Projeto Rhodia no Brasil: Uma História de Inovações
Realização Museu da Pessoa
Depoimento de José Paschoal Rossetti
Entrevistado por Rosana Miziara e José Carlos Vilardaga
Campos do Jordão, 12 de dezembro de 1998 - Hotel Leão da Montanha
Código: RHF_HV014
Transcrito por Stella Maris ...Continuar leitura
Projeto Rhodia no Brasil: Uma História de Inovações
Realização Museu da Pessoa
Depoimento de José Paschoal Rossetti
Entrevistado por Rosana Miziara e José Carlos Vilardaga
Campos do Jordão, 12 de dezembro de 1998 - Hotel Leão da Montanha
Código: RHF_HV014
Transcrito por Stella Maris Scatena Franco Vilardaga
Revisado por Joana Beleza
P/1 – Bom, senhor Paschoal, para começar, se o senhor puder falar seu nome inteiro, o ano em que o senhor nasceu, em que local...
R – Meu nome é José Paschoal Rossetti, eu nasci em 18 de setembro de 1941, na cidade de Itapira, interior do Estado de São Paulo.
P/1 – Sua família era de lá já? Por que é que o senhor nasceu lá? Já moravam lá?
R – O meu pai, o Donato Rossetti, e minha mãe, Josefina Rossetti, possuíam um hotel entre a cidade de Itapira e Águas de Lindóia, que se chamava Hotel Cristália, porque eles descobriram lá uma fonte de água mineral, e a partir desta fonte eles desenvolveram esse negócio. E até hoje existe a Água Cristália, é o nome de uma empresa de ônibus da região, mas não sei por que é que chama assim, e o hotel acabou se transformando numa clínica de repouso e de tratamento de pessoas viciadas em drogas, em alcoolismo e coisas dessa natureza. O hotel perdeu o interesse como hotel, quem sabe nos anos 1940 ou 1950 tinha lá algum interesse, mas perdeu esse tal interesse, e não pelas mãos dos meus pais, mas aquilo acabou se transformando nesta tal clínica de repouso. Fica entre Lindóia e Itapira.
P/2 – Não pertence mais à família do senhor?
R – Não, não pertence. Depois até minha família mudou-se para a cidade de Pocinhos do Rio Verde, que aliás não é uma cidade, é uma pequena vila no sul de Minas, perto de Poços de Caldas, eu ainda muito pequeno, e foi ali em Pocinhos do Rio Verde que eu passei a minha infância. De menino... de um vilarejo de Minas Gerais. Dali, me colocaram num colégio interno em Poços de Caldas, dos irmãos Maristas, pra onde eu fui com 8 anos de idade e de onde eu saí com 18. Fiquei 10 anos em internato e mais para frente em regime de semi-internato, onde adquiri alguma formação humanística e de peso para a época, que eram colégios muito bem conduzidos, numa época que era difícil ter escolas de segundo grau em cidades pequenas. Então as pessoas, os meninos eram mandados. E as meninas também para colégios... internatos, como a gente chamava. Eu fui um deles e fui pra um desses internatos.
P/1 – O senhor tem irmãos?
R – Não. Eu tive um irmã e uma irmão falecidos muito pequenos. Um, inclusive, logo após o nascimento. E acabei ficando único. E isto talvez tenha facilitado a minha formação, porque os meus pais não tiveram que dividir os recursos que tinham entre vários filhos. Concentraram tudo. Felizmente pra mim, né? Por isso eu fiquei num colégio na época de muito boa reputação e muito boa qualidade. Como a Congregação dos Irmãos Maristas na época tinha uma forte influência francesa, eram os (Petits?) Frères de Marie, da Congregação dos (Pequenos Irmãos de Maria?), e havia no nosso colégio alguns irmãos Maristas que tinham tido formação na França, e tinham dois, inclusive, franceses de origem - o francês e não o inglês era a língua das pessoas educadas naquela ocasião. Nos anos 1940 e 1950, era importante falar francês, mais do que o inglês, para a cultura brasileira da época, né? E o nosso colégio nos proporcionava isso. Líamos literatura em francês, aprendíamos a língua desde meninos quando entrávamos no colégio, e de certa forma saíamos dominando o francês. De uma forma, para a época, acho que razoável. Quando eu deixei o colégio interno e fui estudar em São Paulo, procurei trabalho e um primo meu, já falecido, chamado Antonio Rossetti, apelido de família Nico, isto vem de Antonico, diminutivo italiano, era o Nico, ele era chauffeur de um diretor da Rhodia. E eu fui para a casa deste chauffeur, um homem simples, morava em Santo André, um bairro operário. Como toda a minha família é constituída de gente muito simples, apesar de eu ter feito o tal colégio interno, o papai era um colono, vindo para o Brasil em porões do Brasil, tanto ele quanto mamãe...
P/1 – De que lugar eles eram?
R – Papai era da Província de Lecce, são do sul da Itália. Gente muito simples mesmo. Papai era um camponês que sabia muito bem lidar com a terra, ainda que com tecnologias rudimentares. Mas fazia isso bem feito. E esse Nico era filho de um irmão do papai, Santo Rossetti. E a família toda era de gente simples, que alguns conseguiram empregos como operários de fábricas, outros continuaram na lavoura, né? E esse primo meu era chauffeur lá de um diretor da Rhodia, chamado doutor Jean Pierre Avril, chegou a ser presidente da empresa. E falou de mim para esse diretor. Eu não sei bem o que é que o Nico falou, mas acho que isso me promoveu e esse presidente quis me conhecer e fez comigo uma entrevista em francês. E eu não sei como é que eu me saí nesta entrevista, eu não me lembro bem, mas eu sei que não se falou uma palavra em português naquele encontro. E ele me disse que procuraria um emprego para mim na empresa. E eu fui mandado para o Departamento de Especialidades Farmacêuticas da Rhodia, onde comecei ali como escriturário, preenchendo fichas de propagandistas-vendedores que faziam visitações médicas.
P/1 – Mas foi o primeiro emprego do senhor saindo do colégio?
R – Foi o meu primeiro emprego e eu não sabia para que é que eu tinha sido entrevistado em francês, que em momento algum eu usei isto na Rhodia, o tal francês. [Risos]. Mas ganhei o emprego e lá fiquei.
P/1 – O senhor tinha que idade mais ou menos?
R – Eu tinha 18 para 19 anos.
P/1 – Então, quer dizer, o senhor saiu do colégio interno, veio pra São Paulo na casa do Nico...
R – Para fazer Faculdade de Direito, que eu era uma pessoa que tinha facilidade de expressão, tinha uma redação bastante razoável, gostava de artes, de letras, de escrever e Direito seria um caminho natural pra pessoas que tinham esse tipo de talento, de capacitação. As profissões eram o Direito, a Medicina e a Engenharia. E era isso. Mas, como eu consegui esse emprego em Santo André, o destino me levou para Santo André. E acabei morando na casa desse meu primo por algum tempo e trabalhando na Rhodia. Bem, papai e mamãe, o filho era único, resolveram mudar-se para Santo André, atrás do filho. Na época era isto muito comum, e tínhamos muitos familiares também em Santo André. Tinha o tio Cesarino, tinha esse tio Santo, enfim... fui pra lá, papai e mamãe foram e com isto acabei me radicando em Santo André. Bem, ficava difícil eu fazer uma faculdade de Direito em São Paulo porque eu era uma pessoa que tinha que me sustentar. Tinha uma formação boa vindo do tal colégio interno, mas de repente eu tinha que me sustentar, eu não tinha o mesmo padrão de vida que os meus colegas de colégio tinham, que eram filhos de famílias geralmente ricas e muito abonadas. Eu era uma exceção àquilo. Então eu tive que trabalhar. Papai e mamãe já com idade um pouco avançada, porque quando eu nasci mamãe tinha 40 anos, né? Quando eu tinha lá os meus 18 anos, 18, 19, digamos 20, a essa altura mamãe estava com 60. E 60 anos àquela altura, naquela época, as pessoas sentiam mais essa idade do que hoje. A vida era mais dura, a vida era mais bruta e envelhecia as pessoas de uma forma muito mais rápida. Mamãe era uma senhora, demonstrava isso. E papai também. E lá se foram eles... e eu falei: “Não, fiquem comigo que eu conseguirei sustentá-los”. E assim se fez. Bom, como tinha em Santo André uma faculdade de Economia eu virei de Direito para Economia, uma Faculdade Municipal de Ciências Econômicas. Estudava à noite e trabalhava de dia. Nesta faculdade, entraram também no vestibular algumas pessoas, jovens que eram da Rhodia, como o Mariano Danilo Caratin, que era um contador geral da Rhodia. Ele foi o meu colega de classe e outras pessoas que depois vieram a trabalhar na Rhodia até por indicação minha a essa altura, como o Farid Nasser Chedid, que foi meu colega de classe. Bem, eu acabei gostando da Economia que eu nem sabia o que era e para que servia...
P/2 – O senhor nem chegou a prestar Direito, nada disso?
R – Nada, nada disso. Fui lá direto pra essa tal Escola de Economia. E te confesso que isso me... não foi legal, não era bem o que eu queria, mas foi para onde a vida me levou. Na faculdade, talvez eu tenha tido um desempenho bom, não sei, acho que sim. Sempre muito aplicado, com notas muito boas... e comecei dentro da Rhodia a progredir.
P/1 – Mas como é que era esse convívio na faculdade? Com os amigos... fora o curso, assim?
R – Tínhamos duas únicas moças na classe, uma se chamava Neuza e a outra se chamava Donina. Era raríssimo ter moças na classe, éramos todos homens, moços, e tínhamos um convívio de rapaziada que saía de Santo André nos fins de semana e vinha a São Paulo, numa época em que ir a São Paulo significava ir à Avenida São João, frequentar os cinemas da Avenida São João, que absolutamente não tinham nada a ver com o tipo de filmes que passam hoje, tinha lá o restaurante Bhrama na esquina da São João com Ipiranga... Era essa a nossa vida. Bem assim. Voltávamos no trem de subúrbio para Santo André, no final lá do nosso passeio a São Paulo. Fora isso estudávamos e nos dedicávamos aos estudos na época com muita vontade, porque era onde a gente se agarrava para poder subir na vida, crescer, ter alguma coisa além daquilo que tinha até então. Bem, termino a faculdade e na Rhodia eu já estava numa posição diferente daquela em que eu iniciei o trabalho lá...
P/1 – Como é que era isso que o senhor fazia no começo?
R – Era tudo à mão, tudo à mão. Existiam, obviamente, máquinas de escrever, mas eram raras as máquinas elétricas, elas eram manuais. E as máquinas de cálculo era a Facitt manual, uma “Facittzinha” que você virava uma manivela ao lado direito da máquina e teclava ali aquelas teclas duras de uma máquina mecânica, pesada. Facitt. E era tudo manual, a gente fazia essas coisas manuais. E eu talvez tenha tido mais sorte na empresa devido à minha facilidade de escrever e de produzir relatórios e de me comunicar. E depois eu juntei isso com o conhecimento de economia, de administração, de finanças, que na época eram disciplinas muito mais interrelacionadas do que hoje. E essas duas coisas. O fato de ter feito uma faculdade que não era comum na época e de dominar bem e fluentemente o português, numa empresa que valorizava muito isso, a produção de relatórios... eu comecei a me destacar um pouco, não sei. E virei subchefe de seção. Na época era uma estrutura muito piramidal, do topo à base, com denominações bem do tipo modelo burocrático, estrutural... era diretoria, dos departamentos, as divisões, as seções, né? E eu virei um subchefe de seção, que era o primeiro degrauzinho. A seção de propagandistas de medicamentos. Havia no Brasil um número grande de propagandistas de medicamentos que visitavam os médicos promovendo os remédios, as Especialidades Farmacêuticas da Rhodia. E eles faziam relatórios de despesas, de viagens, de visitações médicas. E esta seção cuidava destes registros e do acompanhamento destes vendedores. Chamavam-se PVs, propagandistas-vendedores. E os chefes deles chamavam-se CRPVs, chefes regionais de propaganda e venda. Entre os PVs e os CRPVs, tinha o Sub CRPV. [Risos]. E na seção tinham os escriturários, o subchefe da seção, o chefe da seção... [risos]. E de repente eu virei chefe da seção, porque tratava-se de escrever cartas pra esses propagandistas, a comunicação era por carta postada no correio. Demorava lá 15 dias pra chegar uma carta que você escrevia, e outros 15 para ele te responder. Tínhamos comunicação telefônica, mas era dificílima e muito onerosa, então a carta era o elemento vital da comunicação empresarial. E a minha sorte é que eu escrevo direitinho e aprendi isso. Isto me facilitou a vida, imagina você!
P/2 – O conteúdo dessas cartas era...
R – O conteúdo era comunicação, desde que algumas despesas deles tinham sido glosadas, porque abusivas... [risos]. Outra coisa que se comunicava era que o número de visitas do mês não tinha atingido a cota, onde é que eles tinham andado que não visitaram tantos médicos? [Risos]. Outro é que estávamos remetendo a eles as amostras grátis pela empresa rodoviária tal, na encomenda tal, e que ele deveria... A outra coisa é que as amostras que ele distribuía aos médicos não totalizavam as que tinham sido remetidas, onde é que ele tinha colocado? Faltavam as tais amostras. Era, enfim...
A gente se comunicava. Outras cartas já remetiam déplian. O déplian era um folder de duas páginas. Esse déplian, a impressão que eu tenho é que porque tinham duas páginas, chamava-se...
P/1 – Que é abertura, não é?
R – Isso, uma coisa assim. E mandávamos isso. A correspondência era assim. Muito bem, e aí eu virei o tal chefe dessa seção. Bom, e aí tinha uma outra seção que era mais importante que essa, chamava-se seção comercial. Esta já lidava mais com registros de vendas, isto, aquilo... e de subchefe da seção propagandista eu fui para escriturário da seção comercial, ou vice-versa... eu perdi esse detalhe, eu não me lembro. Bom, e aí fiquei ali crescendo, né? E ganhando lá os meus vencimentos, e muito feliz com aquilo, até que num dado momento eu me formei economista.
P/2 – Isso em que ano?
R – 1964. E de novo porque eu falava direitinho, porque eu escrevia direitinho eu fui orador da turma. E essas coisas todas na época somava. Uma pessoa que conseguia, por causa desses atributos, um destaque, uma diferenciação. E a diferenciação é importante ainda hoje. Qual é o seu diferencial competitivo? O meu era escrever direito. E isso me bastou para muitas coisas, não é? E lá fui eu, formado. A Rhodia fez uma reestruturação organizacional e o Departamento de Especialidades Farmacêuticas, que era conduzido até então pelo senhor Maratine, passou a ser conduzido pelo senhor João de Carvalho e o senhor João de Carvalho buscou quatro assessores para o seu staff. Esse assessor ele tinha um nível mais alto que o das seções e divisões. Ele buscou um assessor de contabilidade, Mariano Caratin.
P/2 – Colega de turma?
R – De turma.
P/1 – De banco?
R – De banco. Ele buscou um assessor comercial, o nome, Pedro Luís, o assessor comercial. O assessor de propaganda, que foi o senhor Valentim Valente, e o assessor técnico científico, Enock Fernandes Sacramento. E um assessor de planejamento que foi eu. Então ele tinha uma assessoria comercial, de propaganda, como se chamava na época, uma assessoria contábil, uma assessoria técnico-científica e uma de planejamento. E esse planejamento ficou comigo. E ali eu tinha duas divisões a meu encargo. Uma divisão de orçamentação e custos e levantamento de resultados por produtos etc, e uma seção de pesquisa de mercado. Por que é que isso ficou comigo? É porque vem outro diferencial competitivo, veja como isso é importante na vida. Além do português eu tinha facilidade com estatística e matemática. Juntei as duas coisas. A essa altura, para ser o chefe de divisão de pesquisa de mercado eu contratei um colega meu de turma, indiquei para a Rhodia, ele foi contratado: Farid Nasser Chedid, que foi meu... na época a gente chamava funcionário, tinha toda a hierarquia... e um rapaz que se não me engano chamava... Não me lembro, talvez Delair, mas não me lembro, que era o chefe da outra tal divisão minha, a tal de orçamento, aquilo, aquilo... Muito bem, para surpresa minha eu fui também convidado por um professor meu de Economia, já falecido, de nome Jamil Munhoz Bailão, a ser uma espécie de assistente dele na Universidade.
P/1 – Na Municipal de Santo André?
R – Não, na Universidade Mackenzie, em São Paulo. E eu comecei, vinha à noite a São Paulo, duas vezes por semana, ser assistente do professor Jamil. Isto já é 1965. 1965 para 1966. E a facilidade de comunicação fez a diferença de novo. Estou eu lá começando a dar algumas aulas na ausência do professor Jamil. E a facilidade de redação fez outra diferença, as aulas eu dava e preparava apostilas para os alunos. A Universidade acaba me contratando para ser uma espécie de professor assistente, um troço assim. E já remunerado, já mantendo um vínculo empregatício com a Universidade numa época em que os cursos de mestrado, de doutoramento etc não eram usuais, mesmo na Universidade de São Paulo. As pessoas ascendiam à Universidade para dar aula pelas suas qualificações pessoais e aprovados ou não na sala de aula, e tocavam a vida. Foi o meu caso. Em 1967 eu tinha um conjunto de apostilas preparadas para um curso introdutório de economia, todas de minha autoria. E um editor, Editora Atlas, seu Luís Hermann descobriu essas apostilas e disse que aquilo poderia se transformar num livro. Eu não imaginava que isto poderia ser feito e nem fiz com esta intenção. Em 1968 eu libero essas apostilas para publicação, o livro sai em 1969 no mês de abril, portanto já vai quase 30 anos aí, e em agosto a primeira edição estava esgotada. A essa altura eu não sabia mais qual era a minha identidade profissional. Eu vivia, com honestidade, uma crise de identidade profissional. Uma crise forte. Eu não sabia se eu era um professor universitário, um autor de livros... não sabia isto. Ou se eu era um executivo de empresa, não é? E num dado momento as duas atividades começaram a competir entre si. Competiram fortemente, não era mais possível ir com as duas.
P/1 – Não estava dando mais para conciliar?
R – Não. E a identidade em crise, eu não sabendo bem o que fazer, a esta altura já casado, já com o meu primeiro filho ou segunda filha, Carolina, acho que sim, os dois filhos. Num dado momento eu tomo uma decisão, a decisão de deixar a Rhodia. Era moço, estava entre 20 e 30 anos, indo mais para 30 do que para 20, uma carreira interessante na empresa, as pessoas, acho que admiravam o trabalho que eu fazia, eu fiz muitas inovações para a época.
P/1 – Quais inovações o senhor fez?
R – Na Rhodia? Olha, primeiro que desenvolvi alguns modelos estatísticos, matemáticos, para a definição de trajetórias de vendas e de potenciais de mercado.
P/1 – Como é que era isso? Dá pra você explicar um pouco?
R – Olha, era com base em métodos estatísticos muito simples, de regressões, de funções lineares e não lineares, fazíamos essas regressões numa época em que a descontinuidade não era a característica maior do mundo dos negócios, a competição não era tão acirrada e os produtos com um grau menor de competição em torno deles tinha um desempenho muito mais, digamos, normal, menos descontínuo do que hoje. Então era possível aplicar esses métodos e fazer essas visões de futuro, um planejamento de prazo mais longo, mais médio. Com isso, conseguimos planejar de uma forma um pouco mais estruturada, a partir das vendas, os suprimentos para o processo de produção e aquilo acabou se transformando numa instrumentação de projeção do futuro e de organização interna da empresa para poder tender as metas futuras que haviam sido planejadas. Quase sempre acertávamos com muita... quase precisão, essas metas estabelecidas, distribuíamos essas metas pelo território nacional, por regiões, sub regiões, foi tudo um trabalho que se iniciou com a tal assessoria de planejamento que o senhor João de Carvalho criou. E como não tinham muitas pessoas que dominavam lá as tais técnicas estatísticas, era uma empresa mais de farmacêuticos do que propriamente de economistas ou estatísticos ou engenheiros eu acabava sendo a referência que dominava aquelas encrencas lá. Depois juntamos isto com pesquisa de mercado, que eram fornecidas por instituições que faziam isso no país e davam lá os livros dos resultados, aí juntávamos as duas coisas. Tínhamos a visão nossa, de nosso desempenho e o desempenho da concorrência.
P/2 – Pesquisa de mercado da própria Rhodia?
R – Não.
P/1 – Era terceirizado?
R – Não era terceirizada, não existia essa palavra. [Risos]. Era uma empresa que produzia os documentos de pesquisa e fornecia a todos os laboratórios que os quisesse comprar.
P/1 – Geral, ela produzia e quem quisesse comprar solicitava à empresa?
R – Era uma espécie de Instituto Nielsen da época. A Nielsen pesquisa os produtos e se você quiser ter acesso a eles você compra a pesquisa. Era uma coisa deste tipo. Outra coisa, começamos a calcular o resultado econômico por produto.
P/1 – Isso não tinha na Rhodia até então?
R – Não tinha. E enfim, estávamos inovando e produzindo materiais interessantes. Depois eu comecei a fazer já leituras da situação econômica do país, naquilo que influenciava os negócios da Rhodia. Algumas das minhas apreciações sobre a economia brasileira, impactantes, elas deixaram de servir apenas ao Departamento de Especialidades Farmacêuticas porque tinha uma abrangência maior, e com isso eu comecei a ter acesso a outros departamentos do grupo Rhodia. Exatamente quando a Rhodia começava a me ver como um executivo que poderia ser aproveitado para uma abrangência maior eu chego ao senhor João de Carvalho e anunciei a ele que eu estava saindo da empresa. Uma coisa que ninguém entendeu, nem eu mesmo, não entendo até hoje como é que eu tive coragem para fazer isso daí, porque eu estava casado, tinha meus...
[PAUSA]
R – Então essa crise de identidade até hoje eu não entendo como eu tive coragem de demitir-me, pedir demissão. O seu João de Carvalho na época não entendeu também, ninguém entendeu o que é que eu pretendia da vida...
[PAUSA]
R – Aconselharam-me a pensar melhor, acenaram-me na ocasião que eu deveria fazer estágios nas Usine du Rhone, e depois quem sabe até, se fosse de meu agrado, transformar-me num executivo mais amplo do grupo. Eu dizia: “Não, mas não é o que eu quero. Eu vou seguir a carreira universitária. Eu vou escrever livros, eu serei consultor de empresas para o ambiente econômico”. E me disseram: “Você vai morrer de fome.” Não foi apenas dentro da Rhodia que eu ouvi essa frase, mas na minha própria casa e junto aos meus amigos. A essa altura o senhor Pedro Luís já tinha deixado a assessoria comercial, em seu lugar foi nomeado o senhor Antonio Carlos Rizzo, o senhor Valentim Valente já tinha se aposentado e assumiu o lugar dele o João Forniero, a equipe já não era mais a mesma, o Mariano Caratin tinha deixado a assessoria de contabilidade restrita à Departamento de Especialidades Farmacêuticas e assumiu um posto junto à Direção da Rhodia como um todo e aquela equipe de jovens... eu continuava fazendo parte dela, e as aulas minhas na Universidade se ampliaram muito, eu passei a lecionar também na PUC de São Paulo, na Fundação Getúlio Vargas, eu lecionei nestas três escolas durante bastante tempo...
P/2 – Que disciplinas o senhor lecionava?
R – Eu lecionava sempre Economia. Varria o campo econômico. Introdução à Economia para os cursos de Economia, Administração e Contábeis; Economia Política para os cursos de Direito... a disciplina é a mesma com alguns ajustamentos... Depois acabei me interessando pela área monetária e pela área de política econômica. Muito bem, mas isso eu vou contando aos poucos. O fato é que se encerra aí a minha passagem pela Rhodia. E quando eu saí, o seu João me perguntou: “Mas quem é que você sugere para o seu lugar?” Eu falei: “Olha, eu acho que o turco está bem indicado”. O turco era o Farid. E ele foi indicado para o meu lugar naquela ocasião. Isto foi em 1970, se eu não estou equivocado. 70, 71, alguma coisa assim. Nesse ano nasceu o meu terceiro filho, eu com três filhos pequenos em quatro anos e meio de casado, três filhos. Sem emprego por decisão minha, mas com vínculo na Universidade que pagava razoavelmente naquela ocasião e ganhando direitos autorais porque o meu livro teve...
P/1 – Já tinha esgotado, estava na segunda edição?
R – Já estava na segunda, terceira, era uma edição por ano ou mais, e para vocês terem uma ideia, sem querer atropelar o depoimento, esse livro acabou totalizando o que é hoje a uma coisa próxima a um milhão de exemplares vendidos. É o best seller nacional.
P/2 – Ele continua sendo...
R – Continua sendo.
P/2 – Com as alterações, revisões...
R – Com todas as alterações. Hoje é um livro...
P/1 – É aquele primeiro lá das apostilas?
R – Aquele, isso.
P/1 – Um clássico?
R – É um clássico na área, é um livro que hoje tem 922 páginas e num formato grande, aqueles de livro grande, aquela coisa assim. Isto para simplificar. Quer dizer, no que é que interessa a Rhodia? O depoimento é esse. Uma outra coisa a dizer é que não é só porque foi meu primeiro emprego, mas pelo padrão ético da organização a Rhodia me ensinou muito. Uma empresa ética, uma empresa muito correta em todos os sentidos, uma empresa que me abriu oportunidades de fazer carreira ali.
A entrevista em francês ficou lá no passado, nunca mais eu usei isso aí pra qualquer coisa e o próprio francês foi perdendo com o tempo porque eu não exercitei tanto a língua... Até hoje eu leio muito bem em francês, mas o exercício, a fluência verbal você vai perdendo por não exercitar. Uma empresa que me ensinou a trabalhar, a ter responsabilidade com datas, com produção dos relatórios nas datas que me mostrou como é a luta pelo poder numa organização, como as pessoas que ascendem a posições mais importantes têm que batalhar para preservar essas posições... mas isso dentro da Rhodia era feito sempre com muita honradez, com muita competência aliada ao jeito de ser e ao jeito de fazer as coisas. Era muito importante na Rhodia, naquela ocasião, coisas do passado, mas vale à pena reportar. Você ser PS – o PS era Personal Superieur – era Pessoal Superior. Você ser um PS você tinha acesso ao restaurante mais sofisticado, restaurante de PS’s, de Pessoal Superior. Eram engenheiros químicos, eram farmacêuticos importantes, eram franceses etc. Tinham acesso às visitas mais ilustres que iam à empresa e nos três últimos anos da minha carreira na empresa, quatro últimos, não me lembro bem, eu passei a esta tal categoria. Essa categoria tinha bônus de fim de ano, tinha prêmios, tinha um salário muito bom e tinha acesso a tal restaurante. Aquilo era uma honraria. Eu me lembro até com um certo detalhe a primeira vez que eu entrei no restaurante, eu fui indicado Pessoal Superior então eu fazia parte daquela elite. E ser admitido ali... as pessoas te olhavam nos primeiros dias... As pessoas que frequentavam o restaurante te olhavam: “Poxa, mas isto aqui está ficando um relaxo. Agora até o Paschoal Rossetti está aqui dentro?” [risos]. E as pessoas de fora te olhavam com outros olhos: “Oh, o Paschoal Rossetti!.” Então, nesse clima, até que você se assume como Pessoal Superior e fica todo importante ali e acabou! E vai chegar o dia de você falar de alguém que chegou lá também e: “Oh, mas esse aqui agora? Isso aqui tá relaxado”. Esse restaurante ficava na Valisère e a gente ia pra lá com o próprio carro. O carro nós estacionávamos dentro da empresa, era outra distinção. Você entrava com o carro assim, o porteiro só faltava te bater continência. Você saía com aquele, ia na Valisère almoçar no tal restaurante. E os operários e os funcionários e tal tinham outros restaurantes, era um mundo muito mais estratificado do que é hoje. Não havia aí nenhum tipo assim, de prevalência sobre o outro, de... como é que eu vou dizer essas coisas? Eu não me lembro de qualquer atitude mais preconceituosa ou discriminatória... Aquilo fazia parte da regra do jogo, o jogo era assim.
P/2 – Tinha investimento na formação do funcionário também?
R – O investimento na formação do funcionário a gente fazia uns cursos aqui outros ali, existia isso, a Rhodia sempre procurou isso, mas naquela ocasião isso não era tão forte assim, não, pelo menos não para áreas que não fosse de engenharia e de coisas assim ligadas à produção. Fazíamos lá um curso aqui outro lá, mas eram cursos muitos mais profissionais e de nível duvidoso, do que propriamente coisas mais fundas, não é? Pelo menos até que eu fiquei lá. Para vocês terem uma ideia de como eram as coisas na ocasião, quando nós tínhamos que fazer cópias de relatórios, nós usávamos máquinas de escrever com fita copiativa. Era uma fita roxa que sujava os dedos todos, você punha o papel, batia com aquela fita e depois punha o papel batido daquele jeito numa gelatina animal, feita de insumos animais... é gelatina mesmo. E a tinta passava para a gelatina. Depois você punha um papel em cima da gelatina, esfregava lá com os esfregadores que eu não lembro mais o que é que era e ficava a cópia feita. Se você tinha força no dedo e a fita era nova, você conseguia fazer cinco, seis cópias com aquilo lá. Aí veio o Termofax, que era um trem que tirava cópia com um papel especial queimado, parecia uma coisa marrom queimada. E fazia coisa naquelas tais coisas. Daí a uma semana já você não lia mais. [Risos]. Aí inventaram o estêncil, que você batia sem fita. É um papel que o tipo da máquina perfurava, aí naquele perfurado você punha no estêncil e passava a tinta por aquilo e imprimia. Na manivela! Ah, depois inventaram estênceis elétricos e produzia aquelas cópias com mais velocidade. Era assim. Um dia chega à Rhodia, já quase na época de eu sair de lá, um computador, que nós chamávamos de cérebro eletrônico. Os relógios todos tinham ponteiros! Relógio sem ponteiro é coisa mais recente, os digitais. E veio esse computador “360” da IBM. Esta nossa sala aqui tem o quê? Oito por seis, não sei. Pois o computador tinha este tamanho. Era uma parafernália de fios e de coisas. Uma astronave! E na outra sala as máquinas de perfurar cartões. E a gente ficava maravilhado com aquilo. Como é que pode um cartão perfurado com um furo reproduzir-se a uma velocidade incrível e tal, a gente achava aquilo. Mas nessa época de novo eu deixo a Rhodia, vou para a Universidade, monto lá um escritório meu, passo a trabalhar com empresas de grande porte produzindo relatórios sobre a economia do país, os meus livros de economia começaram a aumentar em títulos porque eu me dediquei muito a isto, esses livros... as pessoas achavam que eu conhecia Economia porque eu escrevi os livros, e mais e mais empresas solicitavam pelo meu trabalho no campo econômico.
P/1 – Isso você dando consultoria? Um escritório de consultoria?
R – De consultoria em Economia. O interessante é que quando eu dava aula na Universidade, as pessoas me perguntavam onde é que eu trabalhava, porque dar aula era uma espécie de um bico para as pessoas: “Tá bom, você dá aula mas você trabalha onde?” E depois que eu deixei de trabalhar – que eu trabalhava na Rhodia, e montei meu escritório de consultoria, as pessoas continuaram perguntando: “E onde é que você trabalhava?”. Quer dizer, na visão das pessoas eu nunca trabalhei, porque eu fui um consultor e um professor. E trabalhei duro, 18, 16 horas por dia ininterruptamente, para escrever os meus livros e para... e passei a ser uma pessoa conhecida. Acho que no país inteiro não tem quem tenha estudado Economia e que não tenha lido um livro meu. É muito difícil você encontrar alguém que tenha feito um curso de Economia e que não tenha lido alguma coisa que eu escrevi ou algum livro meu adotado. E com isso uma demanda muito grande pelo meu trabalho profissional. As pessoas acham que porque eu escrevi aqueles livros eu entendo de Economia e me contratam para essas coisas.
P/2 – O senhor desde então tem este trabalho de consultoria?
R – Desde então. Nunca tive nenhum tipo de dificuldade financeira, pelo contrário, um ganho que eu considero até excepcional. Não sei se merecido, porque consultores, palestrantes cobram valores bastante interessantes, há quem pague por isso e eu faço isto até hoje. Hoje eu estou vinculado à Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte, que é uma instituição que nasceu na Universidade Católica lá de Minas e cuja principal finalidade, missão institucional é preparar executivos para esse mundo mais competitivo aí. E os executivos que preparamos vão de presidentes de empresas, que é onde eu atuo mais, até o corpo diretivo de maior expressão. Esse é o nicho de mercado da Fundação Dom Cabral.
P/2 – São cursos voltados para esses...
R – Para esses... Cursos não seria bem a palavra. São ciclos de treinamento de peso no país e no exterior. A vinculação é com o Insead, na França, em Fontainebleau, e com a North Western University, em Chicago. Aí eu volto a me encontrar com o pessoal da Rhodia. Já não se chamam mais “pessoal superior”, mas é o pessoal da alta gerência: o presidente da Rhodia, o Musa, até recentemente agora o Gubrich.... A gente se encontra em vários seminários promovidos pela instituição a que estou vinculado, outros executivos de projeção da Rhodia são também encaminhados para esses cursos, até pela vinculação francesa da Fundação Dom Cabral... E passei a retomar os meus contatos com a Rhodia. Não me esqueci daqueles meus primeiros anos, eles foram importantíssimos – eu repito isso – pra minha formação, mas até hoje não entendo bem. De repente eu deixei aquilo tudo, falei: “Eu vou seguir a minha vida”.
P/1 – E o senhor lembra, dessa época que o senhor começou a desenvolver esses estudos e a estruturar a pesquisa de mercado, de algum produto que marcou época nesses dez anos que o senhor teve?
R – Produto? Da Rhodia?
P/1 – É, algum lançamento, uma planilha que o senhor teve que fazer...
R – Teve alguns produtos da Rhodia que tinham um marketing ___________, na época extremamente expressivo. Ela tinha produtos ginecológicos interessantes como o Flagil e toda a linha decorrente ali do Flagil nas várias apresentações e aplicações. Eu me lembro desse produto com muita... um belíssimo produto, um belíssimo desempenho de mercado. A Rhodia tinha também produtos que se chamava na época de psicotrópicos para doenças mentais... Tinha lá o Amplictil, e Gardenal, que é um produto usado acho que até hoje, se não me engano, não é? Eram produtos notáveis, porque mexiam com a mente, com o cérebro, com o comportamento até das pessoas. Era uma empresa. Alguns antibióticos muito interessantes. A Rhodia associava a penicilina a alguns componentes para evitar choques anafiláticos, penicilina com Fenergan, que é um anti-histamínico. Eu não sei mais esses nomes, eu perdi isto de vista. Mas psicotrópicos, esses anti-histamínicos eram produtos muito importantes. Me lembro bem desse Flagil e me lembro de um produto que surpreendeu a Rhodia e a própria comunidade científica, ele chamava-se Postafen. Esse Postafen era um produto que eu não me lembro bem a que é que ele se destinava, honestamente não. Não sei se era um anti-histamínico ou alguma coisa assim, não sei qual era a finalidade do tal Postafen, mas ele acaba tendo um efeito colateral que por incrível que apreça interessava às pessoas. Esse produto promovia a engorda das pessoas, a pessoa tomava e ficava gorda. [Risos]. E nós não conseguimos entender como é que tinha no mundo pessoas que queriam engordar. [Risos]. Que, exatamente oposto ao comum dos mortais, é não ganhar peso, é ser magrinho. Mas eu me lembro do seu João de Carvalho falando: “Meu Deus, como o mundo é diferente do que a gente imagina, pois tem um mercado enorme para pessoas que querem deixar de ser esqueléticas”. E não tinha a prova científica disso, não tinha literatura comprobatória mas vendeu-se muito Postafen para regimes de engorda. [Risos]. Isso eu me lembro bem, é verdade. Vendeu muito esse tal Postafen, mas já bem perto da minha saída da empresa. Tínhamos poli vitamínicos interessantes, desde o Vitaminer – olha o nome, Vitaminer – era um poli vitamínico e a Rhodia em vitamina pesquisou coisas interessantes, lançou uma vitamina liofilizada para crianças, uma única gotinha na língua, fazia o efeito aí de um produto. Enfim, me lembro assim. Quando eu entrei na Rhodia o Jânio Quadros havia proibido o lança-perfume, estavam proibindo o lança-perfume. O seu João de Carvalho vinha do departamento de lança-perfume, se eu não estou equivocado. “E o que é que nós vamos fazer com essas máquinas que fazem lança-perfume?”. Bom, os engenheiros se viraram para aproveitar aquela estrutura industrial toda e a Rhodia lança um produto parecido com o lança-perfume que era o Rodiasol, um produto mata-moscas, mata-pernilongo, mata não sei o quê. E depois, como os insetos são mais numerosos no verão do que no inverno, no inverno aquelas máquinas ficavam ociosas. As de lança-perfume não, porque você produzia o ano inteiro para vender em três dias, mas inseticida não era assim. Que eu me lembre, ninguém gostava de cheirar inseticida. [Risos]. Muito bem, então o resultado é que lançaram um produto desodorizante de ambiente.
P/1 – Tipo um “Bom-Ar”, assim?
R – Tipo um “Bom-Ar”, isso mesmo. E o ambiente fechado no inverno acaba ficando com um odor menos agradável, umidade, charutos e cigarros e sei lá o que mais, então usava-se o “Bom-ar”, então linearizou as vendas. O “Bom-Ar” no inverno e o mata-moscas no verão. [Risos]. Nada muito diferente da nossa linha de Tussiplégicos, produto para a tosse no inverno e de antidiarreicos no verão. [Risos]. Você lineariza as vendas também. As diarreias do verão e as tosses do inverno, então você tendo produto que vende bem no inverno e produto que vende bem no verão...
P/1 – Antidiarreico tinha o Dienterol...
R – É, alguma coisa assim. Interol acho que não era da Rhodia não.
P/1 – Dienterol, que até o...
R – Dienterol era da Rhodia?
P/1 – Era. O Ziraldo fez a propaganda que era um elefantinho com a fralda.
R – É isso mesmo, um negócio desse aí. Elefantinho com fralda é uma imagem interessante. Claro. Melhor do que um cachorro com rolha. [Risos]. Então eram esses os nossos produtos. Mas todos produtos éticos, produtos feitos com muito cuidado, as pessoas gostavam de dizer que a Rhodia era uma empresa ética naquilo que fazia.
P/1 – E em termos de retorno financeiro, esses remédios? O custo, assim, produção e...
R – Olha, pela forma como nós avaliávamos resultados no passado, uma forma bem menos sofisticada do que hoje, o Departamento de Especialidades Farmacêuticas Humanas era lucrativo. Eu não me lembro que aquilo era condenado por lucratividade baixa. Não era assim. Já as Especialidades Farmacêuticas para uso Veterinário nunca tiveram um brilho tão forte quanto o humano. Ali sim havia alguma dificuldade de se fazer resultados positivos, mas a linha Humana não. Houve uma época até em que eu trabalhei para o Departamento Veterinário, também no Planejamento, para tentar replanejar a linha de mercado dos produtos veterinários, foi um dos produtos também que eu ajudei a fazer na época. E com isso algumas coisas interessantes foram feitas, eu acho, com a ajuda lá dos engenheiros, biólogos, aqueles caras lá, tal, e o Departamento Veterinário conseguiu manter-se em pé, como está até hoje, afinal.
P/2 – O senhor não chegou a pegar o controle de preços?
R – Peguei. Quando o Brasil militar, de 1964 em diante, início dos anos 1970, final de 1960, a inflação brasileira era contida na marra, pelo Conselho Interministerial de Preços, pelo CIP cujo executivo principal era o Chateaubriand Bandeira Diniz, um homem rigoroso, não corrupto, extremamente sério, que exigia da gente demonstrações muito rigorosas de preços, de custos etc... para autorizar aumentos de preços, principalmente produtos farmacêuticos. E sempre tiveram esta pecha de ter uma demanda inelástica e um aproveitamento em cima da inelasticidade via preço, sobretudo produtos éticos, que são de consumo quase compulsório, se deixar a indústria mais livre ela pode cometer aí alguns... eu não sei se abusos mas pelo menos formas de remunerar pesquisas bem agressivo. Muito bem, então eu ia ao Rio levar essas demonstrações, o Farid que me acompanhava nisso, o Farid sempre foi um bom negociador, o próprio... a origem dele é uma etnia de negociação, libanesa, um árabe, ele sempre negociou muito bem, ele conseguia com muita simpatia dobrar os nossos amigos do CIP para às vezes nos autorizar o aumento que vinha sendo pleiteado.
P/2 – O senhor lembra de algum caso desses, não?
R – Não tão claramente, ficou muito no passado isso, detalhes, assim, não. Mas era uma satisfação muito grande nós voltarmos do Rio, do décimo andar do prédio do Ministério da Fazenda que ficava em frente ao Aeroporto ali do Santos Dumont, a gente voltar com a lista de preços carimbada do CIP, significava: “Autorizo, pode praticar”. Isto era para nós um motivo de muita satisfação. Envolvia rigor no cálculo, seriedade na anexação de comprovantes fiscais e também muita habilidade para negociar isto com o governo. Havia dias em que eu saía de casa cedo, tomava o avião, ia para o Rio e na hora do almoço estava almoçando em São Paulo porque faltou algum documento, e à tarde eu estava voltando para o Rio para levar o documento que estava faltando. Porque era uma repartição pública, sempre falta alguma coisa, algum documento. E a gente ia e voltava, ia e voltava, ia e voltava. Os aviões que nós usávamos era o DC4, o DC6, DC8, o _______, o Electra 1... caíram todos, aí inventaram o Electra 2... [Risos]. O Constellation... como caía esse Constellation, o Samurai YS11, o __________, que era um avião com asa em cima, a cabine de passageiro ficava pendurada em baixo da asa, era um avião inglês, até que veio o jato. Aquilo foi fantástico, nós andávamos de jato! Chamava-se Caravel. O Caravel era um jato do tamanho de hoje, digamos, um Foker 100, uma coisa assim, mas que para o processo de aproximação, para o pouso, saía de dentro da asa como se fossem duas tábuas, dois freios que seguravam o avião e ele tremia todo com aquela tabuona que saía de dentro da asa, assim. Ah, era um tempo heroico, você andava nesse trem todo, não é? Uma vez eu com o Farid, num voo, voltando do Rio, tinha um temporal enorme, esse avião não voltava para o Rio porque não conseguia pousar, não tinha condições de vir para São Paulo porque também não pousava e eu não sei o comandante lá eu não sei o que fez, ele ficava vindo pra lá e pra cá até que numa hora tinha que pousar. E num dado momento ele escolheu o aeroporto de Santos Dumont para pousar. Foi um pouso complicadíssimo.
P/1 – Voltou para o Rio?
R – Voltou para o Rio. E lá estava tendo um festival internacional de cinema, eu me lembro disso, os hotéis lotadíssimos e o Farid e eu voltamos para o hotel mas já não havia mais lugar. E eu me lembro muito bem disso. E eu me lembro que no avião todo mundo nervoso, num estado de tensão enorme, o Farid foi sempre uma pessoa assim, muito alegre, muito cordial, muito gozador, ele me chamava de baixinho, não preciso explicar por quê, e ele era o turco e eu o baixinho. E nós estávamos sentados no mesmo banco. Ele estava mais ao fundo e eu na frente, ao meu lado estava o Dino Meneghetti, que trabalhava na GE e que era colega nosso de profissão e tal. Não sei por que eu sentei separado do Farid, vai ver que os lugares, na hora que entramos e tal... Lá de trás o Farid falou assim: “Eh, baixinho!”. Em pleno voo. Todo mundo tenso, sem falar uma palavra e vem aquela voz do Farid no avião, ele falou assim: “Vamos lavar a cueca”. [Risos]. Porque nós estávamos preparados para ficar no Rio, tá? “Vamos lavar a cueca”, ele falou assim. E todo mundo riu, até uma risada para descontrair um pouco, mas uma risada algo forçada, eu me lembro disso. E usávamos a camisa “volta ao mundo” que você lavava e pendurava e não precisava passar e você usava ela na volta então.
P/2 – Que era da Rhodia também?
R – Que era da Rhodia. E naquela vez nós queríamos voltar para casa, não tínhamos roupa, não tínhamos nada, tinha nossa maletinha e pronto, mas não conseguimos voltar para casa porque qualquer chuva, qualquer dificuldade maior não tinha jeito não.
[PAUSA]
(troca de fita)
R – Com instrumentos, com isso, com aquilo, com alternativas, com... E o Farid falou que nós íamos lavar a cueca. [Risos].
P/2 – Mas e em relação com esses conhecimentos, digamos assim, da estrutura econômica da empresa, desse planejamento, isso chegava ao propagandista como, por exemplo?
R – Chegava através de metas. Quais são as metas que ele tinha que cumprir. E nós achávamos que elas eram factíveis, porque respaldadas num modelo quase econométrico, quer dizer, como se a estatística e a matemática falassem mais alto do que qualquer outra coisa, então como o modelo evidenciou que o crescimento era de “x” porcento no próximo período de tempo, esse crescimento se transformava em meta. Eu não sei se por isso ou se porque o cálculo estava correto, a meta era cumprida e todos ficávamos felizes.
P/1 – E o senhor participou, assim, de algum treinamento para esses vendedores?
R – Nós tínhamos convenções nacionais, expúnhamos o método, ninguém entendia nada, mas como era bonito ver aquela metodologia estatística: “Isso aí deve estar certo, nós temos é que cumprir”. [Risos]. E era assim, sem muita negociação. Eram metas definidas pela direção e que “Trate de cumpri-las”.
P/2 – Mas em termos de estratégias de vendas não?
R – Não, não. A palavra estratégia vem muito depois disso. Estratégia é para um mundo de descontinuidades como hoje, em que você é surpreendido a cada instante por um evento inesperado, então você tem que ter toda uma visão estratégica, dos riscos, oportunidades, das suas defesas em relação a eles, das ameaças, das descontinuidades tecnológicas, concorrenciais, de cadeias de suprimentos... Era um mundo muito mais previsível do que o de hoje, então era mais um planejamento de longo prazo que se cumpria por si mesmo do que um planejamento estratégico em que você tem que se posicionar a cada instante numa espécie quase que de guerra, com os seus rivais do mercado. Fusões, aquisições, cisões... nem pense nisso, a época era outra.
P/1 – O senhor lembra, assim, de algum propagandista-vendedor, alguma coisa pitoresca, algum caso?
R – Lembro-me muito bem do Sillas José Negrine, ele era CRPV em São Paulo, ele era gozadíssimo, um homem muito gozado, amigo, fraterno, bom humor e vendedor típico. Não vou falar mal do meu amigo Sillas aqui, que até gostaria de revê-lo, se estiver aqui entre nós ainda, eu quero que esteja, que era uma pessoa notável. O Sillas devia ser desses vendedores que mija na pia do quarto, limpa o sapato com o cobertor e mais ou menos isso aí. [Risos]. Mas era um vendedor, uma pessoa interessante, um farmacêutico formado em Ribeirão Preto, um homem muito interessante, eu lembro muito bem do Sillas por causa disso.
P/1 – Tem alguma anedota, assim, de quando ele foi vender algum produto, fazer, aliás, apresentação para o médico?
R – Não, não. Tinha casos pitorescos e coisas esquisitas que a gente... Tinha um vendedor, que eu não vou... mas não, deixa isto.
P/1 – Ah, é engraçado!
R – Um caso, assim, muito sigiloso. Teve um caso interessante. Faleceu na cidade de São José do Rio Preto um vendedor da Rhodia chamado senhor João Delia e eu não sei por que eu fui encarregado de encaminhar o sepultamento desse senhor, porque eu era lá do departamento de vendedores, de PV’s, né? E não sei porque me incumbiram dessa missão meio complicada. Eu estava visitando o interior do estado, na época e fui alcançado pelo telefone dizendo: “Olha, vá até Rio Preto que o senhor Delia faleceu e encaminhe o sepultamento dele, tudo por conta da Rhodia”. Eu nunca tinha feito isso na vida, os meus pais ainda eram vivos, eu nunca tinha encaminhado o sepultamento de quem quer que seja. Mas estava, salvo engano meu, na cidade de Araraquara, indo para Catanduva, portanto caminho para São José do Rio Preto, era esticar um bocadinho mais. Cheguei lá ainda a tempo de ver a família consternada, aquela coisa toda e tal, e já de cara procurei a melhor funerária da cidade para fazer um sepultamento à la Rhodia, uma coisa de..., né? Então cheguei a tempo ainda de encaminhar as coisas e de ir até a funerária e de encomendar os serviços funerários. E disso eu me lembro pela seguinte passagem, quando eu chego à funerária para encomendar as coisas que iam ser usadas, então você tem de tudo, você tem desde um nível mias simplesinho, quase indigente, até o mais sofisticado. E as pessoas da funerária perceberam que apesar do meu... estava consternado com a morte, puxa vida. Seguramente não era o filho, não era um parente. E percebe que você não é um familiar, pelo seu estado, ainda que de consternação não chega a ser a consternação de um filho ou de uma mulher ou de um pai ou qualquer coisa assim. Aí eu falei: “Olha, como é que eu encaminho isso aqui? Eu quero fazer um enterro adequado, eu não quero nada assim tal, mas como é que eu faço? Me orientem”. Aí o rapaz que me recebeu na funerária falou assim: “O senhor entra com o defunto e deixa o resto com a gente”. [Risos]. E isso me chocou, entendeu? Eu fiquei... eu falei: “Pô, como entra com o defunto?”. “O senhor tem o defunto?”. “Tenho.” “Então é o que basta. O resto nós fazemos”. E, coitado, eu estava lembrando uma coisa dessa e o Delia estava lá e falecido e ainda naquele... Foi avisada a família que eu ia então eu acho que eles seguraram o entendimento lá com a funerária até que eu chegasse. Eu nunca mais esqueci disso, não é frase que se diga. Mas foi dita e eu guardei. E tudo bem, encaminhamos lá e enfim... É isso.
P/2 – E a relação com os fornecedores da Rhodia?
R – Não, não era comigo. Esta área de planejamento definia a quantidade dos suprimentos necessários, mas as compras e o contato com os suprimentos não eram com essa área.
P/2 – Bom, o senhor como economista, os principais desafios que o senhor acha que a Rhodia teve nessa virada dos anos 1960 para os 1970 que, enfim... se isso representa na Economia também uma mudança...
R – Eu me lembro bem que entraram no mercado novos players, novas empresas pequenas para a época e a gente olhava para elas, eu diria que com a atenção não muito adequada. Por exemplo um laboratório, Aché. Nós olhávamos para um Aché como uma coisa menor, como um laboratório sério, correto, mas que não poderia ser ameaça alguma, não é? E olhávamos para os grandes laboratórios como o Fontoura como sendo os laboratórios de maior peso. Eu acho que o grande desafio foi enfrentar os novos players que entraram no mercado, conquistaram posições, redefiniram o _____ da indústria e os grandes mais temidos não foram tão ameaçadores assim quanto parecia. Acho que o desafio maior foi compreender as transformações que estavam acontecendo. E acompanhar o ritmo das pesquisas. A França, não vamos dizer que tenha se notabilizado nisso. Pelo contrário, a produção científica não acompanhava o ritmo, a velocidade e as novas conquistas. Me parecia isto, mas eu não tenho capacidade suficiente na área técnico-científica para dizer que este desafio foi o maior ou foi bem vencido ou mal vencido. Mas foi importante.
P/1 – E o senhor tinha relação direta com o pessoal da França nessa pesquisa de mercado, tinha alguma interferência?
R – Não, não. A empresa era muito mais uma... a Rhodia não era na época uma multinacional, uma empresa global. Era mais uma empresa franco-brasileira. O Brasil e a França tinham expressões quase equivalentes, era uma empresa franco-brasileira. Então não chegava a ser uma empresa global no sentido convencional da expressão como é hoje. Não era assim.
P/2 – Mas a interferência da matriz...
R – Não, a interferência da matriz se dava muito mais com relação às formas de apresentar os resultados, ver quais eram mesmo os resultados alcançados, tínhamos lá os nossos ______ d’affaire, que era a forma que os franceses chamavam as demonstrações financeiras, tinha toda uma metodologia para se chegar àqueles resultados enviados para a França. Mas a negociação com França dos investimentos a serem realizados aqui e coisas dessa natureza ficava mais na alçada da alta, alta direção da Rhodia no Brasil. Quando eu saí, embora tivesse lá uma participação no planejamento, eu não tinha ainda estatura suficiente para discutir esses assuntos de abrangência maior pra organização. Não deu tempo.
P/2 – O senhor comentou da sua diferenciação profissional, que falaram bem de escrever e tal, a Rhodia tinha um pouco uma equipe também... pelo menos, assim, em torno dos depoimentos a gente tem percebido muito isso, quer dizer, pessoas de grande peso, essa preocupação com o lado cultural...
P/1 – Essa formação humanista mesmo.
R – É, se você tinha uma boa formação, expressava-se bem, redigia bem, tinha uma base cultural mais ampla, era capaz de falar com desenvoltura sobre temas que não eram apenas aqueles da relação profissional mais estreita eu acho que isto sempre foi muito valorizado.
P/1 – Era um valor da Rhodia mesmo?
R – Parecia-me que sim, tanto que esse diferencial me ajudou bastante na organização. Bom, deixei a Rhodia então em mil novecentos e qualquer coisa, acho que 1970, 1971, mais 71 do que 70, passei a me dedicar à minha vida mais profissional no campo do magistério e de autoria de livros, fui convidado para ser diretor editorial da Editora Atlas, porque à tarde a Universidade não funcionava e eu ficava um pouco ocioso e não era todos os dias que eu lecionava de manhã também, então eu tinha um tripé: o meu escritório de consultoria, a Editora Atlas e a Universidade. E esse tripé se amarrava na autoria de livros para as três coisas, ser um autor de peso e reconhecido era importante. Mas eu não defini isto por uma estratégia pré-elaborada, isto aconteceu sem que eu tivesse planejado, esse tripé. Isso eu vejo hoje, olhando para trás, que funcionou direitinho. Em 1980 outra decisão importante da minha vida. A de 1970 deixar a Rhodia, a de 1980 deixar São Paulo. Uma decisão muito pesada, ela não foi fácil. Eu imaginei, olhando para frente, que São Paulo não era a cidade que eu gostaria de viver. Enxerguei a violência do futuro, trânsito muito pesado, uma cidade menos humana do que eu gostaria que fosse e tomei a decisão de mudar-me para uma cidade do interior de São Paulo.
P/2 – Você morava aonde em São Paulo?
R – Eu morava em Moema, na Alameda dos Aicás, 587. Aí eu mudei-me para Campinas num primeiro movimento na direção do interior e de Campinas, onde fiquei um tempo menor, eu fui para Penápolis, que era uma cidade que tinha 40 mil habitantes, até um pouco menos, 38, por aí assim, e hoje já está beirando 60 mil para o meu desespero, acho grande demais. Então mudei-me para lá, de novo os amigos achavam que eu estava louco. A primeira loucura foi deixar a Rhodia, e uma loucura que deu certo. A segunda deixar São Paulo. Consultor, professor universitário, autor de livros morando em Penápolis? É uma coisa esquisita, não pode.
P/2 – Filhos adolescentes?
R – Filho, o mais velho tinha 13 anos. A menina tinha 11 para 12 e o menorzinho menos de 10. Eu falei: “É agora ou nunca”. Naquela época com filhos dessa idade... O menor tinha 12 anos... o maior, aliás. Donato, Carolina e José Paschoal. Naquela época, filhos nessa idade você colocava no carro fechava a porta e ia embora. E lá fomos nós, porque Penápolis é a cidade da família da minha mulher e porque eu já tinha comprado lá uma fazenda de gado, coisa de que sempre gostei. Mudamos para lá. O meu escritório em São Paulo ficava na Avenida Paulista, 2202, 16 andar. Ali uma secretária que recebia os recados, que mantinha minha agenda cheia e eu em Penápolis onde moro até hoje. Os meus filhos saíram de lá para fazer boas universidades em campos profissionais que não são campos menores, digamos assim, em termos de formação e tomaram a decisão, todos eles, de voltar para Penápolis. Hoje eu sou uma pessoa rara nesse ponto porque eu moro na minha casa, a casa dos meus três filhos fica a um quarteirão e meio da minha, em média. O que mora mais longe mora a dois quarteirões. A filha do meio é médica, casada com um médico, o mais velho é médico veterinário, cuida de fazendas que hoje já são quatro e todas cheias de gado e o mais novo fez Administração de Empresas e é sócio com o irmão de uma empresa com a Belgo-Mineira. Nós temos lá uma aliança estratégica muito interessante, uma empresa grande que tem exclusividade de atuação para um terço do estado de São Paulo. Então nós viabilizamos negócios interessantes e vivemos numa comunidade familiar raríssima hoje em dia, em que todos os filhos voltaram para a pequena cidade do pai que há 20 anos atrás eles haviam, digamos rejeitado.
P/2 – O senhor já tem netos?
R – Já tenho quatro netos. Dois filhos casados, quatro netos, a mais velha chama-se Fabiana, depois vem Rodolfo, depois Heitor e depois Murilo pela ordem de nascimento. Fabiana com cinco anos e meio e o Murilo, o mais novinho, com um mês e pouco de idade. O filho mais novo não se casou, casa-se no começo do ano que vem.
P/2 – E esse interesse pela parte de fazendas e tal, isso...
R – Papai. A família de colonos italianos, humildes que chegaram ao Brasil com enxada na mão e ficou aquele gosto pela roça, pela coisa do campo e eu comprei essa fazenda quando eu pude para o gosto do meu pai. Imagine, papai ainda vivo, filho comprou uma fazenda, foi uma coisa muito importante para ele, um gosto que eu dei a ele muito grande. Transformamos isso num negócio e hoje eu tenho, ali em volta de Penápolis, num raio de 25 quilômetros entre si, quatro propriedades integradas e produtivas.
P/2 – O senhor produz o quê?
R – Pecuária, bovina de corte com Nelore, com cruzamento com gado europeu. Olha o francês de novo na minha vida. Os reprodutores escolhidos hoje são Limousin, que é um gado de origem franco-canadense.
[PAUSA]
P/1 – Se o senhor tivesse que fazer um balanço dessa sua trajetória na Rhodia, em geral e profissional, tem alguma coisa que o senhor mudaria, que o senhor se arrepende?
R – O Lord Keynes, um dos economistas mais importantes deste século, foi feita essa pergunta a ele já em idade bem avançada, quase à extremunção. Dizem que um cardeal que lhe foi dar a extremunção perguntou exatamente isso a ele e a resposta foi surpreendente, ele disse: “Eu me arrependo de não ter bebido mais champanhe”. Com isso talvez ele quisesse dizer: “Me arrependo de não ter vivido mais”. Não que eu não tenha vivido, mas até hoje eu tenho um ritmo de trabalho que não é adequado. A minha distribuição entre trabalho e lazer não foi equilibrada. Eu sempre tive muito mais predisposição para o trabalho do que para qualquer outra coisa. Não é impunemente que você escreve 15 livros. Você paga um preço alto por isso aí. Então hoje eu teria, quem sabe, um pouco mais equilibrada. Eu não vi meus filhos crescerem e embora esteja vendo um pouco mais os meus netos crescerem, mas não tanto quanto eu gostaria.
P/2 – O senhor conheceu a esposa do senhor aonde?
R – Conheci numa viagem ao interior de São Paulo onde fui a um casamento, convidado por um amigo meu. Ele tinha lá uma namorada e como não queria ir sozinho, com medo do pai, naquela época, me convidou para ir junto. Em dois ficava menos não sei o quê. E eu fui fazer companhia para ele. O resultado é que eu encontrei lá minha futura esposa e ele, que tinha namorada lá acabou não se casando com ela. [Risos]. Quer dizer, ele me levou por causa de uma namorada dele e eu é que acabei arrumando uma por lá e fiquei. Sou casado há 32 anos e pronto.
P/2 – Ela trabalha com...
R – Não, não. Ela sempre foi sempre uma mulher de casa, do lar, cuidando dos filhos muito bem, e hoje continua cuidando dos netos. A vida dela é isso, é uma pessoa notável, corretíssima, uma belíssima companheira de vida.
P/2 – Tem uma pergunta que eu deixei passar, que era das lembranças do senhor desse colégio marista, desse internato, o que é que o senhor se recorda desse lugar?
R – Tem algumas coisas, assim, interessantes. O internato era de jovens às vezes rebeldes, iam para o internato pela rebeldia, como uma espécie de um castigo, ou de jovens inteligentes, que iam lá porque investia-se neles. Rebelde eu nunca fui, inteligente eu não sei se era, mas era esse o nosso convívio, entre a rebeldia e a inteligência. E talvez rebeldes porque inteligentes. Então era um grupo de moços, meninos etc... com talentos, assim, à flor da pele. E isso era muito explorado pelos maristas porque nós estudávamos dia e noite, não tinha outra coisa a fazer, internado... Uma vez numa festa de São Benedito lá em Poços de Caldas, tinha quermesse, essas coisas, levaram um ônibus de internos para a festa. Isso era um prêmio. Você tinha que se notabilizar e merecer um prêmio de montar numa jardineira daquela e ser levado à festa. Recomendados de não fazermos coisas erradas e de hora tal estarmos todos de volta no ônibus e tal, tal, tal. E lá estava uma senhora, chamava-se dona Mimi Mourão, na festa, junto numa mesa, assim, toda solene, com o marido dela, doutor Martim de Freitas Mourão, um médico da cidade e também Prefeito. E aquela aristocracia na mesa representada pelo médico e etc, etc, que também era médico dos internos do colégio, quando um ficava doente ia lá o doutor Martim. E nós tivemos a ideia de mandar para a dona Mimi Mourão um correio elegante. Correio elegante era um cartãozinho que se fazia geralmente com versos rimados para uma moça que você queria se aproximar dela. Era uma época assim... E ela não sabia quem era, mas alguém dizia, e se houvesse algum interesse ela responderia senão acabava jogando fora aquilo e estava dado o recado: “Nós vamos mandar para dona Mimi. Vamos mandar, vamos mandar, vamos mandar...”. E lá vamos nós. E o redator fui eu. De novo a capacidade de redigir. E isto foi redigido com inspiração de algum... Mas, enfim...
P/2 – O senhor lembra?
R – Lembro. E o texto era: “Mui prezada dona Mimi, eu vos rogo, permitais, coloque-o por onde eu mijo, não por onde vós mijais”. [Risos]. Quer dizer, isto foi um... na hora que esta bomba atômica caiu na mesa, aquilo provocou um rumor imediato... rumor e rubor. A ruborização e a rumorização, uma coisa terrível: “Quem foi, quem foi, quem foi?” De cara: “Os meninos do colégio”. Porque só aprontavam, tá? E já tinha outra coisa aprontada não sei onde, mais essa... De repente há uma ordem, os padres bravos recolhendo todos: “Vamos voltar para o colégio, quem foi quem não foi?”. Passa-se algum tempo, três, quatro anos depois, já moço, já na Universidade, voltando a Poços de Caldas, sabe essa de você voltar pra sua cidade. E encontra-me o doutor Martim e ele me cobrou. Falou: “Paschoal, foi você que escreveu aquele verso pra Mimi?”. E eu tentando: “Mas que verso, que verso, que verso?”. Mas não teve jeito: “Já me contaram, foi você e tal. Não se preocupe, isso faz parte da algazarra dos moços e tal, dos estudantes... Não vou dizer que nós gostamos, mas eu tenho algo a lhe dizer. Como médico, dez em português”. Que era português castiço: “Eu vos rogo, permitais...”. Tem elipse, do “que”. “Coloque-o por onde eu mijo...”. Quer dizer, de novo uma elipse, né? “Então, português de Eça de Queirós, parabéns! Mas quanto à anatomia, zero! Porque não é exatamente ali que você colocaria o seu. Não é no ‘por onde vós mijais...’ Então como médico a anatomia sugerida do verso está errada, agora o português está muito bom”. E uma outra que nós fizemos, uma vez nós pulamos o muro do colégio São Domingos, que era das freiras dominicanas, num Domingo à tarde, lá em Poços de Caldas. Parece-me... a lembrança ficou porque a coisa que aconteceu marcou mais do que essa que eu... mas nós pulávamos o muro porque achávamos que em algum lugar nós íamos ver as moças tomando banho. Mas nós não sabíamos onde é que nós conseguiríamos ver as moças tomando banho, nem se era hora de banho, mas era nossa fantasia. Conseguir uma coisa dessa nos anos 1950 era uma coisa fantástica. Não conseguimos coisa alguma, mas andando pelo colégio sorrateiramente, no final da tarde, já meio escurecido, entramos lá num lugar que tinha, atrás, assim, dos banheiros, tal, que a gente queria ver as moças tomando banho, nós achamos lá pendurado no varal lençóis, fronhas e colchas e calcinhas de freiras, que aliás eram uns calções enormes com uns bordadinhos do lado aqui. E nós achamos de roubar as calcinhas das freiras. Pra que nós não sabíamos, mas que não ia deixar aquilo lá, não ia. Estávamos em quatro ou cinco. E levamos essas calcinhas para o colégio. E uns falavam: “Vai dar rolo, para com isso, não sei quê?”. E o outro: “Não, vamos levar”. “Mas o que é que nós vamos fazer?”. “Pô, não sei, mas vamos levar”. E levamos. Bom, chegamos lá já meio de noitinha, e só para simplificar a história o resultado da brincadeira foi que na madrugada daquele domingo, nós saímos do dormitório coletivo do colégio, fomos à frente do colégio onde tinha três bandeiras hasteadas: a do Brasil, a do Vaticano e a do Colégio, o a de Minas, um negócio assim. Descemos as três bandeiras, penduramos as calcinhas das freiras e hasteamos. Por que no domingo? Porque na segunda-feira cedo tinha um ato cívico, o culto à bandeira. [Risos]. E quando os caras chegaram para o culto à bandeira tinha aqueles panos lá que ninguém sabia o que é que era, porque nós amarramos de noite aquilo com pressa e não fizemos direitinho, não estava desfraldando as calcinhas, estava meio embolado aquele troço lá em cima. E ninguém sabia o que é que era. E o padre falou assim: “Não, vamos fazer o culto à bandeira, não sabemos o que é aquilo...”. Mas aí chacoalha de cá, chacoalha de lá e vê-se claramente, agora sim, que eram calças de mulher, calcinha. Desfez-se a confusão ali, foi todo mundo para sala de aula, e comentando... aí comentava as coisas mais malucas, tá?
[PAUSA]
R – E eram as calças das freiras. Quem fez, quem não fez, tá feito o rolo. Castigo coletivo por um mês. E na época isso era muito rigoroso. E nós aprendíamos que delatar quem fez era uma coisa eticamente muito pior do que o ato feito, tá certo? E não sei o que se fez com as calcinhas das freiras, não acompanhei isso, imagino que foi devolvida ou virou pano de chão ou sei lá o quê, ou queimaram, eu não sei o que é que fizeram com aquilo. Porque peças como essas numa época como aquela eram coisas de uma intimidade impenetrável, ainda mais de freira, né? Então era isso, as coisas mais interessantes que eu me lembro do meu tempo de colégio interno.
P/1 – E o senhor tem assim, algum sonho de vida?
R – Sonho? A essa altura? Aos 57 anos? Faço 58 o ano que vem em setembro. Sonho?
Olha, o meu maior desejo a essa altura é que os meus filhos todos e os meus netos todos sobrevivam a mim. Eu não quero morrer depois de nenhum deles, é o meu maior sonho. Porque eu acho que seria um golpe tão duro, pra eu que construí a família, que fiz isso com tanto carinho e tanto cuidado, eu não mereço uma coisa como esta. Esse é o meu grande sonho. Mas não quero ir embora logo, não. Esse é o segundo sonho. [Risos]. Que eu permaneça mais tempo aqui e que tenha a felicidade de ser enterrado por todos os meus filhos e pessoas que eu amo, netos e noras etc. Esse é o meu grande sonho hoje, não quero outra coisa.
P/1 – E o que é que o senhor achou de ter dado este depoimento agora?
R – Eu achei que não vale a pena um depoimento meu, não tem a menor significação, eu não sou nenhuma personalidade importante coisa alguma, apesar de ter aí os meus livros e ser lembrado, em todos os lugares por onde eu passei eu sempre sou lembrado, do colégio interno as pessoas se lembram de mim por esses versos, essas maluquices que eu acabei de contar, eu sempre estava atrás dessas coisas mais criativas, as pessoas se lembram. Na Rhodia eu fui um menino travesso, inconformado com as coisas como eram feitas e querendo fazê-las de forma diferente, com isso criei vários casos de mudança, ninguém gosta de mudar, a mudança incomoda e eu sempre fui um promotor de mudança, tanto que eu mudei a minha vida, eu deixei a Rhodia, eu mudei de São Paulo, eu fui para o interior. Você percebe. Eu acho que as mudanças impactantes valem a pena quando bem definidas, quando estrategicamente definidas. Então as pessoas de lembram de mim.
P/2 – E todo mundo falando contra?
R – E todo mundo contrariando as mudanças e tal e tal, não é? E fui sempre um cara muito alegre, muito expansivo e muito contador de “causos” e coisas desse tipo. Contei dois “causos” a vocês aqui, vocês provocaram e eu falei deles. Tem uma pitada, eu não diria que erótica ou pornográfica ou sei lá que nome tem essa pitada aí, mas é... Enfim, sabor, uma pimentinha na coisa. As pessoas não se esquecem por onde eu passo. É gozado isso. A marca fica, tá? Por alguma razão que eu não sei qual é ela fica, as pessoas se lembram de mim.
P/1 – Que bom, foi uma bonita entrevista.
P/2 – Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de comentar?
R – Não, não, não. Apenas isso, que me surpreendeu o depoimento e não entendo a razão dele. Comecei assim, dizendo isso e estou falando com toda a honestidade, quantas pessoas importantes estiveram ali contribuindo para o desenvolvimento da Rhodia aqui no Brasil? E eu que passei lá dez anos e ainda muito jovem, de repente eu tenho a honra de dar este depoimento aqui. Gostar das pessoas, da Rhodia, acho que a cultura, o embasamento da empresa permanece, isto é transparente, agora a Rhodia descaracteriza-se através de uma fusão, não sei como é que vai ser isso, mas ainda há tempo de a gente recuperar esse passadinho aí, não é? Enfim é isso, nada que teria valido tanto a pena vocês me ouvirem.
P/2 – Valeu a pena.
P/1 – Valeu a pena. Obrigada, seu Paschoal.Recolher