Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Maria de Lourdes Caldas Gouveia
Entrevistada por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 28 de setembro de 2019.
PCSH_HV830 _ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual é o seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R – Meu nome é Maria de Lourdes Caldas Gouveia. Eu nasci em Garanhuns, no agreste de Pernambuco, em 1937. Sou a quarta filha de uma família de 12 irmãos. Os meus pais... Eu sou de uma família urbana. Os meus pais têm origem rural, mas eles tiveram experiência urbana. O meu pai, na Zona da Mata - ele é de Água Preta, do Engenho Curupaiti - é da quarta geração no Engenho, mas teve uma experiência urbana. E a minha mãe, que é de Garanhuns, também com origem rural e experiência urbana, nasceu na Fazenda Bela Vista, na região de Garanhuns. O meu avô materno já era uma pessoa de tendência urbana, ele tinha fazendas - fazendas de café - mas morava na cidade. Construiu o (dito?) [01:42] sobrado, aquele modelo que o Gilberto Freyre descreve tão bem. Embaixo, a loja; no primeiro andar, o sobrado, a residência, tudo muito bem organizado. Ele era uma pessoa muito ordenada, ele era Van der Linden, com ascendência daqueles holandeses do século XVII, tanto que era alto, tinha o olho azul/verde, azul/cinza - aquele olho sem uma cor definida. Mas era um homem muito interessante, ele sabia o que queria e fazia o que queria. Então, ele construiu a Fazenda Bela Vista, montou uma casa, uma casa muito bonita, com material importado, ele era uma pessoa de bom gosto. Tanto que, quando a minha mãe tinha 14 anos, e ela foi prometida ao meu pai, ele levou minha mãe para passar um ano na Europa, comprando enxoval. Eram modos não do século XX, são modos ainda do século XIX. Nós somos eurocêntricos, com biblioteca, pinacoteca, piano em casa, música... Muito cultivo de memórias, memórias familiares. Os meus avós me contavam muito sobre as experiências deles e eu sempre gostei de ouvir as histórias deles, porque eram interessantes. Não eram histórias de pioneiros - nenhum dos dois foi pioneiro. Eles usufruíram de um patrimônio dos seus antepassados, mas eles fizeram um grande desenvolvimento desse patrimônio. Então, eu tive uma infância muito tranquila, urbana. A minha cidade é Garanhuns, uma cidade do século XIX, tranquila, de clima bom, não é? Porque ela é uma cidade alta. Na região quente, Nordeste é uma cidade fria, você conhece, não é? Então... O meu avô paterno negociou a ida das Damas para Garanhuns. As Damas, elas são uma Congregação Belga e tem colégio para meninas, então essas Damas vêm com a missão de educar, você pode entender assim. É uma educação no estilo da primeira metade do século XX, com tudo aquilo que foi superado na segunda metade, ou seja, as meninas eram educadas para... É difícil, é difícil de lembrar... Para serem donas de casas, com todo refinamento. Aprender a servir a mesa, pôr a mesa, receber, tocar piano, tudo falando em Francês. Mas houve um corte nos anos 60, eu acredito que esse corte foi muito mais profundo do que, no momento, as pessoas entenderam. Porque foi um corte para deixar para trás esse modelo século XIX europeu e começar a encarar o modelo do século XX brasileiro. Então, uma forte carga de nacionalidade. Isso eu recebi do meu pai. Meu pai tinha uma biblioteca interessante, foi lá que eu li Gilberto Freyre, meu pai me ensinou a ler Os Sertões, eu não teria lido Os Sertões aos 17, 18 anos, se não fosse a influência dele. Ele falou: “Não começa por aqui, a terra; começa pelo homem. Se você começar pela terra, você não vai dar conta”. Claro que eu não ia dar. Então, até hoje, eu releio Os Sertões, há 60 anos, eu começo pelo homem. Toda aquela análise minuciosa, rigorosamente positivista, que é a cabeça do Euclides. Mas o meu pai me acompanhou, me explicou... Ele fez uma leitura ampliada, porque ele mesmo era leitor de Os Sertões. Ele tinha três autores prediletíssimos: o Euclides, o Machado de Assis e o Eça de Queiroz. O Machado de Assis, ele me permitia ler; o Eça de Queiroz, não. Aí eu li escondido, foi minha grande aventura de primeira juventude: ler escondido. Porque meu pai não permitia e eu tinha uma enorme curiosidade. E tive grandes decepções. Porque, por exemplo, O Crime do Padre Amaro, meu pai falava que era um livro pernicioso, imoral. Aí, quando eu fui ler, [pensei]: “Mas é só isso?” Eu esperava uma coisa enorme, era uma coisa tola. O Eça de Queiroz foi uma pessoa que me abriu muito os olhos para a questão da cidade. Ele tem um olhar... A cidade são serras. Ele vê muito as cidades portuguesas do século XIX - era uma pessoa muito refinada, tinha um olhar muito diferenciado, como o Machado de Assis para o Rio de Janeiro. Mas a minha predileção em relação ao Machado de Assis se deve ao meu irmão mais velho, ele era 12 anos mais velho do que eu. A essa altura, ele já era médico e descobriu que eu estava lendo Machado de Assis. E a partir daí, nós começamos a conversar, conversar sobre Capitu. Ele tinha opiniões rigorosas sobre Capitu, porque ele era um Bentinho, não é? Então, durante muitos anos, nós conversamos, escrevemos, telefonamos, conversando sobre Capitu e o Bentinho. E eu sempre achei que o Bentinho - dá licença - eu sei que ele é ícone da Literatura, mas ele devia ser muito aborrecido. Devia ser terrível viver com aquele homem e eu acho que quando ele mandou a Capitu embora, ela adorou ficar longe dele. Essa é minha leitura da Capitu, mas o meu irmão discordava, foi uma conversa muito interessante durante muitos anos. Com alguns dos meus irmãos eu tive leituras partilhadas que duraram décadas. Por exemplo, com meu irmão mais novo, que também era médico, nós começamos... Por indicação dele, nós começamos a ler o Choderlos de Laclos - As Ligações Perigosas. Ele falou: “Lê, é interessantíssimo”. Eu achava o livro um aborrecimento, porque eu nunca tinha a visão do todo, eu tinha uma carta da marquesa, uma carta do visconde, mas quando eu comecei a conversar com ele - eu era a marquesa, ele era o visconde - então nós podíamos dialogar e, até às vésperas de quando ele morreu - ele morreu novo - nós conversamos sobre As Ligações Perigosas, que é um livro interessantíssimo. Retrata o século XIX de maneira fundamental, especialmente as questões do corpo, da vestimenta, dos ornatos. Esse livro centrou um interesse meu na questão do corpo. Eu tentei muito fazer mestrado com esse tema, mas o meu texto não foi aceito, por isso eu mudei para cidade, que também é um corpo. Meu interesse pela cidade é uma cidade enquanto um corpo, mas eu não trabalhei isso no mestrado. Eu não tinha âmbito acadêmico. Eu trabalhei no mestrado a estrutura, a entrada do positivismo, como o positivismo provoca uma ruptura no tempo do pensamento brasileiro e a recorrência disso. Então, o meu texto chama-se Miragens Positivistas, eu o defendi na Federal do Rio. A partir daí, me preparando longamente para o mestrado. Por que me preparando para o mestrado? Eu era professora, fiz concurso para o Direito, tinha muitas horas- aulas na PUC, tinha filha adolescente, então eu não tinha dedicação exclusiva para fazer doutorado. Eu apanhava retalhos de tempo, preciosos e deliciosos. Preparando o quê? “Agora eu vou fazer um tema de que eu gosto e que é meu, que é o tema da cidade”. Eu trabalhei então símbolos, a simbologia urbana. Então, no meu doutorado, claro, fiz as disciplinas específicas, escolhi o século XX, porque eu tinha trabalhado durante muitos anos com Filosofia antiga e medieval, eu amo, eu gostaria de nunca ter saído de lá. Mas eu nunca tive condição acadêmica, condição econômica de fazer uma dedicação exclusiva a um tema. Então, eu era professora do Departamento, o Departamento me mandava, eu ia, não é? Para a moderna, contemporânea não. Contemporânea, só depois do doutorado é que eu me dediquei ao século XX. E, no século XX, à Escola de Frankfurt e Hannah Arendt. Então, a partir de... Entre 2002 e 2004, até 2014, 2015, eu estudei exclusivamente isso com os meus alunos no Direito, nas outras competências da PUC e, paralelamente, comecei... Eu tinha começado em 1998, no século passado, a estudar os pontos focais da cidade, a sua simbologia. O cemitério, que é o do Bonfim; o Mercado, que é o Mercado Central; o Palácio da Liberdade e a Praça da Liberdade. Esses quatro capítulos. Depois, se tornaram capítulos, não é? Primeiro foi a pesquisa aberta, pesquisava com meus alunos, depois comecei a fazer os textos. Quando se transformou em livros - são os quatro livros que eu te mostrei há pouco tempo - símbolos da cidade, começando pelo Bonfim, que segundo meu autor, o cemitério funda a cidade. Então, o Bonfim deveria ter sido o primeiro livro, não foi. Porque o pesquisador não queria patrocinar o Bonfim, o patrocinador queria uma coisa luminosa, solar. Então foi o Palácio da Liberdade, o primeiro livro. Depois foi o Bonfim. Depois foi a praça, e agora o Mercado. Nesse semestre ainda, fora desse núcleo, eu vou publicar sobre a Lagoinha. Aí é uma pesquisa também antiga. Tudo que eu faço, eu faço há muito tempo. Porque eu sou lenta, sou devagar, sou detalhista. Quero minúcia, detalhes, histórias paralelas, tudo isso toma tempo, não é? Então agora, a Lagoinha, ele foi escrito todo a partir de entrevistas. Os verdadeiros autores são os entrevistados, que contam histórias. As histórias da Lagoinha são muito sofridas, são muito doídas. E são minuciosas. As pessoas relatam, eu percebo que estão emocionadas. Me emprestam fotografias preciosas. O meu livro vai trazer uma carga de fotografias familiares, pessoais. Porque nos outros quatro, relativos ao meu doutorado, eu não tenho fotos pessoais, eu não tenho imagens pessoais. Eu tenho imagens de objetos urbanos, de detalhes urbanos, simbologia urbana. Mas na Lagoinha não, o foco é a família, a memória familiar. Também a memória da região, do espaço, mas é muito mais centrado o livro nas memórias pessoais. Eu tentei dividir em três grandes pontos: os símbolos, as memórias e os objetos urbanos. Os símbolos, eu trabalho cinco símbolos da Lagoinha, as memórias também cinco e os objetos urbanos também cinco. Por quê? São 15 textos - na realidade são 18. Para cada trecho de cinco, eu tenho uma abertura; então, eu tenho que fazer a abordagem teórica. A questão da memória, a questão do ato de contar a história, como viver a história, a ênfase na memória pessoal. E um registro do horror que a cidade de Belo Horizonte praticou contra a Lagoinha. A Lagoinha é uma matéria urbana a ser destruída, a ser esquecida. É muito clara a intenção, o olhar oficial sobre a Lagoinha como um lugar de pecado, de transgressão, de horror. Os belos autores da Lagoinha... Por exemplo, o Wander Piroli, que tem um livro muito significativo. Wander Piroli nasceu lá, morou lá, ele é um autor diferenciado, mas se você não segurar o livro dele com muito cuidado, o sangue escorre. Porque ele vê, ele sofre, ele sente os horrores: a prostituição, mendicância, violência, todos os atos de violência explícita, de violência simbólica. Não é o meu foco. Apesar de que eu me baseei, me estruturei a partir do livro do Wander Piroli, o meu foco é outro. Eu quero pensar as relações pessoais, as relações familiares, um enorme esforço de três gerações construindo casa, trabalho, locais e objetos de memória. É um lugar icônico da nossa cidade, eu não vejo nenhum outro bairro em Belo Horizonte que tenha tido uma vida tão organicamente entrelaçada - cidade e pessoa. E tem um leitor atual, não é? Contemporâneo. Que é o Tarcísio de Souza, ele faz um livro belo, belo. Chama-se A Turma. Ele relata as memórias pessoais, sociais, antropológicas, espaciais... Ele faz uma leitura transversal da Lagoinha e diz que, se ela desaparecer - ele espera que isso nunca aconteça - ela continuará viva na memória daquela turma. Então, essa turma é pensada nas casas, nos jogos de futebol. O futebol, o cinema, ele sabe o nome dos filmes... dos diretores... Ele diz as músicas, ele diz os times de futebol. É uma coisa preciosa o texto de Tarcísio. Foi outro apoio que eu tive; depois, entrevista com gente. As pessoas sempre foram muito generosas e o livro saiu a partir da generosidade desses entrevistados, que me relataram coisas muito sofridas, sabe? Sempre. Essa dor da perda é permanente na história da Lagoinha, que hoje ela tem objetos cortados ao meio, prédios mostrando suas vísceras. Por quê? Qual era o objeto? A construção de viadutos, a melhoria no trânsito, ou seja, toda a memória perdeu o significado. Cortaram a praça icônica, que era a Praça da Lagoinha, que é a Vaz de Melo, cortaram ao meio e fizeram um pequeno arranjo. Eu sinto que quem fez, teve uma melhor intenção, colocou uns peixes lá, que eu não sei se é uma referência ao Portinati ou Niemeyer, ou se é uma ironia. Porque a praça destruída, ela continua cortada, mostrando o que restou. E ela foi apropriada por pessoas em sofrimento, pessoas em drogas, mendigos, pessoas em carência. Ou seja, a praça é um lugar do encontro, da troca. Essa, não troca. Essa, expõe os horrores da Lagoinha. E você passa no viaduto, ela tornou-se um ícone e um material de exposição da dor, da miséria, sofrimento. Isso não se faz com um bairro, não se pode agredir um espaço urbano com tal intensidade. E as pessoas... Quando você vê, superficialmente, dá a impressão de que as pessoas concordaram com isso. Não concordaram. Aquilo foi um imposto, veio um projeto, um plano, algumas pessoas ouviram a história de que seria melhor, talvez até tenham acreditado. E não foi melhor, foi muito pior. E restou da Lagoinha isso que você tem hoje: uma ruína.
P/1 – Queria voltar, você falou um pouco da sua família, mas eu queria deixar registrado o nome dessas pessoas, o nome do seu pai, da sua mãe e dos seus avós.
R – Meus avós?
P/1 – É.
R – A minha mãe chamava-se Francisca Caldas Gouveia. Os pais da minha mãe, os meus avós... O meu avô, que era da Fazenda Bela Vista, chamava-se Francino - sempre com referência a antepassados - Francino Ferreira Caldas. E minha avó era portuguesa, chamava-se Júlia Ferreira da Costa Caldas, era uma avó encantadora. O meu avô paterno chamava-se Ismael, ele era o quarto Ismael da família. Não, ele era o terceiro; o quarto, o meu tio; o quinto, meu irmão. São cinco gerações com esse nome, que é um nome pesado na família paterna, minha família paterna. Ismael Gouveia. Ele era do Engenho Curapaiti, da cidade de Água Preta, região dos Palmares, na Zona da Mata de Pernambuco. A minha avó paterna chamava-se Maria Isabel, era uma senhora típica do século XIX, elegantíssima, exigentíssima. E a minha infância foi um pouco... Eu sofri um pouco com a presença dela, porque eu sempre achei que eu não corresponderia, nos moldes, no gestual, ela não admitiria eu me perder no Mercado Central, com essa minha dificuldade espacial. Eu sofria com isso. Mas hoje eu entendo que era o modo de ser da minha avó Maria Isabel. E os meus irmãos atualmente são só quatro, mas nós fomos 12. Dois morreram cedo - Ismael morreu cedo e Antônio Manoel. Os que sobreviveram e ficaram adultos... Meu irmão mais velho chamava-se Júlio e era médico; meu segundo irmão chamava-se Ângelo e era militar da Marinha; meu terceiro irmão, Manoel Vicente, o nome do meu pai; o quarto sou eu; quinto, meu irmão Chico - meu querido Chico, Francisco de Assis Caldas Gouveia. Meu irmão número... Perdi o número... Ismael Gouveia, que era esse o nome da família. Depois José Maria, meu irmão que mora em Belo Horizonte, nós temos uma grande parceria, viajamos juntos, conversamos, cumprimos rituais, nos encontramos todos os domingos para almoçar e falar da família e telefonar para os outros irmãos. José Maria... Meu irmão Antônio Manoel, que faleceu. Minha querida irmã Graça, minha única irmã, que é psicóloga, mora no Recife, tem uma vida muito bonita, muito digna, faz muitos... Ela é ligada à oração, à espiritualidade, ao cultivo das ervas, ela faz um trabalho voluntário muito bonito no Recife. Depois, o meu irmão Lucilo, que também é médico. E depois, o meu irmão Francino, que também era médico. Atualmente nós somos só quatro, as duas irmãs e dois irmãos - Lucilo e José Maria - que eu chamo de Gouveia. Então só esse quatro. E nós temos uma intimidade muito grande com telefonemas, para manter a memória desse patrimônio.
P/1 – Por que você falou que a sua avó Júlia era uma figura muito querida para você?
R – Porque ela era uma pessoa que vivia com o real, eu tenho um grande fascínio pelo real. Apesar de toda essa carga de idealidade que não só a cultura, mas a minha formação em Filosofia e meu trabalho com a Filosofia - eu tenho quase imposição da idealidade - mas me fascina é a realidade. Então essa minha avó... Claro que eu não tinha essa leitura, eu via as coisas e achava lindo... Ela valorizava o real. Ela veio de Portugal muito cedo, tinha 17 anos, veja a assertividade, veja por que eu gosto dela. O irmão mais velho, o meu tio Chico, quando veio para o Brasil disse à mãe portuguesa - de Vila Nova de Famalicão - ele falou assim: “Quando eu ficar rico, eu volto para buscar essa menina”. Que era a irmãzinha Júlia, menininha. Dezessete anos depois, ele voltou. Poderoso, tinha acumulado uma fortuna e foi buscar a irmã, claro, para casar com um homem de posses, nesse lugar estranho e meio selvagem que era o Brasil do século XIX. Então ela veio com ele e ele exigiu que ela casasse com um amigo, ela não casou. Ela casou com um rapaz novo, poeta, tuberculoso. Pouco tempo depois, o rapaz morreu, claro. O meu tio Chico falou para ela, vitorioso, “Está vendo? Você não queria casar com ele? Olha no que deu”. E ela falou para ele: “Ele morreu, mas eu caso com outro”. Eu sou rendida a essa visão de realidade. “Ele morreu, mas eu caso com outro”. Ou seja, eu não vou viver o seu projeto, viver o seu programa de casar com homem velho, rico e poderoso, eu vou viver a minha vida, eu vou fazer as minhas realizações. Isso me fascina nessa minha avó Júlia. Muitos anos depois, ela casou com meu avô Francino, dez anos mais novo do que ela. Novo, bonito e em ascensão. E ela não era mais tão nova, ela não era ilustrada, era estrangeira, não era bonita, mas era rica. Não estou falando para você que ele deu um golpe do baú, estou falando que eles fizeram um belo casamento, ambos assertivos, organizados, tiveram quatro filhos, viveram muito bem. Anualmente eles iam fazer um passeio à Europa, meu avô trabalhava muito, trabalhava na construção da Fazenda Bela Vista, mas ele pegava um tempo para ir... Não era ir à Europa, era ir a Lisboa. Eu conheci Lisboa, minuciosamente, pelo relato deles; dela mais. Então, quando eu vou a Lisboa, eu vou sempre a Lisboa com meu irmão, eu caminho pelos meus caminhos de memória, gosto muito de Lisboa, acho que é uma cidade bonita. O roteiro que o Fernando Pessoa fez para você visitar Lisboa, nós tentamos cumprir. Subir aos Mirantes e ver uma cidade que tem desníveis, tem paisagem, é um belo horizonte - Lisboa tem um belo horizonte. Lisboa é muito mais bonita do que Paris, nesse ponto de vista. Para você conhecer Paris, você sobe a Torre, sobe a Sacre Coeur. E Lisboa não, caminhou, está na Glória, na Graça, no Mirante Central. Ou seja, a cidade se oferece, é uma cidade bonita, bem organizada. Hoje, o Porto está muito bem constituído. A última vez que eu levei meus alunos lá, que foi no ano passado, nós ficamos muito encantados com o trato que a mediação tem dado ao Porto. Portugal é um belo país, não é? Convenhamos. Quem me ensinou a ver isso foi a minha avó.
P/1 – E como é que era o seu avô que era da região da Mata? Como é que ele era?
R – Que era da Zona da Mata? Meu avô Ismael? Ele foi o homem mais elegante que eu conheci. Ele era senhor de engenho, não é? E o que ligava a Zona da Mata à minha cidade, que é Garanhuns, era o trem. Então ele chegava - avisava que ia chegar - minha mãe fazia uma faxina na casa, ___ [27:05], estava tudo brilhando quando ele chegava. Eram mais ou menos 13 horas, 14 horas, mas tinha uma mesa posta para o almoço dele. E quando o carro parava, não era comum, minha mãe falava: “’Seu’ Ismael chegou”. Ela estava pronta, com uma roupa bonita, a esperá-lo. Eles se admiravam muito, minha mãe novinha, minha mãe mocinha, ele já um homem de certa idade, pai do meu pai, meu avô paterno, então ele chegava e chamava minha mãe: “Minha filha”. Eu via um carinho, uma atenção: “Minha filha”. Eu era menininha e ficava só olhando. A casa era toda dele, estava toda arrumada e, em dois lugares, tinha duas grandes jarras com rosas - ele cultivava rosas no engenho. E conhecia e sabia fazer enxertismo, mudas. Então, minha mãe colocava um grande jarro em cima do piano, com rosas vermelhas, e, na mesa, onde estava posto o almoço, tinha outro jarro, com rosas amarelas. Porque ele ensinou minha mãe a cultivar as roseiras. E, a cada ano, no aniversário dela, ele dava para ela uma muda e ensinava e ajudava a plantar. Quando a minha mãe morreu, o nosso jardim tinha 67 roseiras plantadas por ele e por ela, todas muito bem cultivadas e florindo. Era um homem extremamente elegante, era um homem do século XIX, não é? Quando Gilberto Freyre descreve aqueles senhores, aquelas pessoas, é o meu avô que ele descreve. Ele usava sempre roupa bege de linho, não usava sapatos, usava botina, uma gravata com listras e um prendedor de gravata, que era um rubi, com chapeuzinho; era um palhacinho que prendia a gravata dele. A vida inteira eu vi meu avô com essa roupa, esse palhacinho, a cabeça inclinada, dizendo para minha mãe: “Minha filha”. E contando histórias. Ótimo contador de histórias. Depois do jantar, nessas visitas dele, que eram verdadeiras ilhas na nossa infância porque ele trazia presentes, a casa ficava animada, porque ele era uma pessoa, uma presença muito atuante, muito significativa, depois do jantar, metodicamente, a moça da cozinha levava tudo, trocava a toalha, a jarra com rosas ficava lá e ele contava histórias. Minha mãe adorava. Meu pai não gostava, meu pai dava um jeito de escapar, ficava no escritório, mas minha mãe ficava... E nós todos, não é? Nós ficávamos embevecidos com as histórias que ele contava. E ele contava as histórias dos engenhos, as histórias dos escravos. Para ele, era perfeitamente natural que o engenho tivesse escravos. Hoje a minha filha me questiona: “Como? O seu avô tinha escravos?” Eu tento dizer a ela: "Luísa, isso era uma coisa normal naquele tempo e eu não posso criticá-lo por um fato que era um fato social”. Ela acha um horror que eu cultive as memórias do Engenho, sendo que no Engenho havia servidão. Eu tento dizer para ela: “Luísa, eu não posso mudar o passado, nem vou colocar nenhum senão na figura desse meu encantador avô”. Meu avô Ismael, que era elegante, era fino, tinha uma boa conversa, que passava três... Dois ou três dias na minha casa... Depois ele desaparecia por mais uns 20, 30, aí ele voltava. Ele voltava para fazer pagamentos, eu não sei bem o que ele ia fazer, não, mas ele voltava para cumprir alguma função e nos visitava, assim, solenemente. Ele era um homem solene, tudo nele era ritualizado. Então, depois do jantar, ele estendia a mão para a gente voltar e beijar a mão e dizer: “À bênção, vovô”. Aí, ele dizia: “Deus te abençoe, tenha bons sonhos”. Ele repetia essa mesma coisa. E ele era uma pessoa formal, ao mesmo tempo formal e informal. Na conversa, ele era informal; na motricidade, no gestual, ele era muito formal. Muito bonito. Um rosto muito bonito, muito bem-vestido e perfumado. Eu nunca tinha visto um homem perfumado, ele era. Meu avô Ismael.
P/1 – E como é que era a casa em que você morava lá em Garanhuns, onde você cresceu?
R – A casa onde eu cresci? A casa onde eu... Quem doou a casa onde eu cresci foi o meu avô Francino. Porque quando meus pais se casaram, meu pai era muito novo, é uma história linda, mas eu acho que é uma história triste... Meu pai era muito novo, os pais haviam se desencontrado com a economia do Engenho, porque o Engenho estava passando a ser usina, e o meu avô tinha um Engenho de moer, passou a ter de plantar, que é um horror, porque planta e vende para a usina, é o domínio da primeira industrialização do açúcar, na primeira metade do século XX. Então o meu pai, muito jovem, não tinha como ter uma casa e tal. Ele foi morar no sobrado - a loja e o sobrado. Era uma coisa suntuosa, mas meu pai ficava incomodado porque não era dele. Então, do casamento até 1936, o meu avô ofereceu uma casa - ele tinha muitas casas na cidade - para o casal, não é? Minha mãe, meu pai e os três filhos de então. Foi aí que eu nasci. Era uma casa muito bonita, muito simpática, mas era uma casa simples, tinha um quintal grande. O quintal era alto. Para você ir para o quintal, você subia uns degraus. Tinha roseiras, não é? Tinha roseiras. A rua ficava ligada à rua principal, era uma rua secundária e tinha um cajueiro enorme, então, ela era a rua do Cajueiro. Tinha um nome formal - Severiano Peixoto - mas o nome regional é rua do Cajueiro. Era uma casa muito bem-posta, porque a minha mãe era muito caprichosa. E quando ela casou, ela fez aquele enxoval antigo, não é? Que tem prataria, louça, porcelana, bordados... Então, a casa era muito bem-composta, muito bonita. Tinha uma sala, parte quadrada, assim, grande. Em um canto tinha um piano com xale, e meu pai reunia os amigos, eles cantavam e tocavam violão. Meu pai conhecia todas aquelas músicas do Catulo, até hoje eu tenho muitas na memória, porque ele cantava e eu escutava. E a coisa mais bonita da sala, sabe o que era? Era um violão com aqueles prendedores das cordas com uns pontinhos coloridos. Quando eu passava na sala, eu achava que era a coisa mais bonita. Tinha mobília estilo anos 20, o piano, dois quadros grandes, um corredor enorme. Como sempre, não é? Uma sala - chamada de jantar - também com mobília antiga, móveis altos, com espelho bisotado. Depois tinha uma área de trabalho que era uma cozinha... A cozinha da minha casa sempre foi muito artesanal, e sempre duas pessoas que foram... Meu pai trouxe do Engenho, quando ele casou, ele trouxe duas mucamas. Minha mãe tinha 16 anos, ela ganhou duas mucamas, a Dadade, que chamava Felicidade, e a Catita, que chamava Catarina. Então elas cuidavam do trabalho da casa. E minha mãe fazia... Minha mãe era como a rainha da Inglaterra, ela não administrava, ela reinava. Porque tinha essas duas figuras, não é? Quando elas foram embora, minha mãe teve um grande susto, porque aí ela passou a administrar a casa, mas sempre com muita competência. Essa casa foi a casa onde eu nasci, onde eu vivi até os meus cinco anos. No dia 5 de setembro de 1942, nós mudamos para nossa casa nova, que aí foi o meu pai quem comprou. Uma casa moderna. Os móveis não combinavam, porque os móveis eram altos e a casa não tinha aquele pé direito de então. Mas a minha mãe deu um jeito de arrumar e ornar de forma muito elegante. E foi a casa em que eu vivi o resto da minha vida, estou até hoje, na nossa casa. Tem jardim com roseiras, com as 67 roseiras que a minha mãe tinha ao morrer. Minha mãe viveu lá até ser atingida por uma doença neurológica terrível, teve que ficar no Recife por causa dos cuidados médicos. Meu pai voltou e ficou lá até morrer. Só que, quando ele estava velhinho - ele morreu com 94 anos - mas ele estava lúcido. E tinha motricidade intacta, ele andava, tinha que dar o braço, mas ele andava. E ele morreu de uma forma muito bonita. Por quê? Ele não ficou em hotel, nem nada. No Recife, ele ficou na casa do meu irmão, ngelo. Eles eram espelho um do outro, parecidos, o timbre de voz... ngelo cantava, meu pai tinha uma voz tenor tendendo a baixo, e ngelo era mais terno, a voz mais leve. Cantavam lindamente, conversavam, tinham histórias, tinham memórias. E ngelo passeava com ele todas as tardes, passeava na praia, ele morava na praia. Ia e voltava, morava na Piedade. Um determinado dia, na hora de sair para esse passeio, o meu pai falou: “Não quero, não quero passear”. Isso eu não vi, a minha irmã viu e me contou que ngelo argumentou: “Mas você tem que passear, é bom porque à noite você vai ter um bom sono”. Ele falou: “Não, eu quero voltar”. Voltou, pediu a ngelo que o ajudasse a deitar, ngelo perguntou: “Quer que eu vire? Está bem assim?”. “Está bem assim”. Aí, olhou para o ngelo, segurou a mão e falou: “ ngelo, meu filho, foi tudo tão bom”. E morreu. Logo depois, ele me telefonou chorando, soluçando o horror da dor, eu falei: “Meu irmão, você teve um grande privilégio, foi a você que ele confessou que foi tudo tão bom, é um privilégio”. Mas, no momento, a dor é muito grande, não é? E, no momento, ele não sentiu. E nós reverenciamos muito essa figura paterna, que era uma pessoa encantadora, bem-humorado, tinha uma risada... Meu irmão falava que ele fazia assim: quando ele estava alegre, ele ria :“Há há há” (imitando risada); quando a piada era muito feia, ele ria: “Ho ho ho” (imitando risada). Mas ele sempre ria, ele sempre tinha uma resposta humorada, bem-humorada. Era pai de 14 filhos, dois morreram antes, 12 cresceram. Minha mãe era uma pessoa muito rigorosa e ele era um homem no modelo século XIX, então, veja a posição de minha mãe: “Respeite as minhas adjacências”. Respeitando as minhas adjacências, o mundo é o mundo, não é? Então ele respeitava as adjacências, mas ele não a mandava para o bispo, posso te afirmar, ele não mandava para o bispo. Mas nós fomos muito felizes com essa... Ele se esforçou muito para poder educar os filhos, educou a todos, formou todos. A quem fez Medicina, ele deu o consultório e o anel. Não pergunte a ele o que é que eu estudei, porque... “Essas filosofias suas”. Ele não sabia nem o que eu tinha estudado (risos), graças a Deus. Porque eles não queriam que eu estudasse, foi uma grande batalha. Eu terminei o segundo grau e esperei quatro anos... Até que... Eu vou confessar uma coisa para vocês... Eu fiz o vestibular escondida, fui visitar minha tia, minha madrinha, e fiz vestibular, pacto com meu pai. Na volta, na semana depois, eu falei: “Pai, vai no Recife e vê se eu passei”. Aí ele foi, porque esse era um pacto meu com ele, a minha mãe não podia nem saber, porque ela achava uma bobagem. Claro, ela queria que eu casasse, com 18 ou 19 anos. Então ele foi, de lá ele telefonou para minha mãe: “Passou em primeiro lugar”. Quebrou a resistência dela, ela que não queria e não queria, não se tocou mais nesse assunto. Aí eu fui para Recife estudar, fui fazer Filosofia... “Essas filosofias”. O meu tio, padrinho, português, toda as vezes que me encontrava... Nós nos queríamos muito, não é?... As nossas relações afetivas eram muito bem construídas, então ele falava: “Minha filha, deixa dessas filosofias, por que tu queres isso? Arranje um gajo”. Eu ficava envergonhada quando ele me falava aquilo: “Arranje um gajo”. Mas eu não falava nada. Não ousava que os mais novos, que os filhos argumentassem com os pais. Jamais dizia um “não”. Então eu nunca disse... “não”. Eu dizia... “claro”. Porque eu não estava fazendo uma coisa à toa. Não, eu estava fazendo uma coisa que eu queria. Eu sempre levei muito a sério essa minha... Também porque foi uma conquista, não é? Você entende, Lucas? Foi difícil chegar lá, então quando eu cheguei lá, eu queria aproveitar, queria usufruir. Não deixei “as filosofias”.
P/1 – Mas como é que surgiu esse interesse por Filosofia, lá em Garanhuns, nessa época? Como foi isso?
R – Olha... Como é que surgiu? Eu nunca tinha pensado isso... Surgiu no meu colégio. Esse colégio que meu avô levou para Garanhuns, era um colégio muito bom nível, sabe? Um colégio, naturalmente, que não tinha muitos alunos. Era um colégio da elite e tinha excelentes professores. Então, por exemplo, a primeira vez que eu ouvi falar em Sócrates, eu tinha 15, 16... Eu ia fazer 17 anos... Eu tive Filosofia durante três anos. Meu primeiro professor de Filosofia foi um Monsenhor - Monsenhor Callou - que deu uma aula magnífica, eu lembro hoje, tim tim por tim tim. Ele explicando como nasceu a Filosofia e como a Filosofia não tem padrão rígido, porque ela nasce... Olha o alcance da aula de Filosofia para uma turma de alunas - o colégio era feminino - de 17 anos... A Filosofia nasce da dúvida e a dúvida deve ter um método. É o Sócrates e é o Descartes, um método. E esse método significa a dúvida permanente. Ele estava dando aula sobre Descartes, falando do Sócrates na metodologia da maiêutica, de forma fina, elegante, simples. Eu não entendia que havia um grande caminho aí dentro, nessa dúvida. Eu gostei muito da matéria, do conteúdo. Eu sempre gostei de palavra, então eu gostava de escrever, porque no meu colégio... Eu lhe falei isso, não é? Você não podia anotar, você ouvia a aula, escrevia cinco palavras, no máximo, e em casa você fazia a aula todinha. Refazia tudo. E, no fim da semana, entregava para a professora; ela ia conferir a sua escritura com a aula que foi dada. Isso desenvolveu em mim, primeiro, um nível de atenção... Quando uma pessoa fala, eu me concentro, consigo prestar atenção e organizar, do ponto de vista da memória, aquilo que me está sendo dito. Porque foram sete anos de treino, não é? Então, essas aulas de Filosofia, eu introjetava tudo que ele estava falando e depois refazia no meu texto. E eu escrevia mal, o meu texto tinha muitas correções, mas foram correções muito boas, muito sólidas. E se você tenta ser aluno, as correções são ótimas, não é? Porque eles te fazem não só a revisão, mas uma possibilidade de caminhar para a frente. E esse meu colégio, eu devo muito a ele, sabe? Com esse rigor. O colégio tinha orientação dos jesuítas e vocês sabem, os jesuítas, vocês podem discordar deles, mas eles sabem o que fazem, e fazem bem. Então, fazem bem orientação pedagógica, não se pode escrever... Se você escreve, você nem presta atenção a uma coisa nem a outra, o que é verdade. Então, você se concentra para a colheita auditiva, depois você elabora a colheita auditiva em frase, em texto escrito, com a ajuda de cinco palavras. Isso me fez ter foco e interesse. Sem dúvida, quando eu fiz vestibular e fui para a Universidade, eu tinha enorme fragilidade, eu tinha fragilidade em História. Os meus professores não foram muito atuantes, eu tinha grande interesse pela História, mas eu tinha uma fragilidade enorme, tinha vazios. Eu confundia coisas de séculos, eu esperava: “Bem, agora tenho 17, 18 anos, quando eu tiver 20 eu vou conseguir, quando eu tiver 30...”. Até hoje eu não consegui. Eu sou muito dedicada a estudar História, mas História é um grande desafio, você sabe? Porque não é uma organização pactual, é interpretação. Depois, a reinterpretação. Porque você estuda numa linha, vem um autor, vem o Hobsbawm falando: “Não é nada disso”. Então, você tem que estar sempre refazendo, é um objeto móvel. Mas, apesar dessa fragilidade de informação e fragilidade conceitual, eu prestei muita atenção, eu usufruí muito. Muito. Eu também tive um tempo universitário com bons professores, a Universidade do Brasil nos anos 60 era de ótima qualidade. Também porque ela não tinha professores formados metodologicamente, pedagogicamente para a Universidade. Então ela, como o meu colégio de segundo grau, apanhava, recolhia os profissionais da cidade. Na minha cidade, no meu segundo grau, o meu professor de Biologia era um... O que ele era? Ele era engenheiro... Não, ele era agrônomo, uma pessoa encantadora, viajada. Meu professor de Bioquímica era a figura mais encantadora, era dentista, nasceu no sertão, a avó dele - chamava-se doutor Mário - era madrinha do Lampião. Então, para além das aulas que ele dava, depois terminada a parte pedagógica, ele nos levava para um terraço - o colégio era muito bonito, tinha umas varandas grandes - ele nos reunia lá e contava história de Lampião. Inesquecíveis. E ele contava com muita vivacidade. E ele conheceu o Lampião. “A minha avó era madrinha dele, então a região dele era protegida, ele pousava na casa da minha avó, a minha avó era dona Sinhá, e o Lampião exigia respeito”. Toda a saga da história do cangaço, ele nos contou lindamente. Eu tenho isso como uma preciosidade, eu espero um dia poder fazer um relato, mas ainda não pude. Mas o doutor Mário, doutor (Wando?) [47:23] Domingos, Monsenhor Carlô, o bispo que nos dava aula de História da Igreja - o bispo era Dom Expedito. Preciosas as aulas dele. Então, quando eu passei para a Faculdade, o clima era o mesmo. Os meus professores... Professor de História da Educação era o professor Paulo Freire. Meu professor de Biologia e de Higiene Escolar era o Sílvio, um professor excelente. Eu tive aula com Nélson Carneiro. Sabe quem é Nélson Carneiro, que estudou a fome? Ele era candidato ao Nobel. O Josué de Castro era nosso professor. O Celso Furtado, de vez em quando, ia lá na turma de Filosofia, porque ele estava querendo fazer uma seleção. Depois, quando nós fomos fazer o concurso para a Sudene - a jovem Sudene - nós tínhamos já, mais ou menos, uma indicação do Celso Furtado, porque ele tinha ido lá assistir Seminário. A grande questão da minha vida foi que eu comecei a participar dos Seminários; no meu segundo grau não tinha Seminário. E no Seminário, que eu acho uma metodologia preciosa, você tem que... Se você fizer o Seminário correto... Você tem que preparar um tema e defendê-lo. Não é simplesmente chegar lá e fazer na ativa. É preparar um tema e defender, tem uma dinâmica. E o Celso Furtado, muitas vezes, ia assistir aos Seminários. Na realidade, eu acho que eu entendo, ele estava ali como olheiro. Ele queria... Ele era muito elegante, uma pessoa educadíssima, tinha estudado na França. Ele falava Francês muito bonito, porque ele falava rápido, ele era ágil, mas ele pronunciava as palavras até o fim. Eu acho isso muito bonito, os franceses costumam fazer isso, não é? Diferente dos ingleses, que ficam fazendo mingau, ele falava as palavras muito corretas. Eu lembro muito dele ainda jovem, uma pessoa muito rígida, muito dura, mas excelente, excelente profissional. Depois, quando houve o concurso, três das pessoas que eram minhas colegas foram aprovadas para a Sudene - a Janice, a Maria Eneusa e eu. Foi por isso que eu vim para cá, fazer a metodologia para voltar e montar um projeto. Quando eu voltei, tinha havido a Revolução, não existia mais projeto.
P/1 – Que projeto era esse?
R – Como é que é?
R – Qual era esse projeto da Sudene?
P/1 – O projeto era o seguinte - um plano regional... O Celso Furtado era contra essa imagem estadual, que é uma coisa correta; o plano era regional. E significava o seguinte: descobrir... Eu trabalhei nesse momento do projeto... Viajar, nós tínhamos um luxo, era uma Rural Willys, aquele carro que fazia assim, e um motorista para... Não, tínhamos também uma cartela com viagens áreas. Foi aí que eu conheci São Luís do Maranhão, porque nós íamos visitar a região e identificar as capitais culturais: Mossoró, Imperatriz, Garanhuns, Petrolina, Santa Maria da Boa Vista, então, as capitais culturais. E justificar que elas centravam, não só a economia, mas a cultura daquele canto regional. Então, com isso, marcar, mapear e justificar. Nessas cidades, seriam construídos núcleos de supervisão para supervisionar a Educação naquele canto ali. Quer dizer, era a Filosofia da Educação. Depois, cada núcleo tinha um campo - Centro de Apoio ao Magistério - que era uma extensão desse núcleo, que ia fazer, especificamente, o preparo dos professores. Porque aqui preparavam os lideres, aqui preparavam os professores para desenvolver a metodologia adequada, etc, então eram dois pontos. Quando estava mapeado, aconteceu a Revolução, então isso não foi à frente. Mas depois, no governo do Paulo Guerra, foi desenvolvido o plano. Fizeram os núcleos, construíram os prédios, fizeram os centros de aperfeiçoamento, mas aí eu já não estava mais lá, aí eu não acompanhei mais. Eu já estava aqui, já tinha voltado, eu voltei, cumpri meus dois anos, vim para cá, fui trabalhar no Instituto de Educação, fiquei bastante tempo lá.
P/1 – Por conta do projeto você veio para Belo Horizonte, então?
R – Eu vim para Belo Horizonte ajudar num lugar chamado PABAEE. PABAEE era um projeto do Juscelino, um programa supervisionado pela Aliança para o Progresso - pode tremer nas bases - que o financiamento era Aliança... Como é que chama? Aliança para o Progresso, mas tinha outro nome... Que financiava, que dava sustentação econômica. Mas não tinha interferência curricular. Então, isso foi um projeto do Juscelino. Na realidade, o Juscelino queria no território mineiro, mas como ele conseguiu financiamento internacional, isso passou a ser amplo. E, apesar da minha orientação lá no Recife ser uma orientação de esquerda - era o professor Paulo Freire - aqui a orientação não era de direita ou de esquerda, era uma coisa mais... Vamos chamar de neutro, coisa que não existe, era uma coisa mais confusa do ponto de vista ideológico. Mas quando nós nos despedimos, que nós viemos intencionados, preparados para voltar e trabalhar, ele falou: “Não tenho nenhum medo de que vocês estejam submetidos a divergências ideológicas, porque eu tenho que confiar em vocês como cabeça, para ir apanhar o que for possível aplicar e trazer para o melhor”. Então, ele entendia que esse direcionamento ideológico é pequeno, é menor. E se você tem uma direção, uma linha, você vai na sua linha, não interessa você ouvir as vozes. Até ele brincou e fez a referência... Ele era um homem muito interessante... Fez uma referência a Ulisses. Ulisses, ouvindo as vozes das sereias, então Ulisses pediu o quê? Pediu que colocasse cera no ouvido dos marinheiros, para os marinheiros não ficarem tentados, porque na realidade as sereias chamavam para a morte, não é? Eles se jogavam e morriam. E ele, o Ulisses, amarrado ao mastro, com os ouvidos abertos para ouvir o canto das sereias, mas não se deixar influenciar. Então, ele fez essa referência muito bonita. Ele era um professor excelente. E fazia sempre essas referências aos dados mitológicos. A partir daí - foi 1963 - eu comecei a estudar mitologia e estudo até hoje. De vez em quando, eu vou num grupo, vou num Congresso conversar sobre mitologia. E fazer a interpretação dos temas mitológicos, que são riquíssimos, que são universais, escapam dessa coisa perversa de direita e esquerda. Isso é uma coisa perversa. Isso é uma coisa pobre, e pobreza é muito feio, pobreza é uma coisa muito feia. E as instituições que criam a pobreza e trabalham os pobres, essas são piores ainda. Criam a estrutura, empobrece as pessoas, depois trabalham, não a pobreza, trabalham os pobres. Mantém a pobreza e trabalha o pobre, sabe? Isso é uma perversão. Sem dúvida é uma perversão.
P/1 – Agora você voltou para Recife em 1964, foi isso?
R – Não, em 1964 eu ainda estava aqui, voltei no final de 1964, fiquei em 1965 e 1966 trabalhando na Secretaria da Educação. Eu era da Sudene, cedida à Secretaria da Educação, implementando esse projeto que eu tentei te falar, desse grande... Mas isso tinha que ter uma sujeitação econômica e os governadores que vieram depois, não ofereceram. Então eu vim para cá, em 1966 - dezembro de 1966 - o plano estava se implementando, não tinha nada concreto, não tinha nenhum centro construído. Era um plano, era no papel, era no mapa. Depois que eu vim para cá e fui trabalhar no Instituto de Educação, aqui em Belo Horizonte, eu não acompanhei mais, porque aí teve outro desenvolvimento. Eu sei que foram construídos... Alguma coisa funcionou, mas não naquele plano integrado, como o professor Paulo Freire gostaria de ter sido. De vários níveis, vários planos. Era uma coisa ampla, muito bonita. Infelizmente, ele agora... Isso é uma coisa muito feia, Lucas, a minha geração foi uma geração de fracasso, o professor foi exilado, sofreu um horror. Lá no exílio, ele fez as cartas a Guine Bissau, ele teve um reconhecimento. Então, as mesmas pessoas físicas que perseguiram, que depreciaram, que puxaram o tapete... Ah, ele é um professor, porque ele foi reconhecido lá fora. Com o reconhecimento lá fora, no mundo externo, as pessoas fingiram, falsearam o reconhecimento que nunca ofereceram. Então eu estou conversando com você aqui agora, mas, normalmente, eu não digo nada sobre ele, porque me envergonha profundamente o trato que a sociedade ofereceu a esse homem digno, correto, um homem simples. Era um homem pobre, com seis filhos, ele era um professor universitário. No entanto, foi destituído de todos os seus sonhos. Se você tira o sonho de alguém, você mata essa pessoa duas vezes. Você mata no presente e mata no futuro. Foi o que fizeram com ele. Só que ele era tão energizado, que ele sofreu todo esse processo e, lá fora, ele continuou o mesmo. Ou seja, a mesma aula que ele nos dava, dentro da sala na Universidade... Só que lá em Genebra ele teve outra repercussão, então as pessoas aqui olharam: “Ó, que professor”! Não entenderam que o professor era nosso professor na sala de aula. Porque é isso que faz a sociedade, o professor na sala de aula com seus alunos. Depois, os seus alunos com outros alunos. É uma transmissão circular, são círculos concêntricos que vão se desenvolvendo e se constituindo na sociedade com o mínimo de solidez, de estrutura. Então as pessoas cortam, desestruturam a Universidade e depois vão sofrer: “Olha, o brasileiro é desorganizado”. Ele não é desorganizado, não. Ele sofre desorganização, que é secular. Então, essa vergonha... Eu tenho muita vergonha do trato que a sociedade brasileira ofereceu a esse professor, uma pessoa de tal nível, de tal dignidade.
P/1 – E você sentiu alguma pressão nesse sentido também? Era uma pessoa que era lesada um pouco?
R – Olha... Eu não senti porque eu vivi os últimos momentos. Quando aconteceu o governo de 1964, ele não conseguiu desestruturar, tirou o Secretário, mas era todo um entranhamento. Esse entranhamento, que são os níveis hierárquicos nas instituições, ele estava intacto. Quando eu vim para cá, no final de 1966, esses níveis não tinham sidos desorganizados, foram numa sequência. Não foi uma... Não foi um corte seco, imediato. Os cortes foram acontecendo, foram destituindo, até chegar a esse nível trágico de um trabalho inócuo, um trabalho cotidiano, em que finge que faz para não fazer, é um lugar para ___ [59:20], finge que atua para não atuar, finge que ensina para não ensinar. Depois lamentam como as crianças vão mal na linguagem. Claro que vão mal, porque a questão da fala, a questão da linguagem, não é uma coisa de imediato, não é um sujeito, são gerações. É você preparar sua consciência para estruturar a mobilidade e, no múltiplo, encontrar a unidade. Isso não é trabalho de um dia, nem dois. São gerações que são preparadas para que elas alcancem um certo nível, mas quando começa o trabalho, corta. E corta. Aí, os meninos não sabem escrever. Claro que não sabem! Não sabem escrever porque não sabem pensar. A escrita é decorrência do pensamento. Então, como você pensa mal, pensa de forma imediata e modifica a estrutura dos seus olhares, é o Merleau Ponty, o invisível enxergar a visibilidade e a invisibilidade. Então, na visibilidade, enxergar o invisível. Os meninos enxergam na visibilidade só a visibilidade, e nunca o invisível. Encontram esses heróis da música, do teatro, são frágeis. Eles não têm fundamento, são ídolos com os pés de barro. O que acontece? Você pergunta: quem foram os heróis da nacionalidade? Quem constituiu essa nacionalidade? Não sei. Por que não sei? Porque eu não sei que, no século XVII, os holandeses nos invadiram. Quem são os pelotões? Os africanos, com Vidal Negreiros; os índios, com Felipe Camarão e os portugueses com Fernandes Viera. Onde é que está o pelotão dos brasileiros? Os brasileiros não existem, estão sendo construídos agora, é o confronto que vai construir. O quê? A ideia da nação, a ideia da nacionalidade, da sociedade. E não é a ideia do Estado, é da nacionalidade. Então, quando isso acontece... Lá no Recife acontece no século XVII; aqui em Minas Gerais acontece no XVIII, com a mineração e o confronto com a Inconfidência. São núcleos históricos, que não são separados, eles são interligados, todos querem uma coisa só, porque tem a unidade da língua, querido, fazer uma língua única. Então, pensa como um Goeth, que a pátria alemã é a língua. O Fernando Pessoa retoma: “A minha pátria é a língua portuguesa”. Qual é o trato que está sendo dado à nossa língua portuguesa, em termos de letramento, em termos de alfabetização? Muito frágil, muito frágil. E os lugares onde isso ocorre, às vezes, são lugares visados como uma coisa negativa, que é uma ideia trágica de popularizar. Querido, as coisas não podem ser populares, as coisas têm que ser distinguidas por muitos, mas não por todos. Quando você pensa todos, você dilui muito os que querem fazer. Se todos quiserem fazer, todos poderão fazer. Essa oferta que vem dos gregos, que passa pelo Lutero, que chega até agora, a Educação, é um bem do cidadão, que é direito do cidadão. Sendo direito do cidadão, é dever do Estado. Mas quem gerencia é a sociedade. Se você entendeu os textos da Rosa Luxemburgo, você entendeu que quem gerencia a Educação não é o Estado, não é a educação estatal, como queria o Lenin. É uma educação social. Então, é a sociedade. A comunidade - as escolas são comunitárias porque elas constroem o quê? Há uma vida, uma organização cheia de vitalidade, com expressão própria. Própria porque é própria do bairro, da cidade, é mineira, é pernambucana, é mato-grossense, é do Pantanal, é da Amazônia. O tom de voz é regional, mas a estrutura é nacional, é universal, porque nós somos universais.
P/1 – Você chegou em 1966, em BH?
R – É. Eu tive um intervalo, comecei a trabalhar no Instituto de Educação, depois eu fiz um intervalo porque eu tinha três crianças, morava em uma casa de campo da cidade, era muito complicado trabalhar e deixar as crianças sozinhas. Então, eu interrompi. É uma coisa que ninguém deve fazer. Eu interrompi, passei um pouco de tempo sem lecionar, sem trabalhar, só cuidando dos meus filhos - não me arrependo nada, fiz o que tinha que ser feito. Mas depois voltar e se reinserir, é uma coisa delicada. Depois eu voltei assim: eu fiz um curso de pós-graduação - esses em lato sensu - para me requalificar, para me readaptar. Então voltei a trabalhar no Instituto de Educação, com as turmas… As turmas do Instituto de Educação são muito interessantes. As turmas são muito diferentes das escolas particulares, como a PUC por exemplo. Elas são mais intencionadas, as pessoas, os alunos têm uma demanda muito mais específica e isso requalifica meu curso, porque o objeto... Eu tenho Ementa para cumprir, mas a forma como eu vou transmitir essa Ementa depende muito do meu diálogo com meus alunos e se eles têm uma visão clara de determinados pontos que devem ser abordados - isso melhora e qualifica. Então, voltei a trabalhar lá, trabalhei bastante tempo lá. A partir daí, eu fiz o foco específico para a cidade, fui fazer mestrado, fui fazer mestrado, fiz mestrado no Rio - na Federal do Rio - um tempo muito rico. Eu lecionava pela manhã, lecionava o dia inteiro - manhã e tarde - tomava o ônibus à noite, chegava no Rio de madrugada, aí tinha aula durante o dia seguinte e voltava à noite. Eu fiz isso, fiz todos os créditos do mestrado na Federal do Rio, lugar muito bom, muito bem qualificado, a Federal do Rio é um lugar... É uma das boas Universidades brasileiras. Então, nesse momento, eu comecei... Eu trabalhei o positivismo. Olha, o que me interessava trabalhar o positivismo? Primeiro, eu tinha uma dúvida no mundo, que era a seguinte: a Universidade Federal de Minas Gerais, que é das boas universidades brasileiras, ela tem uma sistemática anti-positivista. Então, tudo o que você pensar contra o positivismo é dito, é falado, é praticado. Hoje, eu tenho experiência prática, os meus filhos estudaram lá, a minha filha fez Física, depois fez Filosofia, na Federal. No tempo em que a Luísa estudava Física, ela tinha uma fala pronta: “Como você vai estudar positivismo? Eles fazem no vestibular, prova de múltipla escolha. Como você é contra o positivismo e faz prova de múltipla escolha? Me explica teoricamente, conceitualmente”. Essa prova que vai pensar o verdadeiro e o falso, ela se enquadra no pensamento, século XX, de não pensar verdade, mas pensar validade e estabelecer normas para você estabelecer a validade e a prova de múltipla escolha. O verdadeiro e o falso é o primeiro ponto na sequência teórica, onde você vai validar se você é contra o positivismo, e como... Então, essa dúvida me incomodava, mas como estudar positivismo? Em Belo Horizonte você não estuda, porque as pessoas só rejeitam, só falam mal. Então, na Federal do Rio, não tinha esse nível de preconceito e eu tinha acesso à Biblioteca Nacional, que é um belo lugar. Então, eu comecei a fazer a minha pesquisa sobre as posições do positivismo histórico no século XIV brasileiro, com a presença, uma presença física, não é? A presença quase direta do Comte, os dois filósofos que vieram - o Raimundo Mendes e o Miguel Lemos - que eram apóstolos, fundaram a igreja positivista, esses dois, não é? E que deixaram um acervo muito interessante. Então eu acompanhei pelo jornal um projeto da universidade, de 1970, e a campanha dos positivistas contra essa Universidade porque eles, os positivistas, queriam... Não fizeram não, mas eles intencionavam um projeto de Educação técnica, Educação que eles chamavam de básica, depois foi chamada de Educação Primária. Os quatro primeiros anos você fez curso primário, não fez? Era esse tipo de Educação e os cursos técnicos. O desejo dos positivistas seria esse: formar uma base técnica, bem informada, mas não pensante, eles eram contra esse tipo de educação humanista que leva à crítica, porque a intenção deles era o modelo político. É uma ditadura positivista e esse ditador conduz a massa. Uma massa instrumentalizada, mas não crítica, então a Universidade faz o quê? A Universidade constrói, constitui o espírito crítico. Então eles eram contra, era muito coerente da parte deles. Agora, o argumento que está escrito lá nos jornais, de que a Universidade seria um núcleo de formação de pedantes, então a Universidade geraria uma pedantocracia. Eles fizeram debates nos jornais, estão lá arquivados na Biblioteca Nacional, um debate encantador, porque eles não tinham um... Hoje, se você tocar nisso, até por uma questão de escrúpulos, você não vai falar que a Universidade forma pedantes, porque não forma, isso era a visão deles. Você não vai pensar em uma pedantocracia, você não vai excluir a Universidade. Eu sinto que subjaz às nossas políticas essa questão, ora a Universidade, ora o ensino básico, ora não, é tudo ao mesmo tempo, é simultâneo, não é sucessivo. Você não pode pensa ora ensino básico, ora Universidade, porque as gerações estão fluindo no tempo e você, em nome do Estado, em nome da sociedade, você não pode, você não tem direito a atuar em um segmento, você tem que atuar em todos os segmentos, porque todos estão simultaneamente presentes, pois não. As crianças estão chegando, o ensino médio está fluindo, a Universidade está atuando, então você tem que atuar em um fluxo temporal. O que eu tentei estudar? Como o positivismo interrompe o tempo, esse fluxo temporal na Educação. Minha defesa foi em 1993. Eu fiquei muito feliz de ter conseguido trabalhar o que eu queria, eu passei um grande tempo, aí minhas crianças estavam crescendo, eram adolescentes - eu tenho um filho que desenvolveu uma situação especial, eu dediquei muito tempo a ele, dedico até hoje e retardei a minha entrada no doutorado. Por quê? Essa minha tentativa de ver a realidade, eu sempre me critico, pensando que, na sala de aula, eu estou protegida por uma redoma de vidro, estou protegida, sem dúvida. Eu não queria essa redoma, queria quebrar essa redoma, então fiz, claro, era o trabalho da sala de aula, com meus alunos, para estudar o quê? Os garis, os pipoqueiros, as donas de casa e o último que eu trabalhei muito pouco foram os jardineiros. Mas os pipoqueiros e o garis, eu fiz um longo trabalho com os alunos, porque eu comecei a estudar Hannah Arendt na condição humana, o conceito de trabalho: “O trabalho é um instrumento formador da consciência do homem”, ela fala não subestimando... Estou dizendo que não foi Deus quem criou a consciência do homem, foi o trabalho. Então, esse gancho com a teoria, essa forma dinâmica de você pensar o trabalho como elemento formador da consciência do homem, me possibilitou isso. Os meninos entrevistaram os garis, outros, os pipoqueiros, fizemos um mapa da cidade, localizamos os pipoqueiros, eles são uma organização interessantíssima, eles não têm espaço, eles têm um celular, têm um sindicato em um celular, olha que coisa moderna, e mil coisas. E os garis, com pessoas lúcidas, eles nos deram grandes lições em relação ao trabalho. Por exemplo, essa entrevista foi Ementa do relatório, o meu aluno falou: “Então, você é lixeiro?” Ele falou: “Não, lixeiro são vocês que sujam a cidade, eu sou gari”. Então foi Ementa do nosso relatório, estão entendendo? É uma coisa muito rica, muito interessante, os pipoqueiros que têm uma leitura da cidade, eles param e a cidade desfila perante os olhos deles. Então, eles sabem os horários, quem compra em tal horário, eles têm a visão dos bacanas, das madames passeando, comprando pipoca; dependendo do lugar, eles têm um fluxo de pessoas. Eles nos ensinaram muito sobre as cidades e as donas de casa também. Quando Hannah fala as diferenciações entre labor, trabalho e ação, nós fomos às donas de casa, elas nos falaram que elas não trabalham, elas não laboram, no conceito delas. Então, uma experiência: uma moça que vai ao banco. Ela tinha marcado com meu aluno que se encontrassem depois e meu aluno escutou e questionou a resposta que ela deu a uma pergunta. O funcionário do banco perguntou: “A senhora trabalha?” Ela não sabia responder. Ela perguntou à amiga: “Eu trabalho?” Então ele anotou esse diálogo e lá foram: “Você não sabe?”. “Não, eu sou dona de casa”. Trabalhar significa o conceito marxista de trabalho relativo a salário. Se ela trabalha em casa, ela trabalha 24 horas por dia, mas ela não trabalha, ela não tem salário. Ela não tem clareza disso, então nós apanhamos as entrevistas e começamos a conceituar, dentro da sala de aula, a partir da nossa Ementa, porque a minha Ementa é a obrigação que eu tenho com meu Departamento. Então, eu cumpro a minha ementa teórica e abro espaços para esses Seminários de práticas: os garis, os pipoqueiros, as donas de casas, como um significado da realidade. E esse foi o meu trabalho novo, até que eu fui para o doutorado. Claro, eu diminui um pouco a intensidade das pesquisas, porque eu tinha demandas teóricas e o meu doutorado foi sobre cidade, simbologia e eu caí na questão dos símbolos urbanos. O meu objeto de estudo foi Belo Horizonte, só poderia ser, porque eu não tinha acesso a outro. Eu continuava docente, com carga horária e a PUC fez um convênio com a Complutense de Madrid, foi aí que eu fui incluída, selecionada, meu texto foi aprovado e eu desenvolvi esse trecho que você tem em mãos, os quatro capítulos - são seis capítulos, falta o capítulo dos Templos e falta o capítulo da Educação, que era o meu específico. Então, eu tenho muita coisa, mas ainda não tive um tempo para sentar e dar forma escrita. Eu não quero demorar porque isso está na minha cabeça, claro que eu tenho não sei quantas pastas, acho que tenho 14 pastas com material, entrevistas, com fotos, com recortes de jornal, eu trabalho muito com jornal, com revistas antigas, revistas atuais, mas eu tenho que dar uma forma, não é? E isso eu ainda não fiz. E como eu tenho 82 anos, eu não tenho uma perspectiva muito grande de futuro, eu preciso dar conta disso, eu espero dar conta disso nesses próximos três anos, quatro anos, não sei, o que eu puder fazer no tempo. Agora eu trabalho com grupos, eu não trabalho mais na Universidade, mas eu tenho um grupo de cinema, que é trabalhoso. O trabalho maior é selecionar um filme. Nós selecionamos cinco filmes por semestre, então esse é um trabalho duro, selecionar esses filmes de um universo enorme, selecionar cinco. A minha amiga - nós somos parceiras no projeto - ela faz a administração e eu faço a docência, ela lê, ela é doutora em Cinema, em Comunicação e em Cinema. Tem uma agilidade enorme na leitura e eu não tenho, eu sou devagar, eu não gosto de correr na leitura. Na leitura do filme, ela é ágil, ela vê 18 filmes, às vezes, me manda quatro, cinco e eu levo mais tempo para ver os quatro, cinco do que ela (risos). Aí eu devolvo: “Quero esse. Não quero esse”. Aí nós nos desentendemos: “Mas você tem que querer esse”. Aí ela pensa: “Um bom projeto, um roteiro muito bom”. Ai eu falo: “Eu não quero, eu não gosto desse tipo...”. Nós temos muita clareza, nós discutimos em um nível muito claro, decidimos pelos cinco, fazemos um folder, anunciamos, e cada mês eu faço a leitura de um, isso há dezoito anos. Isso há dezoito anos, meu projeto de cinema. Tenho outro grupo, desde os anos 80, que permanece. São encontros mensais sobre temas da Filosofia, dois. Tem dois grupos com médicos, uns gerontólogos e geriatras e outro com médicos e profissionais, quatro. E tenho um último grupo, que é um grupo mais novo, que tem cinco anos, seis anos. Aí nós trabalhamos só a Mitologia, volto aos meus tempos quando era professora de Mitologia, refaço as leituras, adoro, adoro. Todos eles funcionam uma vez por mês, mas durante a semana eu tenho vários contatos e eu reservo um pouquinho de tempo para estudar, para ler, acompanhar a edição do livro. Agora no final do ano, eu publico a Lagoinha, mas no próximo ano eu tenho compromisso de publicar outro sobre a memória da cidade. Vai se chamar Os olhos já não podem ver. Eu vou trabalhar sobre a música do Tom Jobim, Os olhos já não podem ver. São tantas coisas que eu nem posso acreditar. Só vou trabalhar as demolições, o que não existe mais, a partir de uma alameda de fícus que existia na Afonso Pena e foi cortada. Vai ser o primeiro capítulo dos Os olhos já não podem ver. No segundo capítulo, Subir Bahia, eu vou acompanhar pelo imaginário o que não existe mais. Depois, Descer Floresta, pelo mesmo motivo; depois, Subir Avenida. São quatro capítulos, todos são iniciados, porque eu trabalho com imagem e esses eu vou fazer as aberturas todas com aquarelas das plantas. Primeiro, foram escolhidas pelo Aarão Reis para fazer a arborização da cidade, elas praticamente não existem mais. Mas várias jardinagens, com plantas específicas que fazem a paisagem de Belo Horizonte. Você está vendo muitas árvores cor-de-rosa, isso foi a última opção, pintar essas cor-de-rosa. Então, eu vou acompanhar essa jardinagem através de todos os capítulos, vamos fazer a abertura dos capítulos, eu já tenho duas pessoas trabalhando - uma fotografando e outra aquarelando - para fazer as aberturas dos capítulos, são só quatro capítulos, Os olhos já não podem ver, Subir Bahia, Descer Floresta e Tomar o Avenida. O Avenida é um ônibus tradicional que faz a Avenida Afonso Pena, eu quero trabalhar a imagem e a origem. O Aarão Reis, quando ele faz o relatório, ele diz assim: “Essa eu a fiz com 50 metros”. Ou seja, um relatório oficial ele usa a primeira pessoa do singular “Eu a fiz”. Então essa “Eu a fiz com 50 metros” seria o eixo principal da cidade, começaria com a troca material no Mercado e terminaria com a troca imaterial lá em cima. Deveria ter a Catedral, então os dois pontos do eixo. E o eixo que cruza o portão do Parque, que é, segundo Comte, o início do projeto. Ele estava usando o Comte, o tema do amor à Natureza. Você sobe na Avenida, seria uma praça que não foi feita; você sobe o eixo Liberdade, Avenida da Liberdade, hoje chama João Pinheiro, Praça da Liberdade, Palácio da Liberdade, rua da Liberdade, esse eixo da Liberdade cruza com Afonso Pena. Então eu vou tentar entender as ideias do Comte, por que ele fez a cidade assim. Hoje, você tem alguns horrores, por exemplo, trânsito complicado. Porque ela é toda quadriculada, isso é um avanço, porque o modelo original não é Washington, nem Córdova, é Paris, Paris de 1870. Paris do Haussmann, com belo projeto, destruiu quarteirões inteiros da Paris antiga para construir Boulevards. Por quê os Boulevards? Tinha havido 70, um horror, as revoltas de 1970 e as tropas não caminhavam. Primeiro porque não podiam, porque era aquele entranhado de rios, depois porque os que habitavam ali, onde é Boulevard Saint-Michel, os arredores, eles conheciam e a soldadesca não conhecia. Então Haussmann, no projeto dos vencedores, cortou Paris com avenidas, boulevards largos, passiveis de você caminhar, mas passiveis da tropa avançar e recuar, sem a interferência dos locais. Então, essa ideia da tropa circulando é trazida pelos únicos que não têm nenhuma tropa circulando, não é? Tem um arraial inofensivo. Mas é a ideia da Amazonas e do eixo Afonso Pena, vai se repetir no Bonfim. O Bonfim tem dois eixos e um ponto central que corresponde à Praça Sete; então a cidade é toda pensada antes. Isso faz com que as memórias de Belo Horizonte, as memórias urbanas, sejam difíceis de serem levantadas porque elas foram pensadas. Belo Horizonte não foi um Curral del Rei que cresceu, que teve igrejinha, que teve escola. Não, ela foi pensada como um todo, algumas coisas se realizaram, outras não se realizaram. Mas ela tem essa trava idealizada, idealizadora, que confronta com a realidade posterior. Vou começar retomando os temas do trabalho, do meu projeto, da minha qualificação. Eu começo agora, formalmente, na qualificação. Meu tema de qualificação, meu texto é sobre o seguinte aspecto, a questão: Por que os homens constroem cidades? Entenda que eu já queria trabalhar a cidade no conteúdo. Por quê? Qual motivo? Para quê? Qual é o objeto? Então, eu chego à seguinte afirmação: os homens constroem cidades para não morrer. Ou seja, a questão da morte, que é uma questão fundamental na compreensão do pensamento humano, não é? O que nos faz homens é a morte. Se você vir na estrutura da Literatura grega, você vê que os deuses não nascem, nem morrem; os heróis nascem, mas não morrem. Os homens nascem e morrem. Tanto que nós, a referência à humanidade é dita assim: os mortais, o que nos marca é essa mortalidade, essa finitude. E se você for estudar ética, você tem como limite da ética a finitude. Você não é dono do mundo, você não é imortal, você é um ser finito, com limites, aos quais você tem que, necessariamente, estar submetido. Então quando eu pergunto: “por que os homens constroem cidades?” Porque eles querem guardar a sua memória. A memória, a estrutura da memória, isso vai se transformar em um objeto. Para que os homens constroem cidades? Constroem cidades para não morrer. Então o meu objeto é Belo Horizonte e entendo: quem não quer morrer? Quem quer preservar a memória nessa cidade? Dois vínculos teóricos: o positivismo e a República, o republicanismo. Então, essa cidade foi pensada a partir de um projeto positivista, porque a transferência da cidade para cá foi um grande movimento republicano. A República era nova, insegura, insatisfeita, pobre, porque em relação ao acervo monárquico, ao arque da monarquia, que é uma grande unidade, um mono-arque, a República se torna frágil. Ela nasce de um movimento falso, superficial, positivista na raiz. O Benjamin Constant... Eu tenho um grande respeito por ele, pelo Benjamin Constant, porque ele era um homem sério, ele era um homem sóbrio. Mas você mobiliza um movimento incluindo pessoas, você perde o controle, perde o domínio, mas acontece a República. Nada melhor para marcar - comemorar e marcar - afirmar a República do que uma cidade, do que uma cidade, então, Republicana, positivista. Então, convidam positivistas históricos como Aarão Reis, pacto com Afonso Pena. É o período sabe de quem? Do Cândido Rondon, do Euclides da Cunha, era uma geração de positivistas, muito bem formados na Escola Militar. Para você entender Belo Horizonte, você vai entender o quê? A ausência de uma escola pública no século XIX. É um horror um país com essa dimensão, porque os jesuítas que tinham um sistema, foram expulsos no século XVIII e foi constituído, para substituir os jesuítas, um financiamento chamado Subsídio Literário. O Subsídio Literário era um imposto cobrado da carne e do vinho, mas entre a adega, o açougue e a escola o dinheiro se diluía. Então a Educação sofreu quase um total colapso. Muito lentamente ela começou a se refazer. Como? Porque entenda, meu querido, a Educação tem que ser um domínio público. Apesar dos jesuítas serem domínio privado, ligado à igreja, ela tinha uma abertura ampla, que tornava a escola dos jesuítas a escola para todos. Quando acontece a expulsão e o retomar. Quando retoma, duas instituições vão assegurar uma educação pública e gratuita: os Seminários e as Escolas Militares, que vão ocorrer durante o final do XVIII, todo o XIX, até 30, 40, do século XX. Então, o que vai acontecer? O Seminário é uma escola de boa qualidade, gratuita, com a trava que é católica, mas o Brasil era, praticamente, um país católico, então o Seminário se torna uma escola pública, porque é aberto a todos, todos que quisessem, todos que pudessem se submeter, nem todos iam para lá com a intenção de ser ordenado, eles iam com a intenção de uma boa escola, uma bela formação humanista. Ou, a partir de meados do século XIX, quem trouxe a ideia foi o rei - o rei não - o príncipe herdeiro, ele foi rei aqui, não é? O Dom João VI, a ideia da Escola Militar, que é uma escola pública, aberta a todos, com uma boa formação e, com o passar do tempo, ela se torna um núcleo do positivismo. O positivismo no Brasil vai nascer nessas Escolas Militares. Daí você vê, no final do século XIX, com a Escola Militar, produzindo o pensamento positivista. E dessa Escola Militar vão sair as pessoas que pensaram melhor, juntas. Mais alguns civis... Por exemplo, Afonso Pena, que era um civil, muito bem formado, ele estudou no Caraça, ele tinha uma cabeça muito ampla, muito bem formada, mas ele era adepto das ideias progressivas, porque o século XIX tinha um grande mito: o progresso. O mito do progresso é peculiar ao século XIX, que sonham o XX como lugar da felicidade, da resolução, porque vai acontecer a saída da superstição, das crenças supersticiosas, das travas da igreja católica, da ação dos párocos, então, entendam é uma grande laicização. O ensino público vai ser laico, vai ser obrigatório, gratuito, não pode haver a obrigatoriedade se não houver a gratuidade. Na realidade, não são dois princípios, é um. Depois, o nível de qualidade, então vai ser obrigatoriedade, gratuidade e qualidade na escola pública, foi um grande avanço. E houve uma organização, as escolas eram isoladas e foi o Benjamin Constant, que era o ministro da Educação - Educação com rios e telégrafos, a Comunicação surgiu aí, desde os belos prédios dos Correios, em todas as cidades brasileiras. Aqui em Belo Horizonte tinha um lindo, que foi demolido. Então essa questão da educação gratuita, obrigatória, de qualidade, fez com que Benjamin Constant criasse algo chamado Grupo Escolar. Você foi no Grupo? Estudou no Grupo? Não, você já foi à Escola Estadual, porque o Grupo Escolar eram as escolas isoladas agrupadas, ele agrupou - a primeira série, a segunda, a terceira, porque, antigamente, as escolas estavam todas em torno do professor. Primeira série, segunda, terceira, a professora ia dar conta disso. O Benjamin Constant seriou, grupou, criou a figura da diretora, que é uma figura icônica da Primeira República. Depois, nos anos 30, ele criou a figura da Inspetora, aí já é 1930, 1931, é a Lei do Chico Campos. Então, você vai ter uma carreira, vai ter uma figura feminina valorizada e vai ter, depois, os núcleos de formação dessas profissionais; o Instituto de Educação é um. Primeiro ele era Escola Normal - brinco com meus alunos: por que Normal? As outras são anormais? Não, a escola que estabelece a norma - a Escola Normal - que depois vai ser Instituto de Educação. Então, nessa sequência, Belo Horizonte surge como cidade, planejada, intencionada, positivista... O positivista básico, que é o Aarão Reis, um engenheiro da melhor qualidade, aluno da Politécnica do Rio, aluno da Politécnica em Paris, reuniu uma equipe primorosa chamada Comissão Construtora da Nova Capital, fez o levantamento - todo o acervo está no Abílio Barreto, você pode ir lá apanhar os mapas, o levantamento, o plano da distribuição da água, o plano da distribuição da água da chuva, tudo muito bem-feito, muito técnico, e também ele planejou a cidade traçada nos modelos de Paris. Ele era da Politécnica parisiense, a escola do Haussmann, a escola que fez o projeto parisiense em 70. Veja, não era tanto tempo, foi 70, nós estávamos em 90, como se fosse, para nós, um plano de 20 anos atrás. Então surge essa cidade. Foi elogiadíssima, mas guardou questões terríveis. Por exemplo: o que vai fazer com o cemitério? O cemitério do Curral del Rei, o que você vai fazer com ele? Esse é um ponto doloroso. Por quê? Agora eu entrei no meu ponto. O Lewis Mumford, que é um antropólogo inglês, eu não sei muito, li muito o Lewis Mumford para entender o que ele fala. O que é uma cidade? Porque são dificuldades... O que é uma cidade? Os arquitetos, os engenheiros, os agrônomos, os políticos, cada um tem um olhar. Então, essa ideia da Filosofia, que é unificar o múltiplo, a multiplicidade em questões unificadas, o Lewis Mumford faz isso. O que é uma cidade? É um conjunto de símbolos. Então, o meu projeto é estudar esse conjunto de símbolos. Quais são esses símbolos? O primeiro, o fundador símbolo da cidade, é o cemitério, porque ele vai explicar, do ponto de vista da antropologia, a humanidade ainda nômade, vagando, e a perplexidade da morte. Então morria um membro daquele grupo, fazia o quê? Você vai estudar os rituais de sepultamento, e vai ver que, originalmente, no Oriente, não era terra, era pedra. No Egito, tem uma grande cultura da morte. No mundo ocidental esses núcleos anteriores ao sedentarismo marcam o início de grandes marcas de civilização, civilização de cidade, sempre perto de onde tem água, você mantém acesso à possibilidade de alimentação, porque nômades pousavam em um lugar sempre que morria alguém. Então, ele explica a perplexidade enorme que é a morte, e a pergunta: “Quando alguém morre, o que morre?” Você não pode chegar a uma conclusão simples, poderíamos ficar aqui meses pensando, nessa entrevista, pensando no que morre quando alguém morre: morre o olho ou morre o olhar? O Aristóteles vai nos dizer que a eternidade é a matéria, não é como querem os idealistas platônicos, depois os agostinianos e os católicos. É um rio subterrâneo dizendo que nós tínhamos um espírito e essa questão espiritual nos antecede, nos acompanha. Nós somos eternos pelo espírito. A briga com Aristóteles durou séculos, no mínimo, quatrocentos anos de briga ativa: a eternidade em nós é a matéria. Porque houve uma explosão, você sabe que tudo que é matéria e movimento partiu daí. Bom, vamos aceitar essa hipótese e, a partir daí, nós somos, nós não existimos, mas nós somos. Pausa um pouquinho? (tosse). Então, essa questão... Antes que exista a cidade, que exista a polis, existem necrópoles, o cemitério funda a cidade. Por quê? Esses povos não sedentários deixavam o corpo com essa perplexidade e sempre eles voltavam, retornavam, marcavam com pedras, marcavam com flores. Os estudiosos dos rituais funerários constatam... Isso é muito interessante, aqui no território de Minas Gerais tem alguns sítios arqueológicos onde existem sepultamentos interessantíssimos. Eu tenho uma querida amiga que trabalha com isso, ela me dá informações sobre esses rituais. Bem, vai ser fundada uma cidade futura, o Rio de Janeiro. A Câmara... Tem uma longa tramitação, foi aprovada, vai ser construída a cidade. O que fazer com a cidade antiga? Uma pergunta que eu faço, que não cabe aqui agora, é por que foi excluído esse lugar e fizeram a cidade sobre uma Vila? Porque havia tanto espaço para fazer a cidade, mas eles escolheram, a Vila comemorou, fez um Te Deum para comemorar, depois foi destruída. Essas memórias mais antigas da cidade são memórias muito dolorosas, as pessoas ficaram entusiasmadas porque viveriam a cidade nova, foram destruídos, todos expulsos, sobrou uma residência, que hoje é um museu. Ela sobrou por quê? O Cândido Silveira, que era o dono da casa, era um fazendeiro de certo poder, certa posse, e a casa ficava longe do Palácio da Liberdade - se você vier a pé do Palácio da Liberdade até o Abílio Barreto, você vai ver que não é tão perto. Então por isso, ela sobreviveu. É também uma unidade econômica, um modelo de casa do século XIX. O que acontece? Vai ser planejado o Bonfim. Vai ser negociada a compra do terreno, o Alto do Menezes, e eles escolheram por um motivo que eu acho muito interessante. Sabe por quê? Porque do Alto dos Menezes vai ter uma bela visão da cidade, ou seja, o cemitério não está sendo construído para os que vão morar lá, mas para os vivos que vêm para a paisagem. Mas depois de construído, de decidido, foi feito um planejamento demorado, delicado: a localização - você vai entender muitas coisas da cidade pela localização - foi o Plano, repete o Plano da Cidade, o que corresponde à Avenida Amazonas e Afonso Pena e à Praça Sete, lá no Bonfim, foi murado, mas demorou. E a cidade tinha que ser construída em quatro anos. Então, o Aarão Reis decidiu o seguinte: destruir o cemitério antigo, construir um cemitério provisório até que o Bonfim ficasse pronto. Então isso foi um processo doloroso, delicado, devastador para quem morava aqui, que teve os seus antepassados... Eles não foram cuidados. Recortei um comentário de um jornalista paulista, horrorizado, vendo o cemitério sendo destruído, é um horror isso. Bem, tem um caso icônico de uma mocinha, o senhor pai, belga de Brussels, veio para montar os ferros do Palácio da Liberdade e o Mercado, que ficava... E ele tinha uma menininha adolescente que morreu, água contaminada, não tínhamos água tratada. Eles moravam - onde é hoje o Parque Municipal - que era a Chácara do Sapo, era uma casa razoável, que foi mantida para ser a hospedagem dos estrangeiros. E a menina deve ter tomado uma água contaminada qualquer, teve uma febre que foi súbita e morreu. E o pai não queria sepultar a menina no cemitério provisório, então ele foi à Comissão e falou: “Minha filha, não”. Vai para o definitivo, que estava pensado, detalhado, mas não estava desenhado lá, não existiam os marcos, então o túmulo da menina ficou... Não seguiu, não seguiu o ritmo. Tem um livro lindo, chamado Caso oblíquo, o túmulo oblíquo, onde a moça, uma arquiteta de muito valor, conta a história desse sepultamento, dos sepultamentos de então, ou seja, o cemitério se instaura e ele significa, em relação à cidade, um espelho. Porque, à medida que as pessoas vão morrendo, vão para o Bonfim. Até aquele momento icônico, que é 1924, 1922... Desculpa, 1922, quando foi o sepultamento, o funeral do Raul Soares, enorme funeral, uma festa portuária linda, ele era muito querido, morreu muito cedo, muito jovem. E morreram duas pessoas esmagadas pela multidão, tentando entrar. O cemitério, a porta principal era uma rua estreita, um portão estreito, o cemitério olha a cidade, você constata isso quando você vai estudar a capela. A capela é desenho do (Nacides Coelho?) [01:43:45], o melhor desenhista da Comissão, de longe. Então, ele desenha uma capela muito bonita, com intenção de ser necrotério, de ser espaço funerário, o que eles queriam - olha a ousadia dos positivistas - eles queriam deixar para trás os ritos funerários católicos e instituir um sepultamento positivista republicano. Isso não se faz assim, não é? Então eles construíram a capela, que não tem nenhum símbolo católico, ela é encimada por uma urna funerária, com véu, tem quatro pontos, que são chamas, são relógios, o relógio de areia, que é o tempo, depois tem mais quatro, que são chamas, ou seja, uma arquitetura muito bonita, muito bem realizada, caprichada, que nunca foi usada, porque a cidade não dava conta de fazer um sepultamento positivista republicano, então o morto ia para a igreja São José e era levado com o ritual católico, porque os positivistas têm grande dificuldade com o tempo, então eles pensam... Eu vou dizer quem pensou isso muito bem, o Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico. Ele diz assim: “Os positivistas acreditavam tanto no que eles acreditavam, que eles acreditavam que os outros acreditassem, tamanho era sua crença, a sua fé”. Isso acontece no Bonfim, então o Bonfim vai se constituindo, ao longo do tempo, como um espelho para essa face. A cidade é a face, a cidade cresce e se organiza como face, e se projeta nesse espelho, que é o Bonfim. Acho que essa é a relação de espelho e face. É o espelho e sua face, a face e o seu espelho. Então, é o meu primeiro texto escrito, meu primeiro capítulo. Depois, o segundo grande símbolo é o Mercado. O Mercado é o lugar da troca. A troca que se dá no Mercado não é troca material, a troca material é o mínimo que se faz no Mercado. São as ideias que se trocam, são os conjuntos culturais. O espaço é o núcleo cultural - olha o vigor que o nosso Mercado tem - por motivos específicos, não é? Porque não é qualquer Mercado que é assim, os Mercados, quando eles crescem com desenvolvimento empírico, eles são aquele tempo de crescimento normal, depende da demanda, mas o nosso não. O nosso nasceu onde hoje é a Rodoviária, foi importado um edifício lindo, veio de Brussels; em frente ao Mercado havia um coreto, olha que coisa moderna. Enquanto as pessoas faziam compras, a Polícia Militar fazia música e as pessoas passeavam, as crianças brincavam - tinha footing - uma ideia contemporânea de Mercado, mas o argumento é que ficou pequeno para a demanda. Você sabe que não foi, sabe que foi uma política perversa, porque Belo Horizonte tem, sistematicamente, uma política destrutiva. É uma cidade autofágica, ela se consome, ela suicida a cada dia. Então, veja, uma peça linda, caríssima. Olha, tão cara que eles, os industriais de Brussels, ofereceram o coreto, foi uma doação, foi um mimo, foi destruído. Onde estão as peças? Ninguém sabe. Então é aquilo que mostrei no livro, não é? O registro é mínimo, tudo que o Abílio Barreto tem do Mercado é aquela foto. Aí eu vou te mostrar a aquarela, porque a minha intenção, segundo Merleau-Ponty, no visível, entender o invisível; essa invisibilidade dos objetos urbanos é meu foco de estudos. Então, no Cemitério, no Mercado, na Praça, o que é mesmo a Praça? É um lugar de encontro. Diferentemente do Mercado, onde a moeda faz a mediação da troca, na Praça não. A praça é um lugar de encontro, de troca, de visibilidade e os positivistas tinham para com a Praça - eu estou me referindo à da Liberdade - eles tinham uma intenção pedagógica, eles queriam mostrar como o positivismo é moderno, é democrático e como as pessoas podem conviver entre as classes. Não conviveram, não conviveram. A Praça da Liberdade, eu vou citar outra vez o Sérgio Buarque de Holanda - foi meu grande apoio histórico para escrever sobre a Praça - ele conta em Raízes do Brasil, as modificações que estão ocorrendo no final do XIX, na passagem da República, na Constituição do século XX. Aí, o Gilberto Freire me apoia fortemente, porque ele descreve muito bem esse período. Então os dois, mas o Sérgio, especificamente, me diz o seguinte: “São os aristocratas de sobrado, eles se deslocam do piano para o coreto”. Então, as tertúlias nas salas, em volta do piano... Há um deslocamento para o coreto e o footing. O que os positivistas desejavam? Multirracial, inter-classes. Mas, outra vez, a questão da memória, você não se despe das suas memórias assim. Então, na Praça da Liberdade, ocorreu em um lado o footing da boa sociedade e, do outro lado, o footing das pessoas mais carentes - soldados, bombeiros, as mocinhas do serviço doméstico. E por que isso? O Carlos Drummond de Andrade nos explica, nos explica assim: “E se o pai da moça viesse no bonde”... Porque o bonde subia a Avenida da Liberdade, hoje João Pinheiro, contornava a Praça e demandava a Savassi, hoje. Então, as meninas da boa sociedade ficavam do lado de lá, porque tinha roseiras e elas ficavam escondidas, podiam namorar. Do lado de cá, ficavam essas pessoas do trabalho, dos serviços, os bombeiros, as meninas do trato doméstico. Eu fico muito espantada, porque eu tenho um olhar estrangeiro. Entenda, o Recife não é assim, Garanhuns não é assim, então, pergunta a figuras, por exemplo, doutor Roberto Martins, uma figura icônica da cidade, filho da dona Beatriz Martins, ele me explicou isso, foi ele quem me disse isso, foi ele quem me referiu e me remeteu a Carlos Drummond de Andrade... “E se o pai da menina viesse no bonde e ela estivesse namorando aqui?”. Então as meninas ficavam aqui escondidas, porque não se namorava nos anos 20. Você era encomendada, você era recomendada, o noivo fazia uma demanda, o pai autorizava e já planejava o casamento, essa fase de conhecimento, de pequenos detalhes pessoais entre marido e mulher, noivo e noiva, namorado e namorado, essa construção não existia, passa a existir com a modernidade. Então, a praça acumula isso e ela é em si, uma enciclopédia da cidade. Que tem os edifícios ecléticos, da origem da cidade, depois você tem do próprio modernismo, do modernismo, depois você tem um exemplo neoclássico, que faz a passagem, onde hoje é o Banco do Brasil, que é o Luís - o Luís Olivieri - depois você tem o Palácio da Liberdade, que é da idade dos três, o Palácio da Liberdade inaugura, não é? Não pode existir uma cidade sem o poder, depois você tem o moderno, belíssimo Edifício Niemeyer, deslocado, eles não poderiam ocupar aquele lugar, aquele lugar é um espaço público e aquele edifício é particular. Como um edifício particular em um espaço público? Eminentemente público. E do outro lado, em frente ao moderno, tem o pós-moderno, que foi apelidado de Rainha da Sucata. Então você tem uma enciclopédia do modo de construir em Belo Horizonte, em torno dessa praça, lugar de encontro, lugar de troca, lugar de conhecimento, com essa ideia positivista de atualizar as relações. Então, por último, o Palácio. Na realidade, foi o primeiro a ser publicado. O que é o Palácio? É outra pergunta que se faz: o que é o Palácio? É o espaço do poder. E o que é o poder? São as possibilidades de pacto. A Hannah Arendt fala que poder é possibilidade de pactos. Como você manifesta? E como você encontra o republicanismo positivista nesta cidade? Vou retomar: o parque, amor, natureza, você vai subindo, atravessa a possível Praça da República, deixa para trás o automóvel, o clube, a Receita, atravessa a João Pinheiro - que era a Avenida Liberdade - chega à Praça da Liberdade, depois ao Palácio da Liberdade. No Palácio da Liberdade, a construção foi a seguinte: eclética, alguns traços de classicismo, uma varanda projeta... O palácio medieval, o palácio renascentista não tem varanda, mas o palácio moderno tem varanda, ela cria uma projeção para o governado e o governante dialogarem. Então, a grande manifestação, o povo vai à praça e dialoga com o governante, confere ao governante o poder, o governante aceita o poder do governado e eles estabelecem o poder - o governante e o governado - isso é a janela central da varanda do Palácio da Liberdade. Foi aí que o Tancredo: “Liberdade, outro nome de Minas”. Confere esses modos, cada vez que o governador tomava posse, ele ia a essa janela, cumprimentava os eleitores e os eleitores conferiam o poder que estava empossado. Lá dentro você entende que é uma casa burguesa, a ideia foi negar Ouro Preto. Você conhece Ouro Preto? Deve conhecer, vale a pena. Ouro Preto é uma cidade colonial, negada pela República, não é? A República deixou para trás a Colônia e o Império, então o Palácio deveria ser uma manifestação republicana, positivista. Então, o pequeno burguês, o palácio não tem dimensão de espaço público, tem um vestíbulo, uma escada suntuosa, peça mais bonita do palácio, que foi desenhada aqui, foi Aarão Reis que desenhou, mandou para Brussels e ficou construindo o palácio. Quando chegou, a escada era maior do que o vestíbulo, então você vê, se você estender a mão, você bate na parede. É lamentável, porque aquela escada merecia um espaço generoso, ela é muito bonita, muito bem realizada, ela tem uma entrada dupla, curva e volta, lá em cima, então, isso é o caminho do governador, ele entrou passou pela escada, aqui é o espaço do poder, porque o Palácio tem a parte rústica, que é a parte dos serviços, depois tem a parte prática, em cima a parte _____ [01:55:30]. O Governador... O poder se estabelece no segundo andar, então aí tem o gabinete do Governador. Tinha a sala principal, tem a sala de refeição, tinha a sala dos embaixadores. Não vou tomar seu tempo com isso, mas vou descrever. Quando você chega no alto da escada, você tem quatro painéis pintados pelo ______ ______ [01:56:07], que era um pintor decorador, austríaco, que estava no Rio, foi contratado pelo Aarão Reis. Então, ele fez o quê? Olha a simbologia. Ele fez os dados republicanos - que vêm da Revolução Francesa - os três princípios da Revolução Francesa: a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Ele fez o quê? A Liberdade e a Fraternidade. A Igualdade? Aquilo não é o lugar da Igualdade, então a Igualdade não comparece. Você tem a Liberdade, a Fraternidade, a Ordem e o Progresso, os princípios positivistas, quatro painéis, quatro paredes. É muito bem pensado. Você pode fazer... Se você for um arquiteto moderno, se você for um historiador da arte moderna, você vai dizer: “É eclético, é menor, usa ornatos”. Você pode fazer a consideração que você quiser, mas é o nosso Palácio, é o nosso espaço, é a nossa simbologia. O Palácio é, propriamente, mineiro, republicano, positivista de Belo Horizonte. Nega Ouro Preto, afirma outra dimensão política, ideológica. E é o nosso, não é o mais bonito do mundo, é o nosso. Nós temos que insistir nisso, é a nossa memória, é a memória da cidade. Então completou um ciclo. O Cemitério, o Mercado, a Praça, o Palácio. Faltam dois: os Templos - que vão ser a igreja São José e as escolas, obviamente. Vai ser o Instituto de Educação, mas isso ainda não escrevi, ok? Mais coisas que você vai perguntar.
P/1 – Queria lhe perguntar: você contou para mim, antes um pouco, essa história da Pedreira, não é? O que me parece que é um pouco o verso dessa história, não parece um pouco?
R – É, Lucas. A Pedreira é o seguinte: é um dos lugares mais antigos da cidade, ela é anterior à cidade, claro que a pedreira é um objeto não cultural, não é? Ela já existia como lugar que fornecia pedras para construções do século XIX, da ambiência. Quando aconteceu a República e a construção da cidade, foram realizadas concessões, o Conde de Santa Marinha tinha uma concessão, o Prado Lopes tinha uma concessão e existem, em Belo Horizonte, cinco pedreiras dessa época, século XIX, construção da cidade. E foi construída uma estrada de ferro rústica, mas vinha um pequeno vagão da Pedreira até o centro da cidade, até a Praça da Liberdade, que trazia as pedras. Entenda o seguinte: a Praça da Liberdade era pico, ela foi cortada para ficar plana, com carrinho de mão, e tinha um corte grande onde hoje é o Minas, eles jogaram aí o que sobrou, o corte, não é? O produto do corte. Vocês entendam a dificuldade - ainda hoje você vê - se você passa na Bahia tem um corte ainda, que é o Minas aqui embaixo. Hoje está modernizado, tem ___ [01:59:33], Minas está muito bem cuidada. Então, essa pedreira oferecia pedras brutas e pedras cortadas, atraía operários e, antes da cidade ser planejada e construída, em torno dela, havia um aglomerado de africanos, recém-libertados, que não tinham para onde ir. A grande questão das políticas aqui no Brasil, que elas são, às vezes, inconsequentes, não é? Aí, foi um grande feito a libertação, sem dúvida foi. Mas eles vão fazer o quê? Eles não têm profissão, eles são proibidos, eles são analfabetos, eles não têm como sobreviver, eles não têm onde morar. Foi um horror, do ponto de vista urbano. Então a favela Prado Lopes, diferentemente das outras favelas, aglomerou alguns africanos, alguns vieram do Sabará - Sabará era a grande cidade da região - para morar em algum lugar, para se abrigar em algum lugar. E a Pedreira oferecia um certo abrigo, do ponto de vista de segurar o vento, talvez até a chuva. Foram construídas habitações muito precárias lá nesse lugar, porque ninguém do ponto de vista da organização da cidade se preocupava com aquilo, é um erro grave na cidade brasileira. Você vai nas cidades europeias, por exemplo, nas cidades suíças, nas cidades francesas do interior, as periferias, não que elas sejam suntuosas, mas elas são bem cuidadas, têm aquelas casinhas mais modestas, mas com seu jardim, com seu espaço, com seu abrigo. Então, nós nos descuidamos, essa é uma das repercussões muito trágicas do nosso tempo de servidão, porque esses escravos moravam nas senzalas, tinham uma habitação diferenciada, que era a própria senzala, diferente da casa grande, que a casa grande é suntuosa. Eu estou chegando de uma excursão com meus alunos, onde nós fomos constatar esse século XIX rural, a casa grande suntuosa e a senzala. Os africanos saem da senzala e vão para onde? Perdidos no mundo. A Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte... Belo Horizonte não, não era Belo Horizonte. Era Curral del Rei. Acolheu um núcleo e esse núcleo iniciou um pequeno aglomerado urbano, sem qualquer intervenção estatal. Não havia saúde, não havia justiça, não havia rua asfaltada, bombeiro, hospital, escola. Mas a Pedreira sobrevive e a Pedreira é um núcleo cultural, eles têm uma consciência de si invejável, eles se orgulham de ser da Pedreira, tem um bloco de carnaval, tem um pequeno jornal, sabem, conhecem os modos. Há pouco tempo - uns dez anos atrás - uma professora muito intencionada fez um trabalho lindo na Pedreira. Ela entrevistou, com alunos, os moradores mais antigos, perguntando sobre as receitas, as raízes, os medicamentos, os modos sociais, as relações. O livro ficou interessantíssimo, é um grande relato da Pedreira. Eles dizem sempre isso: “Somos solidários, convivemos, o outro tem significado”. Como eles são marginalizados, eles se agrupam, eles se protegem entre si, com a quebra, com o não desenrolar de uma política urbana, que nunca tinha acontecido, mas poderia ter entrado, tentou algumas entradas. Por exemplo, um dos raros Prefeitos... Olha o que ele fez, foi o Juscelino Prefeito, ele negociou o IAPI, ali era uma favela, mas ele ia abrir a Antônio Carlos para a sua Pampulha, então ele não queria uma favela, ele queria afastar a favela. Mas ele não... Ele era um político inteligente, negociou com o IAPI, desapropriou, construiu aquele conjunto de prédios, preciosos, foi um projeto de treze - são nove construídos - em torno de pátios; tem um grande pátio com escola, com vida cultural. Houve uma decadência, agora está reconstruindo, o IAPI, ele construiu... Ele construiu o Hospital Odilon Behrens - colocou o nome de um amigo dele - levou o colégio municipal para lá, que hoje é municipal escola, não é mais colégio. Ou seja, o Juscelino fez uma intervenção positiva com o IAPI, com hospital, com escola e com uma intervenção que ninguém imaginava que ele fizesse. Sabe o que ele fez? Ele abriu, dinamitou parte da Pedreira e abriu uma rua larga, enorme, que é a Pedro Lessa, então você tem um registro na Prefeitura, ele, sempre elegante, inaugurando a rua, é um corte na Pedreira, a Pedreira é icônica porque ela centraliza muitas ações. Hoje, você tem uma experiência trágica das pessoas que são usuárias de droga, eles se dizem assim: “Os noiados”. Eles são usuários, pobres, desamparados, sentam no passeio, usam droga durante o dia inteiro, são completamente desprotegidos, você sabe que droga é um caminho sem fim, não é? Sem volta, sem fim, é algo trágico, a pessoa se torna dependente, mas, ao mesmo tempo, a parte da Lagoinha pensante ampara a Pedreira, recebe pessoas para trabalhar em casa - as pessoas domésticas - tem o Núcleo da Prefeitura com dentista, posto médico, ajuda social. Uma das pessoas entrevistadas, das pessoas mais interessantes, foi uma moça, uma jovem senhora, dentista lá, ela não abre mão de trabalhar lá e tem uma relação muito bonita com todos, não é? Porque ela não é dentista dos adolescentes, nem dos noiados, nem das professoras, ela é dentista de todos. Ela acolhe, ela dialoga. Tem um falecido irmão, que era médico e tem outro irmão, que era industrial e oferecia emprego, ela é uma pessoa respeitadíssima lá na Pedreira. Eu quero que você entenda que a Pedreira tem uma face de rejeição, tem uma face de horror, tem uma face de decadência e tem uma face de manutenção, de permanência, com essas pessoas habitantes da Lagoinha dialogando, porque aquilo olhou aquela moça que fazia aquele bolinho de queijo, fazia isso, fazia... Então tem essa tradição, a Lagoinha tem tradição de serviços. Os serviços de cozinha, os docinhos, os salgadinhos, as linguiças, os queijos, as costureiras - as costureiras são uma permanência - as bordadeiras, ou seja, serviços, serviços finos, que essas pessoas praticavam para a sociedade, para vender, mas praticavam também para si; as festas eram elegantíssimas. Um cronista de Belo Horizonte, um cronista de muita boa qualidade, ele diz que a Pedreira... Que a cidade tem a forma de uma elipse e tem algumas regiões que ficam fora dessa elipse. Por exemplo, a Pedreira. Te respondi?
R – Tenho uma última pergunta só para você, queria falar que eu notei um pouco que você falou, assim, de ter tempo para fazer as coisas que você quer, que são bastante coisas. Você reflete muito sobre isso de velhice, morte, volta ao tempo?
P/1 – Não reflito, não. Eu vivo. Não adianta correr, não é? Às vezes, não é propriamente uma reflexão, às vezes, eu penso assim: “Não, eu perdi tanto tempo”. Mas quando eu penso que perdi tempo, eu não perdi tempo. Eu perdi tempo porque eu viajava, passava um mês viajando. Agora, depois que a minha filha casou… Em 2007 ela casou, foi morar na Europa. Eu vou frequentemente lá, eu não estou perdendo tempo, estou visitando a Ancient Montreal, visitando e sempre nós perdemos tempo em Paris. Eu tenho um genro encantador, ele cuida das crianças, aí ele fala: “Eu vou liberar a Luísa para a senhora”. Então, nós ficamos seis dias batendo perna, geralmente em Paris, ou então em outra cidade que a gente escolha. Eu não estou perdendo tempo, mas eu estou deixando de escrever. Eu não estou sentindo urgência não, porque todos os dias eu levanto cedo e vou para o computador, organizar nota, sempre trabalhar no meu projeto. Então, esse livro sobre a Lagoinha é o quinto que eu estou publicando. Não é o quinto, é o sexto, porque tem um fora de série sobre o Felício Roxo, é encantador, o Felício Roxo tem uma história linda. Então seis. Eu espero chegar, se a Natureza... Você sabe que falam “Deus”, ou seja, a natureza? Se Deus e a natureza me permitirem saúde e agilidade, eu vou continuar trabalhando. Mas eu vou ter o tempo do limite. Quando eu morrer, quando eu for embora, aí eu paro de pensar Belo Horizonte e escrever meus trabalhos. Eu espero... Tem muita gente que vai seguir, que vai escrever coisas muito boas, muito bonitas. O João Antônio, por exemplo, escreve muito bem e outros, outros e outros. E eu tenho alunos, eu espero ter dito aos meus alunos que essa cidade merece ser estudada, é uma cidade pouco estudada, é uma cidade que não tem fantasma. Como pode ter uma cidade sem fantasma? Gilberto Freyre vai explicar os fantasmas do Recife, a cidade não pode não ter fantasma. Coitado do Carlos Drummond de Andrade mostra dois. No Palácio da Liberdade tem um, no Santa Maria tem um, mas quem escreveu? Eu espero que meus alunos não tenham vergonha, porque as pessoas ficam envergonhadas de falar nos fantasmas. Ora, somos nós projetados neles. Agora, eu não vou dizer para você que eu não tenha medo de morrer, eu tenho pena de morrer, porque eu acho que a vida é ótima, tem muita coisa boa para fazer, eu queria ver meus netos crescendo, mas no dia que for, eu vou. Fazer o quê? Não tem o que fazer. Mas temos que curtir enquanto estiver vivo, pode contar comigo. Se me chamar para fazer um belo projeto amanhã, eu vou. Porque eu gosto da vida, da atividade. Agora vamos a Diamantina em outubro, nós vamos a Recife em março e nós vamos a Amsterdam em julho. Meus alunos sempre atuando, sempre pensando na cidade. Ok? Te respondi?
P/1 – Obrigado.
R – Não há de quê, foi um prazer.
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