Lins : Um Olhar sobre a cidade
AS CASAS
A casa é sempre o mundo mágico da infância. Quando nasci, 14 de janeiro de 1941, a casa de meus pais, Oscar Modesto Duarte Ferreira Beozzo e Gessy Martins Beozzo, ficava na antiga Avenida do Café, 182, hoje, Rua Paulo Giraldi, no quarteirão entre a Luiz ...Continuar leitura
Lins : Um Olhar sobre a cidade
AS CASAS
A casa é sempre o mundo mágico da infância. Quando nasci, 14 de janeiro de 1941, a casa de meus pais, Oscar Modesto Duarte Ferreira Beozzo e Gessy Martins Beozzo, ficava na antiga Avenida do Café, 182, hoje, Rua Paulo Giraldi, no quarteirão entre a Luiz Gama e a Rio Branco, quase ao lado da Casa dos Espíritas. Do lado debaixo, morava a Dona Adélia Arbex, cujas crianças tinham nossa idade. Com elas brincávamos de amarelinha na calçada. Na casa de cima, moravam o Sr. José Mieli e a Quinha, cujos filhos, Elma e Zezinho, já eram moços e cuidavam de nós. Quinha, exímia costureira, foi madrinha de meu irmão Estevam e Mamud Abdo, marido de Elma, meu padrinho de crisma.
A Praça da Bandeira, a apenas um quarteirão da casa, virando a esquina,
era um lugar cobiçado de passeio e brincadeiras, para quem tinha apenas quatro anos. Entre nossa casa e a praça, ficava a morada dos Alexandrino Figueiredo e sua filha, a Tê moça, como a chamávamos era coleguinha de folguedos. Já éramos cinco irmãos e a
casa, além de alugada ficou pequena: Maria Emília - Lia (1938),
Anna Maria - Mana (1939), José Oscar (1941), José Estevam – Tevo (1942), Maria Zélia (1944) e assim, ao final da guerra, mudamo-nos para
casa própria, na Av. 13 de maio 494 , chegando, logo depois, em agosto, nosso irmão, José Augusto - Guto (1945). Ali, nasceram ainda José Benedito - Benê (1947), Maria Eliza (1948), que faleceu no mesmo dia e, no ano seguinte, Maria Angélica – Ticá (1949). Nesta casa, meus pais mandaram construir um tanquinho que chamávamos pomposamente, de piscina.
A RUA 13 DE MAIO
Quando nos mudamos, era uma rua de terra em que a chuva abria grandes crateras, por causa do seu declive. Na esquina, havia um bueiro e apostávamos entre as crianças, quem tinha coragem de atravessá-lo, rastejando, apesar das aranhas e baratas. Os paralelepípedos foram colocados no tempo do prefeito Dr. Maurito que estendeu a rua até o rio Campestre. O rio, em toda sua margem, possuía chácaras de famílias japoneses que produziam verdura, aproveitando-se das nascentes de água. A 13 de maio foi a rua das grandes e duradouras amizades de infância. Na casa de cima, morava o Sr. Lordello e Dona Enoi de Lima Alves com os três filhos, Lourdes já casada com o Sr. Aurélio Vilela e morando na Olavo Bilac, com os quintais interligados; Aracy que iria se casar com o Dr. Paschoal Angotti e Carlos que se casou com a Lourdes Abdo e, na seguinte, Sr. Geraldo Boaventura da Silva e Dona Marinette Gonçalves Salvador Boaventura, com os filhos Paulo, Sérgio e Isa e, na próxima, Sr. Carlos Silva, alfaiate, e Dona Anita, com os filhos, Ivan, Marilene e Marlene; do lado de baixo, a família Martins, com onze filhos;
na calçada defronte, o Sr. Jaime de Toledo Piza e Almeida Jaime; na esquina, ficava a família Marussig, Sr. Primo e Dona Elvira, com as filhas Elza e Carmela e o filho Carlos; na Rua Osvaldo Cruz, morava o então Prefeito, Maurito Prado de Negreiros e mais adiante, a família Nascimento, Sr. Eurico e Dona Yolanda. Na sua casa, o A reinava soberano nos nomes de quase todos os filhos e filhas: Ailton, Adair, Arley, Aline, Adilson, Eliete. Éramos crianças suficientes para formar times de futebol, jogar pique, chuta-lata, garrafão ou queimada, nos finais de tarde.
DESCOBRINDO O MUNDO E A DIVERSIDADE
Estrada de ferro e Marechal Rondon
Cheguei a Lins, com 40 dias de idade, atravessando a balsa do Rio Tietê, vindo de Santa Adélia, onde nasci e passando por Itápolis. Ali, na Igreja do Divino Espírito Santo, fui batizado, a 23 de fevereiro de 1941, tendo por padrinhos Osvaldo e Bela Decunto Bruschi, que fora colega de estudos de minha mãe na Escola Normal de São Carlos.
A grande porta de entrada e saída de Lins era, porém, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. A Rodovia Mal. Rondon fora construída apenas em 1948, com centenas de carrocinhas puxadas por burros que iam e vinham para abrir os cortes e construir o aterro para a ponte por sobre o Campestre, tirando terra de um lado e levando-a para outro. Só com o Governo Jânio Quadros, vinte anos mais tarde, a Rondon seria asfaltada e o transporte rodoviário começaria a desbancar a ferrovia. Outros trinta anos se passaram para que fosse concluída sua duplicação, em 1998. O trem se encarregava das grandes viagens em direção ao Mato Grosso e a Bauru. Do Mato Grosso, chegavam estudantes, principalmente de Corumbá, Campo Grande e Três Lagoas, para os internatos do Instituto Americano de Lins, dos Salesianos e das Irmãs de Maria Auxiliadora. Pelos trens de carga vinha muito gado. De Lins, saia principalmente o café, no tempo da safra, rumo ao porto de Santos. Para Bauru, onde se fazia a baldeação para a Paulista e a Sorocabana, partiam os passageiros que demandavam São Paulo, as cidades da Paulista e Alta Paulista, Araraquarense, com baldeação em Itirapina, ou ainda as da Sorocabana, seja em direção à capital, seja em direção à Alta Sorocabana ou ao Paraná. O trem foi nosso conhecido desde pequeno, pois não havia, em Lins, mais ninguém de nossa família, tanto da parte de pai, os Beozzo, como de mãe, os Martins. Nas férias, partia o bandinho todo para a casa dos avós (vovô Mário Beozzo e vó Aninha) ou dos tios (tia Zica e tio Dadico), em Rio Claro ou São João da Boa Vista (tia Mercedes e tio Fernando). Íamos muitas vezes sozinhos, três ou quatro irmãos, dos quatro aos oito, nove anos,
recomendados pelo pai ao chefe do trem que se encarregava de colocar-nos no trem da Paulista, em Bauru, para descermos na estação de Rio Claro, onde esperavam nossos tios. Era viagem de um dia todo. Era também em Rio Claro, que tia Mercedes nos pegava, indo de trem para Campinas e de lá no ônibus da Viação Biziak, para São João. Aos três anos, conheci o mar em Santos e São Vicente e uma onda levou-me, para grande desespero, um baldinho vermelho e azul que acabara de ganhar. Aprendi cedo a respeitar o mar, que acabei cruzando de Santos a Nápoles, aos 19 anos, para estudar na Itália. Essas viagens infantis nos abriram, a mim e a meus irmãos, as estradas do mundo e despertaram curiosidade insaciável diante da variedade das paisagens, costumes e pessoas. Em São João, durante a guerra, íamos para a fila da padaria, às quatro da manhã, para conseguir um pãozinho borrachudo, com muita farinha de mandioca e pouca de trigo. Anos mais tarde, quando cursei o primeiro semestre do terceiro ano do grupo, naquela cidade,
tio Fernando, escultor e proprietário da marmoraria Furlanetto, introduziu-me no mundo da arte, pelos seus livros maravilhosos, em italiano, ou ao vivo, na oficina onde eram burilados e lustrados o mármore de Carrara, o granito rosa de Caieiras e o negro de Piracaia;
no seu atelier, onde modelava e esculpia ou percorrendo suas obras no cemitério e igrejas de São João. Podia ficar horas vendo-o modelar um Cristo em barro, acompanhar durante semanas a evolução cada vez mais precisa das formas, até chegar ao molde de gesso e finalmente à obra definitiva fundida em bronze. Foi ali, em São João, grudado no rádio, que acompanhei com o tio Fernando, o final melancólico da copa do mundo de 1950, ficando com um travo amargo pela derrota, frente ao Uruguai.
LINS, TERRA DE IMIGRANTES
Lins era uma cidade que ensinou-me muito cedo a diversidade cultural, com a chegada da família Novelli, diretamente da Itália, para a casa dos Marussig na esquina da nossa rua. Armanda e seu irmão Alberto só falavam italiano, mas, bem rápido, aprenderam o português, guardando porém aquela maneira suave de pronunciar os rr fortes do português e mantendo a pronúncia clara e aberta das vogais, em particular do A. Nossos vizinhos da casa debaixo eram espanhóis
e, em nossa casa, vinham muitos nisseis, afilhados de minha mãe que ao prepará-los para a primeira eucaristia, no Grupo Escolar, acabava sendo também sua madrinha de batismo, pois vinham de famílias budistas. Com o massagista Saburo Ishi, percebi logo a dificuldade insuperável de se pronunciar a letra L, inexistente em japonês e quase sempre substituída pelo R, e a necessidade de se acrescentar um O às palavras terminadas em S, de tal modo que LINS, se tornava RINSO. Defronte à nossa casa, morou também, por muito tempo, onde hoje é o escritório do Verdelli, a mãe, já idosa do Miguel Zarvos, que haviam emigrado da Grécia e que, mesmo sendo ortodoxa, e não tendo ninguém de sua igreja para atendê-la, pedia ao Mons. Luiz Pasetto que a ouvisse em confissão e lhe trouxesse a comunhão. Ecumenismo bem antes do Vaticano II, que brotava da alma profundamente cristã da senhora mãe do Miguel Zarvos e da caridade pastoral de Mons. Luiz..
Indo com o pai, ao armazém do Sr. Salim, perto do bar do Raco e da Padaria Luso-Vitória, dava-me conta que “babai” era o substituto, no idioma árabe, para o nosso “papai”. Famílias sírias ou libanesas amigas de meus pais eram muitas, a começar dos Arbex, dos Abdo, Assef, Harfuch, Kfouri e tantas outras. Entre os gregos, além da família Zarvos, ficamos muito amigos do Stefanos Vassiliadis, cujo quintal fazia fundo com o quintal de nossa casa e que perdeu, tragicamente, seu filho Nicolas, de 9 anos, na garagem de sua casa. Nicolas colocara, dentro da máquina de moer carne de sua mãe, pólvora, tirada de bombinhas de São João e começou a triturar com outros ingredientes, provocando uma grande explosão que o feriu mortalmente.
Stefanos, com outras famílias gregas ergueu, depois de salvar
uma grande colheita de arroz da cheia, nos varjões do rio Tietê, em Sabino, esplêndida igrejinha ortodoxa que fez decorar por artistas que trouxe diretamente da Grécia. Ali, está enterrado seu filho Nicolas. Com a migração das famílias ortodoxas a igreja foi cedida fraternalmente, para o uso dos católicos daquele bairro.
Na Av. 7 de setembro, em dia de sábado, em torno a Casa Senise, à Casa Ipiranga, aos Três Machados, descobria-se outra imagem da cidade: a do povo laborioso da roça que chegava a cavalo, em carroças e carroções, charretes, para as compras nos armazéns de secos e molhados, de tecidos
e
ferragens. O branco predominava nas camisas de morim e algodão cru dos
homens e o colorido nas saias de chita das mulheres, mas a tez negra misturava-se com os cabelos mais claros dos descendentes de europeus. No carnaval, quando os cordões iam para as ruas, via-se a importância e o peso da população negra em Lins.
COLECIONANDO SELOS
Entrei, por uma segunda porta, neste mundo da diversidade étnica e cultural, ao herdar de minha irmã Lia, sua coleção de selos já com uns 300 exemplares. Os selos tornaram-se paixão e ia buscar entre as famílias de diferentes nacionalidades, os que vinham nas cartas que chegavam de sua terra de origem ou bater à porta do bispo D. Gelain para ver se não haviam chegado selos da Itália ou do Vaticano. Minha tia Mercedes deu-me, de presente, a coleção de selos de seu esposo, tio Arthur Goettlicher, austríaco e que falecera muito moço. Estava num álbum esplêndido em alemão e inglês, onde, para cada país, figuravam impresso, os seus selos mais antigos e prestigiosos. Recebi, assim, cerca de oito mil selos de todo o mundo, uma verdadeira preciosidade, que continuei enriquecendo nos meus anos de estudo na Europa, ultrapassando os 13.000 selos, bem organizados e catalogados. Eles foram para mim uma insuperável lição de história e um janela para o vasto mundo das diferentes línguas, culturas e países. Na Universidade Gregoriana, freqüentada por estudantes de 80 diferentes países, podia intercambiar facilmente selos com os outros seiscentos
colegas de minha classe de teologia. O álbum precioso do tio Arthur voltou para as mãos de minha tia Mercedes que o deu ao seu único neto, o Fernandinho.
A diversidade, na cidade de Lins,
não era apenas étnica, mas também religiosa e político-ideológica.. Aprendi, desde cedo, a conviver com famílias budistas e shintoistas da colônia japonesa, ortodoxas dos gregos Zarvos e Vassiliadis,
espírita dos Craveiros, nossos vizinhos, metodista, da Dona Odila Pacini, professora, colega e amicíssima de minha mãe e cuja filha Laís, futura regente do Coral Pro Arte, era da mesma idade de minha irmã mais velha, Lia. Havia ainda a família do Frei Bruno Palma que fora das fundadoras do Partido Comunista em Lins e do Sr. Pedro Guitti, um dos mais respeitados e graduados maçons da cidade. Meu avô, José Frederico Martins, fora também um dos fundadores da Loja Maçônica de Rio Claro, tendo-a abandonado, posteriormente. Bendita diversidade que abriu meus olhos para a multiplicidade das culturas e dos caminhos para Deus, para a riqueza do diferente e para a necessidade do respeito mútuo e da fraterna
convivência entre os que expressam distintas crenças, convicções filosóficas ou militância político-social.
ESTUDOS
Recordo-me de rápida passagem pelo Jardim da Infância, tendo Dona Arlinda, como professora, nos locais da antiga Escola Normal Livre de Lins, onde havia estudado o depois deputado Ulisses Guimarães. A escola ficava na esquina da Olavo Bilac, com a Paulo Giraldi (antiga Rua do Café), onde está edificado o Palácio Episcopal, alugado, atualmente, para o INSS.
Mas o lugar dos meus sonhos era o Grupo Escolar, onde minha mãe lecionava. Assisti, inconformado, a ida de minhas irmãs mais velhas, Lia e Mana,
para a escola. Aos cinco anos, queria acompanhá-las, mas se exigiam os sete anos para o ingresso no Grupo. De tanto infernizar a vida de minha mãe, esta permitiu-me que fizesse os testes de admissão para o Grupo, apenas completei seis anos. Eram necessários 12 pontos para se ingressar. Fiz 18, mas minha mãe alegou que não alcançara 24, a pontuação máxima, e não poderia matricular-me. Foi a primeira grande decepção de minha vida. Para evitar o choro a cada manhã, quando saiam minhas irmãs e minha mãe para o Grupo, fui enviado para a casa de minha tia Mercedes, irmã de meu pai, em São João da Boa Vista, onde fiquei durante três meses, longe dos irmãos e afastado da escola
O GRUPO ESCOLAR
O Grupo Escolar era o Dom Henrique Mourão, em homenagem ao segundo bispo de Lins, um prédio imponente, sede,
hoje, a Delegacia de Ensino, com porão, onde funcionavam algumas classes, o primeiro piso que se alcançava por uma escadaria à sua frente, na Rua Luiz Gama, e outra interna, e um segundo andar. Por detrás, estendia-se um pátio, com um galpão coberto, lugar preferido da criançada nas horas de recreio. Pelos corredores, havia cartazes pendurados com reproduções do descobrimento do Brasil, da primeira missa, da proclamação da independência, batalha de Riachuelo na Guerra do Paraguai , efígies de Dom Pedro I, Dom Pedro II, Duque de Caxias, Princesa Isabel e toda uma iconografia republicana, com Deodoro, Floriano, Benjamin Constant e outros. A história surgia como uma galeria de heróis e batalhas, forjando nas mentes infantis uma visão épica dos acontecimentos, longe da rude labuta quotidiana das maiorias e das fraquezas e ambigüidades das assim chamadas “grandes figuras”.
Os grandes ipês roxos que ladeiam o prédio, de um lado, e os brancos, do outro, foram plantados por minha mãe. Quando esta ficou na direção do Dom Henrique criou a sopa escolar para os alunos da “Caixa”, ou seja, para alunos pobres que dependiam da “Caixa Escolar” para comprar uniforme, sapato, livros, cadernos, lápis e borracha. Muitos deles desmaiavam na classe, pois chegavam à escola só com um gole de café e até mesmo de pinga, para enganar a fome. Com a sopa matinal de fubá com ovo e um pãozinho ainda quente, conseguidos através da cotização dos professores e doação das padarias, pois não havia programa de merenda escolar, subiu imediatamente o rendimento escolar e caiu a repetência. Outros alunos que não eram da caixa mas olhavam com olho cumprido o prato de sopa fumegante, podiam tomá-la, pagando uma módica contribuição que ajudava também a sustentar o programa
No ano seguinte, fui para as aulas. No fim de fevereiro, estava lendo, para a cozinheira da casa, a Ana Bergamo,
meu primeiro livro, “O Patinho Feio”. Daí para a frente, os livros foram meu mundo encantado e meu fascínio, pois, através deles soltava a imaginação, satisfazia a curiosidade e matava a sede de aprender. Dos livros, passei ao jornal que já tentava ler, antes mesmo de ir para a escola.
Nos primeiros meses de aula, fomos também preparados para a primeira comunhão, momento em que meu desejo de ser padre tornou-se mais forte e claro. Ganhei o primeiro terno, de calça curta, evidentemente, e Dona Marinette pintou-me uma bela fita com motivos eucarísticas.
No Grupo Escolar, ganhei alguns amigos: o Paulo Boaventura, o Paulão, filho da Dona Marinette e do Sr. Geraldo Boaventura da Casa Ipiranga, moradores do mesmo quarteirão na 13 de maio; o Deca, filho do Sr. Constante Costa e Dona Placidina Moreira; o Márcio, praticamente criado pela tia, Dona Clara Luswarghi,
que morava ao lado do Empório das Louças, na esquina da 15 de novembro, com a Luiz Gama. Gostava também do Aoki, cujos pais tinham casa de comércio na Olavo Bilac, ao lado das atuais Lojas Americanas.
De casa, escutava-se o sino que convocava os alunos para as aulas e, correndo um pouco, chegava-se a tempo de entrar nas filas que se formavam no pátio, para se subir às salas de aula. Ali tonitroava a voz do Prof. Sílvio, o diretor, procurando por fim à algazarra das crianças. Ouvi-o também reprovar, publicamente, com ameaças de denúncia à Polícia, os alunos cujos pais falavam japonês em casa ou que ensinavam a língua aos filhos. Saíamos do clima da guerra que fechara e confiscara em Lins o antigo Colégio dos Japoneses, transformando-o no quartel que abrigou o exército. Da impressão de que se perseguiam os japoneses, surgiu minha aproximação com os nisseis e suas famílias, meu interesse por sua cultura, língua e história, tão diferentes da nossa. Adulto, quando da campanha política do Engenheiro Waldemar Casadei, empenhei-me para que um dos seus compromissos, fosse reparar a expropriação indevida e injusta sofrida pela colônia japonesa, devolvendo-lhe seu antigo colégio e terrenos na Av. Duque de Caxias.
PROFESSORAS DO PRIMÁRIO
Foram três minhas professoras: Dona Clara Luswarghi, Dona Erci e Dona Augusta Melges de Andrade.
Dona Clara ensinou-me a ler e a escrever, ofício quotidiano desde aquele longínquo fevereiro de 1948, em que após três ou quatro semanas de aulas, consegui ler, com emoção e fascínio meu primeiro livro, soletrado, sentado num banquinho na cozinha da casa,
para a
cozinheira que precisava socorrer-me diante das palavras difíceis. Foi minha professora do primeiro e segundo ano. Era casada mas não tinha filhos. O sobrinho, Márcio, porém, hoje médico em São José do Rio Preto, era seu “filhão”.
Dona Erci pegou-me no segundo semestre do terceiro ano, em 1950, pois eu havia cursado o primeiro semestre em São João da Boa Vista, para um tratamento de saúde e uma operação de amígdalas, com o Dr. Romeu Furlanetto, cunhado de minha tia Mercedes, exímio pediatra e caçador de pacas e cotias, codornas e paturis. Com ele, sai muitas vezes para caçar, acompanhados pela Patuska e um bando de outros cães caçadores. Patuska, porém era a melhor de todos. Em Lins, no segundo semestre letivo, Dona Erci levava-me para casa, com outros coleguinhas, para colocar-me em dia com o programa seguido em Lins e que não coincidia com o da outra escola. Era solteira e bonita.
A professora, porém, que entrou em minha vida, foi Dona Augusta Melges de Andrade, pois tornou-se minha confidente e amiga. Queria, por toda lei, ir para o seminário, que já freqüentava, semanalmente, desde os sete anos, quando, aos sábados, ia procurar Mons. Luiz Gonzaga Pasetto para confessar-me e depois jogar bola com os seminaristas. Ficava para o almoço e ganhei, desde então, dos parceiros de futebol o apelido de “fila bóia”. À Dona Augusta confidenciei que meu pai não me havia dado permissão para ingressar no seminário. Tinha suas boas razões: eu estava com apenas dez anos e já tentara aos nove, ir fazer o quarto ano do grupo no Seminário Nossa Senhora do Rosário. Estávamos em 1951 e os estudos do Seminário não eram reconhecidos pelo governo. O reconhecimento só veio em 1954. Se saísse do seminário, precisaria recomeçar tudo de novo. Meu projeto entretanto não era sair e, por isso, não compreendia a recusa de meu pai. Dona Augusta, a quem contei minha frustração, propôs-me uma novena de missas antecedendo a festa de Santa Terezinha, no dia 3 de outubro. Fui às seis da manhã, durante nove dias, assistir à missa na igreja Dom Bosco, voltando, em seguida, com toda a convicção de que seria atendido, a reiterar o pedido a meu pai que me deu então a tão desejada licença.
Dona Augustinha, como era chamada, queria que eu fosse salesiano, mas os estudos eram em Campo Grande e minha ligação afetiva com o seminário Nossa Senhora do Rosário de Lins, com Mons. Luiz, que era o reitor,
e o Pe. Luis Crescenti, professor, fizeram-me optar por Lins. Em compensação, já passei por dois bispos salesianos, Dom Walter Bini e Dom Irineu Danelon.
A formatura do grupo foi solene, no Cine São Sebastião, e recebi, com orgulho, o diploma com cem de aproveitamento. No boletim, vinham sempre duas notas, uma de aproveitamento e outra de comportamento. No comportamento, nunca fui bem. Tomava castigo quase diário pois terminava rápido os afazeres e já punha-me a arreliar os colegas ou então sentava-me sobre o calcanhar quase inconscientemente e isto abaixava a nota. Uma vez, fiquei pela rua, com o boletim na mão e com vergonha e medo de voltar para casa, pois a nota de comportamento havia caído para sete. A vergonha e o susto foram tão grandes que, no mês seguinte, se não me engano, em setembro do quarto ano, tirei meu primeiro e último cem de comportamento No aproveitamento, raramente deixei de tirar um cem, o que me valia, a cada mês, o direito de retirar um livro na Livraria Moderna ou Craveiro. Minha mãe não gostava de comprar fiado em lugar nenhum. Os únicos estabelecimentos onde mantinha conta aberta eram as livrarias, estas duas já citadas e, depois, a das Paulinas, que funcionou, durante muitos anos, no antigo prédio do Correio, defronte à atual Casa da Cultura, na esquina da Osvaldo Cruz e da 15 de novembro, onde foi aberta, mais tarde a sorveteira Mont Blanc.
MÉDICOS
Apesar de muito pequeno, pouco mais de dois anos, ficou gravada a experiência dolorosa com o
Dr. Péricles da Silva Pereira, médico de nossa família, costurando-me a língua que ficara dependurada, presa apenas pela película debaixo, depois de um tombo escada abaixo da cozinha num dia de chuva, quando, engatinhando, tentava escapar de minha irmã Mana.
Lá pelos oito anos, um braço quebrado à altura do cotovelo, levou-me, depois de retirado o gesso,
para as sessões de massagem, choques elétricos e forno do Dr. Saburo Ishi, que era também massagista do Clube Atlético Linense. A ele, retornei muitas vezes, com um torcicolo, um entorse, uma dor lombar e era sempre atendido com aquele grande sorriso e seu português carregado de acento japonês. Muito cedo, aos onze anos já fiquei freguês do Dr. Rubens Furquim que continuou meu médico oculista até deixar de clinicar. Retornando a Lins, depois de padre, meu médico tornou-se o Dr. Antônio Gelis, por quem fui operado de uma hérnia inguinal e, depois, de uma fístula.
Para meus pais procurava o amigo, agora pranteado, Dr. Douglas e no acidente que sofri de bicicleta operou-me o Dr. Genshiro Aoki que a morte levou também de maneira muito prematura. Dr. Lauro Barral e Dr. Márcio, tornaram-se amigos por preocupações comuns com a vida da cidade e Dra. Yoko Kawahara, a conselheira, a quem encaminhei pessoas da comunidade, sempre que foi preciso.
ÁRVORES
Há em Lins, algumas árvores esplêndidas e algumas ruas que, ao chegar a primavera, são uma festa para os olhos. Nada porém iguala os ipês. Há um ipê roxo, nos jardins da frente da FAL e outro na Fazenda Fortaleza, de onde colhi sementes que se converteram nos ipês plantados no ITEL (Instituto Teológico de Lins) e no quintal da casa do Norberto e da Eufrásia, do Eduardo e da Stela Borges e ainda no jardim da clínica odontológica do meu irmão Augusto em São Paulo e na entrada da fazenda Santana do Waldir e da Zélia, cunhado e irmã. Há ainda ipês roxos na frente da Igreja São Benedito, um outro solitário na esquina da Rua Pirajuí com a Av. das Saudades e alguns pés de ipê roxo de bola um pouco mais claros no início da Nove de Julho, nos jardins do Templo Budista Taisen-jin que, quando florescem transformam sua copa contra o por do sol, numa catedral de cores, num jogo cintilante de luzes e sombras. Outro ipê roxo na Olavo Bilac, defronte ao Clube Linense, cobre a rua no amanhecer, com um tapete lilás, até que os carros esmaguem as flores.
Ipês brancos e amarelos
povoam as ruas por detrás do 21 de abril e a travessa da Conde d’Eu. Havia ainda um no quintal da casa, infelizmente demolida,
do fotógrafo e pintor Teisuko Kumasaka. Na falta das cerejeiras do Japão, Kumazaka deixava-se enfeitiçar, a cada primavera, pelo amarelo vivo e brilhante de suas flores e
todo ano, brindava-nos um quadro, sempre diferente com os ramos floridos do ipê amarelo depositados num vaso sobre uma mesa. Várias famílias de Lins e creio que mesmo a Prefeitura devem possuir algum destes quadros primaveris pintados até o outono de sua vida. Lins fica devendo um museu permanente com as obras de Kumazaka, Manabu Mabe e outros pintores que por aqui passaram ou que aqui viveram ou vivem. Por que não abrigá-lo na nova Casa da Cultura, recolhendo doações entre as famílias linenses, na Prefeitura Municipal, no Clube Linense? Penápolis, cidade bem menor, soube montar o seu esplêndido Museu do Sol.
Prosseguindo com as árvores, Dr. Rubens Furquim plantou na Praça Coronel Piza um pequena muda de pau-brasil, cuja irmã gêmea foi parar no ITEL. A muda da Coronel Piza que está pedindo uma plaquinha nova de identificação, cresceu, ali perto do túmulo dos linenses que caíram na revolução de 1932 e, para os quais, o batalhador Deusdedit Alves Palma pelejou a vida inteira por uma sepultura digna: os voluntários Vitoriano Borges, Rosalino Silva, Mário Camargo, João Batista de Araújo.
Ao lado da Catedral, a Colônia Japonesa por ocasião do cinqüentenário da imigração japonesa, organizou um jardim que bem poderia ser retomado em toda sua graça e refinamento. É uma memória importante das famílias pioneiras às quais tanto deve a cidade de Lins. Ali se misturam pequenas árvores orientais e frondosas sibipirunas nativas da terra brasileira, enquanto do outro lado, perto da Casa da Cultura, sobem esplêndidas palmeiras imperiais, que alteiam suas copas também no antigo Palácio Episcopal e na praça Mons. João Baptista Tóffoli diante da Igreja São Benedito.
Outro lugar em que as árvores encontraram abrigo e proteção é a Escola de Engenharia de Lins, onde o seu antigo diretor,
Dr.
Jairo, caprichou nos jardins e gramados, e encontrou nos diretores que o seguiram o mesmo carinho pelo embelezamento da escola e preservação do meio ambiente. A Faculdade de Odontologia de Lins, a FAL, o Complexo Salesiano e o Lins Country Clube são também exemplos deste cuidado com a natureza e certamente muitas outras pessoas e entidades, que deixei de mencionar aqui. A Paróquia São Benedito, durante a Campanha da Fraternidade de 1979, “Por um Mundo mais Humano” e cujo lema era “Preserve o que é de Todos”, plantou, com a mobilização de seus jovens e outros grupos, cerca de 900 árvores, o pouco de verde ali existente, numa área tradicionalmente esquecida pelos poderes públicos.
No ITEL, estão plantados, em toda sua volta, pinus eliotis e alguns pinheiros do Paraná, ipês roxos e amarelos, pés de pau ferro, sibipirunas, guarantã, cedro
e um pouco de cada uma das espécies nativas da nossa região, pelo cuidado do Luiz Eduardo Ramos Borges e as mãos do “Seu” Palherin que de plantas não entendia muito, mas abria as covas sem preguiça quando alguém o acompanhava...
E por último, sendo talvez o mais importante, o nosso Horto Florestal, um patrimônio da cidade, de onde, neste ano, estão saindo 20.000 mudas para repor as árvores que faltam nas ruas, arborizar novos bairros, embelezar as praças.
Falta ainda uma vigorosa política de recuperação das matas ciliares de todas as nascentes, rios e córregos do município e mesmo de reflorestamento de áreas degradadas e erodidas de muitos sítios e fazendas.
E por que não declarar área de proteção ambiental e de preservação ecológica o único resto de mata nativa nos arredores da cidade, no triângulo entre a Rondon, a Estrada dos Patos e a BR 153?
FRUTAS
As frutas da infância estavam no quintal de casa: dois pés de manga rosinha,
o de caju, de fruta do conde, o de goiaba, os das videiras plantadas pelo vovô Mário, o de limão, o de mexerica e laranja. O difícil era segurar a criançada para não as apanharmos do pé, ainda verdes.
Mas havia ainda o olho comprido para as mangas bourbon no quintal da Dona Enóe, que “seu “ Lordello colhia cuidadosamente, numa latinha presa na ponta de um longo bambu, para os seus figos, no corredor da casa, e para os ramos da parreira que se debruçavam sobre o muro e deixavam alguns cachos de uva ao nosso alcance. A festa era quando “vovó” Alda, que sem ser avó de verdade, era assim chamada, convidava a criançada toda para irmos ao imenso quintal de sua casa, na Av. Dom Pedro I, coberto de jabuticabeiras. Podíamos subir nos pés, fartar-nos e voltar para casa sujos e com dor de barriga Alguns domingos, pela tarde, íamos de charrete para a chácara da Dona Luísa Rebouças. Sinto, até hoje, o perfume dos jambos que podíamos pegar pelo chão debaixo da árvore.
Outras frutas eram caras e importadas, como as maças argentinas que só compareciam em casa, quando tínhamos diarréia, parávamos de comer e ganhávamos direito à maça raspada com a colherinha de chá e garrafa de água gasosa da
Prata.
Por vezes, era difícil lembrar-se de todas as recomendações da mãe: “caju mancha a roupa, tire a camisa para chupá-lo”; “jabuticaba também mancha”; “goiaba tem bicho”, “manga verde faz mal”; “manga com leite dá congestão”; “engolir o caroço da jabuticaba dá prisão de ventre”.
DOCES
Havia os de cada dia e os especiais para aniversários e festas ou determinadas épocas do ano: doce de leite, bala de café, bala de coco, doce de abóbora, às vezes cristalizados, secados no telhado da garagem (onde não havia carro e se passava a roupa e guardavam-se os badulaques da casa, pois meu pai era inveterado guardador de coleções de revistas, pregos, parafusos, latinhas, ferramentas quebradas, barbante e tudo mais que um dia poderia servir, mas nunca era utilizado), doce de figo em calda, doce de casca de laranja. Especial era uma goiabada cascão feita no tacho de cobre, um bom rocambole recheado de goiabada e com açúcar queimado com ferro em brasa, o pavé com biscoitos champagne e vinho branco, prato preferido de minha irmã Lia e que sabia preparar eximiamente, o doce de coco ralado, cozido na gema do ovo e servido em cálices de cristal, em dias de festa, o brigadeiro dos aniversários, complemento do bolo com velinha e guaraná champagne da Antártica.. No tempo de Natal, era encarregado de amassar farinha, ovos, com leite e fermento, deixar descansar e crescer, colocar uva passa e frutas secas, para assar os panetones. E havia sempre um bom suspiro com as claras de ovo que iam sendo guardadas na geladeira. A disputa maior era pelo restinho da vasilha, onde as claras eram batidas em neve com açúcar e um pouco de casca de limão ralado, antes de irem para o forno, virar suspiro ou simplesmente, no tempo dos moranguinhos, para as tacinhas compor um belo contraste de branco e vermelho vivo, de ácido e doce.
De fora de casa, o pai trazia, às vezes, latas de doce sírio e, aos domingos, no passeio pela tarde ao jardim e à Leiteria Central, em frente ao antigo Cine São Sebastião, hoje Banco Real, tínhamos direito de escolher entre uma barra de diamante negro e um saquinho de pipoca. Havia sempre as trocas entre os oito irmãos e irmãs de um punhado de pipoca por um pedaço de chocolate e a inevitáveis arreliações daquele/a que guardava escondido seu chocolate para comê-lo depois, lentamente, mostrando-o aos demais já haviam terminado o seu e fazendo-lhes
“vontade”. O chocolate era mostrado triunfalmente e acompanhado duma bem sonora “vontade” e que podia terminar em choro e numa repreensão dos pais e mesmo nuns tapas, para recomeçar tudo igual no domingo seguinte
Os pais não gostavam muito mas eram inevitáveis a carrocinha do algodão doce, os pirulitos do seu Zica, o reco reco do homem do biju, o quebra queixo e as balas de alfenim da esquina do grupo, o mantecal da Padaria Luso-Vitória que valeu-me, aos onze anos, uma terrível infeção intestinal que deixou-me um mês de cama, afastado dos estudos no seminário e um aparelho intestinal vulnerável até hoje.
SEMINÁRIO DIOCESANO NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO
O Seminário Menor de Lins, Nossa Senhora do Rosário, foi fundado por Dom Henrique César Fernandes de Mourão, bispo de Cafelândia de 1936 a 1944, mas que construiu, em Lins, o Seminário, o Colégio Salesiano e a Escola Normal Nossa Senhora Auxiliadora e já iniciara, em Roma, tratativas infrutíferas, naquele momento, para que a diocese de Cafelândia se tornasse diocese de Cafelândia/Lins, com uma dupla sede, para não ofender Cafelândia. Roma exigia a escolha entre uma ou outra. Dom Henrique Gelain acabou consumando a dolorosa opção, em 1950, não podendo por um bom tempo, retornar ao município vizinho, ofendido pela perda da sé episcopal. Foi parco consolo para Cafelândia, o título de Concatedral, dado à Igreja de Santa Isabel, réplica da igreja de Santa Cecília em São Paulo.
O Seminário começou a funcionar em 1942, com traços arquitetônicos neocoloniais, em desenho de Benedito Calixto Neto, um dos mais afamados arquitetos religiosos do país de cujo escritório saíram também os projetos da Igreja Dom Bosco e do Palácio Episcopal. Tinha duas alas interligadas. Na primeira, ficava a Capela, doada, em grande parte, por Dona Corina Junqueira de Andrade, seguida do refeitório e da cozinha. A segunda, abrigava no andar térreo, o salão de teatro, que servia de local de estudos dos menores, um outro salão de estudos, dos maiores, e um apartamento onde morava o diretor espiritual. Na andar de cima, ficavam os dois dormitórios, dos maiores e dos menores, separados pelas instalações sanitárias e banheiros. Unindo as duas alas, ficavam as salas de aula e, no centro, a entrada principal, com um segundo andar. Ali, no alto, morou Dom Henrique Gelain até que fosse concluída a construção do Palácio Episcopal. Na parte inferior, ficava o quarto e o escritório do Reitor. Um claustro coberto unia todo o conjunto dando para um pátio interno em dois patamares. Um muro de arrimo, sustentava a parte mais alta do terreno que dava para Rua Dom Lúcio e onde ficava o campo de futebol. No meu tempo, construímos novo campo de futebol, paralelo à Rua da Liberdade, no espaço do terreno que dava para a Escola Normal N. S. Auxiliadora. Não faltou seminarista que foi pego no alto de um eucalipto, olhando o pátio da Escola Normal, onde brincavam as alunas, curiosidade castigada com expulsão Não sei se foi essa a razão da derrubada dos eucaliptos ou apenas a necessidade de mais um campo de futebol para abrigar jogos simultâneos dos maiores e menores
REITOR, PROFESSORES E COZINHEIRA
O Reitor, desde a fundação, foi o Mons. Luiz Gonzaga Pasetto que acumulava as funções de vigário episcopal, braço direito de três bispos, Dom Henrique Mourão, Dom Henrique Gelain e Dom Pedro Paulo Koop. Latinista refinado, profundo conhecedor de nossa literatura, professor de História do Brasil, foi um dos fundadores e primeiro Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Lins, a nossa FAL, que começou funcionando em 1956, no prédio da Escola Normal N. Senhora Auxiliadora.
Ingressei no Seminário, em fevereiro de 1952. Este proporcionava estudo puxado, aulas de latim e português, todos os dias, de segunda a sábado, com trabalhos diários de versão, tradução e análise sintática, para o latim e de redação de algum tema, para o português.
Oferecia também lazer: futebol, pebolim, todo dia, após o almoço, quase sempre de pé descalço; passeio, na quinta feira de manhã e vida cultural intensa: grupo de teatro ensaiado pelo Pe. Otacílio dos Salesianos; sessões da Academia Literária; ensaios da Schola Cantorum que devia abrilhantar as missas de domingo do seminário e todas as celebrações do Bispo diocesano na Catedral, mormente durante a Semana Santa. Não faltava a esperada ida anual para a missa da festa de São João Batista, em Guaiçara, onde era vigário nosso professor, Pe. Lino Braz Bannwart e que nos brindava depois uma boa merenda, com chocolate, bolo e refrigerantes ou para alguma ocasião muito especial, como a dos 25 anos de sacerdócio do Mons. Victor Ribeiro Mazzei, com missa na matriz de Araçatuba.
Ao lado do reitor, Mons. Luiz Gonzaga Pasetto e depois, Côn. Ôrides Frassoni, atual vigário de Andradina; do diretor espiritual, Mons. José Silveira Barbosa, do prefeito de disciplina, Cônego Santucci e depois Elzo Cizotto; dos professores prof. Maurício de português, Cônego Toffoli de italiano, Côn. Lino Braz Bannwart de francês e trigonometria, Pe. Norberto Massaru Kondó, de álgebra, Pe. Arnaldo, de Física e Música, Pe. Santucci de latim, Pe. Otacílio, de História, Pe. Vanin de português e latim, Cônego Orides de Grego e Latim, Mons. Luiz de literatura, Pe. Elzo Cizotto de Química e Astronomia,
havia uma outra figura inconfundível. Pequena, encurvada e enrugada, com seus quase oitenta anos, madrugava para fazer o café da manhã, em grandes bules de café com leite, servido com pão seco para 100 meninos irrequietos que haviam levantado às 5:30 e passado pela meditação e missa diárias. O almoço já era servido às 11:00 horas para cem esfomeados, após as aulas da manhã e o jantar às 17:30. Dona Augusta não era de muita prosa e, depois do almoço, ficava sentada, num beiral baixo, ao lado da cozinha,
pitando devagar seu cachimbo de barro com fumo de corda picado. Era o descanso da nossa “Dona Benta”, a mãe preta que, com apenas uma ajudante, tocava aquela cozinha enfumaçada de fogão a lenha. Quando construímos o campo novo de futebol, abatendo os eucaliptos que cobriam aquela parte do terreno, todo ele foi picado a machado ou serrado no trançador e devidamente amontoado para servir de lenha para o fogão da Dona Augusta.
Pe. NORBERTO MASSARU KONDÓ
Pe. Kondó era figura especial, com sua motocicleta preta, barulhenta que fascinava a meninada que nunca conseguiu descolar uma voltinha na sua garupa. Com a moto, ia e vinha até o bairro da Fátima, onde começara a construir a primeira capela. Quase morreu uma vez quando a moto rodopiou num areal na Mal. Rondon, jogando-o longe ralado e machucado. Não sei se foi o susto ou o pito do Bispo, o certo é que a moto foi trocada por um jeep
da
II Guerra Mundial que Pe. Kondó rifou inúmeras vezes, anunciando sempre como um Jeep americano importado, junto com uma máquina de costura importada do Japão e que era a velha máquina de sua mãe já idosa. O terceiro prêmio era uma máquina fotográfica também importada, mas bastante antiga e usada. Como o número de bilhetes era grande e muitos talões ficavam sem vender, os prêmios sempre saiam para o próprio santuário e voltavam a figurar numa nova rifa, até o dia que um infeliz ganhador de São José do Rio Preto veio buscar o seu jeep importado e encontrou, na garagem do padre, uma lacraia velha à qual o Pe. Kondó, havia soldado um novo lance de carroceria, onde podia transportar mais cimento, tijolos e areia para a construção do santuário. Deu muita confusão e o ganhador teve que se conformar, finalmente, com aquele monstrengo antiquado. No Seminário, Pe. Kondó ensinava-nos a fazer correntinhas de arame e terços com contas de capim, contas de caroço de azeitona e vidro colorido. Ter o próprio alicate e construir à perfeição as correntinhas com argolinhas absolutamente iguais era um orgulho, assim como ter as continhas do terço bem travadas, em cada ponta, para não ficarem rodando, era uma arte. O atrativo maior, porém, era a promessa de um prêmio, a cada final de semestre, para quem fizesse o maior número de terços, o que nos levava a uma corrida que não poupava recreios, filas para as aulas ou a capela, quando o bedel não estava olhando e até, furtivamente, nas horas de estudo quando, com as mãos por debaixo da carteira, continuávamos a fabricar os terços do Pe. Kondó. O prêmio era um quadrinho pequeno com um santinho dentro e que nós mesmos fabricávamos Eram centenas e centenas de terços, pois nos sábados e domingos, os mais rápidos, conseguíamos fazer mais de vinte,. Tudo porém era feito com alegria para a construção do Santuário de Fátima e pelas missões, para as quais também juntávamos selos usados.
FUTEBOL, PIÃO E BOLINHAS DE GUDE
Outra labuta era remendar as bolas de futebol que quando estouravam de vez, depois de dezenas de remendos, eram imediatamente substituídas por bolas de meia, para não parar o jogo. O seminário era pobre e uma bola nova era raridade. Mas havia exímios artesãos entre os meninos que colavam as câmaras e remendavam o couro, quantas vezes fosse necessário, com um barbante passado no breu para ficar mais resistente e poder entrar pelo fundo da agulha.
No seminário, havia tempo para diferentes jogos e diversões: tempo do pião, com campeonato para ver qual deles rodava por mais tempo; tempo das hélices, arrancadas, pacientemente, a golpe de canivete de um pedaço de madeira macia, como o cedro, armadas sobre um carretel enfiado num pauzinho roliço, que permitia, com um cordel enrolado e puxado com força, girar o carretel com toda velocidade, lançando a hélice no espaço. A disputa era para ver qual hélice ia mais longe e voava mais alto. Havia ainda o tempo das bolinhas de gude e dos campeonatos de futebol com botões. Fechado entre quatro muros, a imaginação corria solta e, em dias de retiro, no recreio silencioso, fundíamos o chumbo dos tubos de pasta de dente dentro de moldes de barro, para colocá-lo numa caixinha de fósforos e servir de goleiro nos jogos de futebol com botões. Pobre dos paletós ou qualquer outra roupa que ostentasse um botão maior que pudesse servir para completar o time
Concluído o seminário menor em 1957, comecei um longo caminho de estudos que, por quase onze anos, afastaram-me de Lins: filosofia em São Paulo e Aparecida;
teologia, em Roma; Ciências Sociais, em Louvain, na Bélgica.
A CIDADE, UM MUNDO SOCIALMENTE CONSTRUÍDO
A cidade, como espaço problemático, já vinha aflorando em minha consciência, pelo grande número de pobres que batiam à porta de nossa casa e da Dona Enóe, nossa vizinha, pedindo um pão ou um prato de comida, sem nunca serem despachados de mãos vazias; pela necessidade de iniciativas das quais participava minha mãe, Lactário Linense, Creche São Francisco, Roupeiro de Santa Rita, Natal Social Cristão, Vicentinos da Catedral, onde meu pai redigia as atas das reuniões. As entidades todas pareciam nunca dar conta das necessidades, nem diminuir o número de pobres. O impacto maior veio em 1957/58, quando o governo implantou o programa de financiamento para a erradicação de cafezais de baixa produtividade. Da noite para o dia, mesmo sem esperar a colheita e eliminando até lavouras ainda novas e produtivas, para pegar o dinheiro do financiamento, as fazendas liquidaram suas plantações de café, arrancando-as com trator e despejando na cidade centenas de famílias, sem trabalho e sem ter onde morar. Não havia legislação trabalhista, nem indenização prevista. Esta tragédia social perturbou-me profundamente e foi o ponto de partida de minha decisão de estudar ciências sociais. Compreendi, naquele momento, que o evangelho não podia ficar indiferente à dor e ao desamparo dos pobres, nem se furtar à busca de
soluções mais eficazes e duradouras, que fossem além do socorro imediato à fome e ao desespero das pessoas. Não havia ainda compreendido, naquela época, que as mudanças não dependiam apenas da compreensão teórica dos problemas, nem de bons planos e boas leis, mas igualmente da capacidade de mobilização e organização social e política dos próprios interessados e que os movimentos sociais, eram o dinamismo principal para se alcançar transformações na sociedade.
Tendo saído de Lins, em fevereiro de 1958, para estudar filosofia em São Paulo, só retornei em fins de março de 1968. Voltava, com muitos anos de estudos, e pouca experiência, com exceção do catecismo para crianças da periferia de Roma, o trabalho de fim de semana como coadjutor numa paróquia central de Bruxelas, a do Béguinage e o de capelão dos estudantes brasileiros e latino-americanos na paróquia universitária de Louvain.
Aqui recomecei a vida, morando na residência episcopal, onde Dom Pedro Paulo cedera-me o melhor quarto da casa e o maior espaço, a antiga sala do trono, para instalar os meus livros. Integrei-me à equipe do Secretariado Diocesano de Pastoral, com responsabilidade pela Pastoral da Juventude e a Pastoral Universitária, o Jornal Bandeirantes, o ITEL, o Seminário Interdiocesano de Filosofia e sobretudo São Benedito. Mas tudo isto necessita de um novo caderninho que fico devendo aos amigos e amigas e, de modo particular às queridas comunidades de S. Benedito, Sta. Rita, Divino Espírito Santo, Sta. Edwiges e Sagrada Família que, junto com o Pe. Hugo d’Ans, atendemos há vinte anos.
Lins, 27 de novembro de 1998
Pe. José Oscar Beozzo
Rua Oliveira Alves, 164
São Paulo - SP
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Tel: 55-(0) 11-273 55 33
Fax: 55-(0) 11-6168 6898
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