Projeto: Aché
Entrevistado por: Immaculada Lopez e Juliano de Lima
Depoimento de: Flávio Adolfo Costa Vaz
Local: São Paulo
Data: 21/06/2002
Realização: Instituto Museu da Pessoa
Código: ACHE_HV038
Transcrito por: Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisado por: Stella Talita D’Avansso
P...Continuar leitura
Projeto: Aché
Entrevistado por: Immaculada Lopez e Juliano de Lima
Depoimento de: Flávio Adolfo Costa Vaz
Local: São Paulo
Data: 21/06/2002
Realização: Instituto Museu da Pessoa
Código: ACHE_HV038
Transcrito por: Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisado por: Stella Talita D’Avansso
P/1 – Para começar, doutor Flávio, eu peço para o senhor dizer seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Flávio Adolfo Costa Vaz. Nasci em Natal, Rio Grande do Norte. No dia 31 de Janeiro de 1938.
P/1 – A família é lá do Rio Grande do Norte então?
R – A família é nordestina. Meu pai é alagoano e minha mãe é pernambucana.
P/1 – E o senhor vem para São Paulo quando?
R – Eu vim para São Paulo em 1965.
P/1 – Veio para estudar?
R – Vim para estudar. Completar, naquela ocasião, o Científico.
P/1 – Certo. E a faculdade? Quando o senhor inicia?
R – A faculdade aqui eu entrei em 1960, em 1959.
P/1 – 1959.
R – Isto.
P/1 – Qual o curso?
R – Espera um pouquinho. Deixe-me ver se foi isso mesmo. É, Medicina. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Exatamente. Entrei em 1959 e me formei em 1964.
P/1 – Como surgiu a idéia de fazer Medicina, doutor Flávio?
R – Olha, eu venho de uma geração de médicos. O meu avô era médico. O meu pai médico. E esse hábito, esse costume, já vinha de longe. De longa data. Mas não foi o fator decisivo. Talvez tenha sido o fator que auxiliou na minha definição. Então, a minha mãe durante algum tempo fazia o papel de enfermeira. Não graduada, mas exercia essa função. Quer dizer, então o ambiente contribuiu muito para essa decisão, não é? E eu já abracei essa meta desde tenra idade.
P/1 – E o senhor decidiu vir estudar em São Paulo?
R – Ah, sim. Quando surgiu aquele momento que nós temos de decidir: “Aonde eu vou fazer o curso superior?”, então certamente veio em mente qual era o melhor centro. Naquela altura disparadamente São Paulo. A Universidade de São Paulo já ocupava o centro das atenções da Ciência. Particularmente da Medicina.
P/1 – E o senhor lembra da notícia de que passou na faculdade?
R – Eu lembro como se fosse hoje.
P/1 – Como foi esse dia?
R – Porque eu reputo que existem dois concursos que marcam a vida de uma pessoa. O primeiro deles, mais importante, é o vestibular. E para quem vai abraçar a carreira universitária é o concurso de professor titular. Então foram as duas grandes emoções que eu tive. E a sensação do vestibular que foi a primeira delas, uma concorrência muito grande. Naquela altura, eu nunca fui uma pessoa assim abonada economicamente, então aquilo representava muito, não é? E ingressei na Faculdade de Medicina da USP em razão da qualidade, da excelência da faculdade como também pelo fato de ser uma faculdade grátis. E eu não podia pagar uma faculdade de Medicina. Então ao olhar, as provas eram eliminatórias e ia eliminando uma por uma e quando chegou a última fui ver o resultado. E estava lá meu nome. Então é uma sensação indescritível.
P/1 – Isso ainda em Natal? Ou já era aqui?
R – Não, aqui na faculdade de São Paulo.
P/1 – As provas foram feitas aqui.
R – Foram feitas todas aqui. Eu concluí o curso Científico aqui em São Paulo.
P/1 – Ah, tá certo.
R – E prestei vestibular aqui em São Paulo, na faculdade.
P/1 – E a notícia para a família?
R – A notícia para a família foi outra coisa curiosa. Porque nessa altura a minha mãe esperava, me esperava no portão de casa. Então quando eu desci do ônibus e apontei ali ela já teve certeza que eu tinha entrado. Aquele feeling que as mães têm, né? Foi muito emocionante.
P/1 – A família do senhor se mudou para cá também? Também estava morando aqui?
R – Se mudou para cá.
P/1 – E quando o senhor entrou na Medicina o pai do senhor ainda atuava como médico?
R – Atuava, só que não em São Paulo. Atuava em São Luís, no Maranhão.
P/1 – Tá certo.
R – Ele é médico sanitarista então ele tem que percorrer bastante as regiões Norte e Nordeste, que faziam parte da função dele. E quando entre as viagens ele tinha consultório, ele colocava lá na cidade de São Luís. Ele atendia Clínica Geral. E era bastante conceituado na cidade.
P/1 – E ele lá e o senhor com a mãe do senhor aqui?
R – Aqui.
P/1 – E esses anos de faculdade, que lembranças o senhor tem? Como era essa vida de estudante universitário?
R – A vida de estudante universitário eu posso dizer que absorvi em todas as suas nuances, não é? É um período muito agradável, mas muito pesado, muito puxado. Um pela natureza do curso. Porque é um curso que exige muito da pessoa. É um curso que você vai aprendendo ao longo dos anos de curso aspectos humanísticos, maneira de lidar com pessoas doentes, com as suas famílias. Você se depara com a parte difícil da vida que é a doença, o sofrimento. Então isso vai lhe dando uma maturidade muito grande. Paralelamente a isso, como realmente eu não era, não provinha de uma família abonada eu tive de trabalhar. E a maneira pela qual eu encontrei de trabalhar foram nas horas que a faculdade, que é full time, me permitia fazer. Então fui dar aula de Química. Então eu dava aula de Química nos cursinhos. Nos horários entre as minhas atividades na faculdade.
P/1 – Como era um dia do senhor? O senhor morava perto da faculdade? Pegava ônibus para ir? Como era?
R – Não, eu pegava ônibus. Morava longe. Então eu pegava, certa altura eu pegava bonde.
P/1 – Aonde o senhor morava?
R – Eu nessa altura morava na Vila Guilherme. Então tinha uma boa caminhada que eu fazia a pé. Depois eu pegava o bonde em Santana e ia até a Florêncio de Abreu. De lá eu ia até o Mappin. Aí eu pegava o bonde lá na entorno do Mappin e vinha até a Doutor Arnaldo. Era uma boa caminhada.
P/1 – E passava o dia todo na faculdade?
R – O dia todo na faculdade.
P/1 – E os colegas? A maior parte dos alunos naquela época eram homens?
R – É, nós tínhamos na nossa turma de 84, acredito que tínhamos umas seis ou sete mulheres.
P/1 – E a escolha da especialidade foi durante o curso, doutor Flávio?
R – Foi durante o curso.
P/1 – Em que ano acontece essa opção?
R – Para mim aconteceu no quinto ano.
P/1 – Como foi essa decisão?
R – Ah, essa foi interessante porque à medida que você vai progredindo no curso médico e você entra em contato com as disciplinas, diferentes disciplinas, você vai se entusiasmando. Então você passa pela Cadeira de Dermatologia, você acaba o estágio, você: “Eu vou fazer Dermatologia. Isso aqui é muito bom.” Aí você entra na Infectologia: “Não, não era aquela. Agora é Infectologia.” E assim vai indo, né? E por volta do quarto ano eu tinha praticamente decidido que eu ia fazer Cardiologia em Adulto. Então estava me programando para isso. E me equipando para essa especialização posterior, quando eu tive a primeira aula do quinto ano de Pediatria. E foi justamente uma aula de Pediatria, uma aula prática no berçário. Quando eu tenho contato com o recém-nascido. Então eu posso até falar que foi um amor à primeira vista. No dia seguinte, eu falei: “É aqui que eu vou ficar.” E fiquei até hoje. Faço Pediatria Geral, mas a minha subespecialidade, da qual, inclusive eu sou professor Livre Docente é em Pediatria Neonatal.
P/1 – E porque nesse momento que se faz a opção já começa algum tipo de prática?
R – Não. A prática você vem, como o quinto ano naquela altura era ainda curricular, eu passei na disciplina de Pediatria. Agora no sexto ano é regime de internato. Aí você já começa a praticar efetivamente. Depois tem a Residência Médica. São dois anos. Aí eu fiz a Residência Médica dirigida a Neonatologia.
P/1 – Isso no Hospital das Clínicas?
R – Sempre no Hospital das Clínicas.
P/1 – Nessa vida acadêmica, de estudante, como aluno depois como residente, já havia algum tipo de contato com a indústria farmacêutica? Com os propagandistas?
R – Sim. É um fato marcante, por exemplo, que eu achei, aliás, uma iniciativa muito boa. E posteriormente até enalteci muito isso. Até comentei com algumas pessoas da indústria farmacêutica que me questionaram, me perguntaram alguma coisa a esse respeito. Como aluno, o aluno quando vai para o terceiro ano que é quando ele entrava em contato com o paciente no hospital, a primeira coisa que ele fazia era se vestir de branco. Isso é muito importante para ele. Ele se sente bem. Quase um médico. E punha de branco. Punha um estetoscópio a tiracolo e lá ia ele em direção ao hospital. Então tinha um determinado laboratório, que devia conhecer muito bem o espírito da pessoa, o ser humano. Ele colocava os propagandistas, ao longo daquele corredor, em frente ao Hospital das Clínicas exclusivamente para fazer propaganda e promoção dos seus remédios, suas medicações para o aluno. Resultado: eu aprendi esses produtos. Eu nunca me esqueci deles. Nem deles, nem do laboratório. Até hoje eu os conheço. E um deles, dois deles eu prescrevo até hoje.
P/1 – Qual que era o laboratório?
R – Um foi o Farmasa e o outro foi o Andrômaco.
P/1 – Então de alguma forma já nesse início de atuação, mesmo como estudante, já tem um contato?
R – Já tem um contato. Aliás, dentro do Centro Acadêmico tinha um departamento chamado Farmácia. Que era uma farmácia de amostras grátis colocada à disposição dos colegas, dos funcionários. Quem precisava de remédio ia no Centro Acadêmico. E os laboratórios faziam as doações. Então, motivado por isso, eu passei algum tempo como aluno, digamos assim, participando das atividades da farmácia. Do Centro Acadêmico.
P/1 – O senhor também teve uma experiência como propagandista?
R – Eu fui propagandista também.
P/1 – Nessa época de estudante?
R – Eu fui antes de entrar na escola.
P/1 – Conta um pouquinho dessa experiência de propagandista.
R – [risos] Ah, essa é interessante. Porque eu comecei a trabalhar muito cedo e eu era bancário. Porque era meio expediente. Então, até é um fato correlato que eu fui fazer um teste psicotécnico para um banco aqui em São Paulo, um banco internacional. E eu fui lá, respondi ao teste direitinho. Passei no exame escrito. Depois foi o teste psicotécnico, né? Pois a senhora lá, psicóloga, me chamou e falou: “A sua prova é muito boa, agora tem uma curiosidade incrível no seu teste psicotécnico. Você, de banco não faz jeito de banco. [riso]
Agora, você faz jeito de ciências, assim, Medicina, Odontologia. Foi o que eu consegui tirar daqui.” Eu falei, eu demonstrei surpresa e saí muito contente. [riso] Porque eu estava no caminho certo. Mas como era meio período eu precisava até de um pouco mais de flexibilidade de horário. Aí eu consegui antes mesmo de entrar no banco aqui em São Paulo, consegui o emprego de propagandista. Na acepção do termo. A empresa era Alberto Seabra que era representada em São Paulo pelo Maurício Vilela. Então ficou uma linha de produtos que eu tinha que circular todos os dias nos consultórios.
P/1 – Que área que o senhor atuava? Que região da cidade?
R – Era no centro.
P/1 – No centro?
R – No centro.
P/1 – E depois que o senhor se forma, doutor Flávio, o senhor começou a trabalhar aonde?
R – Como médico?
P/1 – Como médico.
R – Na Guarda Civil.
P/1 – Na Guarda Civil?
R – É.
P/1 – Como médico da Guarda Civil?
R – Como médico da Guarda Civil.
P/1 – Antes disso o senhor...
R – Aquela Guarda Civil de antigamente, não é? Aquele pessoal de azul.
P/1 – Antes disso, eu esqueci de perguntar, sobre a formatura do senhor, se também foi um momento importante?
R – Foi.
P/1 – Como foi?
R – Tem um fato curioso, foi no Teatro Municipal e nós ficamos todos lá. Os 84. Com aquele chapéu na cabeça, característico e aquele teatro ficou absolutamente lotado. Mas você estava atrás da cortina, então você não via o que estava, o que lhe aguardava. Quando a cerimônia vai começar a cortina levanta e toca o Hino Nacional. É uma coisa assim, extremamente emocionante. A tal ponto que certa altura eu falei: “Será que eu estou com o chapéu mesmo? Será que eu não estou destoando?” Eu fui com o dedinho para saber se o chapéu estava lá. De tão emocionado que você fica, você não sente nem essa parte do seu corpo. Realmente é um momento muito importante. Solene.
P/1 – Já com a entrega do diploma?
R – Aí foi à entrega do diploma. A fala do paraninfo, a do diretor, do reitor, do aluno representando nossa turma. Realmente foi uma cerimônia muito bonita. E muito séria. Hoje em dia eu recebo com alguma ressalva essa comemoração. Talvez sejam os tempos mais modernos, não é?
A globalização, não sei o quê. Essas coisas todas que se diz por aí. Mas o ambiente de formatura a que eu assisto periodicamente não é tão sério assim. O pessoal joga coisa, e joga papel. E faz aquela folia. Quer dizer, eu não adapto muito com esse tipo. Comparando com o que foi a minha. Aquilo é um ponto, acho que eu encarei com muita seriedade o curso. Aquilo para mim foi muito importante.
P/1 – E encontrar o primeiro emprego foi difícil?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não foi difícil. Porque quando a pessoa - pelo menos naquela altura, né? -, saía, era formado na Faculdade de Medicina na Universidade de São Paulo, eu posso dizer para você que isso é uma grife muito importante.
P/1 – Tá certo.
R – Mas é muito importante. Então você literalmente é procurado.
P/1 – E esse trabalho na Guarda Civil era aonde? Era em um prédio?
R – Era, é um prédio. Era na Rua Santa Cruz. Junto do Arquidiocesano.
P/1 – Por quanto tempo o senhor ficou lá?
R – Eu fiquei lá acho que uns 3, 4 anos.
P/1 – E depois?
R – Depois eu fiz, eu trabalhava como um bom médico, aí eu fiz Residência. E quando eu terminei a Residência, no fim do ano, houve um concurso para assistente da faculdade, lá do hospital. Eu prestei e entrei. Então fui direto. Não tive nenhum lapso de tempo entre a residência e o fato de ser um médico contratado para exercer as suas funções de pediatria dentro do hospital. Então fomos direto.
P/1 – Ficou o hospital e a Guarda Civil?
R – E a Guarda Civil. Eu não tinha consultório. Então eu fui fazer o Doutorado. Recebi um chamado para ser assistente na Santa Casa. Então eu ia. De manhã eu ficava no hospital, tá certo? No primeiro período da tarde eu ficava na Guarda Civil e no terceiro e último período eu ia para a Santa Casa, onde eu prestava assistência mesmo. Assistência e ensino. Na Pediatria, no Berçário da Santa Casa de São Paulo. Que era uma faculdade que foi recém montada. E onde eu gostei muito. Eu me achei muito útil para a escola. Nós montamos um serviço muito bom com meus colegas, de modo que foi um período muito gostoso.
P/1 – Nesses primeiros anos de profissão o contato com a indústria farmacêutica continuou?
R – Sim, porque continuava como residente via hospital, como assistente à mesma coisa, na Guarda Civil eles faziam promoções lá todos os dias. Promoções no sentido de propaganda médica. E eu no período de ambulatório os recebia todos. E conhecia inclusive por nomes, não é? [riso] Estava lembrando da minha parte propagandista eu digo: “Deixa eu tratá-los muito bem, tá certo? Como eu gostaria que eu tivesse sido tratado tão bem assim.”
P/1 – Como o senhor via esse papel do propagandista?
R – Era um papel importante. Mas um papel importante que precisa ser muito bem colocado. Porque não adianta simplesmente ser um entregador de amostra, nem demonstrar erudição. Porque a gente sabe que a qualificação não é essas coisas todas. Então há determinadas informações que são profundas e que ele não tem condição de nos responder. Então como um meio termo uma apresentação que seja completa, discreta, mas presente focalizando as características do remédio, simplesmente. Do fármaco, isso é importante.
P/1 – Mas esse relacionamento às vezes vai além do remédio?
R – Muito, porque depende muito da empatia. Tem propagandista que ele literalmente se desincumbe da função. Quando por exemplo, você não está com paciente, você está atrasado, atrasou. Tem paciente não passando bem na sua sala ou coisa que o valha, tem propagandista que fica irritado com aquilo. Ele se acha no direito de entrar e fazer a propaganda. E a desculpa é a seguinte: “Eu estou trabalhando.” Mas todo mundo está trabalhando ali? Então alguns ficam zangados, bravos. Outros deixam os remédios lá com a secretária e vão embora. São poucos. Mas um bom número, esse é que deixa a gente mais satisfeita enquanto médico, é que alguns esperam. Outros avisam que vão para outro médico, depois voltam. E a gente sempre os recebe. E essa conversa que você falou é muito importante. Não precisa falar muito. Apresente o seu produto. Simplesmente apresente o produto. Não entre em minúcias médicas porque você não é, não tem essa qualificação. Mas mostre. Mostre as novidades. Outro aspecto interessante é a distribuição de amostras. É muito interessante quando o propagandista, o rapaz que está funcionando ou a moça, apresenta seu produto e pergunta: “O senhor deseja amostra?” Eu vou dizer sim ou não conforme o interesse. Não adianta eu dizer sim, sabendo que vai para o lixo depois. Isso é uma judiação, é um gasto inútil. Então ele pergunta: “Deseja amostra?” Segundo ponto: ele abre a pastinha dele e pergunta: “Olha, vim aqui para lhe fazer a promoção de tal produto. Está aqui.” Abre e mostra. “Aqui eu tenho outros produtos. Destinados a adulto, etc, velhinhos. O senhor precisa de algum?” Isso é muito agradável. Terceiro: quando o Fulano vem de um laboratório qualquer, uma empresa qualquer e diz assim: “Os meus produtos estão aqui...” mostra a malinha. Eu falo: “A propósito, eu estava precisando, para meu uso, do produto x de seu laboratório.” Aí a coisa complica. É onde as empresas devem trabalhar um pouco mais, na minha opinião. Porque eles falam o seguinte: “Eu, não está no plano.” Eu digo: “Eu não estou interessado no plano. Eu quero, eu estou interessado no produto. Então, não é de vocês?” “É.” “Eu gostaria que você me trouxesse esse. Está me trazendo 15 produtos diferentes. Eu só estou interessado em um no momento. Esse um você diz que não está no plano e não traz. Quem sabe da próxima vez?”
P/1 – Mas têm alguns que saem correndo em busca desse remédio e traz?
R – Um bom número deles. E pede desculpa porque está no carro, ou não está no plano. Ou tem que ir ao laboratório que às vezes é distante. “Vou providenciar.” Anota no papel. E traz. Quer dizer, é o outro lado da moeda. Então tem realmente esse tipo de situação.
P/1 – Nesses primeiros anos de profissão doutor Flávio, quais eram os laboratórios mais presentes?
R – Olha, nos primeiros anos eram esses dois que eu já falei. Onde eu trabalhei. O Abbott. O Carlo Herba. O Biosintética. Biosintética, eu acho. O Fontoura. Fontoura-Wyeth. Então me lembro assim.
P/1 – Isso era década de 1970?
R – A Johnson, né?
P/1 – Hum. Que época...
R - Isto era exatamente. Era década de 1970.
P/1 – Já existia o Aché? O senhor lembra?
R – Eu acredito que sim, que deveria existir. Mas eu não tenho isso marcado não. O Aché, por exemplo, eu tenho marcado mesmo é de uns anos para cá.
P/1 – Quantos anos mais ou menos? Quando é que o senhor...
R – Talvez uns 10 anos por aí. Eu posso estar cometendo uma imprudência grande na data. Mas é um laboratório que cresceu assim, acho que mais do que 10 anos. Ele cresceu muito. E trabalho sério, é um laboratório, é uma empresa nacional. Que não se prende simplesmente a produzir e vender medicação. Ele participa ativamente dos eventos das faculdades, das universidades. Isso é muito importante. Ele por exemplo tem, acho que a fábrica que fica lá na Presidente Dutra se não me falha a memória. Logo que eles inauguraram aquele prédio nós fomos lá. Nós fomos convidados para ir lá. E nosso relacionamento data daí.
P/1 - O senhor lembra dessa visita?
R – Ah, lembro.
P/1 – Qual impressão que o senhor tem?
R – O prédio. É impressionante aquele prédio, como é bonito. Para a ocasião então? Como é bonito, moderno. E fato importante: a direção do Aché ofereceu para nós. Para que nós fizéssemos as atividades educativas que o Instituto pudesse precisar, a Sociedade de Pediatria. Ofereceu para nós. E fizemos. Fizemos cursos lá. Tudo à disposição.
P/1 – E não existia essa abertura das outras empresas?
R – Existia sim. A Nestlé por exemplo. A Johnson. Essas empresas tinham essa abertura. As outras não me lembro.
P/1 – O senhor consegue identificar algum diferencial do Aché em relação aos outros laboratórios ou na verdade há um padrão, não tem muita diferença de um para outro?
R – Eu tenho impressão que talvez seja já uma decorrência disto. Porque o Aché se tornou para nós um laboratório simpático. É tanto na qualidade de médico – quem trabalha em linha de frente como eu – como eu mesmo que trabalho como diretor de hospital. Eu acho isso muito interessante. Quer dizer, o Aché é um laboratório acessível. Então ele compartilha conosco inclusive de um negócio que a gente chama de, um projeto nosso que é Empresa-Escola. Tem alguns projetos que a gente desenvolve envolvendo a empresa e a escola. E o Aché é a empresa. E ele nos vê com bastante simpatia e nós também.
P/1 – Da onde vem essa simpatia?
R – É daquilo que, um: a dos propagandistas que nos levam a imagem da firma. Os seus diretores que entram em contato conosco. E a persistência desse clima. Não é o fato do laboratório ter crescido tanto, o Aché cresceu muito nesses últimos anos. Englobou outros laboratórios, inclusive marcas internacionais. Quer dizer, englobou com produtos de ponta, de primeira linha. Ele englobou e continua com a mesma simpatia, com a mesma disposição. Até eu posso lhe garantir que até que aumentou.
P/1 – Tá certo.
R – Não é?
P/1 – Tá certo.
R – Então nós mantemos com o Aché enquanto instituição um relacionamento muito bom dentro desse Programa Empresa-Escola.
P/1 – Conta um pouquinho mais esse programa, doutor Flávio.
R – O programa é assim: nós pretendemos fazer um curso para pediatras neonatologistas, uma hipótese. Estou dando um exemplo hipotético. Eu preciso de todo apoio logístico para tanto. Se eu tenho de procurar alguém, eu vou lá no Aché e mostro qual é o nosso objetivo, nosso propósito e a gente conta com a simpatia deles e eles englobam e participam disto aqui.
P/1 – As empresas, inclusive o Aché, acabam tendo uma participação na formação dos alunos?
R – A participação na formação eu acho que não. Mas no desenvolvimento posterior sim. Porque de uma maneira efetiva eles estão lá nos possibilitando recursos para nos possibilitar uma função. Então isso não parece, mas é extremamente importante. Tem muita coisa que a gente poderia fazer, não fazemos por falta às vezes de apoio, de recursos e tal. Se a gente encontra uma empresa que faz isto, que nos ajuda neste mister é claro que esse sucesso é garantido.
P/1 – E tem apoio também para publicações?
R – Publicações, principalmente. Veja que há anos o nosso instituto, o nosso departamento, edita uma revista. E essa revista se chama Pediatria São Paulo. E durante muito tempo o Aché patrocinou a publicação da revista. Veja como isto é importante. Ele patrocinava a revista. Quer venha a dar dividendos ou não para eles. Eles punham lá os seus anúncios naturalmente, mas patrocinou durante um bom tempo a revista.
P/1 – Livros?
R – Livros. Recentemente ele fez uma compra de aproximadamente 600 volumes do livro consagrado na pediatria nacional, que é a Pediatria Básica, que é do Instituto. Que é do Departamento de Pediatria para distribuir aos médicos. Às bibliotecas. Uma coisa muito boa. E fez isso com a distribuição. Isto eu acho que é uma participação forte.
P/1 – Ao mesmo tempo tem o contato com o propagandista? Porque o senhor acabou montando um consultório.
R – É.
P/1 – A gente pulou aí um pedaço?
R – É, bom. Então o consultório. Consultório é...
P/1 – Quando começa o consultório?
R – O consultório ele começa em 1971, 1972. E o marco do consultório foi o Doutorado. Eu precisava fazer o Doutorado. E fazendo, me preparando para defender a tese e tal. E o pessoal ia chegando na minha casa. Os clientes? E chegou um ponto que era impossível manter. Porque eu chegava em casa 8 horas da noite e tinha uma fila em frente de casa. Uma fila de carro todo enfileirado. Que era para fazer consulta. Não deu jeito, né?
P/1 – E consultava ali mesmo na sala da casa?
R – Não, eu tinha um estúdio [riso] que nem esse aqui, eu tinha um estúdio onde eu estudava, que era na lateral da casa. Corresponderia a uma autêntica edícula. E era na lateral da casa. Eu já chegava, punha o carro. Eu nem entrava em casa já ia direto para lá e ficava consultando. Eu digo: “Tenho de abrir o consultório. Não tem jeito.” Aí eu fiz o Doutorado em 1971 e em seguida abri o consultório.
P/1 – Tá certo.
R – Aí eu cumpri aquilo pelo qual eu tinha me proposto. Que é o atendimento à criança que eu adoro fazer.
P/1 – Até hoje?
R – Até hoje.
P/1 – Mantém o consultório até hoje?
R – Mantenho o consultório até hoje e com muita satisfação. Eu me sinto muito bem no consultório.
P/1 – E como é na rotina do consultório essa presença do propagandista?
R – Ah, é assim. Eu não determino dia nem hora, tá certo? Eles vão aparecendo. E entre uma consulta e outra manda entrar o propagandista. Então ele tem que ser claro, rápido e preciso. Mas se eu fizer um clima agradável ele desempenha. Se eu for brusco eu já atrapalho o desempenho dele. Então a gente sempre, eu abro a porta, a gente sorri, manda entrar. Então ele já entra à vontade. Então ele põe aquela malinha ali em cima e já começa a fazer. Normalmente dura 1 minuto, 2 no máximo. Mas sempre tem as conversas paralelas: “Como é que foi o jogo, tá certo?” “Seu Corinthians não está muito bom. O bom mesmo é o São Paulo.” Quer dizer, aquelas coisas que deixam eles à vontade. Então eles conseguem me passar muito bem sem descer. Alguns quando descem mais a fundo no campo onde não devem, eu brinco com eles, tá certo? A questão das estatísticas. “Esse aqui curou 99% das amigdalites.”
P/1 – [riso]
R – “Quantos casos você usou?” “Seis.” Quer dizer [risos]: “Você está brincando. Conversa com o seu supervisor que esse negócio aqui não está bom.”
P/1 – E às vezes são relacionamentos de anos, doutor Flávio?
R – Ah, sim.
P/1 – E cria amizade em algum momento?
R – Cria. Cria amizade mesmo. Outro dia lá no décimo andar do Hospital das Clínicas eu fui passar no berçário, aí na porta veio um senhor: “Doutor Flávio, quanto tempo.” Aí eu olhei e disse: “Puxa vida, é verdade.” Era um propagandista que fazia propaganda para mim na Guarda Civil em 1970. Ele já era uma posição muito boa no seu laboratório e foi aquela festa. Muito interessante isso.
P/1 – Uma curiosidade, na época do pai do senhor e do avô, o senhor lembra dessa figura, propagandista lá...
R – Não.
P/1 – Não existia?
R – Não, eu não lembro.
P/1 – Aqui em São Paulo o senhor continuou com o consultório. Há um momento que a presença do Aché começa a ser mais forte na rotina do consultório do senhor?
R – Há alguns anos.
P/1 – Tá.
R – A partir de alguns anos atrás. Então o destaque no caso do Aché em especial foi o seguinte: sempre vinha um propagandista. Aí depois vinham dois. Aquilo foi uma curiosidade, quer dizer, entrar um propagandista e falar: “Olha, eu sou Fulano de Tal do Aché.” Perfeito. Aí ia embora, daqui a pouco chegava outro: “Olha, eu sou Sicrano do Aché.” Eu falei: “Bom, então é um bando agora, né?” [riso] Não é mais uma unidade é um conjunto.
P/1 – Cada um com um grupo diferente de medicamentos?
R – Exatamente. Com linhas de produtos diferentes. Aí motivou a curiosidade: “O que está acontecendo? Continua crescendo?” “Sim.” Outro dado: vinha um propagandista da Merck Sharp, por exemplo, que eu acho que é isso aí. Daqui a pouco, eu conhecia os produtos. Daqui a pouco vinha um camarada do Aché: “Sou do Aché.” Perfeito. Entra os produtos da Merck Sharp. Eu digo: “Bom, mas que negócio é esse? Agora o que é que aconteceu? Você mudou, sumiu?” “Não, é que o Aché pegou o laboratório.” Então, esse tipo de conversa vai mantendo certo grau de relacionamento, vai implementando. A tal ponto que quando eles são promovidos ou mudam de área, pelo menos acontece isso comigo, eles vêm lá e se despedem. “Olha, doutor Flávio, essa é a última vez que eu venho aqui, mas um outro colega virá visitá-lo no mesmo horário. É que agora eu fui para outro setor, ou então eu fui promovido.” Vem se despedir. E quando o novo vem já diz para mim que foi orientado pelo anterior de como é que funciona comigo.
P/1 – Já sabe o time do senhor... [riso]
R – Já sabe tudo direitinho. Outro dia eu ganhei a camisa do São Paulo.
P/1 – E paralelo como é que foi avançando a carreira acadêmica do senhor? O senhor fez o Doutorado, continuou ligado ao Hospital das Clínicas?
R – Eu continuo até hoje.
P/1 – Como foi avançando?
R – Foi assim em uma sequência irreversível. Porque eu prestei o concurso como assistente imediatamente após a residência. Não houve solução de continuidade. Aí fiz o Doutorado. Depois do Doutorado, o então professor da Cadeira, praticamente me intimou a fazer a Livre Docência. Fiz a Livre Docência, tá certo? Aí depois eu virei professor, fiz o concurso para professor adjunto e na primeira oportunidade da vaga, que aconteceu algum tempo depois, eu fiz o concurso para titular. Então foi uma sequência a parte acadêmica da minha vida.
P/1 – E a diretoria do Instituto da Criança quando o senhor assumiu?
R – É uma outra vertente. A vertente acadêmica é esta. Vertente, digamos assim institucional, Hospital das Clínicas, Instituto da Criança corre paralelo. Porque na medida em que eu sou Doutor em Medicina eu era assistente da Clínica. Na clínica a progressão na carreira foi um membro da Clínica. Depois eu fui encarregado. Virei chefe de Seção. Depois eu virei diretor de Divisão e agora eu sou presidente do Conselho.
P/1 – E nessa trajetória toda o momento mais marcante foi à titulação?
R – É, na parte acadêmica certamente a titulação.
P/1 – Como foi esse dia?
R – Ah esse dia, foram vários dias, [riso] do concurso. O concurso é muito pesado porque você tem que dar uma aula onde você tem que demonstrar erudição. Então você dá uma aula para a Banca Examinadora, um assunto que você escolhe. Mas em contrapartida você tem que demonstrar que nesse assunto você conhece mais do que todo mundo. Então você tem que dar uma aula com tempo definido, com material mais correto possível e mostrando conhecimento profundo disso. Segundo lugar você tem que mostrar o seu memorial. Tudo que você fez na vida do ponto de vista científico e acadêmico. Onde é julgado rigorosamente cada item, cada passagem que você fez. Mas não fica por aí. Você tem a prova final que é uma arguição desse memorial. Onde você posiciona e fica aberto às perguntas as mais variadas possíveis daquela Banca Examinadora. Que é composta de titulares. Então eles perguntam bastante e você se posiciona. Portanto você tem que ir aberto. Para saber se posicionar, como é que você pensa? Quais são suas idéias? Como é que você encara a pediatria? Como é que você encara a neonatologia? Ela no contexto municipal, estadual, nacional. Quais são as oblações governamentais. Enfim é bastante pesado.
P/1 – E a notícia saiu no mesmo dia?
R – A notícia sai no mesmo dia. [riso]
P/1 – Tá certo.
R – Depois que os candidatos todos, porque sempre tem mais de um, que terminam isto aqui, então os professores, a Banca Examinadora se reúne – isso tudo na Congregação da Faculdade. Aí todos paramentados e então o presidente da Banca Examinadora lê o resultado. [riso]
P/1 – Paramento o que é?
R – É uma beca bem tradicional. No estilo bem paulista.
P/1 – Com chapeuzinho e tudo?
R – Não, o chapeuzinho é só na posse. Aquele chapeuzinho que eu falei, aquele é só na posse.
P/1 – E agora a gente já está finalizando eu queria perguntar sobre o futuro. O que ficou para o senhor de sonho para o futuro?
R – Olha, eu tenho, é claro que você nunca se sente totalmente realizado. Mas até a presente data, até em uma conversa que eu tive com meu par, conversando sobre, meu colega de turma também na Clínica e na carreira acadêmica, eu acho que consegui tudo o que eu queria. Eu me sinto absolutamente realizado nos dois campos. E o que me confere assim muita felicidade por esse motivo. E, portanto a minha meta é manter esse padrão o tempo inteiro. Até o fim dos dias. [riso]
P/1 – E o sonho de vida doutor Flávio?
R – Hum?
P/1 – Sonho de vida sem ser na parte profissional?
R – Sim, no campo pessoal eu também me sinto bem realizado. Eu tenho, a minha mãe ainda está viva. A minha esposa é uma pessoa maravilhosa. Companheirona desses tempos todos. Me ajudou muito. Eu acho que sem ela eu teria muita dificuldade de conseguir metade do que eu consegui até agora. Tenho dois filhos.
P/1 – Como se chamam?
R – Os filhos: Marcelo e Flávio. Flávio José. E tenho dois netos. Super netos. Um neto e uma netinha.
P/1 – Como se chamam?
R – É Bruno e Amanda. Então a coisa que também enche a gente de alegria, nesse período.
P/1 – Para finalizar eu queria saber o que o senhor achou de ter contado um pouquinho dessa história?
R – Muito interessante. [risos]
P/1 – [risos]
R – Eu achei muito interessante. Realmente eu não tinha ideia de uma coisa nesse sentido. Para mim fosse uma entrevista assim orientada noutra direção. Mas achei muito interessante, muito gostosa. Tanto é que a gente vai ficando à vontade. E vai falando. Descompromissadamente. Mas eu acho muito interessante. Isso também vai de como você e o Juliano orientaram essa aqui. Como vocês nos deixam à vontade. Isso é muito interessante.
P/1 – Tá certo. Muito obrigada pela participação.
R – O agradecimento é todo meu.Recolher