Minha Casa, Minha Cara, Minha Vida - Cabine São Bernardo do Campo
Depoimento de Maria dos Anjos Soares de Souza
Entrevistada por Gisele Rocha e Nilza Rocha
São Bernardo do Campo, 08/03/2014.
Realização Museu da Pessoa.
ASP_CB004_Maria dos Anjos Soares de Souza
Transcrito por Iara Gobbo.
P/1 – Dona Maria, vou pedir pra senhora falar pra gente começar, o seu nome completo, sua data de nascimento e o local onde você nasceu.
R – Pra eu falar?
P/1 – Pode falar, tudo de novo.
R – Meu nome Maria dos Anjos Soares de Souza, nasci oito de julho de 1954.
P/1 – Em que cidade e que estado?
R – É Itambacuri, Minas Gerais.
P/1 – Então vamos começar por aí. Até quando você viveu em Minas Gerais?
R – Até os 18 anos.
P/1 – E pensando, voltando lá atrás, como que foi a infância lá na sua cidade?
R – Dura, né, que uma que a minha mãe tinha 15 filhos e lá tinha, hoje aqui eles falam FEBEM. Fala FEBEM não sei, lá era deixado as crianças numa casa assim, que as pessoas tomava conta dos pequenininho, né? Aí, era muito difícil mesmo, mil e trezentas crianças. Era fogo.
P/1 – Você chegou a morar um tempo na FEBEM?
R – Ô, e muito, até os 18!
P/1 – E seus irmãos também?
R – Os irmãos também.
P/1 – Como que era o dia a dia? Quando você acordava, o que que você fazia lá? Depois até a hora do almoço, depois à tarde?
R – Era assim, tomava banho, água fria, gelada, e fazia xixi, né? E depois comia mingau de aveia e era o que tinha, ou então fubá cozido. Era essas coisas. Doação das pessoas que davam, né?
P/1 – Tinha algum professor lá? Vocês tinham aulas?
R – Não. Aula... Tinha as donas que cuidavam dos pequenos, as mulheres caridosas, assim que falava. E aula pra conforme ia crescendo, tinha um morro enorme pra subir, pra ir pra escola.
P/1 – Ah, então saía. Na FEBEM dormia e comia?
R – Isso, morava lá.
P/1 – E morava e pra estudar ia pra outro lugar.
R – É. Não era bem FEBEM que falava, era abrigo de menores. Então, aqui que fala em FEBEM.
P/1 – Você lembra com quantos anos você foi pra lá?
R – Com seis meses.
P/1 – Seis meses.
R – Isso.
P/1 – E ficou até os 18?
R – É
P/1 – E da cidade, você lembra? Era uma cidade pequena? Como que eram as ruas?
R – A cidade era pequenininha, era uma saída só. Era pequeno. Todo mundo conhecia a vida de todo mundo, aquela coisa. Era isso.
P/1 – E até os 18 anos, você só ficou estudando ou chegou a trabalhar também?
R – Trabalhei também, em casa de família. Aí, até 18 tive que ficar, porque lá não tinha como ficar de maior. Aí, saí, aí fui trabalhar em casa de família.
P/1 – Fazendo faxina?
R – É.
P/1 – O que que você fazia nas casas das famílias?
R – Limpava lá o chão, fazia faxina. E de lá eu, minha mãe me arrumou... Uma colega da minha mãe arrumou um colégio em Brasília. Maria Auxiliadora chamava o colégio. Aí, eu fiquei lá também por quase dois anos. Também já não aguentava mais ficar presa.
P/1 – Essa escola que a amiga da sua mãe arrumou, era onde?
R – Em Brasília.
P/1 – Você se mudou pra Brasília então?
R – É, foi. Outro colégio.
P/1 – Como que você foi pra Brasília? De ônibus?
R – De ônibus.
P/1 – Você lembra dessa viagem?
R – É, eu achei bonito, porque eu nunca tinha saído assim. Foi interessante, gostei demais! Nossa, muito bom.
P/1 – Você ia vendo a estrada, as coisas passando.
R – Coisa que nunca tinha visto assim na vida eu vi. Bonito mesmo.
P/1 – E lá em Brasília, você comentou que aí a escola, ficou estudando dois anos?
R – Foi, por aí, por dois anos. Que aí eu comecei a chorar muito, só presa ali também lá dentro. Era de freira, né? Aí, ela foi e me tirou.
P/1 – Sua mãe te tirou?
R – Tirou. Aí, fui de novo trabalhar em casa de família, aí fiquei.
P/1 – Ainda em Brasília ou voltou pra...
R – Em Brasília. Mas era bom lá no colégio, que ensinava muitas coisas, a bordar, alguém queria ser freira ia ser, pintora. Tinha biblioteca assim, se gostasse lá. Na hora do recreio ia pra biblioteca. Bom demais. Era muito...
P/1 – Maria, e pensando, como que você chegou aqui em São Paulo?
R – Aqui, em São Paulo foi por meu irmão que tava trabalhando aqui. Aí, escrevi pra ele falando que eu queria ir conhecer São Paulo. Aí, eu fiquei, fui ficando, e ele morava só num barraco de tábua. Aí, eu vim pra cá.
P/1 – Aqui em São Bernardo que ele morava?
R – Em São Bernardo, é. Aí, ele me chamou, eu vim e fiquei aqui até ontem. Tem 40 e uns tanto.
P/1 – Mais de 40 anos.
R – Exato, é.
P/1 – Vamos lembrar. Quando você veio você foi morar na casa do seu irmão?
R – Isso.
P/1 – Você lembra o bairro aqui de São Bernardo?
R – É... oh, mas tem aquele...
P/2 – Colina, Industrial.
R – Ali na Alameda Dom Pedro de Alcântara.
P/2 – Ah, é Vila São Pedro. Ali é vários bairros juntos. É Vila São Pedro, é Palermo, é Nova Petrópolis.
R – É, Nova Petrópolis. É pro rico, né? Agora a favela já tomou conta.
P/2 – É, as naquele tempo, né? Naquela época era.
R – Só de rico. Então, ele morava por ali mesmo.
P/1 – E aí, quando você veio, começou a trabalhar, como que foi?
R – Aí, eu... Ele falou pra eu fazer o curso de enfermagem. Também foi o que... Eu fiz, mas eu não prossegui, não fui pra frente. Porque eu via muito sangue quando a gente ia no hospital, via o povo assim machucado, aquela sangria toda, falei “Não”. Não aguentava ver aquilo. Aí, depois ele falou: “Você quer trabalhar em casa de família?”, eu fui. Foi aí que eu conheci o querido marido (risos). De janela a porta, de janela a janela.
P/1 – Ele morava perto...
R – Isso.
P/1 – De onde você tava trabalhando.
R – Exato. Aí conheci, logo começamos a namorar, casamos.
P/1 – Aí, quando vocês casaram, vocês foram morar onde?
R – Na favela.
P/1 – Qual favela que era?
R – É do Pai Herói. É Pai Herói, na favela Pai Herói. Lá também é puxado, né?
P/1 – Como que foi essa mudança? Vocês alugaram um barracão? Construíram um barracão? Conta pra gente.
R – Alugamos um barracão na favela. Aí, já começaram assim a aumentar e era da cunhada dele. Aí, não dava pra ficar pagando o aluguel. Aí, depois ele trabalhava numa firma, porteiro. Ele foi, pediu as contas, aí daquele dinheiro ele comprou o barraco. Como é que é aquele lugar que você falou?
P/2 – Colina.
R – No Colina. Compramos na Colina, o barraco. Aí, foi o tempo que as meninas da habitação... Nós ficamos lá por muito tempo, morando na beira do esgoto, aquela coisa toda, junto com os ratos. Rato mais tomava conta do que a gente. Aí, graças a Deus apareceu as meninas da habitação: “Dona Maria, a senhora vai ter que sair daqui”. Aí eu fiquei meio triste: “Mas por que que eu tenho que sair daqui?”. Mas também tava na beira do esgoto. “É que nós vamos pagar o aluguel.” Aí foi o tempo que nós saímos de lá, estamos aí...
P/1 – Antes um pouquinho de chegar aqui, então, a habitação chegou. Tinha muita chuva, enchente?
R – E muita.
P/1 – Tem alguma que você quer contar pra gente, que foi marcante?
R – Foi, parte do barraco, né, foi um bocado. Tinha cachorro, um pitbull. A água ia levando com tudo, tudo assim que a gente tinha. A janela também. Caiu um bocado de coisinha.
P/1 – Aí levava tudo que tinha dentro do barraco?
R – Tudo que tinha ali. E passava tudo quanto é imundiça lá. Nem queria ver, tava lá, aquela porqueira lá.
P/1 – Era o esgoto que descia?
R – Exato.
P/1 – E como é que vocês faziam pra reconstruir?
R – De novo, né, arrumava tábua, construía tudo de novo, piso. Aí, depois vem de novo chuva. O teto já tava tudo rachado. E foi isso, tinha que arrumar pedaço de madeira, isso, aquilo outro, pra poder por emenda de novo. Aí, vinha de novo chuva, lá vai coisa de novo. Era duro, viu?
P/1 – E colchão, os eletrodomésticos?
R – A assistência social até deu uma vezes, colchão, comida também deram, que foi a água arrastando tudo.
P/1 – E aí depois de passar muito tempo, elas chegaram e fizeram uma proposta pra vocês?
R – Exato, fizeram uma proposta.
P/1 – Explica pra gente como que era a proposta.
R – É assim, eu não acreditei que sempre passava um que ia fazer, como é que é?
P/2 – O cadastro.
R – O cadastro. Eu não acreditava muito não. Mas um dia a Rose bateu lá e falou: “Hoje a senhora vai ter que procurar uma casa, um lugar pra morar”. Eu falei: “Mas como? Pagar aluguel?”. Não tinha jeito. Ela foi e falou assim: “Não, nós vamos pagar auxílio aluguel”. Todo mundo dali saiu.
P/1 – Aí vocês foram pra qual lugar?
R – Foi lá pro Alto Industrial. Aí foi uma casa melhor, chique. Eu, pra mim, era chique.
P/1 – Como que era essa casa?
R – Tinha cerâmica, casinha de dois andares. Os 300 deu pra poder pagar. Até ali tava dando. Aí, depois de novo, aí começou as reunião dos prédio, aí falei: “Graças a Deus, vai sair”. Dito e feito. Esperei, nem dois anos esperei. Pagando aluguel com auxílio, aí dois anos esperando, daí a pouco nós saímos de lá. Foi uma glória.
P/1 – Quando que você se mudou pro condomínio?
R – Em abril, 26 de abril, ano retrasado. Já vai fazer dois anos agora, aí. Foi bom, tá sendo bom até agora, né? Maravilha.
P/1 – O que você sentiu quando você entrou no apartamento?
R – Ah, eu falei: “Agora sim, minha vida vai mudar”, e como de fato mudou, tá mudando muito. Ainda não deu pra por o piso, essas coisas. Passamos a tinta no chão, a tinta já tá saindo, mas eu falo: “Mas aqui eu tenho uma chave, tenho um lugar que eu posso falar que é meu”. Minha filha mora e meus netos também, duas netas. Vamos levando.
P/1 – Quatro pessoas moram?
R – Cinco. E fora o final de semana que vem a netaiada toda, aí junta oito pessoa lá dentro. Mas cabe, né, todo mundo.
P/1 – O que que tem dentro do apartamento, que você já...
R – Ah, não tem muita coisa assim não.
P/1 – Tem sofá...
R – Tem um sofá ganhado e hoje eu ganhei um melhor ainda. Vou jogar o feio fora (risos). Tem televisão, a geladeira, um forninho, agora o microondas, a máquina, guarda-roupa que a minha filha conseguiu comprar, e tem o usado também, que eu ganhei. Vamos levando. Muito bom e eu gosto, bom demais. É isso aí.
P/1 – Sua filha gosta, as suas netas.
R – Gosta, bastante. As netas também.
P/1 – Elas estudam aqui perto?
R – As meninas estudam aqui, no Benedito. Uma neta, que tem seis anos. A de quatro é no Euclides.
P/1 – Maria, você falou que a sua vida mudou muito.
R – Bastante.
P/1 – Você consegue pensar em que sentido ela mudou? Em que coisas ela...
R – Primeiramente em segurança, que lá eu não tinha segurança de nada. Às vezes era tiro. A sujeira. Assim, outras pessoas que eu conheci, a mente melhor. Às vezes a minha estava tapada, aqui eu aprendi muita coisa, a conviver com outras pessoa assim, diferente. É isso aí.
P/1 – A Nilza aqui tá do meu lado, fui perguntando tanto. Você pensou em coisas, Nilza, que a gente pode acrescentar, pra Maria contar?
P/2 – Pensei em alguma coisa triste que a senhora viu lá onde a senhora morava.
R – Ah, lá o que tinha, matava gente. Tinha um outro também, tinha umas cinco crianças, eu ficava triste que ela bebia e o marido - não, não é falando mal da vida alheia. Assim, a gente via ali na beira do esgoto aquela... Era o retrato da pobreza, né? Aí, ficava triste. Ou então, quando matava assim, as pessoas, né? Aí, é gente que a gente conhecia, os meninos assim. Mas aqui já é diferente.
P/2 – Agora tá sossegada?
R – Hoje eu tenho endereço. Eu tenho endereço que eu posso escrever pras pessoas, que antigamente eu não tinha nem uma conta de água, nem de luz. Tinha… “Onde você mora? Qual o endereço?”, nem endereço. “Mas como?”, “Não tenho endereço”. Hoje eu já escrevo pra eles. Olha, eu falo que eu moro em apartamento, eles falam: “Que chique!” (risos).
P/1 – Pensei só numa outra pergunta. Que diferenças e semelhanças você vê entre Minas Gerais e São Paulo?
R – É muito melhor São Paulo.
P/1 – Por quê? Em que é melhor?
R – Aqui, pra mim abriu a porta da felicidade, casei, marido bom, nervoso, mas vai levando. Tenho os netos, os filhos, eles estão todos aqui. Os filhos nasceram aqui. Eu gosto demais daqui. Lá em Minas Gerais não tinha muita saída com muita coisa, e aqui tem. A gente passa mal aqui se quiser. Muitas coisas boas aqui tem.
P/2 – E as coisas aqui são mais próximas do apartamento aqui do que lá onde a senhora morava no Colina, ou lá era mais fácil as coisas?
R – É a mesma coisa, porque o posto tá perto, hospital, tem supermercado, tem os amigos, as pessoas que eu conheci aqui. Gente melhor ainda que eu conheci aqui, muita gente boa. Eu gosto. Gente de todo lugar assim do Brasil passei a conhecer melhor. Que eu ficava fechada assim, sem conversar com ninguém, não abria a bocona pra falar, mas hoje eu falo mesmo. Me perguntam se eu gosto daqui, eu falo: “Gosto demais!”.
P/2 – Eu queria saber o que a senhora sentiu quando as meninas da habitação chegaram e falaram que a senhora tinha que vir pra cá?
R – Ah, aquilo ali...
P/2 – Porque lá tem projeto também, de urbanização.
R – Lá no Colina?
P/2 – Isso.
R – Mas assim, uns falaram: “Ah, não vai não, fica no aluguel”. Você tá dizendo de onde eu morava pra vim aqui?
P/2 – Porque lá tem projeto de urbanização. Então o pessoal de lá veio pra cá, muita gente veio contrariada, não sabiam o que iam encontrar, ficavam com medo que aqui também era mal falado.
R – É, você falou tudo o que eu senti. É, foi isso mesmo. Falei: “Ai meu Deus!”. É, o povo falava muito mal daqui. Diz que era uma bandidagem, não sei o que é. Aí, encontrei com a Dona Efigênia, falei: “Vamos, Dona Efigênia, vamos pra lá pra ver como é que é” “Ah, eu não vou não”, ela falava. No fim ela veio, né?. Mas eu gosto, daqui eu não tenho como me queixar. Que lá também diz que agora tá é ruim. Assim fala o povo. Eu não sei, nem fui lá depois.
P/2 – Aqui tá tão bom, a senhora não quis voltar mais lá?
R – Não, não fui mais. Nem sei como que tá, sinceramente. Eu voto por lá, mas não interessei mesmo de ir.
P/1 – Maria, acho que a gente vai encerrar. Se a Nilza tiver mais alguma questão.
P/2 – Não, era só isso mesmo. É que eu não sabia que eu podia perguntar. Achei que eu tinha que ficar e só no final que eu podia falar.
P/1 – Não, superlegais as perguntas que...
R – Eu não canso de falar, né?
P/1 – Muito obrigada por ter contado sua história pra gente.
R – Abri o coração pra Jesus. Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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