P – Qual é o seu nome completo, data e local de nascimento?
R - Meu nome é Leila Maria Martinho Novak. Sou paulistana e nasci em 23 de abril de 1954. Passei toda minha vida na capital e, em determinado momento – que a gente não sabe, quero dizer, que eu não sabia muito bem o porquê –,...Continuar leitura
P – Qual é o seu nome completo, data e local de nascimento?
R - Meu nome é Leila Maria Martinho Novak. Sou paulistana e nasci em 23 de abril de 1954. Passei toda minha vida na capital e, em determinado momento –
que a gente não sabe, quero dizer, que eu não sabia muito bem o porquê –, minha família foi se mudando para Atibaia, no interior de São Paulo. No início era só para lazer, mas depois a família inteira estava morando na cidade, menos eu. Quando ia para lá nos fins de semana, dizia para mim mesma: “Imagina, que coisa chata morar no interior”. E não me conformava por todo mundo estar lá. E aí, na época, o prefeito, um conhecido da minha cunhada, acabara de ganhar a eleição. A mulher do prefeito tinha de trabalhar na área social, mas não entendia nada do assunto e comentou com minha cunhada, que falou a meu respeito: “No fim de semana a Leila vai estar aqui e eu vou te levar até ela, que é assistente social. Ela vai te dizer alguma coisa.”
P – Em que ano foi isso?
R - Foi no final de 1992 e o prefeito iria assumir em 1993. E nesse encontro, a mulher do prefeito queria saber como seria desenvolver um trabalho social na Prefeitura. A pergunta direta me chocou e respondi: “Como é que, no final de semana, a gente aqui na beira da piscina e do churrasco, pode-se discutir uma coisa tão importante, mexer com a área social de um município”? E, também, eu nunca pensei que em Atibaia houvesse pobreza. Todo mundo que tem casa em Atibaia é rico e vai lá passar os fins de semana. Era assim que eu via Atibaia. Minha chácara é longe do centro e eu não tinha acesso à área urbana. Aí eu disse à desesperada mulher do prefeito: “Olha, eu estarei todo o mês de janeiro em férias aqui em Atibaia. Vou conhecer um pouquinho da realidade da cidade e depois procuro a senhora.” E assim eu fiz. Trabalhei um mês inteiro para montar um programa na área social. Fui às favelas, conheci um lixão que era muito perto de minha chácara e eu não sabia. Muitas famílias vivendo do lixo, à margem do rio, em área invadida da Fepasa. Quando levantei e apresentei a ela todos os problemas possíveis naquele mês de janeiro, ela me convidou para assumir a Secretaria de Assistência, que estava sendo montada. Foi aí que conheci o prefeito e percebi que ele estava realmente interessado em resolver esses problemas. Fui para casa e falei para meu marido: “Vamos nos mudar para Atibaia” (risos). Ele me respondeu que eu estava louca e disse que queria continuar em São Paulo. Mas o chamado de Atibaia era muito forte e eu o convenci. A época era propícia, também para meus dois filhos pequenos, no final de janeiro, e deu tudo muito certo.
P – Esse pode ter sido o embrião do Curumim?
R - Pode-se dizer que sim. Comecei a trabalhar na Prefeitura, no desenvolvimento da área social e me chamava muito a atenção o lixão e tudo aquilo que eu via naquele entorno. Fui criada em um lar espírita, com muitas discussões sobre religião com meu pai e, uns dois anos antes de me mudar para Atibaia, eu tinha feito um pacto com meu pai Eu disse: “Olha, não é possível só viver essa vida de alegria, de felicidade. Qual será, então, nossa missão?”. E ele disse: “Isso é interior, é de cada um”. Respondi: “Ah, mas vamos fazer um pacto. Vamos combinar entre nós uma música. Vamos ouvi-la na hora em que for preciso. Ela será um sinal de quem morrer primeiro para ajudar o outro a encontrar e realizar a missão com muita garra.” E em fevereiro de 1993 assumi a Secretaria. Dois meses depois, em abril, meu pai faleceu. No mês de agosto, uma senhora telefonou para a prefeitura. Atendi e ela queria falar com a Lílian. Respondi que não havia nenhuma Lílian na Secretaria e que meu nome era Leila: “Será que a senhora não se confundiu?” Era a voz de uma pessoa idosa: “É com você mesma que eu quero falar. Mas seu nome não é Leila, é Lílian.” Aí, na hora me veio à mente que, quando eu nasci, meu pai mudou meu nome para Leila, pois minha mãe queria, de todo jeito, que eu me chamasse Lílian. “Ora, realmente, minha senhora, eu era para ser Lílian. Vai ver que a minha energia é de Lílian. O que é que a senhora deseja?”. Ela respondeu: “Eu quero que você venha tomar um chá comigo. Eu sou a dona Jane, do Lar Brogotá”. Eu sabia que essa entidade existia há muitos anos, mas respondi que naquele dia eu não poderia ir. Ela ficou brava: “Não, você pode. Você vai vir hoje”. Respondi: “Olha, então vamos fazer o seguinte, eu vou resolver aqui algumas coisas e depois eu vou”. Aí me lembrei que, quando era pequena, estive na casa dessa senhora, que era espírita e na verdade se chamava Júnia Machado, mas era conhecida por dona Jane. Perguntei a uma amiga sobre a dona Jane e soube que ela estava em cadeira de rodas: “Está muito mal, na cidade comentam que ela é louca. Fui lá com essa amiga e dona Jane nos esperava na porta, em pé, sem nenhuma cadeira de rodas e com um maço de flores na mão. E quando nós entramos, a música que eu tinha combinado com o meu pai tocava em todas as caixinhas. Era uma casa imensa e tinha caixas de música que tocavam alto, pelo menos para mim, e comecei a chorar. Eu falei: “Meu Deus, cheguei aonde eu pedi.” E a dona Jane, com um molho de chaves na mão, as flores na outra mão, me disse: “Vou te mostrar toda a casa.” Ela andava muito rápido. E haviam me dito que ela estava cega. Pensei comigo mesma: “Acho que não é a mesma dona Jane”. Mas a Vera me confirmou: “É sim, é ela mesma”. Eu perguntei: “Vera, você está ouvindo a música”? Ela me respondeu que não estava ouvindo nada. Quando terminamos de conhecer a casa, que era um labirinto, eu me sentei. A música parou. E a dona Jane falou que a música estava realmente tocando: “A música que você combinou com o seu pai”. Disse a ela: “Bom, dona Jane, o que é que eu vim buscar”? Ela me deu o molho de chaves e respondeu: “A casa está aberta para que você inicie sua missão”. Saí de lá e disse para minha amiga: “Vera, minha vida mudou”. E a Vera não estava entendendo nada. Fomos embora. À noite, falei para meu marido: “Rodolfo, mudamos de vida”. Ele disse: “Outra vez”?
P – O encontro com a Ashoka foi bem depois?
R - Conheci a Ashoka em 1998. Dois anos antes, em 1996, conseguimos operacionalizar a casa, depois de entender o que seria exatamente a missão. E, quando tive a certeza de que iria trabalhar com o pessoal do lixão, estudei tecnicamente o que poderia ser feito. E daí surgiu o projeto Curumim, que começou a funcionar naquela casa. No primeiro momento, o trabalho foi com as crianças do lixão. A idéia era tirar as crianças do lixo e depois pensar sobre o passo seguinte. E para tirar a criança do lixo era preciso devolver alguma coisa para ela. O trabalho foi intuitivo. Desenvolvemos um selo azul, parar chamar a atenção das pessoas para não dar lixo nem esmolas e, sim, oferecer o direito à criança de estar em um projeto social. Então escrevemos um projeto para a Ashoka. Saí da Prefeitura e fui fazer o que eu achava que eu tinha de fazer. Hoje, damos assistência a todas as famílias, com uma política pública. Não é mais um lixão, é uma cooperativa, e percebi que posso ganhar dinheiro para sobreviver dando assessoria na área de sustentabilidade. Faço meu trabalho em outros locais e cobro por essa assessoria.
P – Como foi o processo de seleção na Ashoka?
R - Na primeira entrevista, senti que eu não tinha que contar nada disso que hoje eu conto muito naturalmente sobre minha missão. E aí eu só me enrolei. Porque tudo que eu falava não era a minha verdade. Foi uma calamidade a minha primeira entrevista. Então eu decidi refazer toda minha carta-proposta, apesar de dizerem que estava ótima. Eu tinha 24 horas para refazer tudo e, realmente, passei 24 horas refazendo aquilo tudo que estava dentro de mim. E voltar para a minha verdade significou encontrar meus iguais, porque quando a gente fala de uma missão, não importa a religião, a gente tem propósitos muito semelhantes, que é mudar o mundo.
P – Como é que você descreve o período de três anos?
R - Eu já estava em uma paz interior enorme no primeiro ano e apenas tentando adequar minha missão à sustentabilidade, que foi imaginada desde o início do processo. Como é que todo o trabalho vai ficar quando eu não estiver aqui? E não é só sustentabilidade para as comunidades que atendemos hoje, mas a sustentação do próprio projeto. Não se tinha uma rede de parceiros. O primeiro ano foi assim. No segundo ano, o governo estadual e o federal eram os que se encaixavam mais no projeto, porque terminar com os lixões e transformar o problema em política pública era interessante e boa para os governos. Mas quando você aumenta tudo isso para outros municípios – hoje são 11 municípios ditando essa política, fechando lixão –, você começa a incomodar muita gente. E aí é preciso procurar parceiros também na iniciativa privada. Crescemos muito no segundo ano, também porque a Ashoka é uma porta aberta, bem conhecida. E nós achamos um parceiro ótimo, o Maurício de Souza. Ele abraçou o projeto e acabamos fazendo um plano de negócios, comprando uma unidade móvel para nos deslocarmos para diversos lugares. E chegamos a uma conclusão. Precisamos dos governos municipal, estadual e federal e, mais do que isso, de parceiros com dinheiro. Parcerias que possam não só trazer recursos, mas conseguir coisas materiais, que é o que ficou para nós de concreto no segundo ano.
P – O plano de negócios que você citou é o da McKinsey?
R - Isso mesmo. Começamos a desenvolver um plano de negócios pensando em uma parceria com o Maurício de Souza,
que nos disse: “Esse negócio é bom. Mostrar para uma criança que brinca no Parque da Mônica que fazer papel reciclado é muito interessante. O que vocês falam para essa criança?”
Começamos a explicar sobre a conscientização do meio ambiente através da técnica de reciclagem do papel e a criança está aberta para isso. Nós temos vários patrocinadores, vários apoiadores. É preciso ter essas parcerias. Quando o Maurício de Souza está em um coquetel e diz que é parceiro do Projeto Curumim, ele nos dá a oportunidade de conseguir novos parceiros. Então a unidade móvel, que foi o nosso plano de negócios, significa que o Mauricio de Souza paga para que eu faça unidade móvel em escolas de todo o Brasil. Ele quer levar escolas para o Parque da Mônica e quando eu vou nessas escolas falar de ecologia, do meio ambiente, ensinar a criança a fazer papel, eu digo: “No Parque da Mônica você tem tudo isso porque somos parceiros e a peça de teatro, tudo o que o Parque da Mônica hoje desenvolve está voltado para o meio ambiente”. Então, esse processo de, juntos, acharmos o interesse comum para nós e para ele fez com que esse plano de negócios desse muito certo. E hoje a gente vende essa unidade móvel também para as prefeituras. Estou de volta a São Paulo, mas entendi todo o processo de minha vida. Abri minhas portas, fui para Atibaia, fiz tudo o que tinha de fazer e hoje minha dedicação ao Projeto Curumim são dois dias por semana. Hoje há uma equipe de funcionários contratados e o que tenho de fazer é captar recursos. Sou consultora na área de sustentação de projeto social em muitos lugares e é assim que me sustento. O projeto está bem equilibrado e a Ashoka tem parte importante em tudo isso porque me fez entender, principalmente em todos os cursos de captação, o que é ter parceiros. E de que forma o projeto deve seguir, mesmo sozinho.
P – Como foi sua interação ano a ano na Ashoka?
R - Bom, no primeiro ano a gente fica bastante confuso. Eu acho que os colegas também. Porque a seleção é feita no Rio e você está em São Paulo e o Rio não definiu muito bem para a gente, ou pelo menos para mim, o que o escritório de São Paulo fazia. Então, eu me reportava muito ao Rio. Quando começaram os cursos de captação e de capacitação é que entendemos o que existe em São Paulo. Além de estar no grupo do meio ambiente, entrei também para o grupo da educação. Escrevemos o livro do meio ambiente, com todos os fellows do setor. Isso uniu muito a rede. Aí eu entendi como trabalhar as parcerias. Enfim, o Curumim se mete em tudo o que está acontecendo para saber onde é que a gente pode ter parceiros. Mas acho que falta muito ainda o trabalho em rede. É preciso articular muito mais esse trabalho porque, às vezes, você faz um projeto de captação de recursos que poderia ser usado também em outro projeto. Então, se eu sei qual o projeto que está precisando, eu disponibilizo a parceria.Recolher