. Para fazer um teatro de arte dramática ou comédia, fica mais difícil, não é? Porque teatro folclórico, o que mais tinha era cena muda, era só dança mais... Então, era mais difícil. Mas surgiram alguns artistas do teatro folclórico, que uns chamam ou de teatro folclórico ou Experimental do Negro - um nome até bonito, eu acho: Teatro Experimental do Negro. Mas surgiu, não é? Desse Teatro Experimental do Negro participaram vários atores: Grande Otelo e muitos outros que eu me lembre assim; mas o de maior expressão foi o Grande Otelo... Haroldo Costa, não sei se você viu ainda, deve ter visto, ele está sempre comentando desfile de Carnaval.
P/1 – Qual foi o primeiro samba-enredo da Inconfidência?
R – Ah, o primeiro samba-enredo foi o samba que... Ah, não me lembro, tem muitos anos...
P/1 – Se não lembrar, não tem problema não.
R – Ah, é mais ou menos, não é todo não: “Tiradentes foi o grande inconfidente de Minas Gerais e o povo brasileiro não esquecerá jamais...” (cantando). Por aí, não estou lembrado mais. Mas eu sei que foi isso aí... Foi até um samba do menino lá do Rio, do Bira. (cantando novamente, tentando lembrar). Ah, não dá. Isso foi em 1956.
P/1 – Não tem problema.
R – Eu até, sei lá, tenho minhas dúvidas, porque ele chegou lá com esse
samba e a gente não tinha nenhum outro samba, só samba com a primeira quadra, ficava ruim. Ele chegou na hora. Foi isso.
P/1 – Dai para frente vocês estavam...
R – É, dai para a frente começamos, nos anos seguintes, a fazer mais samba, apareceram mais compositores para fazer samba. Eu mesmo, na época, não fazia. Uma, porque eu não tinha nem tempo para fazer, não é? Porque dirigir escola de samba até hoje, é difícil aqui em BH, e antes era muito difícil, porque fazem o maior pouco caso. O pessoal... Muitos chegam a dizer que Minas não tem tradição de Carnaval, Minas não tem tradição de samba, sempre tem uma desculpa. Mas é porque, realmente, nós somos mais frios, mesmo. Os mineiros são mais... As músicas são mais serenatas, serestas, músicas de serestas.
P/1 – E quando é que o senhor começou a compor então?
R – Depois que eu vim do Rio. Eu e mais outros companheiros, nós não tínhamos nem condição de pagar, dar um cachê para compositores, não é? Alguns compositores. Também a gente se baseou na história, foi fazendo a história de Bárbara Heliodora, Tiradentes, o Joaquim da Silva Xavier. E fomos fazendo assim, juntamos uns quatro a cinco lá, fizemos uma bobagenzinha e dali para cá passamos a participar mais do samba-enredo, e as outras escolas também foram acompanhando. Mas aqui teve uma época que paramos um tempo o desfile de rua, nós paramos há dez anos, por assim dizer, depois que voltou. Para ver se valorizava mais, mas acabou ficando do mesmo jeito (risos). Nadamos, nadamos e morremos na praia. É isso.
P/1 – Se o senhor quiser cantar esse samba seu, uma quadra...
R – “Belo Horizonte, cidade tão linda, sua beleza nós queremos mais ainda. Seus horizontes, palacetes e arranha-céus. Belo Horizonte é o ___ [1:26:10]... Suas riquezas minerais, aumentam o brilho do estado de Minas Gerais, este privilégio, que vem da Natureza, nossa Belô, oh, cidade montanhesa, nossa Belô, oh, cidade montanhesa. Belo Horizonte, cidade tão linda, sua beleza nós queremos mais ainda. Seus horizontes, palacetes e arranha-céus...” (cantando). Esse samba é um samba meu, de minha autoria e composição, de parceria minha com a saudosa Lourdes Maria.
P/1 – Isso saiu em...
R – Saiu, mas tem muitos anos. Isso foi mais ou menos em 1958, por aí. 1958, 1959, por aí...
P/1 – E como que era a disputa entre as escolas?
R – Ah, no princípio dava muito briga, muita confusão, era muito disputa. Mas era uma coisa muito... Um pouco até de ignorância da gente, a gente saía do bairro, daqui lá na praça Sete; não aí também estou exagerando um pouco, mas bem menos... Para disputar uma taça, um troféu. Ah, muita luta, muita dificuldade. Hoje, as escolas de samba de hoje aí são melhores, porque hoje a gente não tem mais aquelas batalhas de confete. A gente saía para disputar taça na batalha de confetes um mês antes do Carnaval. Hoje não tem mais isso.
P/1 – O que é esse negócio?
R – É uma batalha, é tipo Carnaval, mas só que, por exemplo, se você queria fazer um movimento lá no seu bairro, você fazia. Ia e tirava a licença da polícia, tirava uma licença ___ [1:29:23], por exemplo, as músicas que você queria escolher cantar e fazia. Fechava o quarteirão e fazia o desfile. Era isso. Disputava, convidava blocos e escolas para disputar um troféu, para disputar um prêmio, assim, vagabundo. Era assim. A gente chegava em casa 3h, 4h da manhã para trabalhar no outro dia. Era muito difícil, mas a gente era jovem, não incomodava.
P/1 – Mas tinha um prêmio que era da cidade de Belo Horizonte?
R – Não, tinha prêmio, assim, reunia os comerciantes e dava um prêmio lá, um troféu. Às vezes, uma ajuda de custo, nos tempos dos bondes. Era a era do bonde, então a gente ia de bonde. E ia longe (risos).
P/1 – Tinha carro ou não? Era só na rua o pessoal andando?
R – Não, o desfile era só pedestre. Carro mesmo era só no corso, no Carnaval, não é? No centro da cidade. Mas fora disso não tinha não. Tinha só gente do nosso desfile, um desfile de pedestre, uma escola de samba saiam 600 pessoas, 500 pessoas. Era bem gostoso, mas não tinha, assim, enredo, a gente fazia o samba e improviso. Depois de 1956 para cá é que passou a fazer o samba inteiro e disputar. A Prefeitura fazia o desfile e dava uma premiação em dinheiro. De primeiro a quinto lugar.
P/1 – Aí a Prefeitura passou...
R – É, passou a oficializar o Carnaval. Mas assim... Oficializava o Carnaval, com esse tanto de... Um Prefeito, os quatro anos que ele ficasse lá, tinha o Carnaval... Quatro nada, três anos e meio... Quando ele saía, ele não fazia o Carnaval porque ele estava saindo. O que entrava não fazia porque estava entrando e dizia que não tinha verba, não sei o quê. Depois, mais tarde, é que se criou a Belô Tour, empresa de... Esqueci o nome. Eu sei que a gente conhece como Belô Tour. Empresa Municipal de Turismo, um negócio assim. Aí é que oficializou, mas mesmo assim tivemos paradas, porque a gente achava muito pequena a ajuda, mas não adiantou nada, não. Paramos, paramos, quando voltou aí, até hoje está aí, acho que cinco ou seis escolas. Nós éramos 17 escolas. Está aí. Eu quase não vou à rua, não. Aliás, hoje eu não tenho nem muita condição para ver.
P/1 – Como é que era... Nessa competição, a Inconfidência chegou a ganhar, não é?
R – Chegamos a ganhar.
P/1 – Quantas vezes o senhor ganhou?
R – Ah, nós ganhamos umas quatro... Três ou quatro vezes. Mas fora disso, sempre ocupando os lugares, porque a premiação era de primeiro a quinto lugar. Uma hora terceiro, quarto...
P/1 – Teve alguma que foi mais marcante para o senhor, algum desfile que o senhor gostou mais, que o senhor lembra mais?
R – Eu lembro, mas não sei se foi na gestão do Marilson Campos. Apesar de não ter ganhado em primeiro lugar, mas a gente estava em segundo, terceiro, segundo, terceiro. Foi na década de oitenta, ele foi Prefeito em 1980... Ah, não me lembro mais não.
P/1 – O senhor foi até 2006, então?
R – 2006, quando eu... É isso mesmo, 2006 foi o Carnaval na Via 240.
P/1 – E o senhor se casou, não é?
R – Ah, me casei bem antes. Me casei em 1959.
P/1 – O senhor conheceu sua mulher como?
R – A gente não morava muito distante um do outro, não. Tinha Concórdia de um lado e o bairro da Graça do outro. Algum de vocês conhece o bairro da Graça? Igreja São Judas. Ali minha esposa... Os familiares dela moram ali. E eu morava do lado de cá, na Concórdia. Na época, perto do Santuário Nossa Senhora da Graças... Hospital São Francisco ali, você conhece? Não? Você não conhece, mas eles devem conhecer o Hospital São Francisco. Quando as coisas têm que acontecer, acontecem, não é?
P/1 – Qual é o nome da sua esposa?
R – Dona Deli Gregório Lourenço. Lourenço é meu, não é?
P/1 – E vocês tiveram filhos?
R – Tivemos três.
P/1 – Quem eram?
R – Essa era minha caçula que estava aqui com vocês, a Heloísa. Tem o Elton, do meio, e o Hebert que é o mais velho.
P/1 – Família de cinco pessoas.
R – Hein?
P/1 – Cinco pessoas..
R – É, e tem os netos, não é? A família não era tão grande, mas também não era, assim, tão pequena. Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar (risos).
P/1 – O senhor tem vertente política, campanha?
R – Ah, eu não participo de política, não. Acompanho, sabe? Vejo os políticos aí, mas não participo, não sou... Como é que fala? Não participo de nenhum partido, não. Não sou militante que fala, não é? Não sou nenhum político militante, não. Admiro, e eleição tem que votar em alguém.
P/1 – O senhor está com quantos anos agora?
R – 92.
P/1 – Como é que é isso?
R – Bom. Prazer de viver, não é? Com todos os sacrifícios e dificuldades, mas vale a pena viver.
P/1 – O senhor tem algum sonho? Alguma coisa que o senhor queira fazer?
R – Ah, com essa idade que eu estou, não tenho sonho nenhum, não. Meu sonho mesmo é o que eu tenho visto e estou vendo, que é minha família. Minha família criada, netos, possivelmente mais adiante, bisneto. E é isso. Minha família, graças a Deus, não tenho o que reclamar não. Pobres, todos nós somos, mas com dignidade.
P/1 – Obrigado, viu, Mestre.
R – Não há de quê. Mas é isso. Não sei se agradou ou se vai agradar, mas a verdade é essa, a que estamos vivendo. Entre os percalços da vida, não é? Mas a vida nos oferece os momentos bons, tristes, mas também os momentos alegres. E acho que a gente vive mais os momentos alegres que Deus nos dá. Ele nos dá esse direito de viver e de saber... E de valorizar a vida, valorizar principalmente a família. Eu, modéstia a parte, sempre falo que eu tenho sido agraciado com a minha família, não posso reclamar. Pobres, todos nós somos. Nem todos, não é? Há uns que têm a vida privilegiada financeiramente, mas a gente tem a graça de Deus e tem a nossa vida. Em ponto de pobre, o importante é ter uma família unida. E isso é muito bom para a gente.
P/1 – Obrigado.
R – De nada.
P/1 – Eu não cheguei foi a cantar, não é?
R – O senhor quer cantar alguma coisa?
P/1 – Eu cantei um samba, não cantei?
R – Cantou. Tem algum samba que o senhor queira cantar para a gente terminar? Seu...
P/1 – Meu por exemplo tem: “Vou cair matando, vou cair matando, matando saudade, matando saudade, vou cair matando, vou cair matando, matando saudade, matando saudade. Trago ainda na lembrança, o meu tempo de criança, depois veio a juventude, fiquei cheio de vaidade. Nela fiz tudo que pude, hoje é só recordação que ficou dentro do meu coração. Vou cair matando, vou cair matando, matando saudade, matando saudade, vou cair matando, vou cair matando, matando saudade, matando saudade. Matando saudade, matando saudade” (cantando). Ah, Mestre Conga e Zé Pereira, saudoso Zé Pereira.
P/1 – Tem algum mais que o senhor se lembra?
R – Hum?
P/1 - Tem algum mais que o senhor se lembra?
R – “Pedreira querida, querida Pedreira”. Esse samba está até gravado: “Terra de gente boa, rainha que já não tem coroa, rainha que já não tem coroa. Pedreira querida, querida Pedreira, terra de gente boa, rainha que já não tem coroa, rainha que já não tem coroa. Esta saudosa Pedreira, já foi a nossa querida Mangueira, oh, lá a minha lágrima senti, a falta que ela me faz na avenida, que coisa bela, tenho saudade dela, recordo a lua cor de prata e o sorriso de nossa querida mulata. Samba, mexe com a gente, como é gostoso esse barulho diferente. Samba, mexe com a gente, como é gostoso esse barulho diferente”. Ai, ai...
P/1 – Mestre, não quer cantar mais nenhuma outra canção, não é?
R – É, acho que já deu para o gasto, não é? (risos).Recolher