Projeto Conte Sua História
Depoimento de Teruo Makio
Entrevistado por Eliane Simonetti
São Paulo, 07 de junho de 2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV684
Transcrito por Rosana Rocha de Almeida
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Gostaria de agradecer sua presença aqui no Museu da Pessoa, a sua disponibilidade de contar a sua história pra gente. E vamos começar. Vamos começar assim: o senhor se identifica, diz seu nome, a data e o local de nascimento.
R – Meu nome é Teruo Makio, eu nasci em 13 de janeiro de 1936, registrado na comarca de Lins, embora eu tenha nascido na pequena vila próxima à atual cidade de Getulina.
P/1 – Tem significado o nome Teruo?
R – Não, não tem significado nenhum, que eu saiba não tem.
P/1 – O senhor é nascido no Brasil, filho de japoneses?
R – É, filho de japoneses.
P/1 – Quando seus pais vieram para cá, o senhor sabe?
R – Meu pai veio em 1913.
P/1 – Já casado?
R – Já casado, e com um filho e uma filha.
P/1 – O que seu pai fazia?
R – Era agricultor no Japão.
P/1 – E ele veio para cá por causa de programa de incentivo do governo ou porque quis?
R – Não, houve uma reforma no Japão, e a terra lá é muito cara, é difícil fazer plantação, porque toda plantação é feita em escadarias sobre morro, leva terra e lá são plantadas as verduras, arroz, essas coisas. Então, é cansativo. Uma propaganda que o Brasil fazia para atrair os japoneses é que aqui era tudo fácil, dava até dinheiro no pé de café. Com essa propaganda, meu pai resolveu vir aqui para o Brasil.
P/1 – E ele morava onde no Japão?
R – Okayama.
P/1 – É longe de Tóquio?
R – É longe, é bem no sul, mas é na ilha central. Seria província de Okayama.
P/1 – Aí, eles precisaram ir até Tóquio para pegar o navio?
R – Não, não, não. Lá perto dessa cidade tem um porto chamado Kobe, que é mar interno do Japão. Ali que eles tomaram o navio e vieram pra cá.
P/1 – Quanto tempo de viagem, o senhor sabe?
R – Eu não me lembro, eu sei que eles saíram em agosto e devem ter chegado aqui em outubro.
P/1 – E chegou em Santos?
R – Chegou em Santos.
P/1 – E aí?
R – Como meu pai estava doente, ele ficou retido no porto.
P/1 – Doente do quê?
R – Eu não sei o que é que é, apenas que ele estava doente e o médico do Brasil falou que precisava ficar, não podia ir embora. Então, minha mãe, a filha e o filho, junto com dois tios, irmãos dela, vieram até Jaú, numa fazenda de café, pertencente a um alemão.
P/1 – E seu pai continuou no porto?
R – Ficou retido lá.
P/1 – Por quanto tempo?
R – Depois de uns seis meses, meu tio foi até São Paulo para ver como ele estava. Ele já tinha sarado, já podia ir embora. Então, ele levou para lá. Mas, antes de ir, esse meu irmão, Haigiro – que eram a filha mais velha e o filho tinha um ano –, ele tinha falecido.
P/1 – O que tinha vindo do Japão, seu irmão?
R – É, ele faleceu.
P/1 – Faleceu com um ano?
R – É, não sabe por que faleceu, porque não tinha médico, não tinha remédio, não tinha coisa nenhuma e nem tem sepultura.
P/1 – Nossa.
R – Então, foi lá e ele voltou. Aí, ele soube que o filho tinha falecido, ficou chateado, né? Ficou mais uns seis meses lá, e mudaram para Guatapará, perto do Ribeirão Preto.
P/1 – E como era a situação de trabalho? O senhor sabe?
R – Olha, esse detalhe nunca eles me contaram, nem outros imigrantes contaram. Porque minha curiosidade era a seguinte: saber o que eles comeram no primeiro dia que entraram no Brasil!
P/1 – É uma boa pergunta essa!
R – Ninguém me explicou isso até hoje. Lá só tinha arroz japonês, tinha missô, tinha shoyu, aqui não tinha nada disso. Não sei como eles viveram. Também meu irmão faleceu e ninguém sabe por quê.
P/1 – E, nessa fazenda de Jaú, estavam seus tios, sua mãe e seus irmãos?
R – Não, só uma irmã.
P/1 – Porque o irmão morreu logo!
R – É, só a irmã, que morreu dois anos atrás, com 105 anos.
P/1 – Que coisa, 105 anos!
R – É, a irmã mais velha.
P/1 – Seus pais tiveram quantos filhos?
R – Dez filhos.
P/1 – Dez filhos vivos?
R – Não, depois que eles mudaram para Guatapará, nasceu mais uma menina, mais um menino. Esses dois também faleceram. E ficaram mais sete irmãos, três irmãs e quatro irmãos.
P/1 – E o senhor está onde nessa ordem?
R – Eu sou o caçula.
P/1 – Ah, o senhor é o caçula! Muito bem. E me conta uma coisa: foram para Guatapará como? Por quê? Alguém convidou?
R – Não sei. Isso aí são detalhes que nenhum pai contou, nem meu irmão sabe. Acharam que lá tinha mais pessoas e tinha uma área destinada a imigrante japonês.
P/1 – Ah, sim!
R – Então, eles foram lá, trabalharam na plantação de arroz, trabalharam na outra plantação de café e nada deu certo. Aí, morreu mais uma irmã chamada Massai, e veio um outro irmão chamado Manzaburu. Também faleceram.
P/1 – Também faleceram crianças!
R – Crianças.
P/1 – Tá.
R – Muito bem. Aí, o que meu pai fez? Ele separou-se do cunhado, desse que foi junto com eles.
P/1 – Irmão da sua mãe!
R – É, inclusive tem detalhe pequeno, porque ele gostou de uma mocinha japonesa e pediu para o meu pai pedir ela em casamento. Ele foi na casa do “coiso”, casaram e ele pegou e mudou para outro lugar, não sei. Agora, a minha família, meu pai mudou-se para Catanduva, onde ele comprou cinco alqueires de terra e plantou café.
P/1 – Onde ele arrumou dinheiro?
R – Ele tinha guardado um pouco de dinheiro, guardou. Comprou esse café, e não deu nada certo. Ali nasceu meu irmão, que foi entrevistado aqui.
P/1 – Como é o nome do seu irmão?
R – Akinori. Nasceu. Aí, não deu certo também aquilo. Ele vendeu e voltou para Santa América.
P/1 – O café em Catanduva não deu certo?
R – Não deu!
P/1 – Ele vendeu os cinco alqueires?
R – Vendeu. Vendeu os cinco alqueires e veio para Getulina, porque ali tinham bastante japoneses entrando naquela região. Então, ele entrou.
P/1 – Quer dizer, existia uma comunicação entre os japoneses para dizer onde vai dar mais certo.
R – É. Depois, lá, ele ficou bastante tempo, ficou até 51 ou 52.
P/1 – O senhor nasceu lá?
R – Eu nasci lá. Aí, quando entrou lá, nasceu minha irmã, duas, mais uma seguinte, as duas já falecidas. Nasceu meu irmão Mário Toioshi e nasci eu. Cinco nasceram lá em Santa América, tudo registrado em Lins, porque Getulina não era comarca.
P/1 – E lá ele plantava o quê? Ele comprou a terra dele?
R – Não, lá é o seguinte: o dono de toda aquela área, desde Lins até perto de Tupã, é tudo litigiosa. São cinco mil alqueires que o Coronel Joaquim Barbosa tomou à custa de arma. Ele tinha um exército com ele. Tanto é verdade que o exército tinha metralhadora, tinha canhão, tinha tudo. A fazenda dele tinha 24 quartos, ficava perto da fazenda, da terra onde meu pai se estabeleceu. Então, ele foi lá, o homem era muito bom: “Quanto você precisa?”. Perguntou.
P/1 – Qual homem que era muito bom? Esse que tratou à bala?
R – É, mas todo mundo ele tratou muito bem! Ele brigou porque um queria tomar toda terra dele, e ele não quis deixar. Então, à bala que ele tomou tudo. Ele era amigo do Getúlio, tanto é verdade que ele botou a cidade como Getulina. Aí, ele foi lá e no fim ficou chateado porque meu pai ficou doente e não sei o quê. Meu pai começou a fazer missô e shoyu e começou a vender, ganhar um pouco de dinheiro.
P/1 – Deixou de trabalhar com a terra, então?
R – É, deixou por algum tempo só. Ele ganhou um pouco de dinheiro, e, aí, o Joaquim Barbosa achou, ficou com pena dele e falou: “Para o meu filho, eu dei 80 alqueires e não faz nada com a terra, está abandonada. Eu dou pra você e você me paga como puder”. E aí que ele entrou num sítio de 80 alqueires.
P/1 – Para plantar o quê?
R – Ele plantou café, começou a plantar café. E, aí, nós ficamos até 50 e pouco, né? Teve lá uns 80 mil pés de café. Uma parte doou para o meu cunhado, depois ele vendeu e veio para o Rio de Janeiro.
P/1 – Então, ele tinha propriedade da terra?
R – Não, tinha propriedade, mas toda aquela região é litigiosa. O registro era meio duvidoso, alguém podia contestar.
P/1 – Mas, quando ele saiu, ele vendeu e ficou com algum dinheiro?
R – Não, ele vendeu e naquela época já estava bom, porque não havia problema mais. Depois disso, o Bradesco tomou uma fazenda vizinha, Fazenda Segue, tomou, tinha 100 alqueires e não sabia o que fazer e empurrou para o meu pai. E meu pai comprou por quatro milhões. E comprou e ficou tudo. No fim, tinha um amigo que era comprador de café de toda região, Marília, Lins, tinha um monte de máquinas de café, falou: “Makio, você é meu amigo, você pegou todos os sitiantes e trouxe pra mim. Eu ganho dinheiro com eles graças a você. Eu e você ficamos com o café, quando subir o preço, nós vendemos e você ganha bem e eu ganho bem”. Só que fez o contrário: quando baixou o café, ele vendeu pra todo mundo, caiu fora e deu o cano no meu pai. Perdemos mais de um milhão naquela época. Então, meu pai não quis ter dívida, era o Banco Brasileiro de Desconto, ele vendeu a fazenda por seis milhões de cruzeiros naquela época.
P/1 – A fazenda que era do Bradesco?
R – É. E a nossa junto dava 160 alqueires, né? Ele vendeu tudo, pagou dois milhões de dívida que ele tinha e ficou com quatro milhões. Veio para Pederneiras, comprou a Cerâmica Frascarelli e começou a produzir. Mas depois fizeram a Usina de Promissão, fechou o Rio Tietê e o barreiro acabou. Ele ficou desanimado e foi embora e começou a vir para São Paulo comercializar.
P/1 – Saiu de lá porque não dava para fazer cerâmica. Ele vendeu a empresa?
R – Ele vendeu a cerâmica por preço de banana, ele perdeu dinheiro naquilo lá. E, depois, o cara que comprou arranjou outro barreiro e começou a produzir. Até hoje tem a Cerâmica Frascarelli. Não tinha experiência nenhuma ele!
P/1 – Vamos voltar um pouquinho para trás. Quando o senhor nasceu, ele estava plantando café, com aquela fazenda enorme!
R – Não, eram 80 alqueires só.
P/1 – Oitenta alqueires! Era grande!
R – É, era grande.
P/1 – Se ele tinha começado com cinco, né?
R – É.
P/1 – Quando criança, do que o senhor brincava?
R – Como brincava? A mãe não estava em casa, eu estava sozinho, com nove anos, oito anos. A minha irmã, meu cunhado devolveu o terreno para o meu pai e veio para o Rio de Janeiro junto com minha irmã. Outra minha irmã foi pra Rancharia e casou lá. E eu fiquei. Eu, meu irmão e meu pai, sozinhos. Os meus dois irmãos moravam em Getulina, na casa de um amigo, e lá eles estudavam no curso do primário e ginasial.
P/1 – Por que sua mãe não estava? O que aconteceu?
R – Ela morreu. Ela veio para São Paulo e ficou hospitalizada três ou quatro anos. Quando ela voltou, voltou ao hospital de Getulina para morrer. Não tinha mais salvação.
P/1 – Quando ela morreu, o senhor tinha seis anos. O senhor tem lembrança dela?
R – Só um pouquinho. Eu só tenho uma lembrança da minha mãe, quando ela voltou uns tempos, ficou em casa. Ela corria o quintal, primeira manga que caía ela trazia pra mim. Só isso que lembro dela.
P/1 – O senhor gosta de comer manga até hoje?
R – Até hoje, eu sempre gostei de manga. Em casa tinha bastante fruta. Bastante fruta. Tinha acho que 12 pés de manga já com essa grossura, laranja, abacate, monte de coisas. O chiqueiro tinha quase dois alqueires de porcos.
P/1 – O senhor era o caçula. Era mimado?
R – Não, o problema é o seguinte: eu não tinha amigo nenhum! Tudo era filho de empregado. Tinha 12 ou 13 famílias de colonos, quer dizer, eu ficava na casa de colono. Então, aprendi a comer arroz, feijão, farofa e jabá junto com alagoano, um pernambucano e outro cearense. Fiquei amigo deles! Minha vida, no sábado e domingo, era na casa deles. Tomar banho... E dia de semana o que eu fazia? Eu corria o pasto, ficava brincando no meio do gado ou ia pra floresta que tinha lá, os dez alqueires, catar fruta silvestre. Catava uns negócios de vagem grande, que era gostoso, e pindaíba. Sabe o que é pindaíba?
P/1 – Não sei.
R – Pindaíba é parecida com fruta-do-conde, só que ela fica vermelhinha e é doce pra chuchu.
P/1 – Que delícia!
R – Depois, tinha gravatá. Gravatá era que nem abacaxi, só que eram tubinhos que colocava. Se tiver um pouco amarelo só, quando fica bem amarelinho forte é doce. Se pegar um pouco verde, sangrava pela língua. E tinha pitanga, essas coisas. Goiaba do mato. Ficava sozinho no meio do mato. Sabe como apanhava esses negócios? Pegava um rolo de papel, um cabo assim grosso, amarrava a corda e segurava. Jogava aquilo lá, caía, e eu sentava e puxava sozinho e subia na árvore. Só tinha isso pra fazer.
P/1 – Mas as outras terras não eram de japoneses que tinham filhos também?
R – Não, mas tudo longe! Pra ir à escola, onde tinha bastante japonês, eu andava quatro quilômetros por dia. Não podia andar todo dia, né?
P/1 – Mas o senhor ia à escola todo dia!
R – Todo dia eu ia à escola.
P/1 – E a escola era de manhã ou à tarde?
R – De manhã. Eu saía de manhã cedinho, entrava na escola, meio-dia saía e vinha embora.
P/1 – Quem fazia almoço para o senhor?
R – Eu levava lanche. Marmitinha.
P/1 – Quem fazia marmitinha?
R – Era minha irmã, quando fazia. Quando foi embora, eu fiquei uns tempos sem marmita. Aí, meu irmão se apressou e casou. E a cunhada começou a fazer lanche pra mim.
P/1 – Quer dizer, o senhor foi uma criança que cresceu sozinha mesmo.
R – Sozinha, sozinha.
P/1 – E o senhor gostava de estudar?
R – É, fazer o quê, não tinha o que fazer. Então, o que eu fazia? Em casa, sabe aquela vitrolinha que você dá corda? Agulha tinha que botar e pôr, gastava, tinha que comprar caixinha de agulhas. Aprendi cinco ou seis músicas em japonês que até hoje eu não esqueci. É música de antes da guerra!
P/1 – Que o senhor aprendeu por causa do disco?
R – É, por causa do disco, que meu pai arranjou não sei como. Então, fala de algumas coisas, a existência do Japão. Naquela época, eram 2600 anos antes de Cristo.
P/1 – Toda a história do Japão.
R – É, do Japão. É a música que fala isso. E tem um monte de coisa. O tipo do romance japonês está nas palavras de muitos cantores. Tinha uma cantora chinesa, que falava bem japonês, que era boa cantora no Japão. Eu apenas ouvia.
P/1 – O senhor lembra um pedacinho pra cantar pra gente?
R – (risos) Não, tá tudo fora, não dá. Não dá.
P/1 – Um pedacinho do texto, fala o texto sem cantar, em japonês.
R – Ah, eu esqueci já, não me lembro, eu fico nervoso e aí não dá. Agora, quando eu tinha nove anos, passou lá o cinema japonês. Naquele tempo, como fazia chinês? Passava filme, era tudo mudo e só tinha...
P/1 – A imagem!
R – A imagem. Então, lá fora, eles botavam uma caminhonete funcionando e fazia a luz para rodar o filme. Esse filme era a história, era um negócio de guerra, Canção de Guerra, mais ou menos. Eram uma chinesa e um japonês, estavam construindo uma estrada de ferro na Manchúria, e eles morrem ali nessa estrada. Então, como que você escutava? Existia, chamava beissi, era o oficial que cantarolava, falava tudo, a voz de homem, de mulher, de criança, ele que fazia. Essas palavras até hoje eu não esqueci, de quando eu tinha nove anos. Até hoje não esqueci.
P/1 – O homem que recitava enquanto o filme passava?
R – É, ele contava. Quando aparecia, por exemplo, a paisagem de céu bonito, ele contava toda a história do céu. Até hoje eu não esqueci, duvido que alguém tenha lembrado isso.
P/1 – Foi o primeiro filme que o senhor viu na vida?
R – Foi o primeiro filme que eu vi na vida.
P/1 – Ah, o senhor podia falar umas palavrinhas aqui pra gente!
R – Então é o seguinte: (fala em japonês). Quer dizer: “Limpou o céu e cobriu de um azul bonito”. Eu sei que é um negócio que vem depois: “A luz brilhando tudo”, não sei o quê. Então: “O céu estava limpo e o vento soprando, então, vamos cantar a canção da morte”, que aí iam construir a estrada, e morrem na estrada.
P/1 – Ah, então, isso é da época em que o Japão controlava a Manchúria?
R – Exatamente. Porque tem muitas músicas do Japão que falam sobre a Manchúria. Eu sei, inclusive, canções de guerra que falam sobre a Manchúria. Isso eu lembro até hoje. Aliás, da minha casa, o único que sabe essas músicas sou eu, porque nenhum dos meus irmãos gostava de ouvir disco. E eu ouvia disco.
P/1 – O senhor precisa, um dia, gravar pra deixar pra eles. Se o senhor não vai cantar aqui pra gente, o senhor guarde em casa. Grave num gravador pra deixar pra eles.
R – E esse disco, meu irmão veio para São Paulo e deu para não sei quem. Foi embora, eu não pude ter.
P/1 – As coisas se perdem na vida, né?
R – Por isso, eu tenho uns 40 longplays que eu comprei quando eu era jovem, quando tinha casado, em 60 e pouco, e estão lá guardados até hoje. Existe um karaokê de japonês, tem lá umas cento e poucas músicas. Eu deixo guardado até hoje, um dia, eu vou ouvir outra vez.
P/1 – Então, vamos lá: quando seu pai tinha a cerâmica, o senhor tinha que idade?
R – Meu pai não. Quem controlava tudo era meu irmão, meu pai já não fazia mais nada.
P/1 – Ah, é?
R – Desde os 19, 20 anos, meu irmão começou a tomar conta de tudo. Tanto é verdade que toda a fazenda, a herança, ficou para ele. Tudo. O meu, meus irmãos, no Banco América do Sul, nós tínhamos depósitos em 50 e pouco de dez ou 12 mil cruzeiros, reais, cada um de nós tinha. Assinou o cheque e deu para o meu irmão. Ele gastou todo o dinheiro, não sei para onde fez. Porque, quando ele veio pra São Paulo, ele veio com quase quatro milhões! Ele podia comprar 30 e poucas casas no Jabaquara, que ele tinha visto em construção, que terminava e podia comprar à vista tudo. Ele tinha dinheiro pra isso. Gastou tudo. Comprou três casas de peças, um posto de gasolina, fez uma importação... E perdeu tudo!
P/1 – Esse era o irmão mais velho?
R – É. Perdeu tudo.
P/1 – Era uma tradição o pai deixar tudo para o irmão mais velho?
R – Não era uma tradição. É que ele queria ter alguma coisa pra mexer. Como ele não tinha experiência, foi sempre lavrador, vai ser comerciante de peça? Ele comprou a Suvinil, ele foi o primeiro. Junto com outro, ele comprou essa Suvinil. Ah, não deu certo, vendeu por preço de banana. Vê como está a Suvinil hoje.
P/1 – Por que seu pai o deixou cuidando das coisas?
R – Meu pai estava velho, estava cansado também. Meu pai também não falava muito bem português, e meu irmão já falava bem melhor. Então, é um costume japonês: o mais velho que toma conta de tudo.
P/1 – Então, dessa cerâmica ele que cuidava.
R – Ele que comprou, ele que cuidava.
P/1 – E foi ele que vendeu depois, que desistiu?
R – Ele vendeu. Ele comprou em nome dele tudo. Que é famoso, até hoje existe Cerâmica Frascarelli, tem muito telhado em que está escrito Cerâmica Frascarelli. É dele, foi dele.
P/1 – Mas, quando ele mudava, iam todos juntos? O pai e todos os irmãos?
R – Não, tinha que ir. Meu irmão ficou cinco ou seis anos em Curitiba, não veio para cá. E eu estava em São Paulo. Agora, o meu outro irmão, que acompanhava sempre, ele trabalhava no banco. E aonde meu irmão ia, ele ia junto e meu pai.
P/1 – Estou embaralhando todos os seus irmãos. O irmão mais velho, que cuidava de tudo, foi pra Curitiba?
R – Não, o outro que formou em engenharia. Esse é o segundo irmão, que foi para Curitiba.
P/1 – O primeiro, que cuidava de tudo, cuidava da família também?
R – Cuidava também. Nesse ponto, ele foi responsável. Atendendo ao pedido de minha mãe, ele me deixou estudando na faculdade, outro irmão estudando... O outro não quis estudar porque ele não queria estudar, sabe? Então, o resto ele cumpriu, realmente, a promessa que fez pra mãe.
P/1 – Então, o ensino primário o senhor fez em Lins?
R – Em Santa América. E o ginasial eu fiz no Instituto Americano de Lins.
P/1 – Foi ainda naquela região, ainda não tinham saído de lá?
R – É. Depois que eu formei ginasial, daí meu pai me trouxe para São Paulo.
P/1 – Do que o senhor gostava mais na escola?
R – Olha, eu não sei. Veja bem, eu vim para São Paulo, eu e meu pai pegamos ônibus de Getulina para Lins, de Lins pegava ônibus para Bauru, porque a gente tomava sempre trem na Paulista, que era bonito. E, chegando lá, perto da estação, tinha um lugar para atender tudo. Quando chegou lá, encontrei o professor de francês, Oman Constant. Eu era bom em francês, sempre tirava 90, 100, 90, 100. Ele gostava de mim. Ele alugou um táxi de Bauru até São Paulo, me trouxe de táxi de Bauru até São Paulo.
P/1 – Ele e o senhor sozinho?
R – Ele e meu pai. Ele, eu e meu pai, ele trouxe. Ele alugou o carro: “Você vai comigo até São Paulo”.
P/1 – De Bauru a São Paulo de táxi.
R – É, são 300 e tantos quilômetros, né? Quanto custava?
P/1 – E para que o senhor estava vindo para São Paulo?
R – Para fazer o colegial. Eu entrei no Mackenzie.
P/1 – Sei. Quem paga o Mackenzie para o senhor?
R – Meu irmão, que cumpria.
P/1 – Ele cuidou disso também.
R – Ele fez. Nesse ponto, meu irmão foi realmente correto. O que ele prometeu pra mãe ele cumpriu.
P/1 – O que ele falhou foi nos negócios.
R – É, não deu certo. Por isso que eu não critico ele. Meus irmãos criticam ele, sempre, brigam com ele, e eu não faço isso. Ele tentou fazer uma coisa melhor, não pôde, fazer o quê?
P/1 – Paciência, né?
R – O passado não volta, né?
P/1 – É verdade.
R – Então, eu tratava meu irmão bem, e meus irmãos não tinham muita amizade. Então, todos os meus sobrinhos gostam de mim por quê? Porque eu fui, tratei bem meu irmão. Aliás, esse meu irmão foi o único que me tratou bem. Todo lugar que ele estava sozinho, todo lugar que ele ia, quando minha irmã casou em Rancharia, ele foi de Getulina até Rancharia me levar de carro. Foi não sei o quê, ele me levou de carro. Todo lugar que ele via, ele me levava de carro. Eu sempre era companheiro ideal dele.
P/1 – Conta pra mim a história do primeiro caminhão que seu pai comprou, que está naquela fotografia?
R – Aquele Ford 20, que era pequenininho, acho que carregava duas toneladas no máximo. Era dos primeiros caminhões que tinha aqui no Brasil. Ele comprou aquele lá, meu pai.
P/1 – Com dinheiro do café?
R – Com dinheiro do café.
P/1 – E foi uma grande vitória?
R – Grande vitória. Por isso, esse Joaquim Barbosa confiou e sempre tratou meu pai bem, sempre foi amigo do meu pai.
P/1 – Por que o senhor escolheu estudar no Mackenzie?
R – Porque meu irmão sugeriu isso, eu não conhecia nada aqui de São Paulo.
P/1 – E seu irmão conhecia?
R – Ah, ele estudava aqui em São Paulo, ficou estudando aqui.
P/1 – Estudava no Mackenzie também?
R – Não sei direito, parece que estudou no Mackenzie também. Ele fez vestibular no Mackenzie, não sei o quê, tinha algum relacionamento. Ele tinha amigos lá estudando no Mackenzie. Então, ele veio aqui e já foi lá e me matriculou no Mackenzie. Porque no meio do colegial tinham seis salas de estudante, com quase 40 alunos. Sabe quantos japoneses tinha? Três! Tinha dois chamados Teruo. E outro que não sei o nome dele. Só tinha três! Gozado, sabe?
P/1 – Sua família era de qual religião, Seu Teruo?
R – Eu não tenho religião. Para mim, todas as religiões tem caminhos diferentes, mas um mesmo destino.
P/1 – Seus pais também não tinham religião?
R – Também não tinham.
P/1 – Porque o Mackenzie é uma escola protestante, né?
R – É protestante.
P/1 – Quer dizer, não foi por causa de ser protestante que o senhor entrou lá?
R – Não, não foi.
P/1 – E o senhor resolveu fazer Direito por quê?
R – Porque eu gostava de Direito. Eu gostava de ler. Por exemplo, eu sabia ler tão bem francês que, quando eu vim pra São Paulo, eu já lia em francês, livros. (Le Français Courant?), eu tinha comprado um volume destes. Mas me deram uma professora de francês que era um bagulho tamanho, grosseira, eu perdi todo o interesse e não estudei mais francês.
P/1 – Lá no Mackenzie?
R – É. Eu tenho até código civil, muitos livros em francês. Eu lia em francês.
P/1 – Mas perdeu!
R – Perdeu o interesse por causa de uma professora ruim.
P/1 – Onde o senhor foi morar quando veio pra São Paulo?
R – Ah, minha filha, eu mudei 14 vezes em sete anos. Por aí você vê.
P/1 – Nossa, por que mudou tanto?
R – Porque minha vida sempre foi assim, incerta. Eu não tinha destino porque nunca tive um lar. Então, onde eu encontrava um amigo eu mudava!
P/1 – Mas o senhor veio com o seu pai, foi morar com ele?
R – Não, meu pai me trouxe até São Paulo. Eu fui morar junto com meu irmão, nessa pensão de português que tinha lá no Largo Santa Efigênia. Depois que ele foi para Curitiba, eu fiquei sozinho. Então, eu saí de lá, peguei uns amigos e fui morar na Alameda... Uma travessa lá da praça. Fui lá, depois eu mudei pra Conselheiro Brotero. Depois, saí e fui lá de cima da Conselheiro Brotero, vim pra Rua das Palmeiras, fui pra Rua 25 de Março, perto da Rádio Bandeirantes, que tinha lá – Cícero Mota morava no mesmo apartamento que eu. Aí, eu fui lá, mudei pra Rua do Arouche, mudei pra uma travessinha lá da Vila Buarque, mudei pra Higienópolis, uma travessa lá da Avenida Paulista, mudei um pouco na Galvão Bueno, única vez que eu... Depois, aluguei um apartamento. Você vê quanto lugar? E em todo lugar eu fui arranjar amigos.
P/1 – Nenhum japonês?
R – Nenhum japonês. Lá no “coiso” tinha um negão, um negão mesmo, ele falava bem alemão, então, ele me levava só pra gafieira. Aprendi samba indo na gafieira.
P/1 – Pensei que era um negão que ia levar o senhor para o restaurante alemão e ele levava pra gafieira!
R – É, gostava de dançar, né?
P/1 – E o senhor dançava?
R – Dançava! Eu sempre gostei de dançar. Aí, meus amigos eram pernambucanos, cearenses, baianos, tudo assim.
P/1 – Isso desde criança!
R – Desde criança, desde criança. Por isso que até hoje eu gosto de jabá, feijão e farofa, comida melhor que tem (risos).
P/1 – E como é que o senhor, sendo tão distante dos japoneses, foi acabar sendo presidente da Aliança Cultural Brasil-Japão?
R – Bom, aí, minha vida mudou por completo! Veja bem, eu, já no começo da faculdade, eu adquiri muita experiência em fazer estatuto de clube, porque, junto com os caras aí, Miguel Vaccaro Netto, que foi disc-jockey, um monte de gente que tornou-se... Augustinho dos Santos era meu amigo e tal. Na Boate Itapuã, que tinha na Vieira de Carvalho, eu aprendi a fazer um estatuto de um clube. E, quando nós montamos o BeBop Moto Clube, eu fiz o estatuto e a turma disse: “Não, o Makio sabe fazer!”, e eu fiz o “coiso”. Nós fomos estabelecer onde mais tarde entrou o Som de Cristal, mas o primeiro salão de baile fomos nós que fizemos lá.
P/1 – O Som de Cristal não foi o senhor?
R – Não foi. Depois que entrou o Som de Cristal, e nós saímos de lá, porque sábado e domingo a gente dava baile e cobrava entrada dos caras e repartia, todo mês. Ganhava um dinheirinho, sabe? Então, com essa experiência, meu tio me convidou pra fazer um clube pra ele, de japoneses. E, aí, eu comecei a entrar no meio dos japoneses. Eu achei que devia entrar no japonês porque eu namorava a minha futura esposa, ia na casa dela, e a mãe dela virava as costas e ia embora. De japonês eu tinha só cara, não sabia nem cumprimentar! (risos) Então, era isso que me tratava. Então, falei: “Não, vou ter que aprender um pouco de japonês”.
P/1 – Mas o senhor sabia as músicas, sabia os versos, mas não falava?
R – Não falava, não falava. Então, eu comecei a entrar na Aliança para aprender um pouco de japonês.
P/1 – Não diga! Como o senhor conheceu sua esposa?
R – Assim, no clube, nesse clube que meu tio pediu pra abrir. Então, juntou um monte de estudante japonês, e ela era uma delas.
P/1 – O que se fazia nesse clube?
R – A gente fazia baile todo fim de semana. Não tem ali, no fim da Rua Riachuelo, ali embaixo, quando chega a 23 de Maio? Ali, tinha um salão do Senac [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial]. Era um salão que estava vazio, então, nós alugávamos todo domingo. Nós tínhamos um trio que fazia conjunto, tocava baile tudo matinê, e nós dançávamos lá. Na frente, ficava a rádio não sei o quê, e a gente ia lá, todo domingo tinha baile lá.
P/1 – O senhor tocava algum instrumento?
R – Não, não, eu apenas ia lá, era do clube, então, fazia. Mas eu, durante dois anos, eu falsifiquei toda ata do clube!
P/1 – Por quê?
R – Porque era clube de jogatina! Então, tinha que fazer assembleia, botar nomes de pessoas, votou, não votou, ordem do dia, tudo. Fazia tudo certinho, tudo perfeito!
P/1 – Era um clube de jogatina, e o senhor fazia de conta que era um clube de diversão?
R – Era um clube social. (risos)
P/1 – Entendi. Mas, aí, a sua futura esposa gostava de dançar também?
R – Gostava de dançar, toda japonesa gostava de dançar. Então, a gente fazia isso, fazia muito piquenique pra Santos. Alugava cinco ou seis ônibus e ia lá, levava lanche e tudo, tudo era assim.
P/1 – Moças e rapazes?
R – Moças e rapazes. Ia de manhã cedo e voltava à tarde. Não era ficar de um dia pro outro, não.
P/1 – Isso foi mais ou menos em que ano?
R – Isso foi no tempo da faculdade, acho que 57, 58, por aí.
P/1 – Ah, o senhor já estava na faculdade quando conheceu sua esposa?
R – Já estava na faculdade.
P/1 – E o que ela fazia?
R – Ela trabalhava numa empresa de publicidade e fazia publicidade.
P/1 – Escrevia?
R – Não, era empresa que pegava publicidade, pra publicar no jornal, pra lá e pra cá.
P/1 – Ah, tá, de venda, né?
R – É, de venda.
P/1 – Ela chama Matsumi, né?
R – Matsumi.
P/1 – E a família dela era tradicional japonesa? É isso?
R – Não é tradicional. Eram lavradores, não tinha aquela tradição japonesa, já perdia tudo aqui. Quando chegava aqui, já era tudo diferente.
P/1 – Mas tinha preconceito que o senhor não falava japonês.
R – Ah, isso tinha. Com cara de japonês, precisa saber falar japonês. E eu não falava nada! Tive que aprender na marra. Depois que entrei na Aliança, quanta gente que: “O que ele falou? O que é isso, o que é isso?”, ia anotando. E foi assim que fui aprendendo japonês. Fiquei amigo de quase todos os cônsules do Brasil, do presidente do Banco Mitsubishi, um cara excelente, vários presidentes de empresas japonesas. Fiquei amigo de todos eles.
P/1 – Depois de adulto!
R – É.
P/1 – Depois de adulto que sua relação virou mais japonesa.
R – É, porque no começo da profissão só vinha japonês malandro. Tinha cara que roubava cheque e vinha, e eu comecei a desconfiar. Mandei todos esses caras embora: “Vou pegar gente limpa, limpinha”. Aí, comecei a pegar empresas japonesas. A Seiko do Brasil, eu fui advogado deles durante dez anos. Corretíssimo.
P/1 – O senhor tinha escritório?
R – Já tinha escritório.
P/1 – Um escritório seu.
R – Meu escritório.
P/1 – O senhor se formou e montou escritório?
R – É, porque, quando eu formei, eu já sabia bater quase toda petição, porque eu trabalhei dois anos em escritório de advogado. Então, eu aprendi.
P/1 – Enquanto estudava?
R – Enquanto eu estudava. Então, aprendi. Quando abri escritório, abri com mais três colegas que não sabiam fazer petição nenhuma. Então, eu fui ensinando todos e fomos fundando tudo.
P/1 – Onde era seu escritório?
R – Ali na Rodrigo Silva, esquina com a João Mendes, sabe?
P/1 – Ah, no Centro.
R – Ainda estava o Carbone, estava o Gilberto Leme Romeiro e mais a Sara Scheiner, Gilberto Leme Romeiro – é atual procurador aposentado –, Alexandre Duarte Neves – este, ele morreu. Ele era assessor do presidente da Assembleia Legislativa, ele entrou no primeiro ano do primário até último ano, sempre tirou primeiro lugar. Magrinho e tal, mas era meu amigo. Eu era amigo do pai. O pai, quando minha mesada não vinha, ele me ajudava com um dinheirinho e tal. Eu dormia, comia na casa dele, amigo meu, amicíssimo. Conhecia desde o tempo do Mackenzie, do colegial.
P/1 – Quer dizer, a gafieira veio primeiro e depois o escritório de advocacia?
R – Eu tinha dois tipos de vida: com os colegas de faculdade era ambiente chique. Com os colegas de pensão, era gafieira e jogatina! Jogava cacheta em bastantes clubes. Ia muito de ambiente, por exemplo, quando estava na 25 de Março, entrou um tal de Airton dos Santos, era gigolô. Sabe o que é gigolô, né? Ele vivia à custa de...
P/1 – Mulheres!
R – Não, de homens!
P/1 – Ah, de homens? Prostitutos?
R – É. E ele era amante de Fred Feld, era um grande pianista que tocou em Paris e Londres e tocava piano no Capitain’s Bar, ali da Duque de Caxias. Era amante dele! Então, com o tempo ele pegou... Mas ele dançava bem! Ali, na Avenida Ipiranga, perto depois da Rio Branco, tinha uma boate, táxi-dancing, chama-se, que ele ia lá, porque todo mundo que ia lá pagava uma taxa. É táxi-dancing, então, por hora paga tanto. Ele não. Ele cobrava pra dançar porque todo mundo queria ver ele dançar. Ele dançava muito bem rumba, mambo, tango, ele dançava muito bem. Ele cobrava pra dançar. Cobrava das meninas pra dançar.
P/1 – Porque no fim as ensinava um pouco, né?
R – É. Depois ele saiu, foi embora. Ele ficou meu amigo. Todo lugar que ele ia, ele me levava. Falou: “Vou para os Estados Unidos e não sei se eu volto, se vou estar não sei o quê, eu te mando algum presente”. Depois de um ano, ele mandou uma caneta Parker 61 de ouro, até hoje está comigo, não enferrujou de jeito nenhum, está como ouro ainda. Nunca mais voltou. Era um amigo meu!
P/1 – Nunca mais voltou?
R – Nunca mais voltou. É, foi definitivo. Teve uma outra secretária da Companhia Paulista, ela também foi para o Canadá. Disse que ia voltar, mandou carta, mas nunca mais voltou. Arrumou serviço lá e nunca mais voltou.
P/1 – E me diga uma coisa: até que idade o senhor manteve essa vida dupla?
R – Até quando eu formei, até 22 anos, mais ou menos. Depois que eu formei, um pouco depois, eu casei e levava uma vida mais tranquila.
P/1 – Mas o senhor me falou que foram cinco anos de namoro, não é isso?
R – Isso.
P/1 – Mas, então, durante o tempo de namoro, o senhor tinha essa vida dupla?
R – Eu sei, mas de noite, ela morava lá na Via Anchieta. Então, eu levava ela e depois a gente saía por aí.
P/1 – Ia pra farra. E ela sabia?
R – Não, não precisava saber, né?
P/1 – (risos) Tá bom. E como foi o pedido de casamento?
R – Ah, não tinha pedido de casamento. Eu apenas falei com ela de casar, ela falou com a mãe, a mãe concordou e só isso.
P/1 – Ah, o senhor não precisou falar com o pai dela?
R – Não, não precisava falar.
P/1 – E teve uma festa de noivado!
R – Teve, teve. A mãe sabia e fez. Naquela época, a mãe já estava aceitando porque já sabia falar um pouco de japonês e tal, tal, tal.
P/1 – O senhor já era secretário lá na Aliança?
R – Acho que não era ainda, não. Mais tarde que eu comecei. Porque em japonês não há pedido oficial. Então, já sabe que vai casar, não tem problema nenhum, porque, por exemplo, no casamento do meu irmão mais velho e de outros mais velhos, quem pediu para fazer o casamento fui eu. Eles tinham vergonha de falar com os pais, e eu que entrei e falei: “Mário quer casar e tal, com essa mulher assim e tal”. Aí, meu pai veio junto, e eu que fiz o casamento pra eles.
P/1 – Que interessante. E no seu casamento não tinha os seus irmãos para interceder pelo senhor e o senhor fez tudo sozinho.
R – Não, não tinha nada, porque um estava no Rio Preto, outro estava lá no outro serviço, eu nem quase conversava. Entre nós, irmãos, quase não há conversa. Nunca brigamos, mas também não tinha diálogo. Até hoje é assim, embora eu trate bem tranquilo.
P/1 – Mas não tem encontros frequentes?
R – Não, não tem, muito difícil.
P/1 – Tem irmãos que moram aqui em São Paulo?
R – Tem um que está. Ele tem quatro anos mais que eu e tem três filhos e ele está bem – ele que eu fiz o casamento dele e tal. A casa que ele comprou estava enrolada. Eu entrei no meio, mandei o dono consertar, eu consertei pra ele, ele está morando até hoje na casa, porque, se não tivesse brigado, ele estava sem casa até hoje. Ele não tinha dinheiro pra comprar, né?
P/1 – Esse é o irmão que não estudou?
R – É, não estudou.
P/1 – Aí, o senhor se formou no Mackenzie, montou o escritório, casou e foi morar no Bixiga?
R – Bixiga.
P/1 – No Bixiga, no meio dos italianos.
R – É, no meio dos italianos, mas o médico era brasileiro, que tinha esse prédio e me alugou.
P/1 – Mas o senhor podia ter ido procurar um lugar na Liberdade, que estava cheio de japoneses.
R – Não, não, não queria no meio de japonês. Por enquanto, meus clientes eram tudo brasileiro. Por exemplo, Edmundo Emiliano, primeiro fabricante de consultório dentário em São Paulo, Júpiter, era meu amigo. O Edmundo. Ele batizou, inclusive, minha filha mais velha, ele que batizou. Ele e o irmão dele eram amicíssimos meus. Todo sábado e domingo a gente jogava pôquer. Sempre. Era sempre amigo. Ele que me ajudou bastante. Eu trabalhei em tanto lugar, eu trabalhei na Comissão Protestante da Guarda Civil, Comissão Protestante da Polícia Civil, defendendo delegado, investigador sendo processado, os guardas civis todos sendo processados. Um monte de coisa! Saiu uma vez um rapaz, um nortista, que ele matou o marido da amante dele a facada. E estava sendo processado por homicídio, né? E não sei, o radialista: “Quem quer defender?”. Eu fui lá defender ele e acabei absolvendo ele, nem pegou júri.
P/1 – E o senhor recebeu por isso?
R – Não, eu fiz de graça pra ele.
P/1 – E por que o senhor foi fazer isso?
R – Pra ver se fazia alguma coisa!
P/1 – Pra aparecer o nome.
R – Exato. Depois, mais tarde, você vê que coisa, que coincidência. Depois de uns cinco ou seis anos, eu conheci o Hamilton Dragomiroff Franco, o maior promotor que São Paulo já teve, 600 e tantos júris e nenhuma absolvição. Ele condenou em todas! Ele ficou gostando tanto, mandou fazer uma defesa lá, e eu fiz defesa. Ele pegou o advogado que estava com ele e mandou embora, falou: “Você vem trabalhar comigo, não sei o quê”. Porque ele era casado, não tinha filho, tinha uma fazenda ali na Sete Barras, e falou: “Quero você comigo, quero você, vou fazer de você um bom advogado”. Aí, não quis fazer. Ele ficou bem chateado.
P/1 – Não foi?
R – Não fui, eu não gosto de fazer criminal. Não dá lucro.
P/1 – (risos) E trabalhista dá?
R – Também não dá muito, não.
P/1 – O que é o filão?
R – Eu faço só cível.
P/1 – E faz até hoje?
R – Faço até hoje. Faço até hoje. Por sinal essa semana estava corrido porque fechei um monte de recursos para o Supremo Tribunal Federal.
P/1 – E onde fica seu escritório hoje?
R – Fica na Rua da Glória. Eu tinha 3.500 volumes e dei pra lixo. Porque não usa mais livro, 3.500 volumes, quanto eu gastei naquilo lá? Eu tenho só 1.000 volumes. Faço tudo de cabeça.
P/1 – E ainda muda a legislação toda hora, né?
R – É. Só que agora estou brigando mais com juiz. Olha, quanto mais novo fica, o juiz fica mais pedante, mais malcriado. E está perdendo. Você viu o aumento que a Assembleia deu agora? Quarenta por cento! Não pega militar e não pega professor. Vai dar greve em cima desses caras, não é possível. Por isso, não voto em político nenhum.
P/1 – (risos) O senhor casou apaixonado?
R – Ah, não, gostava muito dela, sabe? Ela também gostava de mim. Então, eu viajei duas, três vezes para o Japão. Para os Estados Unidos, fui pra China.
P/1 – Foi fácil convencer ela a casar?
R – Não, ela que queria casar comigo!
P/1 – Ah, ela queria! (risos) O senhor não estava com muita vontade?
R – Não, eu também queria. Eu queria sair de casa, queria ter o meu lar, a minha casa. Eu, em japonês... Meus convidados, todo mundo sabia que eu estava duro. Então, eles se reuniram e deram sete mil cruzeiros pra mim, naquela época. Agora, meu padrinho é Sérgio Carbone, gostava de mim, ele deu a sala de jantar. O Carbone comprou um monte de carne, não sei o quê, junto com Paulo Geraldo Sgobbi, que eram meus amigos. Comprou carne e trouxe para fazer na festa de casamento, trazer tudo carne para fazer churrasco e tal, tal, tal. Tudo meus amigos fizeram. Aí, minha irmã veio do Rio, fazia dez anos que eu não encontrava, pegou: “Como o dinheiro?! Dá para o papai!”. Eu não pude ter lua de mel, então, o Carbone percebeu isso: “Fica firme”. Ele saiu de noite daqui, comprou algumas coisas aqui, levou no apartamento dele e deixou as comidas e trouxe a chave: “Vai lá, você fica lá na sua lua de mel”. Minha lua de mel foi isso.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Em Santos. Ele me emprestou o apartamento dele e botou comida tudo pra mim. Assim que eu vivi.
P/1 – O dinheiro que o senhor ganhou o senhor deu para o seu pai?
R – Minha irmã tirou e deu para o meu pai. Fiquei duro!
P/1 – Seu pai estava morando onde nessa época?
R – Junto com meu irmão, junto comigo lá.
P/1 – Ah, moravam juntos?
R – Morava junto. Podia casar e ter minha casa.
P/1 – Quer dizer, nessa altura já estavam todos aqui em São Paulo.
R – É. Então...
P/1 – Era aquela casa da Cardeal Arcoverde?
R – Exato. Então, eu contei isso pra minha irmã e ela chorou: “Desculpa, não sabia!”. Agora não adianta chorar, né?
P/1 – Mas foi boa a lua de mel em Santos?
R – Ah, foi boa, tranquila, né? O Carbone deixou boa comida lá, então, fizemos comida, andamos, passeamos bastante, tudo tranquilo.
P/1 – Quantos filhos vocês tiveram?
R – Tenho dois, um casal.
P/1 – E os dois estudaram?
R – Todos estudaram.
P/1 – O senhor acha que cumpriu seus objetivos na vida?
R – É, 80 por cento sim. Ninguém está satisfeito com o que tem, né? Sempre falta alguma coisa mais.
P/1 – Me diga uma coisa: vamos voltar agora para a época da Aliança Cultural Brasil-Japão. O senhor falou que foi homenageado pelo reitor da universidade?
R – Não, isso foi bem no fim já. Por que entrei na Aliança? Porque queria aprender japonês, alguma coisa da cultura. Como o presidente era Jun Makamoto, era primeiro diretor de uma faculdade nissei, ele criou um cargo só pra mim. Eu entrei lá e fui eleito, em 76, parece que foi. Primeira coisa foi eu sugerir que a Aliança se unisse com outra associação que ensinava japonês também. Reuni os dois. Então, durante três meses, nós fizemos uma espécie de incorporação. De um lado, veio o presidente Mitsubishi, banco, mais um comerciante rico, que vendia arroz e mais uma pessoa. Eu vim, o Ademar e mais um, três pessoas de cada lado. E ficamos três meses debatendo, mas a bronca toda sobrou pra mim, porque eu que batia toda minuta, fazia correção e tudo. E, na hora de apresentar, fui eu quem apresentou no estatuto. Aprovado tudo, aí, entramos. Fiquei um ano como diretor e daí pra frente, durante 15 anos, eu fui secretário geral da Aliança. Porque quando eu peguei o livro de ata: “Reuniu em tal data, tal, tal...”, cinco ou dez linhas e terminava a ata. Eu falei: “Ata pra mim está errada”. Eu fazia tudo data, cada um o que falou, o que não falou, tudo. Então, uma folha, duas folhas, tudo preenchido. Fazia a ata, o livro, tudo preenchido, sem problema nenhum. Tinha privilégio que eu acabei. “Olha, diretor não pode ganhar benefício gratuito, vai ser igual para todos os sócios”, inclusive eu, diretor, tem tanto direito como sócio. Fomos tirando todas as regalias. Aí, ficou mais ou menos grande.
P/1 – Além de dar aula de japonês, o que tinha de importante na associação?
R – A associação era cultural. Então, tinha não só japonês, tinha origami, um monte de arte japonesa, tem tudo lá. Aí, o problema era o seguinte: eu resolvi fazer um negócio diferente. Primeira coisa que aconteceu é que a associação não pagava INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] sobre salário de professoras. Aí, o Governo Federal começou a cobrar, e eu tinha uma ação contra o Governo Federal. Demorou 15 anos, e eu acabei perdendo porque não tinha jeito. Aí, eu falei para o João: “Oh, João, vamos pagar, não vamos deixar pendurado que isso vai subir”. Começamos a pagar, sacrifício. A Associação Central dos Japoneses, lá no Bunkyo, eles não pagaram nada. Hoje, têm uma dívida de 30 milhões de reais e está o prédio todo penhorado. Vê o erro deles. A Aliança não tem uma dívida, está tudo limpinho.
P/1 – E o senhor foi quatro anos presidente?
R – Quatro anos eu fui presidente. Quinze anos secretário, 8, 9 anos vice-presidente, e depois assumi a presidência.
P/1 – Quer dizer, aquele Seu Teruo que vivia no campo, que gostava de arroz, feijão, farofa, que tinha um amigo negão que ia pra gafieira, daí, virou um herói da cultura japonesa?
R – Mais ou menos, não é herói, né? O problema é o seguinte: quando eu ganhei esse dinheiro no bingo, eu projetei fazer um dicionário japonês-português.
P/1 – Começa tudo outra vez, como o senhor ganhou dinheiro no bingo?
R – Ganhamos quase 100 mil.
P/1 – Conte essa história que eu não sei.
R – Bingo se vende cartelas, cada um tinha uma cartela e cada diretor tinha que vender 100 cartelas.
P/1 – Ah, cada diretor da associação?
R – É, tinha que vender. E eu vendi 300! Teve diretor que devolveu tudo em branco, mesmo assim, conseguimos recolher 100 milhões, 100 mil, né?
P/1 – E, aí, o que fizeram com esse dinheiro?
R – Muito bem. Qual era o objetivo? Era fazer um dicionário japonês-português com 60 verbetes. Agora, veio um diretor que não sabia o que era, e gastou 60 mil à toa, comprando carro, não sei o quê, com Abílio Diniz, quando devia ter falado comigo, que sou amigo do Abílio Diniz, que falou: “Não, se você viesse falar comigo, você ia pagar no máximo 40 mil e sobravam 60 pra você”. Aí, chamamos um português da Universidade Sofia, lá do Japão, pra ajudar a fazer dicionário, porque era um português que falava bem japonês. E ele veio aqui, mas veio só beliscar dinheiro, veio pedir dinheiro emprestado e pegou passagem para pagar e ir para o Japão. Aí, o João Okamoto, o que ele fez? Ele pegou esse dinheiro, estava rico agora, não precisava. Sempre vivia duro, né? Alugou uma casa na Avenida Brasil, um bruto de um palacete e fez a primeira escola nipo-brasileira. Mas quem que ele convidou? Uma coordenadora de ensino do Caetano de Campos, uma nissei. Quando eu conversei com ela: “João, essa mulher não serve. Como você quer colocar uma pessoa pra ensinar uma parte japonesa e uma parte em português sem conhecer nada da cultura japonesa? Não serve!”. “Não, vamos tentar porque...” Tinha três ou quatro professoras japonesas lá, insistiram, insistiram, pagaram uma viagem pra ela para o Japão. Ela foi lá só divertir, não fez um contato, e veio embora. Batata, seis meses depois todo mundo pediu, ficou desesperado pra tirar ela fora. E eu falei: “Está vendo?”, e isso acabou dando prejuízo essa escola.
P/1 – Mas entrou alguma pessoa que soubesse cultura japonesa depois?
R – Não, fechou a escola!
P/1 – E o dicionário saiu?
R – Saiu quando eu assumi a presidência. Pra sair esse dicionário, Lei Rouanet, você tem que pagar uma coisa. Então, eu corri quase 12 empresas japonesas e consegui recolher quase 400 mil de doação ainda.
P/1 – Ah, então, não foi o dinheiro do bingo que deu no dicionário.
R – Não, esse foi só para fazer os verbetes. Agora, para fazer, para imprimir, e o dinheiro? Porque eu tinha que dar dois volumes português-japonês e japonês-português para todas as bibliotecas públicas do Brasil – a Lei Rouanet exige. Foram 600 volumes que nós tivemos que mandar de graça, pagando correio ainda. Isso vai dinheiro. Então, fui lá e pedi pra Honda, não sei o quê, todo mundo com boa vontade e deu. Fiz uma festa lá no consulado, reuni todo mundo, lançamos livro e tal. E foi ótimo. E ainda sobrou bastante dinheiro pra nós.
P/1 – E como foi que esse reitor da Universidade Imperial do Japão veio pra cá?
R – Nessa época que a Aliança estava andando e tal, ele vinha aqui no Brasil, ele queria investir em alguma coisa e tal, tal, tal. E não tinha interlocutor. Então, veio uma pessoa e apresentou a Aliança. Então, o presidente da Aliança que ia atender. Primeira coisa, quando ele chegava aqui, telefonava pro Jun: “Eu tô aqui, vamos conversar!”. Ele sempre convidava pra almoçar, ele ficava no Hotel Othon ou ficava no hotel não sei o quê, e a gente ia lá, umas 15 pessoas vinham. Mas, como o Jun não falava muito japonês, eu ficava no meio traduzindo pra ele. Aí, acabou ele gostando mais de mim do que do presidente. E, assim, quando eu viajei pra lá, ele convidou, fez essa homenagem. Eu fiquei assustado: “Como vai fazer isso pra mim?”. Porque eu me senti honrado, porque eu era convidado do governo japonês quando eu fui lá.
P/1 – Por que o senhor foi convidado pelo governo japonês?
R – Não sei, porque tinha amizade com cônsul, tinha amizade com várias empresas grandes. Por exemplo, teve algumas ocorrências que ninguém muitas vezes não sabe. Eu aprendi uma coisa num processo crime, na colônia japonesa, que esse banco da Motosuki Fuji era um dos melhores executivos do Banco de Tóquio. Ele voltou pra lá já doente, criaram um cargo permanente pra ele, ele ganhava um salário excelente até morrer. Deram aposentadoria especial pra ele. Esse cara, durante sete dias, saiu publicada a história da vida dele, que era uma coisa espetacular. O jornal São Paulo Shimbun. Muito bem, o que ele fez? Ele tinha uma casa com 600 metros quadrados ali na Vila Mariana, ele deixou pra esse jornalista pra vender e mandar o dinheiro. Ele vendeu, enfiou o dinheiro no bolso e não mandou.
P/1 – O jornalista do São Paulo Shimbun?
R – É, São Paulo Shimbun. Então, aí, o japonês mandou um cara falar o porquê, ele deu a seguinte resposta: “Esse dinheiro é meu agora. Agora, se você começar a insistir, eu vou dizer que tudo aquilo que eu escrevi sobre você era tudo mentira, inventado”. Quer dizer, chantagem, né? Ele ficou chateado, não reclamou mais, perdeu todo o dinheiro.
P/1 – Mas esse foi o processo criminal que o senhor pegou?
R – Desse aí, nasceram dois processos crimes, porque, baseado em certas informações e coisa, isso aí saiu só de boca pequena aí na colônia, só eu e alguns que souberam disso aí. Porque na colônia, você sabe que, no tempo da guerra, depois da guerra, existia uma turma de “ganhou guerra” e outra “perdeu guerra”. Entre os que perderam, quase 60 foram assassinados. E esse presidente do São Paulo Shimbun, ele ocupava o meio, ou seja, ele tomava dinheiro daquele que dizia que Japão tinha perdido a guerra por um terço do preço e vendia para aquele que dizia que Japão ganhou a guerra pelo triplo do preço. Ele ficou rico! Ele foi preso em flagrante e o Diário de S. Paulo publicou a fotografia dele como estelionatário, vigarista, escreveu um monte de coisas.
P/1 – Era um nissei esse homem?
R – Era um japonês!
P/1 – Japonês mesmo?
R – Era um japonês, foi um jornalista, um dos mais antigos jornais japoneses aqui de São Paulo. Aí, tinha um jornalista pequeno, que era semanal só, jornal semanal, ele publicou uma história e contou toda a história. Aí, ele, pessoa física, e o jornal, vieram dois processos crimes em cima do jornal. Ele falou: “Teruo, eu não tenho advogado, eu sou um cara pobre, tal e tal”. “Não posso, não faço crime!” Insistiu, insistiu, eu defendi o cara. Mas eu tive sorte, o cara que fez o processo crime, ele pensou que entendia muito de cultura japonesa, onde que ele rodou.
P/1 – (risos)
R – Pelo tipo de costume! E o juiz – o tribunal foi excelente! Tirou o juiz que estava lá, botou um juiz nissei, que entendia de cultura, e botou pra decidir. Fiz 40 folhas de defesa e tudo, foi absolvido por motivo de relevante valor social! Pum. Acabou. Muito bem, ele parou isso aí e começou a publicar mais. Aí, veio outro processo crime. Eu falei: “Agora, vai pegar mesmo!”. Aí, derrubei, mas saí com outro tipo de defesa, eu impugnei toda a tradução. Por quê? Ele traduziu certas palavras como crime, estelionato, quando lá o escrito é uma palavra religiosa, onde não existe a palavra crime e nem tipo de crime. Era falta de consideração, falta de respeito, não tinha... Então, desconsiderei tudo como errado, quer dizer, não tem ofensa nenhuma. E comecei a fazer recurso pra lá, recurso pra cá e tal e tal, e o cara não percebendo. Eu pegando tempo. Quando o juiz foi dar sentença, tinha passado dois anos. O juiz deu como prescrito e isentou de punição. Ganhei por aí! (risos)
P/1 – O senhor se diverte trabalhando, né?
R – (risos) É bom, né?
P/1 – É bom!
R – Quando o cara não entende certas malícias de país... Como é jornal escrito em japonês, destinado à colônia japonesa, então, a cultura japonesa tem muita preponderância.
P/1 – Tem que ser considerada, né?
R – É.
P/1 – Vamos fazer um outro exercício agora! O senhor vai se lembrar das casas em que o senhor morou. Quando o senhor era criança, com seis anos de idade, lá naquele sítio, como era a casa?
R – A casa era... Como não tinha dinheiro, era de sapé batido com folha de... Como que chama? Não é eucalipto. Como chama vara de pescar?
P/1 – Bambu?
R – Bambu. Bambu cortado lá. E era pregado e depois fazia com barro, barro misturado com palha de arroz picado. Juntava tudo e passava pra fechar o buraco. Se você deixar esse junto com coqueiro, entra percevejo, entra tudo. Então, fez tudo coberto com cal, branquinho, ficava branquinha a casa. Quem olhava falava: “Bom, casa bonita de tijolo”. Não era tijolo, era coqueiro e bambu.
P/1 – Seu pai que fez?
R – Meu pai que fez.
P/1 – E tinha quantos quartos na casa?
R – Tinha um, dois, três quartos.
P/1 – Ah, era uma casa grande! E cozinha... E o banheiro era dentro ou era fora?
R – Era dentro, era dentro.
P/1 – Ah, era uma casa moderna.
R – Era banho... Banho, né? Não era chuveiro.
P/1 – Banheira ou ofurô?
R – Ofurô. Você tira a água, lava fora e depois entra dentro, exatamente isso. E na frente ficava o poço que era...
P/1 – De manivela.
R – É, porque tinha mais ou menos umas 12,13 casas de colono também. Uma ou outra era de tijolo, mas algumas eram de tábua e outras de coqueiro também. E no meio de duas casas tinha um poço para os caras tirar, tudo bem feitinho, né? Era isso. Minha vida, como não tinha ninguém pra conversar, não tinha. Às vezes, molecada tinha lá, mas uma molecada... Por exemplo, a Rosa, a mãe morreu, ela que tinha que fazer arroz. Não podia, os irmãos eram todos pequenininhos, tinha Jair que também ficava com o pai, quer dizer, não tinha amigo nenhum. Meus sobrinhos foram embora, então, eu saía de manhã cedo, pegava um facão, punha na cintura, entrava no pasto e ia num pasto, não ia no outro, porque no pasto onde tinha vaca, chamada vaca Boneca, ela avançava em cima dos caras. O único amigo meu era um touro, a gente chamava de Gir, era um touro bonito!
P/1 – Grande!
R – Era o único que tinha amizade comigo. Eu podia... Eu sempre alisava ele, coçava ele, eu encostava ele no portão, subia e andava nas costas dele.
P/1 – Andava em cima do Gir? Opa!
R – Meu irmão foi fazer isso e levou uma chifrada, jogou lá pra cima. O único que fazia isso com o touro Gir era eu.
P/1 – E o gado era do seu pai?
R – Era nosso, era nosso. Nós tínhamos lá umas 12, 13 cabeças de gado. Depois, lá em cima, quando meu cunhado foi embora, deixou lá umas 200 cabeças de gado. Ele tinha lá.
P/1 – Bastante! Pra leite ou pra corte?
R – Duzentas eram pra corte, pra vender. O de baixo, a gente tirava leite, quatro ou cinco vacas, mas como davam 14, 15 litros, a gente pegava dois ou três litros, e o resto dava para os colonos que tinham filhos pequenos. A gente dava pra eles. Não cobrava nada, dava. Era tudo fogão de lenha.
P/1 – E depois, a casa de Catanduva?
R – Catanduva eu não sei, eu não tinha nascido ainda.
P/1 – Depois de lá foram pra onde?
R – Pra Getulina.
P/1 – Como era a casa de Getulina?
R – Era essa casa da fazenda!
P/1 – É essa aí!
R – Depois, meu irmão comprou uma casinha lá na cidade de Getulina, uma casinha velha. Depois, ele comprou a melhor casa da cidade. Com quatro arcos assim, varanda do outro lado, tinha mil e tantos metros quadrados, era bonita.
P/1 – Vocês foram morar lá?
R – Fomos morar lá, meu irmão foi morar lá. Eu já morava em São Paulo e voltava nas férias.
P/1 – Ah, isso foi depois que o senhor veio pra São Paulo.
R – Exato. Então, na hora de ir embora, eu tinha vergonha de pedir para o meu irmão. Então, eu chamava uns amigos, e a gente jogava sempre pife, e geralmente eu ganhava um dinheirinho pra passagem. Eu sempre vinha com o dinheiro dos outros!
P/1 – O senhor era bom de jogo, né?
R – (risos) Eu era bom de jogo!
P/1 – Continua sendo?
R – Faz tempo que não jogo.
P/1 – O senhor gosta de jogar ainda?
R – Eu sempre jogava pife e cacheta.
P/1 – (risos) E, em São Paulo, a casa em que o senhor foi morar foi essa da Cardeal Arcoverde?
R – Foi meu irmão que alugou essa casa lá.
P/1 – Como era essa casa?
R – Era um sobrado grande. Tinha acho que quatro ou cinco dormitórios lá, grande, era grande.
P/1 – E o senhor dormia num quarto sozinho?
R – Dormia num quarto sozinho porque tinha no fundo também a garagem, tinha um bruta de um quarto em cima. E eu aluguei pra um amigo meu que morava no apartamento comigo. Eu mudei, e ele ficou lá um ou dois anos. Meu irmão não cobrou nada dele. Pelo menos, ele economizou. Depois disso, meu irmão saiu de lá, alugou uma casa na Vila Sônia. Ih, era grande, mas tão mal dividida! Depois, ele foi pra Vila Madalena, pegou uma casa velha, ficou lá. Depois, ele foi lá pra Campo Limpo. Ele mudou em tantas coisas.
P/1 – Mas, aí, o senhor não ia mais com ele?
R – Já estava fora, já tinha casado.
P/1 – No Bixiga, como era o apartamento?
R – Era um quarto só, cozinha e a sala só.
P/1 – Ah, era pequenininho!
R – Pequenininho, era apartamento só.
P/1 – Não, tem apartamentão também.
R – Não é apartamento. O Sérgio Carbone que deu uma salinha de jantar com uma mesa com quatro cadeiras, só era sala de jantar, né? E a saletinha, a gente comprou aquela primeira televisão wide vídeo. Era bonito. E tinha dois sofazinhos pra ver a televisão, só tinha isso, não tinha mais nada.
P/1 – E, quando vocês se casaram, a sua esposa continuou trabalhando?
R – Continuou um ano. Depois, fui eu só que trabalhei, ela ficou quase dez anos sem trabalhar.
P/1 – Porque o senhor não quis que ela trabalhasse?
R – Não, depois, ela perdeu outro filho. Aí, nasceu outro filho, né? Então, não podia.
P/1 – Cuidava da casa.
R – É, cuidava, porque, depois disso, eu comprei essa casa que estou na Rua Apeninos.
P/1 – Isso, conte essa história da Rua Apeninos. Como é essa casa?
R – Essa casa é de dez por 30 e poucos metros. Tem quatro dormitórios em cima, uma suíte, tinha mais um quarto embaixo, tem copa, cozinha, mais um quartinho no fundo, tem sala, saleta, sala de jantar. É grande, tem 300 metros quadrados.
P/1 – Faz quantos anos que o senhor comprou essa casa?
R – Em 72, eu comprei.
P/1 – Já tinha as crianças?
R – Já, o meu filho aí estava com seis anos quando eu mudei.
P/1 – Ah, é? Quatro? Quatro!
R – Essa casa eu ganhei numa briga, um cliente meu.
P/1 – Como foi? Conte.
R – Tinha um judeu que era dono dessa casa. E meu cliente emprestava dinheiro a juros e ficava com garantia de um cheque que o cara dava. Acontece que esse advogado entrou com uma ação para anular todos os cheques, dizendo que era lei de usura. Pediu abertura de inquérito e tal, mas essa coincidência é o seguinte: esse advogado era criminalista famoso, devia favores a mim, grandes! Inclusive o diploma dele, porque uns seis meses antes desse acontecimento, um engenheiro, que era proprietário de um carro, mandou o motor pra retificar numa retífica que era do sogro do meu cunhado. Então, como ele não pagou, mandei título pra executar. No fim, ele acabou aceitando, fez acordo e pagou, mas aí estava comprovado que ele era proprietário e o cara estava acusando que ele tinha roubado esse carro deles, que era deles. E estava querendo tapear eles. Aí, eu encontrei com o advogado, falei: “Doutor...”, contei a história. “Como é que fica?”
P/1 – O carro era desse advogado?
R – Não, era do engenheiro. De fato, ele não tinha roubado coisa nenhuma, eles estavam mentindo.
P/1 – E o engenheiro era cliente do advogado?
R – Não, não. O advogado estava processando o engenheiro, dizendo que ele roubou o carro da agência onde ele era advogado!
P/1 – Ah, entendi.
R – Eu falei: “Doutor, como é que fica? Ou ele vai pra cadeia... Não vai porque tem a prova, pior que fica a bronca pra você”. Ele desistiu só do meu cliente, liberou, tirou (risos). Meu cunhado, que tinha emprestado dinheiro, eu acho que ele deu mais um pouco de dinheiro e ficou com a casa. E ele vendeu pela metade do preço pra mim, diz que vendeu pela metade, mas eu tenho impressão que ele salvou mais do dinheiro que ele tinha emprestado. Esse é o golpe que ele deu. Eu era administrador das propriedades dele há 15 anos, 20 anos, tomava conta de todas as propriedades dele.
P/1 – Desse cara que emprestava dinheiro a juros.
R – Exato, assim que eu comprei essa casa. Quer dizer, como eu não tinha o dinheiro total e ele me devia cento e poucos mil de honorários...
P/1 – Foi em troca do seu trabalho.
R – É, eu financiei o resto com Caixa Econômica e comprei a casa.
P/1 – Ah, não deu o dinheiro todo.
R – Não deu, não deu! Eu tive que financiar.
P/1 – Tá bom. E me conte das suas viagens para o Japão. O senhor gostou das suas viagens para o Japão?
R – Eu, como tinha muita amizade com o cônsul e tal, vários cônsules do Japan Foundation, da Jaica, tudo pessoal aí eu conhecia bastante. Então, eu recebi um convite pra visitar o Japão, porque naquela época ia um nissei para o Japão e um brasileiro. Depois de mim, seguiu o reitor da Universidade de Brasília, esqueci o nome dele. Depois, foi o irmão do reitor da USP [Universidade de São Paulo], ele escreveu dois livros sobre o Japão, muito bem feitos. Eram muito amigos meus.
P/1 – Paulo Okamotto?
R – Não, não é Paulo Okamotto. Era um brasileiro, esqueci o nome dele, eu tenho dois livros dele, ele deu dois com dedicatória pra mim.
P/1 – Oliveira Lima?
R – Não, era outro nome, faz tempo. Isso é coisa antiga, de 60 e pouco.
P/1 – Oliveira Lima é antes ainda, acho que 1940.
R – Mas tem a Franscesca Cavalli também, que ela é perita em cultura japonesa, eu conheço bastante gente.
P/1 – Mas o senhor gostou do Japão?
R – Gostei, gostei porque fui bem tratado. Fui bem recebido, fui bem recebido pela Universidade de Tamagawa, Tamagawa é mais do que a USP. Ele tem quantos? 150 mil alunos. É maior, tem desde o jardim de infância até várias faculdades, é grande lá, viu? Eu conhecia o filho do reitor, quando eu fui lá em março, estava todo mundo, a escola fechada, eram férias escolares, mas tinha um professor me esperando, me explicou tudo. Pequenos detalhes. Eu fui estudar a pré-infância do Japão, como que era educada a coisa japonesa.
P/1 – Por que o senhor tinha esse interesse?
R – Queria aprender alguma coisa. Por exemplo, lá a professora, todo começo de ano, recebe uma lista dos alunos. Tudo tem uma marcação. Um é órfão de mãe, outro é órfão de pai, outro os pais separados, tudo. Pra não dar grossura: “Ah, seu pai não ensinou!”, o cara às vezes não tem pai. Essas coisas têm cuidado, as pessoas têm cuidado. E o jardim que tinha a pré-infância tudo tem um hino, e o nome do hino, e todas as vezes eles cantam. Outra coisa, quando eles mandam a criança fazer desenho, ele vai caracterizar o desenho. Aquele que pinta só escuro, o outro não sei o quê, eles já sabem por que a criança está, tem problema naquilo. Então, ele não força a criança, eles sugerem desenhos diferentes e assim vai contornando a situação. São esses pequenos detalhes que eu comentei, mas ninguém dava importância. Eu às vezes sou curioso, por exemplo, a religião japonesa, de onde veio a religião? Diz o americano que o índio japonês, o aino, veio do aino, qual era o deus dele? Era a natureza. O que é a natureza do xintó? É a natureza também!
P/1 – Mesma coisa!
R – É. E eu conversei com um aino lá no norte do Japão, só que eu era meio novo e não ficou meio assim. Ele disse que era a natureza, mas não quis estender mais outras perguntas. São as pequenas coisas que a gente tem que observar. Por exemplo, dentro de casa, música antiga tinha um detalhe pequeno do costume e da cultura japonesa, isso precisa conhecer. Eu tenho essa curiosidade, por isso muitas vezes eu vou lá e começo a conversar com a pessoa, pergunto algumas coisas. “Como você sabe disso?”, eles perguntam essas coisas. É interessante.
P/1 – O senhor estudou xintoísmo?
R – Não, mas estudei budismo e xintoísmo, conhecimentos genéricos, sabe? Porque lá na Liberdade o senhor Ikesaki faz todo ano tanabata matsuri. De onde vem tanabata matsuri? Todas as festas folclóricas do Japão nascem do xintoísmo. Xintoísmo modifica, muda budismo e espírita, você sabe. Ele fala que homem transforma-se em algo, o xintoísmo não. Ele diz que a pessoa morre e fica no país, junto com a natureza. Aí está a diferença. Por isso que o sistema japonês é bem mais... Ele fala: “Não, não pode fazer! Nós estamos aqui”, quer dizer, kami sama está junto com você aí, não pode. Então, são essas pequenas coisas que tem que... Por que os japoneses reagem desse jeito? Então, essas coisas têm que saber pra não dar grossura lá no Japão.
P/1 – O senhor achou muito diferente a China do Japão?
R – A China é diferente. A China é difícil você conversar, sabe? Eles ficam assim e não respondem.
P/1 – O senhor fala chinês?
R – Não, não falo, mas em Taiwan a maioria fala japonês, porque a cidade do interior de Taiwan tem muitas casas no estilo japonês. Quanto tempo japonês tomou conta de Taiwan? Todo progresso de Taiwan é graças a empresas japonesas que se estabeleceram lá.
P/1 – A China que o senhor visitou foi Taiwan?
R – Taiwan, Taiwan. O outro ainda estava meio esquisito pra ir lá.
P/1 – Estava fechado ainda.
R – É, estava mais fechado, então...
P/1 – E, aí, o senhor achou que a comunicação é mais difícil?
R – São mais restritos com a gente, principalmente quando fala que é japonês do Brasil. Então, já fica meio assim. E eles têm costume diferente do japonês, não é tão leal e sincero como o japonês. Japonês se abre tudo. Não abre pra estrangeiro, mas entre japoneses eles se abrem. Mas, quando você vai ao japonês, e pergunta um negócio ele não responde pra você. Ele fica aí. Exatamente isso. Então, tem pequenas coisas que a gente tem que observar de cada um.
P/1 – Sei, sei. Nos Estados Unidos, o senhor foi conhecer o quê?
R – Ah, Estados Unidos fui conhecer alguma coisinha só.
P/1 – Turismo?
R – É, turismo. É mais o que acontece aqui, um pouco diferente e mais avançado só, não copiamos muitas coisas de lá ainda.
P/1 – Taiwan foi negócio?
R – Não, fui a passeio. Eu que inventei essa excursão e levei quase 20 pessoas junto comigo! (risos)
P/1 – Ah, foi assim? (risos)
R – Foi! Porque tinha exposição em Tsukuba, exposição industrial, então, eu fui lá.
P/1 – Ah, então, foi negócio!
R – Ah, fui pra passeio, fiquei 30 dias lá, tá louco! Aproveitei e visitei todos os parentes. Eu me dou bem com todos os parentes. Agora, eu sou muito falante, vou lá, conto piada e a turma fica contente.
P/1 – Eles gostam do seu jeito.
R – Gostam, gostam. Acham divertido.
P/1 – O senhor tem parente em Taiwan?
R – Não, em Taiwan não tem, não, só no Japão. Mas eu tenho parente lá na Okayama, na região onde meu pai nasceu, e também em Tóquio e também lá em Hokkaido, no norte do Japão.
P/1 – E o senhor visitou todos?
R – Todos eles. É primo... Primo não, sobrinhos do meu sogro.
P/1 – Ah, parentes por parte da sua mulher.
R – É, parentes por parte da minha mulher. É.
P/1 – E da sua parte tem?
R – Não, lá no Hokkaido não tem.
P/1 – Mas pra baixo tem?
R – Tem, tem.
P/1 – E a sua mulher fez essas viagens todas com o senhor?
R – Tudo, eu sempre levei ela comigo.
P/1 – E ela fala japonês bem?
R – Ela fala melhor do que eu.
P/1 – Melhor? Ah, é? Ela ajuda de vez em quando?
R – É.
P/1 – Há alguma coisa que o senhor tenha vontade de contar e eu não tenha perguntado?
R – É muito longo. Se eu contar cada lugar que eu morei, é um negócio difícil de explicar. Por exemplo, esse Airton dos Santos, esse Alemão aí, tem outros, Luiz Gonzaga. Depois que eu me formei, que eu estava aí, eu fui salvar ele de uma puta situação. Ele até ganhou na Loteria Esportiva, ganhou um dinheirão, ficou rico.
P/1 – Luiz Gonzaga?
R – Luiz Gonzaga da Silva, ele era um baiano que trabalhava como operário, mas ele me chamava “segundo paizinho”. Eu que dei tudo pra ele, defendi do processo crime que ele estava. Consegui a absolvição dele, ele me tratava de “meu paizinho” e não sei o quê. Eu tenho gente assim, muita gente assim. Então, tem um pessoal que eu conheci, dois ou três já faleceram. Não sei nem como faleceram. Tinha um cearense que era um amigo meu, sempre saía no Carnaval junto comigo. Ele morreu e ninguém sabe por quê. Ele entrou no apartamento, domingo ele não saiu, segunda-feira não saiu. A turma foi ver, e ele estava morto desde sábado. Já estava até derretendo lá. Era um cara muito bom, muito bacana. Tinha esse, tinha Paulo Santos, esse também foi atropelado na Avenida São João. Esse Paulo Santos era primo pobre do maior fabricante de vidro de Belo Horizonte. Tinha firma aqui, e ele trabalhava lá, mas ele tinha uma prima que era rica, ela vinha pra São Paulo, era parente e vinha encontrar comigo de motorista particular. E ficou correndo atrás de mim, porque ela cantava muito bem. Ela foi duas vezes na Rádio Globo e ganhou em primeiro lugar duas vezes.
P/1 – Isso o senhor era solteiro?
R – Eu namorava com ela, ela queria ficar comigo. Ficou me procurando. Eu falei: “Não posso casar com uma mulher dessas! Como é que eu vou sustentar isso?”. Peguei e caí fora. O Paulo falava: “Pô, ela está te procurando”. “Fala que não sabe onde fui.” Aí, ela desapareceu.
P/1 – (risos) Quer dizer que o senhor era cobiçado quando era moço!
R – Só essa mulher só! (risos) Só ela.
P/1 – Justo uma cantora.
R – Cantava muito bem ela. Também um nome desgraçado, Esmeralda ela chamava.
P/1 – Ah, é bonito! (risos)
R – Como joia pode ser, mas como nome... (risos)
P/1 – Sua mulher é ciumenta?
R – Não, ela nunca demonstrou ciúmes, acho que ela tinha confiança em mim.
P/1 – É? Porque o senhor parece meio malandro.
R – Não, não, impressão só!
P/1 – Só no jogo, né?
R – Só no jogo, só no jogo.
P/1 – (risos) E me diga uma coisa: como foi seu aniversário de 80 anos?
R – Ah, foi bom, meus filhos que fizeram. Quanto mais velho vai ficando, a gente não quer mais fazer festa, é sinal que está no fim já, né?
P/1 – Mas o senhor teve uma vida boa.
R – Não, não tive, não.
P/1 – Não?
R – Não.
P/1 – Por quê?
R – Não ter mãe é coisa triste, viu? Não sabe como que é viver sozinho, nunca ter um lar. É duro, viu? É duro. Eu sempre morei na casa do meu irmão, não na minha casa. Só tive minha casa quando eu casei.
P/1 – Quanto tempo o senhor tem de casado?
R – Eu, quando ela faleceu, estava com 40 anos de casado. Mas ela, oito anos ficou doente. Todo mês duas ou três vezes para o hospital. Tá louco, né?
P/1 – Sua esposa faleceu quando o senhor tinha 40 anos de casado?
R – É, depois de 40 anos, estava com 60 e poucos anos ainda.
P/1 – Quer dizer, durante 40 anos o senhor teve seu lar, então.
R – Teve, foi a única época em que eu tive alegria na minha vida. Por isso que eu levei ela duas, três vezes para o Japão, fui para Brasília, fui para o Paraná, para o Rio de Janeiro, foi diversos lugares. Todo lugar que eu ia levava ela.
P/1 – O senhor gostava muito dela.
R – É.
P/1 – E agora o senhor vive sozinho?
R – Sozinho.
P/1 – Naquela casarona enorme?
R – É, com meu filho e a mulher dele.
P/1 – Ah, então tem companhia, não é sozinho.
R – Tem, tem. Pelo menos duas vezes por semana, eu converso com o cachorro.
P/1 – Como é o nome do seu cachorro?
R – Como chama? Kelly! (risos)
FILHO – Kate!
P/1 – Kate!
R – Ela dorme comigo.
FILHO – Ele tem quatro.
P/1 – Tem quatro cachorros?
R – Os três não querem nem saber de mim, vai embora!
FILHO – Mentira.
R – Só Kate que dorme comigo.
P/1 – E o senhor conversa com o cachorro?
R – Só com cachorro.
P/1 – Só com cachorro. Com filho não?
R – Não. Meu filho conversa, mas a mulher quase não sabe. Eu sou um móvel em casa, sabe? Uma mesa, uma cadeira? Sou igual.
P/1 – O senhor se sente assim mesmo?
R – Eu me sinto assim.
P/1 – Depois de ter contado essa história toda rica da sua vida, o senhor acha que é ainda um móvel?
R – Não, para minha nora sim. Acho que sou um objeto.
P/1 – Acho que o senhor devia conversar com ela.
R – Eu converso.
P/1 – (risos) Contar a história da sua vida pra ela.
R – Ah, ela não quer nem ouvir!
P/1 – (risos) O que o senhor gostaria de fazer que ainda não fez?
R – Eu queria descobrir o que os imigrantes comiam quando vieram aqui no Brasil. Nunca vou saber, nunca vou saber. Porque, naquela época, naquela situação, era uma coisa, hoje é outra! Isso meu pai não falou, ninguém falou.
P/1 – Será que não tem registro?
R – Não tem registro, tem três biografias de japoneses, só fala da vida deles, mas da vida da comida não falou. Isso eu queria saber.
P/1 – O senhor aprendeu a cozinhar?
R – Eu cozinho pra mim.
P/1 – O que o senhor gosta de cozinhar?
R – Ah, qualquer coisinha trivial. Não tem uma coisa especial pra comer. Tendo arroz, feijão e jabazinho, aí, vai bem.
P/1 – (risos) E essa sua curiosidade sobre o que eles comiam é porque...
R – Ah, é interessante, né? Interessante!
P/1 – Com certeza tinha arroz, né, Seu Teruo?
R – Arroz, mas cozinhar como? Como que eles cozinhavam? Que verdura que comiam? Carne comiam? Porque no Japão não tem carne. Sabem quem ensinou comer frango no Japão? Foram os portugueses em 1546, logo depois do descobrimento, porque um português se perdeu no Oceano Índico e foi aportar lá no sul do Japão. Ele que ensinou.
P/1 – A comer frango.
R – Japonês só comia ovo, ele falou que devia comer coisa. Agora, se falou em japonês ou português eu não sei. Foi em 1546, né?
P/1 – É.
R – Então, são essas pequenas histórias que eu queria que a pessoa, que os descendentes entendessem o que era o Japão, porque ela é assim, porque a cultura é desse jeito. Porque a música fala em tantas coisas sobre o passado e ele não se importa com o conteúdo dessas músicas? Porque nos versos dessas músicas antigas está uma parte da história do Japão.
P/1 – Para o senhor a guerra foi uma coisa sofrida? A Segunda Guerra Mundial?
R – Não sei, porque eu não participei, estava todo mundo aqui. Meu pai veio antes da guerra, então, ele não sabe. Ele voltou lá depois, e a conversa entre os que ficaram, e ele, a conversa não evoluía pra nada porque não sabia a história.
P/1 – Informação da guerra não chegava aqui?
R – Não chegava. Depois de 40, 50 anos, como é que alguém vai informar isso?
P/1 – Não, a guerra que terminou em 1945.
R – Meu pai foi lá em 1955, então. Mas ele está aqui desde 1913, como é que ele vai explicar o que houve pra quem já...
P/1 – Aqui, teve campo de concentração para japonês. O senhor não ficou sabendo disso?
R – Não, existe uma legislação que o Getúlio Vargas fez parecido com uma legislação americana que impõe restrições. O ensino e a conversa em japonês.
P/1 – Também isso.
R – Teve isso só. Fora isso, não teve. Muitos não tiveram um sofrimento. Nós, por exemplo, não sofremos na mão de brasileiro nenhum. Agora, sofreu quem começou a tirar partido, falar que Japão ganhou. Não interessa para nós, aqui estamos no Brasil, por que falar disso? Meu pai pouco estava ligando pra isso. Porque, por exemplo, lá tinha um Chico, um neguinho que trabalhava, a gente nem sabia se ele tinha pai ou mãe. Mas ele chamava o meu irmão de pai. O apelido do meu irmão era Jão. “Jão, o senhor não é meu patrão, o senhor é meu pai. O senhor não fica bravo comigo, me ensina, faz assim, faz assim, nunca bateu ou falou mal comigo. O senhor é meu pai, meu pai é que ensina as coisas.” Assim que ele fazia. Por isso que ele se dava muito bem com os empregados.
P/1 – É, o senhor teve uma vida privilegiada, Seu Teruo, na verdade. Não foi triste, não.
R – Foi. É, se você pensar que você é sozinho no mundo.
P/1 – Sozinho no mundo e venceu, né?
R – Eu, por exemplo, nunca ganhei um presente na minha vida, nunca. Não sei o que é presente. Meu pai nunca se preocupou em dar presente em tempo de infância. Até formar no curso ginasial, eu nunca ganhei um presente, de jeito nenhum. Não sabia. Enquanto que eu estava num pensionato lá em “coisa”, o cara ganhou. “Ah, meu pai deu isso, minha mãe deu isso!” Eu não podia falar isso, porque não tinha, não sabia o que era isso. É duro você viver num ambiente nessa situação.
P/1 – E apesar disso tudo, o senhor venceu.
R – E será que eu venci?
P/1 – Será que não?
R – Não sei, não. Eu queria ter feito mais alguma coisa. E se eu tivesse um pouco mais de meio e mais, tivesse alguém pra me aconselhar, eu teria lido muito mais livros, adquirido mais conhecimento pra me alavancar. Porque precisa conhecimento. Mas a minha vontade era sempre ser declamador de poesia só.
P/1 – Não diga!
R – É, eu gosto de declamar poesia. Mas onde tinha dinheiro pra comprar livro, onde? Biblioteca onde? Ficava uma fila danada lá, não tinha pra isso.
P/1 – É verdade que o senhor fala latim?
R – Não, latim a gente aprende normalmente porque quase todo o Direito se baseia no Direito Romano. Antes do Direito Romano, muitas histórias vêm do latim.
P/1 – Verdade.
R – Certo?
P/1 – Certo.
R – Muitas figuras de hoje, do Direito, são latinas.
P/1 – O senhor sabe contar uma história em latim?
R – Não, ninguém sabe falar em latim. Apenas cita frases preestabelecidas. Então, a gente usa muito o latim pra citar alguma coisa.
P/1 – Quando eu pergunto para o senhor, o que o senhor faria agora que o senhor não fez ainda? Por que o senhor não me diz: “Vou estudar poesia e declamar”?
R – Ah não, já perdi. Tinha tanta vontade, mas hoje já não tenho mais, porque hoje ninguém liga mais pra isso.
P/1 – O senhor que pensa!
R – Por exemplo, minha filha, ela leu muito mais do que eu, mas tem uma redação muito boa, por quê? Porque eu contava histórias mudando o personagem. Ela falava: “Papai, não é esse, é aquele!”. Então, ela foi adquirindo certa vivacidade pra encaixar história. Isso que eu gostaria de fazer pras crianças.
P/1 – O que sua filha faz?
R – Ela se formou em Publicidade.
P/1 – Ah, uma área semelhante à da sua esposa?
R – É. Não, minha filha é anúncio de jornais. Publicidade é outra coisa, é fazer reportagem, é outra coisa, né? Mas, aí, vai muito de redação, muito de conhecimento, tal, tal, tal. Então, é diferente.
P/1 – O senhor gostaria de contar história para as crianças?
R – Seria bom, né?
P/1 – Nós vamos encerrar aqui, então. Eu agradeço muito a sua presença e eu achei a sua história muito linda! Obrigada.
R – Nada. Não é muito interessante, mas é um pouco diferente. É um pouco diferente.
P/1 – É.
R – Porque dificilmente um descendente japonês se volta tanto para a cultura brasileira.
P/1 – É verdade.
R – Por exemplo, tem poetas brasileiros aqui que eu nunca vou esquecer, sempre guardo com eles.
P/1 – O senhor sabe de cor poesias brasileiras?
R – Algumas. Já esqueci muito, né? O hino nacional, quem escreveu o hino nacional?
P/1 – Francisco...
R – Não.
P/1 – Quem?
R – Foi um poeta cearense, sabe disso?
P/1 – Não, não sei.
R – Ceará dá muitos poetas, Bahia também tem. Agora tem aquele Augusto dos Anjos, mas aquele lá é poeta maldito, ele faz só coisas meio esquisitas! (risos) Mas é um bom.
P/1 – De que poema o senhor gosta muito?
R – Eu gosto de tanto poema. Olha, um livro bom, você compra, do Vargas Vila. É português, já leu?
P/1 – Não.
R – Tem três livros de Vargas Vila, tenho lá em casa, comprei pra minha filha. É muito bom. A redação é excelente, Vargas Vila. É livro português, viu?
P/1 – Tá. Eu queria que o senhor recitasse uma poesia bonita pra gente, pra gente encerrar, então.
R – Ah, já esqueci. Tá tudo em pedaço aqui, pedaço lá, não dá!
P/1 – Um pedaço.
R – Não, não dá. Porque tem termos que parecem que mudou aqui, mudou lá, não sei o quê. Agora, faz quantos anos que eu não “coisa”, né? Agora, fica só no jurídico, jurídico, a gente acaba ficando maluco.
P/1 – É muito chato, né?
R – É muito chato! Por exemplo, xingar o tribunal é a coisa mais maravilhosa que tem. Por exemplo, esse negócio que eles roubaram de todos os credores particulares, toda a Fazenda pública, ou seja, todos os municípios, estado e o governo, pegaram todos os créditos dos particulares, capou 80%.
P/1 – Como que foi isso, quando?
R – Isso foi desde 2003. Toda sentença que tinha naquela época, o Congresso mandou voltar atrás, anular aquela sentença e pagar só o principal com juros de 3%, sem correção monetária. Chama precatória dos caloteiros.
P/1 – Ah, os precatórios.
R – Precatória dos caloteiros! Que eu tô falando isso para o Supremo Tribunal, que não foi só calote. Com desculpa de calote, na verdade, ele fez confisco de crédito legítimo de pessoas particulares, sem uma lei específica.
P/1 – Eu peço para o senhor me falar uma poesia, o senhor me conta um caso jurídico!
R – É o único jeito. Ou você vê como está isso aí, vê o que o governo, os deputados fizeram 40%! O salário máximo do Brasil é 32, do Supremo Tribunal Federal. Os titulares de cargo público do Estado de São Paulo vão ganhar 30 mil, são 40% de aumento! Menos professor e menos pra militares. Os que trabalham mais recebem menos. Então, vai dar greve, pode contar que vai dar greve. Não concordo com isso.
P/1 – Tá bom, Seu Teruo. Muito obrigada, viu?
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