Memórias da Economia Solidária
Entrevista de Marivaldo Andrade
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Jaqueira, 16 de novembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV014
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:23) P/1 - Boa tarde Marivaldo, tudo bem?
R - Boa tarde, tudo bem!
P/1 - Então a gente vai começar com a pergunta mais simples. Eu queria que você se apresentasse dizendo seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Sou Marivaldo Silva de Andrade, residente no município de Jaqueira, Pernambuco, na localidade do Engenho Bálsamo da Linha, zona rural deste município. Nasci no dia 10/06/1966.
(0:59) P/1 - E qual o nome dos seus pais, Marivaldo?
R - Maria Helena Silva de Andrade e Misael Lopes de Andrade.
P/1 - Quando você nasceu, no que os seus pais trabalhavam?
R - Meus pais trabalhavam na agricultura. Minha mãe era mais ligada à agricultura e meu pai tinha um pequeno comércio.
(1:27) P/1 - E em qual cidade eles moravam? Eles mudaram de cidade para morar onde você nasceu, ou eles já estavam lá antes?
R - Anteriormente a gente morava na cidade de origem que eu nasci, Palmares, que é uma cidade próxima aqui da região. E vim ao município de Maraial - Jaqueira era distrito. De Jaqueira a Maraial são dez quilômetros Depois Jaqueira se emancipou e eu fiquei no território de Jaqueira. Mas vim com 5 anos de idade pra cá.
(2:12) P/1 - Você tem irmãos?
R - Lá em casa foram treze irmãos, sendo sete homens e seis mulheres. Na fase inicial faleceram três, sobreviveram dez; ficaram cinco homens e cinco mulheres. Hoje tem cinco mulheres e três homens, faleceram dois.
(2:40) P/1 - E onde você estava nessa escadinha? Era o mais velho, o do meio?
R - Dos homens eu estava no terceiro - no quarto, aliás.
(2:56) P/1 - Você conhece a história dos seus avós? Chegou a conhecê-los?
R - Sim! Pouco, mas conheci. Eram também pessoas ligadas ao campo, à agricultura. E também sempre...
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Entrevista de Marivaldo Andrade
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Jaqueira, 16 de novembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV014
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:23) P/1 - Boa tarde Marivaldo, tudo bem?
R - Boa tarde, tudo bem!
P/1 - Então a gente vai começar com a pergunta mais simples. Eu queria que você se apresentasse dizendo seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Sou Marivaldo Silva de Andrade, residente no município de Jaqueira, Pernambuco, na localidade do Engenho Bálsamo da Linha, zona rural deste município. Nasci no dia 10/06/1966.
(0:59) P/1 - E qual o nome dos seus pais, Marivaldo?
R - Maria Helena Silva de Andrade e Misael Lopes de Andrade.
P/1 - Quando você nasceu, no que os seus pais trabalhavam?
R - Meus pais trabalhavam na agricultura. Minha mãe era mais ligada à agricultura e meu pai tinha um pequeno comércio.
(1:27) P/1 - E em qual cidade eles moravam? Eles mudaram de cidade para morar onde você nasceu, ou eles já estavam lá antes?
R - Anteriormente a gente morava na cidade de origem que eu nasci, Palmares, que é uma cidade próxima aqui da região. E vim ao município de Maraial - Jaqueira era distrito. De Jaqueira a Maraial são dez quilômetros Depois Jaqueira se emancipou e eu fiquei no território de Jaqueira. Mas vim com 5 anos de idade pra cá.
(2:12) P/1 - Você tem irmãos?
R - Lá em casa foram treze irmãos, sendo sete homens e seis mulheres. Na fase inicial faleceram três, sobreviveram dez; ficaram cinco homens e cinco mulheres. Hoje tem cinco mulheres e três homens, faleceram dois.
(2:40) P/1 - E onde você estava nessa escadinha? Era o mais velho, o do meio?
R - Dos homens eu estava no terceiro - no quarto, aliás.
(2:56) P/1 - Você conhece a história dos seus avós? Chegou a conhecê-los?
R - Sim! Pouco, mas conheci. Eram também pessoas ligadas ao campo, à agricultura. E também sempre tiveram comércio de lavoura do sítio.
(3:19) P/1 - E como você descreveria seu pai e sua mãe - o jeito deles, como eles eram?
R - Meu pai, eu não pude ter muita convivência com ele, porque ele faleceu muito jovem ainda, [com] uns quarenta anos. Eu fiquei [sem pai] bem jovem, com a idade de um pouco mais de seis, sete anos, bem jovem mesmo.
Minha mãe ficou com dez filhos e ela foi essa pessoa com bastante… Que conduziu com muita força, com muita determinação a criação dos filhos, então ela para mim foi exemplo. Ela teve uma vivência, deu educação a todos. Quando ficamos todos pequenos, quando meu pai faleceu, logo três irmãos viajaram para São Paulo, à procura de emprego, e o restante ficou aqui - inclusive eu, nunca saí. E ela sempre foi a motivadora, a incentivadora.
É uma pessoa muito batalhadora, ela sempre… Era do campo, se qualificou, foi professora. Ela fazia costura, ela fazia munguzá, comidas típicas para poder dar conta das crianças e dar conforto, então ela foi heroína para todos nós. Conseguiu ainda, com uma certa idade, terminar o magistério, fez um curso de aperfeiçoamento no colégio da Diocese de Palmares. Com uma certa idade, ainda conseguiu ser vereadora duas vezes aqui da cidade.
(5:18) P/1 - E como era o dia a dia de vocês na sua infância?
R - Era trabalho na roça, a gente era tudo pequeno, e estudar. Naquela época era muito difícil o deslocamento de transporte, a gente não disponha de transporte, era muito precário. A gente tinha que andar seis quilômetros todo dia para estudar a pé, era uma realidade bem dura.
(5:54) P/1 - E além dos estudos e do trabalho na roça, vocês tinham tempo para brincar? O que vocês gostavam de fazer?
R - Muito pouco. A vivência da infância foi muito dura. A gente tinha um jogo de futebol, que é uma forma de esporte aqui, pra que a gente pudesse conviver com outras crianças, na época. Era essa a oportunidade que a gente tinha, bater uma pelada, jogar um futebol. A gente às vezes gostava, até, de brincar. A gente nasceu em dois tempos, de menino passou para velho, entendeu? A gente praticamente não teve infância.
(6:37) P/1 - E tem alguma comida, algum cheiro que quando você sente agora se lembra imediatamente da sua época de infância?
R - Sim! O cuscuz com leite, o xerém, comida típica daqui, que a gente sempre… O arroz, o feijão eram as comidas típicas, muito saborosas e gostosas.
(7:05) P/1 - E você se lembra da casa onde você passou a sua infância? Como que ela era?
R - Lembro sim! Eu saí desta casa quando casei, em 97. Passei toda minha infância, uma parte da juventude e quando eu casei foi que eu saí. Morava com minha mãe.
P/1 - E como era em volta da casa? Era uma região rural também? Como era? Tinha vizinhos?
R - Eram umas casas precárias, porque eram casas de engenho. Não tinha privacidade, inclusive, porque eram casas que aqui a gente chama casa de arruado, elas são casas geminadas uma na outra, uma parede colada em outra, então a realidade era essa. Não tinha um conforto. Era uma casa muito… De uma prática aqui de todos os engenhos, a realidade era essa.
(8:17) P/1- Conversando um pouquinho sobre escola, tem algum momento que seja marcante da sua época de escola, que você se lembre até hoje?
R - Sim! Eu comecei na minha infância, no jardim da infância, no grupo da Usina Catende, com a professora Helena. Depois de vir pra fazer o ensino fundamental no colégio Miguel Pellegrino, aqui no município de Jaqueira, também estudei no Costa Azevedo, que atende no ginásio de Catende.
Aqui na nossa cidade tinha as irmãs Epifani, que eram três irmãs solteiras. Há um registro da história dessas professoras, a gente não sabe a realidade, mas é como se elas viessem do município de Panelas, que é um município aqui na região nossa, no agreste pernambucano, e elas se instalaram em Jaqueira. E elas foram condutoras muito presentes na questão e foram um marco na educação de toda essa juventude que estava iniciando. Eram três irmãs, solteironas, sempre viveram dedicadas à educação. Faziam o curso de datilografia, aquelas práticas de educação que eram admiradas por todos. E dona Rosa Guerra, que foi uma das professoras que marcou também a minha infância aqui no município de Jaqueira.
(10:05) P/1 - E indo mais um pouco adiante, pra sua juventude, você continuou na mesma cidade?
R - Continuei na mesma cidade, no município de Jaqueira.
(10:22) P/1 - Certo. E durante essa parte da sua juventude, o que você gostava mais de fazer? Tinha tempo para se divertir?
R - Era muito curto, porque a gente acordava cedinho da manhã, quatro e meia, cinco horas. A gente tinha criação de animais; eu ia fazer os tratores, tirar capim e botar para os animais, fazer a ração deles, e depois eu ia para o roçado. E também trabalhei no corte de cana, camitando caminhão, mexendo em caminhão de cana, que era uma atividade muito presente aqui, na vida das pessoas. Então eu trabalhei…A infância era quase sem aproveitar, era mesmo de trabalho.
(11:21) P/1 - E os estudos do ensino médio? Você tinha comentado que tinha começado a fazer um curso de técnico de administração. Isso foi logo depois do ginásio ou demorou um pouquinho?
R - Não, foi logo em seguida. Às vezes tinha muita dificuldade, porque tinha às vezes que andar a pé. Quando ficou um pouco mais distante, que era em Catende, a gente não tinha dinheiro para o transporte escolar. Tinha que pegar carona, às vezes conseguia, às vezes não. Às vezes ia muito cansado pra escola e me debruçava na cadeira pra dormir um pouco, em plena aula. A professora às vezes era compreensiva, porque conhecia um pouco da história.
(12:15) P/1 - E depois disso você continua trabalhando na agricultura? Como prosseguiu a sua atividade profissional?
R - Primeiro assim, do início, a gente teve muito uma formação da igreja na minha juventude. Eu comecei a participar dos grupos de pastorais rurais, entendeu? Eram atividades importantes pra gente buscar convivência com os agricultores, com pessoas que trabalhavam no campo. E era muito no método ‘ver, julgar e agir’. Tanto pela Pastoral Rural [quanto] pela ACR [Ação Católica Rural], que foi a animação dos que estão no meio rural. E era ligada à igreja, aqui à diocese de Palmares. A gente tinha esse trabalho.
Desse trabalho desembocou uma questão de oposição sindical. Na época tinha uns sindicatos muito pelegos, coniventes com o atraso patronal, e teve todo um desencadeamento de fazer a oposição nessa direção do sindicato, para a retomada da luta dos trabalhadores.
Um dos sindicatos que surgiu de primeira mudança aqui foi o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Maraial. Em 92 eu fui eleito presidente do sindicato, aí tive essa vivência na luta dos trabalhadores.
Fiz militância no movimento sindical até os anos de 2012. Tive uma passagem em decorrência disso, como uma representação de uma composição da Justiça do Trabalho: tinha um juiz togado, um representante do empregador e um representante do trabalhador. Eu fui escolhido como esse representante dos trabalhadores, então fiquei durante seis anos na Justiça do Trabalho. Não me afastei do sindicato, porque não é obrigatório, porque quem fez a indicação foram os trabalhadores, através do sindicato, então essa representatividade nós tivemos, perante à Justiça do Trabalho.
Depois a gente… Foi extinta essa atividade, que se caracterizava… Uns chamavam como juiz classista, outros chamavam como vogal, entendeu? Ou seja, tinha uma paridade ali de representatividade que foi extinta depois, nos anos 90 ainda.
A minha vivência no sindicato desencadeou toda uma luta que me ensejou na luta de Catende, porque as empresas viviam um momento de muita liquidez aqui, dificuldades, muitas demissões de muitos trabalhadores. Foi onde surgiu uma luta grande e a gente fez uma retomada aqui da usina do complexo, da Usina Catende. Ela compunha justamente aqui, os cinco municípios… Era um empreendimento, foi a maior usina da América Latina no passado. Ela tem uma infraestrutura bastante exitosa, foi construída pelo tenente da Catende, teve várias e várias pessoas que passaram, mas o tenente foi quem elaborou toda a infraestrutura de irrigação, de linha férrea. Tinha mais de duzentos quilômetros de linha férrea, que trafegava tanto os trens de passageiros, como de produção. E tinha toda uma infraestrutura criada pra questão de irrigação, que foi idealizada na época pelo Engenheiro Apolônio Sales. Apolônio Sales saiu novinho da faculdade e veio a Catende prestar esse serviço, para o desenvolvimento da parte agrícola.
Em 93 praticamente houve uma demissão em massa aqui dos trabalhadores da Usina Catende. E eu, como sindicalista, encampei essa luta, junto com os outros sindicatos, que era o Sindicato dos Palmares, o Sindicato de Catende, o Sindicato de Água Preta, o Sindicato de Xexéu e o Sindicato de Maraial na época, que depois passou a ser o sindicado de Jaqueira. A gente coordenou todo esse processo, que ensejou na expulsão dos donos do processo e depois um pedido de falência da usina. Foi concedida essa falência, com continuidade dos negócios, e a gente continuou. Foi onde nasceu toda a parte dessa convivência nossa com a questão da economia solidária.
(17:31) P/1 - E antes dessa experiência, você chegou a ter alguma formação sobre o que era economia solidária, ou esse aprendizado se deu ali, na prática mesmo?
R - Não, ele foi se dando na prática, por uma vontade de lutar, por uma vontade de empreender, por uma vontade de continuar [para] que os trabalhadores não fossem prejudicados na sua questão de emprego. Foi um sofrimento grande, muito grande, precisou da mão de muitas pessoas. Inclusive na época o governador Miguel Arraes foi uma pessoa fundamental, juntando a eles, o presidente Lula. Aí vem o professor Paul Singer com a economia solidária.
Depois teve a implantação de um programa que foi muito importante, porque quando a gente… Com a expulsão dos donos, o que instalou o processo de falência, a gente verificou que tinha mais de 80% de analfabetos no campo da Usina Catende. E era uma dimensão de mais de duas mil famílias que moravam nesse território, então 80%. Aqui foi implantado um programa de alfabetização com o método Paulo Freire e esse programa rendeu muito; logo, logo, esse número de 80% desceu a 20% e as pessoas já começaram a aprender a assinar o nome, a ler e a escrever.
Eu acredito que uma das últimas aparições públicas aqui em Pernambuco, e sobretudo aqui no Nordeste de Paulo Freire, foi em Catende. Ele inclusive veio ministrar uma aula aqui inicial, numa escola de campo mesmo, ele veio aqui. Uma coisa fantástica.
(19:35) P/1 - E quais são as vantagens de se trabalhar coletivamente na economia solidária?
R - O professor [Paul Singer] ensinou muita gente, ele era um entusiasta dessa política da economia solidária. Era uma pessoa formidável, uma pessoa que tinha uma larga compreensão de vivência do mundo e uma pessoa que ajudou muito pra que a gente pudesse desenvolver práticas de economia solidária aqui em Catende.
Com isso a gente foi se somando às outras experiências. Eu lembro que teve alguns fóruns de contato em que a gente se encontrava. Tinha uma experiência de fécula do Paraná, tinha uma experiência têxtil aí em São Paulo, tinha uma mineradora em Santa Catarina. E esses arranjos produtivos foram dando dimensão para que a economia solidária fosse se dando de forma que os trabalhadores abraçassem essa prática, de poder desenvolver esse trabalho. Foi muito importante.
O professor esteve aqui por várias e várias vezes na nossa região, aqui em Catende, sobretudo, e era aplaudidíssimo pela juventude, por todos nós aqui, pela sua prática, experiência, pela pessoa que ele era, pela formação de caráter que ele sempre foi. Uma pessoa formidável para dar segurança naquilo que ele passava pra gente.
(21:21) P/1 - E falando sobre Paul Singer, você tem alguma memória dele, alguma lembrança que te marcou?
R - Tem, sim! Nós sempre tivemos a convivência dele aqui e quando ele estava aqui presente tinha reuniões com cinquenta, sessenta, até com cem lideranças. E isso ficava muito na memória da gente, porque era agente multiplicador das ações que ele passava pra gente, com o conceito de economia solidária. As pessoas foram tendo essa vivência e aprendendo as práticas da economia solidária, dentro de uma questão humanitária também, então era muito marcante toda vez que ele estava aqui presente, principalmente nessas reuniões de liderança. Sempre foram firmes no conceito de defender [a economia solidária] em todas as escalas de governo.
Eu participei de várias reuniões. Não é fácil, era um projeto em disputa. Estava lá o professor Paul Singer, sempre colocando as prioridades e a atenção para que a economia solidária também fosse vista como atividade de empresa recuperável, que é esse sentido, e que as pessoas tinham a capacidade de gerir o seu próprio negócio. Esse legado ele deixou para todos nós e foram práticas que foram colocadas, que a gente aprendeu muito bem.
Para você ter uma ideia da história de Catende como eu venho lhe contando, [quando] ela teve a decretação da falência, o primeiro síndico foi o Banco do Brasil, que era o maior credor. O Banco do Brasil passou quase dois anos, renunciou, aí entrou um técnico que fazia também parte da administração do Banco do Brasil, Doutor Mário Borba, mas já foi uma indicação pelos trabalhadores.
Depois que saiu o Doutor Mário Borba, as pessoas, os credores e os movimentos social e sindical me indicaram pra ser o síndico. Aí você sabe o quanto é travado na justiça para uma situação dessa. Um trabalhador que sai do campo, que viveu na roça, não tá no imaginário delas administrar uma usina que foi uma das maiores da América Latina.
Modéstia à parte, já com a aprendizagem da economia solidária, de toda a vivência, a gente conseguiu conduzir esse projeto com muita força, a ponto de que quando a gente assumiu a usina ela tinha uma produção de 150 mil toneladas de cada, com 37 por hectare. E ao final da minha gestão, a gente deixou quase quinhentas mil toneladas, com quase sessenta por hectare. A gente chegou a fazer a maior produção dos últimos vinte anos dessa empresa. A gente chegou a bater um recorde de quase um milhão e duzentas mil sacas de açúcar.
Foi um aprendizado. Era um processo também em disputa, quase que a gente chegou à totalidade de fazer a emancipação desse projeto. O que é que acontece? A gente pediu a desapropriação com o apoio do governo, do presidente Lula. Na época, o ministro Miguel teve papel decisivo também, na condição das diretrizes decididas pelo presidente, e foram desapropriados mais de 24 mil hectares de terra, no contexto, acho que um dos maiores assentamentos de reforma agrária da América Latina. Muita terra desapropriada ao mesmo tempo e dentro de um tempo recorde.
Pra você ter uma ideia, dentro de um ano foi vistoriado, dentro de um ano foi desapropriado, dentro de um ano foi dado a missão de posse, dentro de um ano foram pagos 54 milhões de reais na conta da Sétima Vara da Justiça Federal.
Pra você ter uma ideia, teve uma ‘Lava Jato’ também aqui em Catende, entendeu? A gente inclusive foi vítima, em pequena proporção, mas à época algumas forças políticas com poder judiciário destituíram a gente da gestão, acabaram com a produção, com a usina e terminaram acabando com os recursos da Sétima Vara, que eram recursos para pagar o direito de indenização dos trabalhadores. Foi isso! Através de um juiz que fez toda essa ocorrência e para os trabalhadores, sobrou acusação inclusive para mim, de trabalho escravo, como se eu tivesse praticado, feito práticas de trabalho escravo.
Graças a Deus vencemos todas, fui absolvido por quinze votos a zero. Mas é aquele legado das pessoas, de acusar para poder fazer o que eles acusavam a gente, pra eles poderem fazer com leveza o que fizeram. Recentemente, por exemplo, o juiz foi acusado pelo próprio pai, que é juiz e desembargador… O juiz que me destituiu, que está na massa falida, desviou dezoito milhões de reais da massa falida, entendeu? Então isso dá um atestado de que a gente cumpriu com honestidade o papel da gente. E deixamos um legado para que as pessoas tivessem… Não tem a usina hoje, mas pelo menos tem terra, a terra tá na mão dos trabalhadores.
(27:36) P/1 - Eu queria que você comentasse um pouco como é que vocês organizavam as decisões coletivas naquela época.
R - Olha, as decisões coletivas… A gente tinha na base da parte do campo. A gente tinha cinco sindicatos que representavam as áreas rurais: Sindicato de Palmares, Sindicado de Água Preta, Sindicato de Xexéu, Sindicato de Catende e o Sindicato de Jaqueira, e tinha uma comissão de fábrica, da parte da indústria, então juntava essas pessoas pra fazer essa discussão -onde ia fazer parte do investimento, como capital e recurso, em que ia poder ser investido, toda aquela vivência que a gente teve, e numa necessidade para implementação da questão da economia solidária. Eu não posso ser solidário só comigo, eu tenho que ser solidário com o outro para que as coisas possam funcionar e contemplar todos aqueles que estão na cadeia produtiva.
A gente também criou uma prática, em cada engenho desses, que era 48 - se chama engenho aqui, em outras regiões se chama fazenda, mas aqui é conhecido como engenho de cana-de-açúcar. Nesses 48 engenhos, cada engenho tem uma associação de moradores. Essas associações de moradores tinham acesso a esse polo também, para discutir as questões produtivas, de investimento, a questão captação de recurso, de plantio, que fortalecessem não só a parte da cana-de-açúcar. Era necessário porque tinha uma indústria para manter, mas as práticas de fazer uma diversificação da lavoura, um plantio de banana, de inhame, macaxeira, de mandioca, plantio de peixe.
A gente teve o Centro José de Caixa aqui dando instrução, porque é uma área muito rica em água, fazendo as práticas pra que a gente pudesse desenvolver a piscicultura, a criação de pequenos animais, até do gado também. Mas isso foi uma diversidade que a gente vinha praticando, que hoje tem no assentamento.
As tomadas de decisões era com essas pessoas. E a gente tinha pessoas em escala maior, o professor Paul Singer, tinha outros fora, a Fetape [Federação Dos Trabalhadores Rurais Agricultores E Agricultoras Familiares Do Estado De Pernambuco], Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], que também estava dentro dessa luta, apoiando, que tinha a sede para fazer as discussões das políticas e encaminhar a decisão que os trabalhadores tomavam.
(30:31) P/1 - Tinha alguma política pública de economia solidária que teve impacto nos trabalhos de vocês na comunidade?
R - Sim! A gente tava com essa vivência. O processo por si só a gente já implementava como economia solidária, entendeu? A gente já tinha esse conceito de que era uma travessia pra emancipação da gente. Inclusive foi criada a Cooperativa Harmonia, que teve um papel decisivo em muitas políticas também, que veio a falir também, junto com o desmonte da Usina. A cooperativa foi lesada também pela massa falida, depois que a gente saiu, de não receber seus créditos, não receber suas ______. Pequenos agricultores levaram prejuízo grande.
Depois disso, estamos tentando nos reerguer. E hoje a realidade já tá bem melhor, entendeu? Mas a travessia de falência pra questão de autonomia dos trabalhadores, ela tá toda pautada dentro do conceito da economia solidária. E isso já tem as práticas que a gente fazia. Por exemplo, a gente conseguiu ter isenção de vender açúcar diretamente à Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] e era um procedimento muito exitoso e muito bom, porque pegava o açúcar daqui. O açúcar de Catende andou em todos os Estados da Federação Brasileira, através desse projeto que a Conab deu essa oportunidade. Era a vivência, era repartir, era o conceito, a economia solidária que podia circular. E todo esse açúcar produzido que ia pra Conab ia para as cesta básicas de todas esses Estados da federação, até para o Acre já saiu açúcar do empreendimento dos trabalhadores aqui de Catende.
(32:53) P/1 - Você acha que o trabalho coletivo mudou o seu jeito de ver a vida?
R - Mudou! Ele é um pouco emblematico, porque a gente tem um cultura secular de escravidão aqui na Zona da Mata. As usinas de açúcar, se tornaram [usinas] a partir dos engenhos moedores, o senhor de engenho. Depois se tornaram grandes empreendimentos de cana de açúcar e concentração de terras, então o pessoal saiu de uma relação de escravidão para o assalariamento.
Mudar a cabeça dessas pessoas para essa nova versão era muito difícil. Você pegar um trabalhador que é assalariado para ele se transformar dono do seu próprio negócio, ou ele ser produtivo e poder dar conta daquela produção e se planejar para aquela atividade, foi uma coisa muito difícil de fazer. Mas a gente conseguiu êxito, com muitos processos de educação, tirando o pessoal do analfabetismo. Inclusive a implantação do projeto com o método Paulo Freire, que se chamava Catendão, ele foi muito propício para o momento, porque ajudou a humanizar as pessoas, mas também alfabetizar. E com isso as pessoas foram sentindo a inclusão delas dentro do processo.
Tudo passa tudo por um processo de transformação, não é fácil porque é essa relação que eu lhe falei, você sai de escravidão para assalariamento. Muitas vezes na cabeça das pessoas [elas] têm um patrão e tem uma sexta-feira para receber; era a programação delas, elas não tinham metas pra poder discutir, planejar, vivenciar, até porque a diversidade antes era proibida. Se você plantasse um pé de banana, um pé de macaxeira, era arrancado, entendeu? Então isso foi uma vivência de transformação também. E essa forma coletiva foi que ajudou para que a gente pudesse chegar aos patamares do momento que a gente tá hoje.
(35:12) P/1 - Como é que você vê o futuro desse trabalho coletivo de vocês atualmente?
R - Olha, eu vejo com muita perspectiva. A gente tá num estágio de superação, muito embora não tenha a usina, mas tem as terras. Como o projeto aqui não foi no modo do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], se desapropriou coletivamente na época, inclusive todo o território foi [desapropriado] coletivamente. Hoje o Incra tá com uma política de implantação pra parcelar, há uma reação nesse sentido ainda, a gente precisa conversar muito. Mas eu vejo que o próprio assentamento hoje, que é o PE Miguel Arraes, que tem em torno de 24 mil hectares de terra… Somado a outros que a gente já tem desapropriado individualmente, eu acho que dá mais de trinta mil hectares de terra. Ele tá sendo um projeto, falta apoio, falta discutir políticas.
A gente tá com um projeto de construção de casas pelo Incra, ainda em passos lentos, mas tem. Tá faltando assistência técnica pra que essas pessoas possam se desenvolver melhor, mas eu já vejo como um momento de superação. E de buscar no meio essa forma de empreender diferente.
(36:47) P/1 - E como você entende hoje economia solidária e trabalho coletivo?
R - Olha, o trabalho coletivo é aquela coisa que você pega mais a escala dentro do contexto que a gente possa estar ali conjuntamente, trabalhando com aquele grupo de pessoas. A economia solidária, ela tem um outro olhar, um outro espelho, é você poder planejar, poder executar e ser participante de todos os resultados, dos lucros, dos prejuízos. Das ações que possam consolidar, dentro do espírito solidário, humanitário, coletivo, pra que a gente possa ter essa realidade presente na vida das pessoas. E se sentir apoiado por isso e poder avançar nessa luta.
(37:51) P/1 - Como a pandemia de covid-19 afetou o trabalho de vocês e a vida de vocês durante aquele período?
R - Foi um pouco difícil, muito difícil, porque limitou e muito a vivência das pessoas, a circulação. Muito embora aqui no campo seja uma coisa, vamos dizer assim, mais ampla, não tinha tanto esse aglomerado de pessoas, mas prejudicou um pouco a elevação dos insumos, subiu muito. O pessoal tem uma prática ainda de ter uns produtos para fazer remanejo na sua produção; isso atrasou um pouco. Foi um pouco prejudicial.
Inclusive nessa época, eu quero dizer da felicidade, porque quando destruíram a gente lá da massa falida, achando que ia liquidar o processo… Como liquidou um grande empreendimento, porque os trabalhadores estavam a ponto de se emancipar e a fábrica todinha vir pra eles, ou de forma adjudicada pela justiça, com direito que eles tinham a receber, ou da forma que a gente tentou pelo Governo Federal - como desapropriou as terras, também desapropriar a fábrica, coisa que não aconteceu, então ficou ainda na mão da justiça essa parte. A partir da justiça criou-se todo esse estrago.
Eu não vou generalizar aqui a justiça, mas [foram] setores, pessoas que tiveram essa conduta de frustrar o sonho e a emancipação de um projeto trabalhado a duras penas, com muitas mãos, de muitas pessoas que acreditaram e apoiaram sempre os trabalhadores.
Nesse momento, quando eles acharam… Eu fui eleito prefeito da minha cidade. Fui eleito em 2012 e consegui administrar o município, fui reeleito pelo Partido dos Trabalhadores. Vivi esse momento de pandemia, e naquela época, como prefeito, tomei todas as providências para que a gente não tivesse grandes problemas, e graças a Deus a gente evitou aqui. Fizemos as barreiras, fizemos um acompanhamento do PSF [Programa Saúde da Família], a parte da equipe de saúde nas residências, os testes para poder… A compra da vacina, adquirimos através do Governo Federal, do Estado também, então a gente fez todo o trabalho que mereceu no momento, para que a gente pudesse proteger a nossa população.
A gente teve esse pedacinho aí de participação também, é vivência nossa, então isso me deu alegria, porque veio do reconhecimento do trabalho que eu tinha feito com os trabalhadores de Catende. Depois de ser destituído, acusado de tudo quanto é de ofensa, inclusive de trabalho escravo, e depois ser eleito prefeito, reeleito, isso me dá muita alegria, porque inclusive eu saí com oito pontos aprovados pelo Tribunal de Contas.
(41:35) P/1 - Então a gente vai agora um pouquinho mais para o seu dia a dia atual. Como é o seu dia a dia atualmente, Marivaldo?
R - Olha, o meu dia a dia, depois que eu saí de prefeito….Graças a Deus vi a formação das minhas filhas. Eu sou casado, tenho três filhos. Tenho duas moças, uma é dentista, se formou em Odontologia, a outra é advogada. Todas as duas já estão com suas ocupações, e tem um outro rapaz que tá muito ligado à agricultura, ele tava fazendo curso de Engenharia de Produção, mas também não conseguiu terminar.
Hoje a minha vivência, depois que eu saí de prefeito, é no meu sítio. Vou trabalhar todo dia, plantar macaxeira, criar peixe, fazer as atividades agrícolas, criar porco. Meu dia a dia tem sido esse, minha participação tem sido essa. E me dá muita alegria e muita satisfação, porque é o que eu sei e o que eu gosto de fazer.
(42:43) P/1 - Como foi para você ser pai?
R - Foi uma coisa maravilhosa! Uma coisa que não acontece duas vezes, foi muito importante. Isso vai fortalecendo a estrutura familiar.
(43:03) P/1 - E o que você gosta de fazer quando você não está trabalhando?
R - Eu gosto de bater uma peladazinha quando tenho tempo. Ultimamente tô um pouco parado, porque fiz uma cirurgia recentemente. Gosto de dançar um forró quando tem uma festinha. Gosto às vezes de estar em encontro de amigos, como uma festa, a gente sempre participa. E gosto de fazer os debates políticos também.
A vivência que eu sempre tive presente na atividade política, desde os anos de 89, praticamente, desde a primeira eleição de Lula que a gente não deixou mais de acompanhar… Eu sou uma pessoa que está sempre presente em todos os estágios da política aqui, tanto municipal, como estadual e federal. A gente tem essa vivência de discutir e formar novos cidadãos, pra que a gente consiga, através de um bom debate, criar novas práticas políticas e fazer com que a nossa juventude compreenda e tenha o alcance do perigo que a gente viveu ultimamente, do fascismo, da intolerância, dessa coisa horrorosa aí, que é criar essa coisa de violência em cima das pessoas. E criar a duras penas…
Aqui eu não vejo outro ser humano com tão larga experiência e convivência e com tanta sabedoria, apesar de não ter tanta leitura, quanto o presidente Lula. Ele soube agregar, ele soube se colocar bastante numa luta muito dura contra ele, mas que graças a Deus estamos superando. A Democracia venceu e acredito que… Vamos estruturar pra que a gente consiga levar ela adiante com muita força.
(45:14) P/1 - Marivaldo, pensando na sua trajetória, no seu envolvimento sindical, depois a administração da usina, depois a sua trajetória como prefeito, como você enxerga isso? Como você se sentiu com essas conquistas pessoais e também coletivas?
R - Olha, eu me sinto vitorioso. Agradeço a Deus todo dia pela minha existência. E dizer [que para] a minha infância, a minha vivência, a realidade da minha mãe, da minha família, isso foi uma grande vitória, porque é quase inimaginável uma pessoa de pouco recurso, com a trajetória que a gente teve, de viver na pobreza mesmo, chegar a alcançar, ter uma trajetória desta, com a confiança. Sempre dá perseverança, [de estar] sempre lutando pelo que a gente acredita.
Eu não tenho como agradecer. Eu acho que eu já consegui quase todos os estágios, graças a Deus a minha vida me proporcionou [isso]. Em nenhum momento desses eu me coloquei ‘eu quero ser isso’, ‘eu quero ser aquilo’. A vivência e a vida e o meio que eu vivi foram me proporcionando isso, pra que a gente pudesse ter alcançado esses espaços que a gente conseguiu.
(46:45) P/1 - E o que é mais importante para você hoje em dia, Marivaldo?
R - O mais importante? Olha, o mais importante é a gente estar vivendo esse momento de reestruturação do Brasil, com uma perspectiva de que as pessoas possam ter a sua paz interior, mas ter governantes que garantam esse ambiente. E que a gente possa ter a felicidade e ter reconhecimento como ser humano, como pessoas que precisam viver, que precisam ser respeitadas, que precisam ser reconhecidas por aquele que a gente vive, seja em qualquer estágio da vida que a gente tiver, ou seja, em qualquer local de trabalho, ou em qualquer atividade econômica, ou atividade política, ou atividade sindical. No meio que a gente vive. Isso para mim é uma felicidade.
(47:51) P/1 - E quais são os seus sonhos?
R - Olha, os meus sonhos… Eu, graças a Deus, eu já consegui quase todos. A gente fica com sonho de ter uma vida plena, uma vida com uma mudança, que as pessoas possam ter felicidade. Isso é um sonho, que a gente possa se emancipar de uma vez por todas. Que as pessoas possam ser felizes.
(48:28) P/1 - E o que o projeto de economia solidária representa na sua vida?
R - Tudo! Porque foi a partir dele, da base estrutural que a gente teve os ensinamentos, teve essa educação, teve o alcance e teve essa convivência com várias experiências que foram desenvolvidas no país inteiro, e que deram um ambiente em que a gente pudesse discutir os empreendimentos recuperáveis. O professor Paul Singer proporcionou muito isso; inclusive, depois dessas práticas, a partir da sua iniciativa também foram criadas muitas cooperativas em todo esse território brasileiro. As formas de cooperativas bem estruturadas são diversas; são práticas diferentes, que é possível você trabalhar também
(49:28)P/1 - E qual legado você deixa para o futuro, Marivaldo?
R - Rapaz, o legado é de poder ter cumprido com a minha tarefa por onde eu passei, ter deixado sempre as coisas de acordo e cumprir com as minhas obrigações. Poder ter estruturado uma família e que ela possa desfrutar daquilo que a gente pode ensinar, porque a gente tem essa felicidade plena com o reconhecimento de todo o trabalho, por onde eu passei sempre fui reconhecido. Então essa é minha…
(50:11) P/1 - Você gostaria de acrescentar algo mais? Contar alguma história que foi marcante para você e que a gente não falou ainda?
R - Não! São muitas, mas eu acho que a gente pode se debruçar um pouco naquilo que realmente a gente conviveu, que convive. Saudade daqueles que teve nessa luta com a gente, o professor Paul Singer, o Professor Paulo Freire, o Miguel Arraes. São tantas e outras pessoas memoráveis que a gente conheceu nessa trajetória, que não estão presentes com a gente, mas que deixaram legado. Deixaram os ensinamentos e as práticas boas, pra que a gente pudesse ser agente multiplicador dessas realidades. E tantas outras pessoas que junto com eles conviveram com essa prática e com essa luta toda.
(51:18) P/1 - Então nós vamos para a última pergunta, Marivaldo. Como foi pra você contar um pouco da sua história para a gente hoje?
R - Rapaz, um pouco difícil! Um pouco difícil, mas adorei, gostei, porque são coisas que alimentam a alma, o sentimento e a esperança.
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