A vó Josefa mesmo falava que a vida [aqui, na comunidade São Domingos] era muito difícil. Hoje, no povoado tem estradas, mas antes era tudo trilhas, eram matas muito fechadas, justamente por ser uma comunidade quilombola que começou com três raças [famílias] que até hoje ainda perduram, né? Os Lopes, os Mendanha e os Ferreira.
Minha mãe é mãe de 11 filhos, tudo natural, eu vi a maioria dos meus irmãos nascer nas mãos das parteiras, na mão da parteira que era vó Ana. A minha mãe aos nove meses de gestação, conhecia muito da natureza e da natureza dela mesma, né? Aí quando ela via que já era tempo dela parir, ela já começava a se preparar. Ela é uma mulher muito trabalhadora depois que ela aposentou da escola, mas tinha a lida em casa. Lidava o dia inteiro, então, quando ela falava, sempre eu que ia, montava no cavalo, no alto do açude aqui chamar a vó Ana. Aí ela falava: “Milda vai lá buscar a avó Ana que já vou dar à luz”. E aí os partos dos meus irmãos mesmo, do Joãozinho pra baixo, eu presenciei tudo. Então ela chegava, dava-se um banho, um banho bem quente, com o andu, que é um feijão que tem aqui e que o pessoal come muito a folha dele, é muito boa pra essas coisas, né? Pra tirar ardores. Banhava ela com andu, e aí era o processo normal.
[A vó Josefa] Ela benzia. E se tinha uma praga, que antes aqui sempre foi tudo orgânico, nunca foi de bater muito veneno em nada. E aí de longe, não precisava nem ela ir na roça, aqui os arrozais sempre eram muito atacados por gafanhoto. Aí de longe ela benzia e os bichos sumiam. Benzia muita dor de cabeça, vinha gente de longe. Não cobrava, tipo missão mesmo, era benzedeira, minha avó Josefa, essa que morreu aos 102 anos. Pessoa maravilhosa.
A comunidade era muito boa. Hoje, ela está bem diferente, muita coisa que a gente conta pros filhos da gente é história, né? Tinham muitos córregos. Eles existem ainda, mas hoje as crianças, os jovens, eles não usam os...
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A vó Josefa mesmo falava que a vida [aqui, na comunidade São Domingos] era muito difícil. Hoje, no povoado tem estradas, mas antes era tudo trilhas, eram matas muito fechadas, justamente por ser uma comunidade quilombola que começou com três raças [famílias] que até hoje ainda perduram, né? Os Lopes, os Mendanha e os Ferreira.
Minha mãe é mãe de 11 filhos, tudo natural, eu vi a maioria dos meus irmãos nascer nas mãos das parteiras, na mão da parteira que era vó Ana. A minha mãe aos nove meses de gestação, conhecia muito da natureza e da natureza dela mesma, né? Aí quando ela via que já era tempo dela parir, ela já começava a se preparar. Ela é uma mulher muito trabalhadora depois que ela aposentou da escola, mas tinha a lida em casa. Lidava o dia inteiro, então, quando ela falava, sempre eu que ia, montava no cavalo, no alto do açude aqui chamar a vó Ana. Aí ela falava: “Milda vai lá buscar a avó Ana que já vou dar à luz”. E aí os partos dos meus irmãos mesmo, do Joãozinho pra baixo, eu presenciei tudo. Então ela chegava, dava-se um banho, um banho bem quente, com o andu, que é um feijão que tem aqui e que o pessoal come muito a folha dele, é muito boa pra essas coisas, né? Pra tirar ardores. Banhava ela com andu, e aí era o processo normal.
[A vó Josefa] Ela benzia. E se tinha uma praga, que antes aqui sempre foi tudo orgânico, nunca foi de bater muito veneno em nada. E aí de longe, não precisava nem ela ir na roça, aqui os arrozais sempre eram muito atacados por gafanhoto. Aí de longe ela benzia e os bichos sumiam. Benzia muita dor de cabeça, vinha gente de longe. Não cobrava, tipo missão mesmo, era benzedeira, minha avó Josefa, essa que morreu aos 102 anos. Pessoa maravilhosa.
A comunidade era muito boa. Hoje, ela está bem diferente, muita coisa que a gente conta pros filhos da gente é história, né? Tinham muitos córregos. Eles existem ainda, mas hoje as crianças, os jovens, eles não usam os córregos como a gente usava, lavava roupa, vasilha, tudo era nesses córregos. A gente se banhava. Vinha à tarde até pra tomar banho no córrego e voltar pra casa porque quase não tinha chuveiros. Mas a comunidade era muito boa de se viver, a gente teve uma infância, uma adolescência com muita liberdade, aqui sempre foi lugar de liberdade, sem perigo, sem violência, onde a gente brincava muito.
Desde cedo a minha mãe e meu pai sempre tiveram lida dura, sempre lidou com a lida da moagem de cana, toda vida levantaram cedo. E a minha mãe antes trabalhava na cidade e não tinha ônibus, então pra ela lecionar na escola às 7 horas, ela acordava bem cedo. A gente [era] bem pequena. Ela determinava a tarefa, e a gente ajudava. Uma ia cuidar dos irmãos menores, a outra ia lavar, outra ia cozinhar, a gente tinha infância, mas também trabalhava.
A minha avó contava muita história, que às vezes até amedrontava muito a gente, né? Falava que aqui, por a comunidade sempre ter ouro, mula sem cabeça uivava lá, batia os cascos e soltava faísca de fogo. Que era ouro, que os mais antigos aqui tiravam ouro e punham na garrafa e enterravam.
Antes aqui não tinha escola, não existia escola no povoado, todo mundo era obrigado a ir estudar na cidade. Eu mesma estudei no Temístocles Rocha, depois concluí no Afonso Arinos. E assim todos os meus irmãos, e a criançada daqui tudo. Era cansativo, mas era bom. Tinha mesmo que estudar e era a pé. A gente nunca ia sozinho, ia sempre a turma e voltava a turma. O povoado ainda não tinha asfalto, era tudo mais difícil, muita poeira. Época de chuva muita grota, mas era bom.
A gente levava nas mochilas muito coco-xodó, aqui tem uns coco-xodó danado de doce, a gente ia com esses coco-xodó, chupando, porque nem sempre tinha dinheiro pra comprar as merendas que as escolas ofereciam. A gente levava o coco-xodó, às vezes até vendia na escola e com o dinheiro comprava outra merenda. A gente era apaixonado com pão com carne moída e o suco de laranja. E nas escolas, na Afonso Arinos mesmo, vendia. E a gente fazia uma troca, vendia coco-xodó pra comprar a merenda. E era bom. Ia a turma sempre lá no Sambé [atual Rua Roberto Wachmuth], tinha uma casinha, que a dona Antônia emprestava a gente pra lavar os pés, que os pés chegavam lá bem sujos: quando era época de lama era lama, época de poeira era poeira, né?
Quando fui ficando mais adulta um pouquinho, plantava de matraca, capinava, tanto é que até hoje ainda continuo, tanto eu como meus irmãos, a gente limpava tudo, capinava muito, plantava muito arroz, colhia sempre. Hoje tudo é com máquina, mas antes era tudo manual mesmo. Meu pai plantava muito arroz.
A colheita do arroz, quando ele já estava no ponto de colher, ele amarela, e o cacho é o trem mais bonito do mundo. Hoje os meninos da gente não vê mais isso, o cacho dele dobra, aí você corta, passa pelo processo de seca e depois você guarda. Na medida que você colhe, põe ele dentro de uma casa porque ele não pode tomar chuva, depois você monta o girau e bate, você tira ele do ramo batendo, depois passa pelo processo de ensacar. Hoje que é tudo industrializado, mas aqui era tudo pilão, socava, ia socando de pilão mesmo. A gente comia, acho que é por isso que o pessoal aqui vive tanto, era tudo muito saudável.
A televisão na casa do tio Aureliano era a bateria, não tinha energia e a bateria do carro mantinha a televisão. Às vezes, eles deixavam a gente entrar pra ver, às vezes não. Tinha dia que eles estavam meio cheio de xiboca [tipo de bedida alcoólica] e eles não gostavam muito que a gente olhasse, mas eu me lembro do Vila Sésamo, o Sítio do Pica Pau Amarelo... Tinha horas que a gente até apanhava porque a gente fugia pra ver essa televisão. Às vezes, a gente via até da frestinha da janela porque ele fechava a janela. Era o único do povoado que tinha essa TV pequenininha, que hoje ela está no museu. Quando chegou energia, todo mundo passou a ter acesso, passou a ter acesso a um rádio bom, radiola... Eu ainda falo radiola, mas uma radiola boa, aquelas com agulha, a gente dançava muito com aquelas radiolas. À medida que chegou a energia, melhorou a vida em geral, muita coisa melhorou. Só de clarear tudo! Porque dava de manhã cedo, a gente amanhecia com o nariz puro borrão das lamparinas porque as lamparinas davam uns borrões preto, nossa! Primeiro, foi a lamparina, quando foi lampião já foi um sucesso, que o lampião era a gás. Mas também não era todo mundo... Lamparina sim, todo mundo podia ter, tinha que ter. O lampião já não era pra todo mundo, que já era mais caro, tinha um bojãozinho de gás assim, né? Aí depois a prefeitura trouxe a energia, foi muito bom.
Minha mãe toda vida gostou muito de capado gordo, porco gordo, e sem ter onde pôr, não tinha freezer, não tinha uma geladeira, era muito difícil. A gente tinha que retalhar aquilo tudo, com açafrão cultivado aqui mesmo. Aí cultivava as bandas de toucinho e você tinha que salgar muito pra não perder nem pegar bicho com açafrão e punha dentro dos jacá [tipo de cesto], uma camada de toucinho e uma camada de palha, uma camada de toucinho, uma camada da palha do milho, praquilo não perder. Era muito difícil. Então, quando veio a energia, a primeira coisa que meu pai adquiriu foi uma geladeira. Foi uma festa quando viu que não tinha mais aquela peleja, depois ele arrumou um freezer grande, matava os capados e jogava lá porque ele gostava de muita fartura. Mas, sem energia não tinha jeito, era muito mais trabalho e facilitou muito, né? Então, a primeira coisa que eu me lembro que eles compraram foi uma geladeira, uma geladeira azul. Eu conto isso pros meus filhos, eles riem. Tem hora que a gente fica até emocionada, né?
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