Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Vêi-Tchá Uvanheccü Tëiê
Entrevistado por Thiago Majolo e Antônia Domingues
Reserva Indígena Xokleng , 14/09/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV049
Transcrito por Luany Promenzio
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 14/05/2010
P1 – Qual é seu nome completo?
R – Nome meu? Vêi-Tchá Uvanheccü Tëiê. Esse é meu nome completo.
P1 – E o senhor nasceu aonde?
R – Aqui no Estado de Santa Catarina mesmo, que antes era o município de Ibirama, e eu nasci aqui.
P1 – Mas na aldeia mesmo?
R – Na aldeia.
P1 – E em que dia?
R – Vinte e três de setembro.
P1 – De que ano?
R – Nós fizemos documentos calculados, mas, pelo que o primeiro pacificador, que era o chefe do posto, ele me disse que eu fiz errado. Então, contando aquele, eu estou com 80 e já estou entrando em 85 anos. Mas estou no documento ainda com 70 e poucos anos, né?
P1 – Qual era o nome dos seus pais?
R – Nome do meu pai? Uvanheccü Tëiê.
P1– Eles eram ambos dessa aldeia?
R – Desta aldeia, desta tribo mesmo.
P1 – Queria que o senhor contasse um pouco da sua infância. Quando o senhor tinha até sete, oito ou dez anos, como era a aldeia? Conta um pouco para a gente como era essa aldeia.
R – A aldeia aqui, depois que a gente se conheceu por gente, era aqui mesmo, mas os índios, eles saíram do mato em 1914. Logo após, eu nasci. Em 1914, o pacificador, o nome dele era Eduardo de Lima e Silva Hoerhann. Era o pacificador. Ele veio para cá, com idade de 16 anos. Com 14 anos, dizem que ele matou alguém lá. Ele é lá de Rio de Janeiro. Daí, como ele era criança, o governo fez a pergunta: “O que ele queria ter na vida?” Ele disse: “Eu quero ser amansador de índio lá em Santa Catarina.” Aí que ele veio. Então, começou. Quando ele entrou aqui, ele já sabia que tinha índio no mato ainda. Ele começou a tentar, a querer tirar eles, a amansar eles, já caminhar no mato desde São Francisco do Sul a Blumenau. Esse trecho que já tinha o povo morando “ralo”, não era “cheio”. Em Itaiópolis também tinham alguns, morando. Esse trecho Itaiópolis até Lages, Rio Grande, aquele trecho tudo era mato ainda, era mato. Nesse trecho a gente andava. Quando foi no tempo que eu falei, no dia 23 de setembro, houve um encontro com ele, porque ele foi aprender a falar idioma dos nossos índios Xokleng, que tinham pego 18 índios que estavam em Blumenau com os alemães dali. Ele ficou lá três meses, aprendeu tudo. Depois que ele aprendeu tudo, nesses três meses, ele entrou no mato. Em cada lomba da serra, tinha um grupo de gente junta. Pediu para o governo ajudar, né? Então, o governo deu a mão, quem acompanhava no mato tinha o seu salário, para ajudar a fazer picada. O governo mandava roupa e botava em picada. No outro lado, nas outras lombas e assim. Quando ele escutava barulho, ele chamava. Ele chamava e assim continuou, tentando, até chegar nesse tempo que é dia 23 de setembro. Aí, encontramos com os índios aqui, primeiro de Presidente Getúlio, numa serra chamada Serra do Índio. Quando ele viu que estava ali, ele deu sinal e chamou, mas eles ainda estavam meio assim, porque quando eles estavam no mato, eles viam os brancos, as lavouras, uma fumaça. Eles iam lá, nas casas deles, batiam e tiravam tudo que tinha. A planta, eles tinham tirado. Então, eles bombeiam da serra para a outra. Nisso, também ele viu a fumaça deles lá no fundo, aí foi até lá. Acabando, quando ele foi lá, ele já estava aqui. Aqui, do outro lado, um pouco para cima, tem um ribeirão, um rio chamado Rio da Prata. Então, eles já estavam para o lado de lá. Ele foi lá e chamou, em voz alta: “Carqueran!” Ele dizia. “Carqué” quer dizer meu amigo. “Hein, carqueran!” Eles responderam. E assim foi de manhã, dando sinal, chamando até mais ou menos quatro horas, foi chegando. Os índios foram chegando. Os primeiros que foram chegando perto, no encontro dele, foram o falecido meu sogro com o irmão dele, esses quatro. Quando eram 4 horas, estava chegando e já estava perto, ele mostrava: machado para isso. “Vem buscar o machado!” Ele dizia. “Para vocês tirarem abelheira para sua família.” Levantava a roupa. “Vem cá pegar a coberta para você dormir com a tua mulher.” Mas já sabia falar. Aprendeu com aqueles de lá, né? E ali foi até aquela hora. Umas quatro ou cinco horas, foram chegando. Ele estava com um revólver na cintura e, quando ele foi chegando, que eles estavam nus, ele viu. Ele tirou a roupa tudo e ficou pelado de uma vez, que nem eles, e foi chegando e dizia: “O que tu tem ali?” Aí ele, porque era revólver. Ele jogou tudo e ficou pelado. Pegou, cumprimentou e deu a roupa para um, para outro, para outro, para os quatro. Aí, ele: “Vamos chamar a gente de vocês.” Eles foram. Foram ainda de noite, vieram, e ele estava ali. Ele diz: “De onde mesmo que eles vieram?” O acampamento dele, aqui do outro lado. Se fosse de dia, eu ia apontar. Dá para ver o lugar. Aí, ele já estava acampado ali há dias, tempo já, que os companheiros dele fizeram um barraco bem feito, e ele estava ali. Ele tinha um porco que estava engordando, tinha jacutinga que ele tinha pegado. Já estava na gaiola. Já era de noite, deu tudo para eles virem, o porco preso lá, e matou. Eles mataram e levaram. Aí foi que, no outro dia, chegou mais índio. Foram chegando. Tinha mais índio lá para a banda de Lages. Os outros já foram chamar. Vieram. Tinha outro lá para o lado. Vieram. Acabando, quando saíram, eram cinco mil e poucos índios que saíram do mato. E ali ele continuou, ficando mais dois anos juntos. Daí é que ele mandou chamar os alemães de Blumenau para trazer esses índios que estavam lá, para eles conhecerem os pais, porque os pais deles eram livres. Porque o pai de uma daquelas, eu me lembro o nome deles. Os outros acostumaram com branco, lá ficaram. Aí foi continuando. Nossos pais ficando aqui até um tempo, em 1938, havia uma guerra que vocês ouviram falar, dos alemães, que o pessoal brasileiro foi para lá, então. Fugiram. Um polonês, os poloneses, os alemães, os “Rússia”. Os russos ficaram, pararam para o lado de cá, que a gente sabe onde é. Dali, esse polonês, ele era um professor fino, conhecido como Maestro. Então, ele veio, ficou aqui dentro do mato, conosco aqui, do outro lado. Nós íamos lá mostrar. Deu aula por conta dele, porque ele trouxe dinheiro de lá e ali ficou quatro anos dando aula para nós, o Maestro. E ali, então, os índios, nós já começamos a aprender. Os velhos que vieram do mato, ele queria também ensinar eles a ler e escrever. Alguns já aprenderam, alguns não, mas boa parte dos pequenos aprendeu, que nem eu. Os demais, muitos aprenderam. Então, esse trecho tudo era nosso. O andarilho nosso andava no mato desde São Paulo. Em São Paulo, se encontrava com os índios Kaingang. Lá, havia uma briga qualquer, porque cada dia é um que não se entende. Os brancos também vinham descendo cada vez mais. Os brancos iam descendo de São Paulo com cargueiro, fazendo picada para Lages, aquela banda. Eu sei mais ou menos. Se fosse de Lages, mostrava para vocês mais ou menos. Não. Eu sei onde é a lomba, né? Agora, é cidade por tudo quanto é lugar. Mas ali, então, os índios, é quando os brancos desceram aqui, em 1864. Eles cruzaram o Rio Pelotas e foram lá para a serra – como é que diz? – serra de Cambará do Sul, para dentro de Vacaria. Lá, quando chegou, estavam os povos. Então, lá tem uma praia, e, descendo, estão os povos. Tem um paredão, uma taipa muito grande, ali é tudo buraco. Lá de cima, ela desce. Eu fui lá ver. Agora, há pouco tempo passado, eu fui lá ver. Daí, então, tem um furo. Lá, eles desciam e iam lá embaixo. Tinha mato e eles cruzavam e iam até a beira do rio, à beira do mar, encontrar com os brancos. Os brancos ali atiravam neles, matavam os índios. Eles voltavam e subiam naquela pedreira, naquele buraco, e lá iam embora tranquilos. Andavam procurando e não achavam, porque o buraco onde subiam era escuro, mas, como hoje em dia é prático, eles subiam tudo ali. Então, até isso tudo onde eles andaram, eu sei tudo. Aqui, para o lado de Joinville, os índios estavam acampados, comendo a comida deles que é feita. Eu sei fazer tudo. Fui chamado em Jaraguá do Sul para mostrar. Eu fui. Pedi para eles: “Como é que é?”. Então, tem que levar umas 30 pessoas, 32, para mostrar um jeito de fazer, eles faziam uma festa. Então, a moça que sabe fazer comida, ela pode casar com um rapaz que também sabe atirar num passarinho, subir num pau, tirar abelha, subir no pinheiro para levar pinhão. Aí, tem que casar. Só que, no mato, eles tinham respeito. Lá no mato, o rapaz não vive agarrado com a moça, no mato. Quando é um tempo. Quando eles fazem um encontro, porque um grupo, vamos dizer, de 100, 10 mil índios, uma parte vai para lá, e eles têm um lugar marcado que nem nós agora, que nem Timbó, Rio do Sul, Taió, a mesma coisa. Então, o lado de Timbó tem um lugar chamado, dado por eles, por Hoerhann. Daí eles marcam, cinco anos, nós vamos nos encontrar, e, quando se encontram, eles fazem um casamento, eles perguntam: “Aquela moça sabe fazer comida?” Mas ela nem está sabendo. Eles perguntam para os outros. “Não, ela sabia.” “E aquele rapaz?” Então, eles preparam um lugar, como aqui. Bota o rapaz. Aí, vão lá buscar a moça e trazem. “Esse é teu marido” “Tu fica com ele, e o primeiro filho que tu ganhar, tu bota o meu nome, se é menino. Se é uma menina, bota o nome da minha mulher.” Assim eles dizem. Dão conselhos. Eles têm um conselheiro no mato. Eles têm o cacique deles. O conselheiro vai lá. Aconselha eles para viverem tudo bem. Mesmo assim, quase igualando o casamento do padre também. O padre, ele dá um conselhozinho, né? E eles, a mesma coisa. Então, no mato, eles viviam todos unidos, numa boa, tudo unido. Eles tinham um rancho, um acampamento grande. Ali, tinham mil pessoas, cada um tem seu foguinho aqui para dormir, o outro lá, e assim por diante. Se não cabe ali, ele já tem outro ali. Cada um que dorme respeita a família do outro. Agora, quando sair para fora, pode reparar. Aí, tem gente com sinal comprido, outro com ponto, que nem eu assim. Então, eu sou dessa numeração. Os pontos, eles têm um nome. Vamos dizer, você tem um, você é minha irmã. Eu não posso falar de namorar, casar. Eles não casam, vamos dizer. Só com aquele que não tem um risco comprido assim. Aquele não é meu parente. Então, aí é que faz o casamento. Agora você vê. A moça encontra o rapaz, nesse primeiro dia, primeiro tempo, no momento. Agora, não. Agora, perderam todos a cultura, alguma coisa. Perderam tudo. Hoje, casam com os primos, primas. Mesma coisa que os brancos. Aprenderam com os brancos. Os brancos casam com a prima-irmã. Eu já vi. Tem família que eu conheço. Todos eles casaram, prima-irmã, primo-irmão. E agora os índios são a mesma coisa. Mas, no mato, havia um respeito. Se souber que fulano é parente de outro, não casa. Então, no casamento, eles fazem o chocalho. Esse ainda está meio fraco. Mas tem o chocalho forte, bem grande. Ele dá mais volume alto. Aí, eles cantam. Eles fazem aquela fila. Hoje, nós vamos fazer, eu vou mostrar. Vocês vão ver. As crianças vão de fila, e eu vou estar na frente fazendo. Mais ainda? Que conversa o senhor quer?
P1 – Tem.
R – Porque eu digo a verdade para vocês: para mim, uma hora é pouco. O dia inteiro é pouco. Eu sempre digo: “Eu sou bocudo, eu falo mesmo.” Quando me botam para começar, eu vou longe. Eu sou acostumado a ir a reuniões de três dias, dez dias, 12 dias de reunião. Porto Alegre, São Paulo, Brasília, Mato Grosso do Norte. Então, quando eu começo a falar mesmo, não tem fim para mim.
P1 – Essa história da sua aldeia, o senhor aprendeu com quem? Seus pais? Quem te contou a história da aldeia?
R – A história da aldeia, que até hoje a gente está dando. Eu sempre digo aos brancos que perguntam, para a gente também. O branco, a gente vai começar, ele já tem o caderno e a caneta na mão. Ele vai escrevendo. Tudo vai anotando. E o índio não. De pequeno assim, ele conta, e o caderno do índio é esse. Caderno e o lápis. Aqui entra, aqui ele guarda tudo. Quando ele está assim, ele já sabe tudo. Quando está velho, ele casa. Quando ele casar, ele já conta para os filhos. Vai transmitindo para os filhos, para as filhas. Assim é. Havia um respeito. Então, é a gente. Estava perguntando o quê?
P1 – O senhor estava falando como o índio aprende as coisas. Quando é pequenininho vai ouvindo?
R – É. Isso é porque, no mato, a menina nasce, já logo está aprendendo a chamar pai, mãe. Daí, já ela vê os outros cantarem. E o pai e a mãe já a ensinam. Já contam o movimento, toda a história deles. Quando está com dez, 12 anos, já sabe tudo, tudo. Eu peguei quatro brancos para criar. Tudo casado, tá? Alemão, Italiano, “alemoa”, mais um italiano. Tem um que diz: “Pai, tu me conta a história?” Ele trabalha com a Funasa, motorista. Mora lá perto de mim. Ele sabe tudinho, contei tudinho, ponto por ponto. Agora, esses tempos passados, faz uns dois anos, ele disse: “Pai, fulano, aquele, aquele. Qual é o pai dele? Como é o nome do pai dele?” Aí, eu contei: “Tu se esqueceu?” “Sim” “E os outros, de quem eu contei toda a história?” “Não, os outros eu me lembro tudo, só esse eu esqueci.” Aí, eu contei. Assim é. Ele guarda tudo no miolo. Então, alguma coisa que você pergunta já está aqui marcado. Já vou dizer o que é. Daí, o que mais?
P1 – Mas como é esse momento? O índio mais velho vai e chama a mais nova? Ou é durante o trabalho? É durante o dia a dia que vai contando? Vai andando, vai contando? Tem momento em que eles sentam todos para ouvir? Como é esse momento de contar a história para os mais velhos?
R – Não. O velho, ele não conta a história quando está velho. Desde que ele casa, ele já tem a família. A filha nasce, o filho nasce, ele já vai contando. Ensina, conta para ele, todo o passado. Então, o pai fica velho, o filho já está por dentro. Então, às vezes, um pergunta e ele manda o filho dele no lugar dele contar. Assim é. Isso é o modo do serviço, do trabalho, dos velhos, e é essa a história. O branco, não. Toda história ele marca, vai anotando toda num livro daquilo. Faz um livro daquilo, né? E a história do índio é verdade. Tem muita história feita que é livro, não agora. Tem livro já de uns 30 anos passados, 20 anos passados. Tem um diretor aqui do colégio, em Presidente Getúlio, não agora, mais ou menos há 15 anos, ele fez a pergunta para mim. Ele disse: “Vêi-Tchá, eu te conheço há tempo. Como é que uma mulher ganha uma família, quando ela está na hora de ganhar família?” Aí, eu comecei a contar. Eles: “Não, não, não é assim, não. A índia vai lá no meio do rio, enfia o calo até o pescoço para ganhar família.” Daí eu digo: “Não é assim, não.” Eu disse para ele: “Não, então, se você sabe não precisa perguntar.” Aí foi, foi, até que ele ficou me atentando. Digo: “Pois é, então, eu vou te contar. Você não é índio. Eu sou índio. Minha mãe é índia. Eu, minha mãe tudo viemos do mato. Vocês fazem a história. Vocês têm um livro de história?” “Tenho.” “Aquele livro foi feito todo livrinho. Você faz, vamos dizer, 100 livrinhos contando tudo. O índio conta um tanto assim e você emenda tanto assim para poder vender para ganhar um dinheiro para você viver. O índio, não. Ele conta o que é certo”, eu disse para ele. “Então, como que você vai dizer que você sabe? A índia e a branca, negra, toda a geração, elas têm um tempo certo só para ganhar família. Deus juntou a mulher e o homem tudo num tempo só. A mulher, nove meses. A negra, nove meses. Se fosse assim, cada geração tinha seu Deus, né?”, eu disse para ele. Aí, ele, então: “Tu me desculpas.” Assim é que eu estou contando, para o senhor saber. Porque, quando a menina está assim, ela já sabe. Eu tenho uma branquinha que eu criei. Ela está por ali. Vou mostrar ela para ti. Se eu me esquecer, chama. É uma “alemoa”. É a branca que eu criei, “alemoa”. Mas, se ela chega aqui, ela vem e fala só em índio comigo. Está vendo? Aprendeu? Eu ensinei a ela tudo. Agora, casou com branco. É assim.
P2 – Quando o senhor aprendeu a falar português?
R – Eu aprendi, como eu estava contando, com o Maestro, polonês, que é o primeiro professor. Ele entrou dentro da reserva, já nossos pais estavam aqui. O ano, 38. Até ali, eu só ouvia falar dos brancos. Eu só falava uma coisa, que nem tinha cabimento, mas eu queria tentar falar. Quando deu a aula, eu aprendi com ele. Até hoje, eu me lembro tudo que ele ensinou, até para cantar. Hoje, eu noto que as professoras, os professores já hoje não ensinam que nem aquele professor. Não existe. Não tem, não. Ele canta para nós, até com a décima, tirando o abecê. Quer que eu cante para você ver? “A, b, c, d, f, g, h, i, j, k, l, m, n, o, p, q, r, s, t, u, v, x, z.” Está vendo? Hoje não ensina mais. Muitas coisa eu noto, eu vejo. A gente aprendeu com esse primeiro professor, depois ele se enforcou, porque ele queria casar com a índia. Índia não queria. Ele queria casar com outra índia, não queria. Aí, ficou triste e foi. Até que ele fez uma décima no nosso idioma. E cantava a décima, que ele ia se matar. Quem é que ia dizer, né? Ele cantava, que ele ia, Deus estava chamando ele, ele ia embora com Deus. E mais um plano feito para se matar. Chegou naquele dia, muito tempo, no cabo de um ano ou dois anos, ele se enforcou. Está vendo? Eu sempre me lembro dele. E ele que me ensinou. E aqueles que ele ensinou, se tiver muito, ainda tem uns cinco. O resto morreu tudo que já faz tempo (risos).
P1 – Como era a vegetação, a natureza, quando o senhor era pequeno? Era igual a hoje em dia ou está diferente?
R – A diferença?
P1 – Da vegetação.
R – Nossa, como agora, né? Olha, a diferença. Sempre eu começo a meditar lá atrás e agora, o que está para a vida. A diferença que eu achei, que eu estava falando agora no momento sobre São Paulo e Rio Grande. Na época, naquele tempo, tanto o Brasil inteiro era mata que os índios viviam ali. Quando foi descoberto o Brasil, diz que o Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil no ano de 1500, e os portugueses, quando entraram, os índios já estavam. Então, os índios eram donos, eles já estavam no Brasil. Aí, o branco foi destruindo com índio. Foi tomando o Brasil todo, que era do índio. Os índios foram sofrendo, andando de lado a lado, os índios Xavantes, Pataxós e assim por diante. E ali nós também, né? Só por um idioma, nós, a geração nossa não se encontrava, nem os outros não se entendiam. Aí brigavam muito. E os brancos também foram atacando, foram matando, foram tomando, foram tomando, dizendo que eles são os donos do Brasil, mas não. O dono do Brasil era o índio. E se existisse a mata inteira ainda, estava bem, nós estávamos bem. Hoje, eu não quero comer carne de paca. Amanhã, eu quero matar uma jacutinga para comer. Tinha caça na época. Agora, como não tem mais mato nenhum, a caça terminou. Então quem que se encontra nesse mato, onde nós temos agora, como nós estamos fora, nós temos brigado a fazer força para viver que nem o branco, plantar batata, plantar milho, ganhar um dinheiro, vender aqui para pegar um dinheiro para comprar alguma coisa que pode usar na casa, como prato. Mas, no mato, se fazia panela de barro para cozinhar. Fazia também fogo com canela. Eles fazem um furo assim, aí, começa a fazer até quando chega no miolo. Ele pega fogo. E o branco diz que acha e diz que o índio não mais come coisas cruas, mas não. Muitos deles fizeram pergunta para mim e disseram para mim. Eu digo: “Não, não. Isso não cola em mim.” Então, acabou-se o mato. A diferença que tem agora é ser obrigado de nós puxar uma parte do branco para poder se manter. Para banhar, plantar, trabalhar por dia, trabalhar por empreitada, senão, não tem como mais viver. Porque, se fosse que tivesse uma mata inteira ainda, era uma fartura, né? Essas são as duas diferenças que eu acho, são essas. Tivesse o mato inteiro, né? Ou, então, fazer agora, fazer força para que nem o branco, quanto mais que ele tem dez reais, ele quer mais dez para fazer 20 reais. Faz força para ter. Então, nós estamos fazendo também. Essa é a diferença.
P1 – Quando o senhor era pequeno, quais eram as brincadeiras?
R – Ah! Brincadeira tinha de todo jeito.
P1 – Conta para a gente um pouco.
R – Quando nós éramos pequenos, nós brincávamos, como estava falando hoje, agora, sobre o respeito. Uma menina, ela brincava como fosse marido, aí faz brincadeira, o menino faz um ranchinho para ela, e ela faz outro ranchinho. E assim, então, eles começam a fazer a panelinha de barro, que há pouco tempo foi deixado o uso nosso, né? Aí, a mãe ensinava a trançar o pano, porque no mato já andava nu. Trançava, fazia um tipo de uma tanga. Então, eles tiravam casca de urtiga de mato, não sei se vocês conhecem urtiga. Dá um pé grande assim. Tira a casca e, trançado e cozinhado depois, ficava branquinho. Fazia corda e fazia a coberta até. Então, a moça se cobre, a mulher. Ela se cobre na frente e o homem, não. O homem, se você quer saber tudo, eu conto. Não deve ter vergonha. Aí, como diz o português, o índio, ele bota uma tira assim, que nem barbante, tudo rodeado aqui. Puxa o pinto para cima, a cabeça dele aqui. Amarra aqui e a moça fica que nem cega. Nem veem, porque é uso. Agora, hoje nós vamos olhar, né? Nós vamos ver. Mas, no mato, era uso. E a moça, com o peito de fora assim. Às vezes, estava correndo, estava balançando. Hoje, a índia não anda. A minha mulher não sai sem o sutiã. Ela quer usar, né? E, se fosse no mato, nem dava bola (risos). Então, esse era um uso. O uso do índio no mato.
P1 – Que mais? Que brincadeira tinha?
R – Aí, então, essa menina, quer dizer, brinca desse jeito, para lá e para cá. O outro faz a flecha, já vai aprendendo a matar a caça e até as galinhas do pai, da mãe. Já vão atirando, aprendendo já nos passarinhos, nas galinhas, tudo isso eles faziam, nós fazíamos. Dava até flechada no porco, no cachorro. Sempre aprendendo desse jeito. Essa brincadeira nossa, né?
P1 – A brincadeira ensinava também?
R – É.
P1 – E qual era sua brincadeira predileta? Qual que o senhor mais gostava?
R – Mais que eu gostava? Olha, eu sei que a gente gostava muito de brincar, muito mais, era de jogar peteca. Nós não tínhamos conhecimento com a bola. Então, nós jogávamos peteca. Aquele que puder mais jogar, aprende a jogar. Nós jogávamos com a peteca. Depois conhecemos também o jogar futebol. Então, nós gostamos muito, mas depois de moço já. Mas, quando nós éramos pequenos, começamos a aprender mais a jogar peteca e nós gostámos muito. Alguns índios, vamos dizer, lá em casa, chegam uns dez para nós jogarmos peteca (risos).
P1 – Tem alguma história, alguma lenda indígena que o senhor gosta muito, que o senhor aprendeu quando era pequeno? Alguma lenda, alguma história?
R – Que eu gosto muito?
P1 – É. Dos índios da sua tribo. Algum caso de um espírito do mato.
R – Bom, no mato, eles faziam bebida com mel de abelha. Só que eles tiram bastante “abelheira” com aquele mel. Então, eles tomam aquele, só que não é de todo tempo assim. É uma festa, mas aí gostam de tomar também. E eles deixam a pessoa bêbada, né? Então, eles gostam, também lá uma vez fazer. Isso eu tomei já. É que nem vinho de uva, de ameixa, a mesma coisa. Não sei se já tomaste (risos). Eles gostam muito, às vezes, eles estão falando para mim: “Vêi-Tchá, vê se faz um vinho para nós!” Agora, eu fui mostrar, eu fiz um lá em Jaraguá, me chamaram, me pagaram. Eu digo: “Olha!” Eu vou levar o pessoal para mostrar. Nós temos dez dias. Fiz o buraco na terra para assar carne no buraco. Fizemos fogo bastante, botamos. Aí, botei as varas tudo, botamos camada de folha de caeté, e a carne em cima. Depois, cobrimos com caeté e botamos barro. Aí fica. No outro dia, eles tiram. Assim, eles faziam no mato. Nós fazemos um buraco comprido e matamos, às vezes, cinco porcos-do-mato, às vezes, duas antas. Eles tiram tudo a carne pura e fazem aquele fogo cumprido, colocam no buraco e cobrem. Fica. No outro dia, já está assadinho. E ali fica, carne cozida fica. Quando eles querem comer, amanhã eles vão lá pegar, no outro dia vão lá. E assim vai ficando.
P2 – E o senhor lembra das festas? O que as pessoas comemoravam na aldeia quando senhor era criança?
R – Festa? Alguns índios, eles têm um, a gente sabe mais ou menos. Porque eu conheço muitas gerações de outros índios. Então, alguns, eles adoram o espírita e nosso, já não. O nosso no mato sabia que existia Deus, e eles sabiam que existia Deus e o inferno. Então, no mato, vamos dizer que chegasse mancando assim, aleijado, mancando. Aí eu vou olhar, eu sou menino. Eu vou olhar e vou dar. “Oh, mãe, lá vem o aleijado.” “Não, não fala, não ri dele. Talvez, ele ou o pai e a mãe é que abusaram com os outros aleijados. Que Deus fez para ele, e pode acontecer para ti ou quando tu tiver filho. Não olha.” Assim minha mãe dizia. Então, no mato, já eles adoravam Deus. No mato. Muitos índios já não. A gente sabe. Eles têm umas figuras deles, o pajé deles tem. Eu sei, né? Agora, o nosso é diferente. O nosso, o nosso pajé que é o chefe do mato, que é o cacique, ele dá um conselho para não abusar com ninguém. Não ri daquele. Ajudar um cego, ajudar ele a levantar. Ajudar ele a caminhar. Agora, em 1946, entrou evangelho deles no nosso lugar. Aqueles velhos que vieram do mato, já vieram velhos do mato, quando viram a pregação, a bíblia, eles foram os primeiros que aceitavam convite da palavra de Deus, que é por dentro das escrituras sagradas. Porque já adoravam Deus lá no mato. Aí, muitos brancos diziam: “Os índios não têm, não sabem quem é Deus.” “Não.” Os índios têm respeito por quem não queria saber. Nós aqui, no posto, na reserva, tínhamos dois aleijados. Um ia se arrastando, daqui ele ia se arrastando até lá embaixo, vamos dizer. Aí, eu começava: “Mãe, fulano está empurrando.” “Não abusa. Um dia, quando tu tiver filho, Deus pode fazer assim para teu filho, porque às vezes aconteceu isso para a mãe. A mãe era muito “risona”, fazia pouco onde aconteceu, ou o pai, ou os parentes.” E, na bíblia, está a mesma coisa escrito. A bíblia nós tínhamos escrito: “Viver em comunhão.” Em provérbio, capítulo 23, não, provérbio de Isaías, capítulo 58: “Se tiver um alguém nu, vestireis, cobrireis.” Se ele está ali passando fome, miséria, dá de comer. Então, no mato, os índios faziam a mesma coisa. É por isso que eu peguei esses quatro brancos. A moça ganhou solteira, veio lá do Jaraguá. Andava procurando lugar que ninguém dava, acolhia ela, que eram os brancos. Ela entrou no meio do posto e andou, andou, e nós pegamos. A mulher diz: “não, tu vai buscar.” Quando eu subi, que ela estava ali, eu levei. Veio a outra lá de Joinville, esse rapaz que o motorista estava falando. Então, os índios fazem o possível para aquele que precisa. Mas muitos brancos, quando veem alguém pedir alguma coisa, eles dão. Uma vez dão, mas nas duas vezes, terceira vez, não dão. Quando veem, fecham a porta. Eu digo que eu sei, me enfiei com os brancos. Depois que eu estou assim, homem, eu comecei a trabalhar fora, no meio dos brancos, até me casar. Daí eu não quis me casar cedo, notando os brancos e as brancas também. O branco, a branca ficam com o marido até um tempo. Quando ela se enjoa dele, ela cai fora e pega outro. O índio, não. Ele morre com a mulher. Desculpe dizer. Vocês estão fazendo pergunta, eu estou contando como é que é. Eu estou vivendo com a minha mulher já há 52 anos para 53. Eu posso ficar mês lá fora. Esse negócio de ciúme não tem. Não havia e não temos ciúme da mulher e do homem. O branco, não. Às vezes, o branco, só por causa de alguma coisa, ele diz: “Ah!” Ele bagunça: “Eu vou achar outra.” Quando eles veem, ela mete o pé na bunda. Agora, o índio está querendo ir atrás do branco também. Agora, né? Mas, aí, as mães ainda que são velhas, os avôs, eles seguram. “Não, minha filha, não.” (risos) Muitas coisas nós temos segurado. Então, agora, essa história que eu estou dando para eles, tem muita menina, rapaz interessado. Não dá mais tempo de eu picar lenha para a mulher, porque daqui onde eu moro é longe. Mas eles vão lá. Já foram duas vezes. Quando tem o dia marcado é que eu venho aqui. Mesmo assim, quando eles não vão participar, já vão lá em cima. Querem saber, estão gostando muito.
P1 – Quais são as comidas daqui?
R – Agora, é comida de vocês, né?
P1 – E antes?
R – Mais antes, eles faziam farinha com palmeira. A palmeira, o miolo, eles socam bem, sai aquele farelo. Daí, então, eles tiram aquela massa, fazem o beiju. Assam na folha de caeté ou na folha de taquara e também coqueiro – coqueiro daquele que dá coco, que é para chupar. Aquele veio, eles cortam e socam bem. Ele dá um farelo. Aí, faz peneira. Eles peneiram ela, secam, cozinham. Ele seca tudo bem torradinho para comer com a carne. Daí, tem o pilão, socam. Quando tem pinhão, eles também cozinham pinhão, assam, descascam, socam no pilão com a carne tudo ali. Quando está tudo pronto, que nem paçoca, virado assim, aí come. É gostosa a comida (risos).
P1 – Quem cozinha, as mulheres, os homens, todo mundo? Quem cozinha mais: a mulher ou o homem?
R – A comida? Aquele que quiser comer mais, come mais, que nem agora. Então, nesses tempos, foi feito aqui para ela, para os brancos verem, comeram até o coró. O coró, no tempo do coró, a taquara, ela leva 30 anos para secar. Aí, 30 anos, ela dá um coró. Essa é a comida do índio do mato, mas não é esse coró que dá na terra. Só do coqueiro e do pinheiro e da taquara. É gostoso. Aí, os brancos, mas tinha tanto. Os brancos que mais comeram, que barbaridade. Tinha tanto, cozinharam tanto. Era uma festa, que eu sei que é uma festa. Aí, foi o convite para os brancos. Mas encheu de carro e ônibus aqui. Ficaram até umas dez horas comendo, só comida feita do índio do mato. Que nem hoje, prepararam carne do mato, de certo já comeram tudo, não sei se tem, mas eu vou perguntar se tem. Pelo menos um pouco para vocês experimentarem, né?
P1 – Com que idade o senhor se casou?
R – Como eu estava falando para o senhor, eu não quis casar cedo. De primeiro, andei tudo, trabalhei em Timbó, Paraná, Irati, aquela banda. Depois, quando eu estava chegando com 32 anos, tinha uma branca lá que queria casar comigo. Eu fui, desviava dela. Aí tinha outra, mas era moça. E assim eu desviava. Até que, quando ela me atentava muito demais, eu pensei, digo: “Não. Eu sei o jeito de vocês comigo, né?” Digo: “Não quero casar com a branca.” Vim embora. Em dois anos, casei. Com 33 anos, casei.
P1 – E como foi?
R – Casei, nós casamos no chefe do posto. Ele faz o mesmo casamento. Agora, o uso nosso já deixamos. Já deixamos há muito tempo esse casamento do mato (risos). Porque casava lá no mato, né? Isso deixava tudo.
P1 – E quantos filhos o senhor tem?
R – Só três. Só três e com o que eu criei, são 12: quatro brancos e mais meus netos, que gostam muito de mim. Eu gosto dos netos, pego os filhos dos netos, da filha, e criei 12, tudo eu tinha.
P1 – E o senhor hoje em dia é mestre griô, né?
R – É.
P1 – E como aconteceu isso?
R – Aconteceu que eu nem esperava. Foi praticado para mim ali. É que tinha um homem me procurando para esse fim aqui. Mas eu não quis vir, segunda vez também não quis vir. Depois, quando eu vim, eles estavam aqui. Mas eu vim, eu desviei e fui embora. Sabe por que eu fui embora? Porque me levaram em algum lugar para contar história. Daí, eu não quis. Pensando uma coisa, mas foi diferente. Eu não quis porque algum vinha fazer pesquisa, os antropólogos, diziam que pagavam os índios. Que nada! Eles dão uma bolacha para o índio, assim faz um livro de todo jeito. Então, aí eu não quero. A gente vê, né? Então, me chama só para modo de fazer tanta pergunta e quem faz, como diz o brasileiro, a grana são eles e não dão nada para mim. E vem com esse aí, né? Já fui em algum lugar. A gente já viu o modo do branco viver. Então, eu não quis. Aí, eu disse um dia para a mulher: “Quando um branco chegar aqui, perguntar que quer de mim, tu diz a ele qualquer coisa. Se ele contar que é isso, tu me chama que eu quero falar.” Então, aí eu explico, né? Cheguei a conversar com o Paulo, ele me contou. Eu digo: “Não, está bom, se é assim, eu aceito.”
P1 – O senhor foi?
R – Eu comecei a conversar. Ele queria meu nome, eu dei meu nome para ele, tudo.
P1 – Agora, só para acabar, queria q o senhor dissesse primeiro o que o senhor acha de ser um mestre griô?
R – Eu acho muito importante, mas muito importante mesmo, porque aqui os nossos, os índios, os velhos saíram do mato em 1914. Ali, foram misturando com os brancos de lá e cá. Então, tem mesmo, tem pouco índio puro. Além de um índio puro, são novos, né? E sabem das histórias passadas ou como eles andavam, tudo. Então, achei importante, porque devia acontecer como aconteceu agora, como me escolheram para ser o mestre, para dar aula de história. Eu fiquei muito contente. Não é porque eu ganho aquele dinheirinho que eu posso pelo menos comprar uma carne para a família, mas pelo menos muitos alunos estão interessados de querer saber. Já foram 25 alunos lá em casa quando não era o dia marcado para dar aula de história. E a gente vem por semana, duas vezes por semana, mas foram. Agora, semana que vem em diante, já tem aluno lá em casa para a gente contar, porque eles acharam muito importante. Tem coisa ali que eles não sabiam, da história no mato.
P1 – A última coisa. O que o senhor achou de ter falado com a gente, na entrevista, contar um pouquinho a história do senhor?
R – Eu achei muito bom porque, no meio dos brancos, no meio dos grandes, no meio do povo, ficam sabendo que existe um mestre que criou, que foi escolhido pelo povo, que trabalha como griô para levantar um trabalho dentro da reserva indígena. Também sou contente que me levem fora, para a gente fazer palestra (risos).
P1 – Tá bom, Vêi-Tchá. Obrigado.
R – Certo.
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