Memórias da Economia Solidária
Entrevista de Daniel Tygel
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Caldas, 01 de novembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV011
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:21) P/1 - Boa tarde, Daniel, tudo bem?
R - Boa tarde, Genivaldo, tudo bem. Feliz de estar aqui com vocês.
(0:29) P/1 - A gente também, obrigado por aceitar nosso convite. Eu vou começar com uma pergunta bem difícil. Gostaria que você se apresentasse dizendo o seu nome, o local e a data de nascimento.
R - Tá legal. Meu nome é Daniel Tygel, eu sou nascido no Rio de Janeiro, no dia primeiro de dezembro de 1973.
(00:53) P/1 - Qual o nome dos seus pais, Daniel?
R - Meu pai se chama Martim, minha mãe se chama ngela.
(01:02) P/1 - E com que seus pais trabalhavam, ou trabalham?
R - O meu pai é acadêmico, sempre foi acadêmico, na área de matemática aplicada; depois se dedicou mais à geofísica. A minha mãe era acadêmica mais fortemente, mas durante o tempo da academia no campo da antropologia, depois comunicação social; depois se envolveu muito com o movimento sindical e movimentos populares, movimentos de mulheres. Hoje ela é aposentada, o meu pai ainda não - quer dizer, ele já deveria estar aposentado, mas ele está com aquela cátedra, não sei como chama isso, que você continua trabalhando na universidade.
(01:49) P/1 - Os seus pais te contaram alguma coisa sobre o dia do seu nascimento?
R - Não, acho que não, do dia do nascimento? Acho que não, não estou lembrando. Foi de manhã e o local eu sei, foi na Tijuca, no Rio de Janeiro. Agora sobre o dia em si, como ele estava, se era manhã, tarde ou noite, quer dizer, manhã, tarde ou noite eu sei. Se estava nublado ou se estava chovendo eu não sei.
(02:22) P/1 - E você sabe por que eles escolheram colocar o seu nome como Daniel?
R - Não. Eu sei que eu tinha um outro nome caso fosse uma menina, que era Melissa. Depois que a marca...
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Entrevista de Daniel Tygel
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Caldas, 01 de novembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV011
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:21) P/1 - Boa tarde, Daniel, tudo bem?
R - Boa tarde, Genivaldo, tudo bem. Feliz de estar aqui com vocês.
(0:29) P/1 - A gente também, obrigado por aceitar nosso convite. Eu vou começar com uma pergunta bem difícil. Gostaria que você se apresentasse dizendo o seu nome, o local e a data de nascimento.
R - Tá legal. Meu nome é Daniel Tygel, eu sou nascido no Rio de Janeiro, no dia primeiro de dezembro de 1973.
(00:53) P/1 - Qual o nome dos seus pais, Daniel?
R - Meu pai se chama Martim, minha mãe se chama ngela.
(01:02) P/1 - E com que seus pais trabalhavam, ou trabalham?
R - O meu pai é acadêmico, sempre foi acadêmico, na área de matemática aplicada; depois se dedicou mais à geofísica. A minha mãe era acadêmica mais fortemente, mas durante o tempo da academia no campo da antropologia, depois comunicação social; depois se envolveu muito com o movimento sindical e movimentos populares, movimentos de mulheres. Hoje ela é aposentada, o meu pai ainda não - quer dizer, ele já deveria estar aposentado, mas ele está com aquela cátedra, não sei como chama isso, que você continua trabalhando na universidade.
(01:49) P/1 - Os seus pais te contaram alguma coisa sobre o dia do seu nascimento?
R - Não, acho que não, do dia do nascimento? Acho que não, não estou lembrando. Foi de manhã e o local eu sei, foi na Tijuca, no Rio de Janeiro. Agora sobre o dia em si, como ele estava, se era manhã, tarde ou noite, quer dizer, manhã, tarde ou noite eu sei. Se estava nublado ou se estava chovendo eu não sei.
(02:22) P/1 - E você sabe por que eles escolheram colocar o seu nome como Daniel?
R - Não. Eu sei que eu tinha um outro nome caso fosse uma menina, que era Melissa. Depois que a marca Melissa ficou famosa, de sandália, eles ficaram felizes que eu nasci homem, senão ia ser motivo de muito bullying.
(02:50) P/1 - Você tem irmãos, Daniel?
R - Tenho, somos ao todo cinco irmãos. Tenho uma grande quantidade de irmãos, para os dias de hoje.
(03:01) P/1 - E onde você está nessa escadinha? Você é o mais novo, mais velho?
R - Eu sou o mais velho.
(03:09) P/1 - Você tem alguma informação a respeito da origem da sua família, dos seus avós, se eles eram realmente do Rio, ou se vieram de outro lugar para o Rio?
R - Tenho. Tem uma parte que é mais difícil de identificar, na verdade todas são meio… Elas vão ficando obscuras rapidamente, mas da parte do meu pai, a família era judia, inclusive meu pai é judeu. Eu não sou porque o judaísmo passa pela mãe, minha mãe é de família católica.
O lado da mãe do meu pai, a minha avó Anita, veio daquela região da Ucrânia, a Rússia, por ali. E o lado do pai da minha avó, a mãe do meu pai, é ali da Bélgica, da parte flamenga e é daí que vem o nome Tygel. Então, o Tygel é judeu, flamish, flamengo, da Bélgica, mexiam com diamantes.
Os dois saíram por perseguições, em diferentes momentos. Do lado da mãe da minha avó foi talvez nos processos mais antigos. Alguns foram para os Estados Unidos e outros para o Brasil. Do lado do pai da minha avó foi o nazismo, foi durante a Segunda Guerra Mundial. Vieram da Bélgica… Veio só um. Na verdade, o nome Tygel foi praticamente exterminado, então é difícil ter um Tygel no mundo que eu não conheça, são poucos. O lado da Rússia, da Ucrânia, Steinberg Zin - o Zin é do segundo marido da minha avó - , o Steinberg que veio de lá continua, não teve isso, mas o Tygel foi esse lado que veio da Bélgica. Bem, esse é um pouco desse lado do meu pai.
O lado da minha mãe é católico. É uma família simples, do subúrbio, periferia do Rio de Janeiro. A origem é parte italiana, mas é difícil de conseguir identificar, porque se perdeu, e uma outra parte da origem da minha mãe, tem as misturas - portugueses, caboclos etc. Digamos assim, é um Rio de Janeiro mais raiz, pensando no Rio de Janeiro como cidade. Eu acho que é mais ou menos isso.
É difícil identificar muito o futuro… Eu não tenho tanto interesse por árvore genealógica, você já deve ter percebido. Já a minha irmã do meio gosta muito, ela sabe detalhes, corre atrás.
(06:10) P/1 - E falando um pouquinho da sua infância, tem algum cheiro, alguma comida, algo que remete diretamente à infância?
R - Se a gente for falar da infância depois, quando a gente chegar em processos mais narrativos, ela é muito diversificada, então eu não tive uma infância contínua que me permitisse fixar cheiros de maneira mais forte. Eu tenho alguns sentimentos de clima, não do ínicio, no Rio de Janeiro, mas nos Estados Unidos, depois, e também sentimentos também com relação a alguns aromas do tempo que eu morei em Natal depois, mas aí eu já estava já começando a ganhar uma consciência um pouco maior, que foi dos cinco aos dez anos. Mas é tudo bem embaralhado, é muita coisa.
(07:03) P/1 - Então me conta um pouco como foi, me parece que você morou em vários lugares diferentes durante a sua infância. Você passou os primeiros anos no Rio? E depois você foi para onde com a sua família?
R - Voltando aos aromas, quando eu estou em contato com algum me dá um flash, mas eu não tenho lembranças assim.
Bem, na verdade não foram alguns anos, foram nove meses de idade, né? Com nove meses a gente saiu [do Brasil].. A gente estava no meio da ditadura militar e os meus pais [estavam] em movimento estudantil, então eles se autoexilaram, porque tinha havido uma manifestação, alguma coisa tinha acontecido de panfletagem; o meu pai tinha um fusca e a placa não estava coberta, então chegou a informação de que iriam estourar o aparelho do meu pai. Ele teve que se refugiar para a Bahia, ficou um tempo lá.
Eu não lembro se ele estava fazendo mestrado ou doutorado, acho que não sei, em Matemática. Teve que mudar o nome, ficou com nome diferente, ficou com a barba grande. Eles se comunicavam meio que… Não sei como. Eram pessoas mesmo, militantes, que levavam cartinhas dali para cá, e eu já nascido. Estavam tentando sair do país. Fizeram um casamento mais quietinho, em um determinado momento, e a gente saiu do Brasil quando ele conseguiu, se eu não me engano, doutorado em Stanford, nos Estados Unidos, então dos nove meses até mais ou menos os cinco anos de idade morei nos Estados Unidos, em Redwood City, um espaço estudantil, uma espécie de moradia de estudantes na cidade universitária de Stanford, em que todo mundo era de várias nacionalidades, vários países, várias religiões, e [havia] aquele espírito da coletividade, da cooperação, da ajuda mútua, a luta contra a guerra do Vietnã.
A professora que nos cuidava - tinha aquele rodízio que cada vez um pai ou uma mãe ficava junto um dia na escola, aquela coisa de trocas - ela foi uma das que lutou contra a guerra do Vietnã de maneira mais firme. Chegou a esconder gente que ia fugir para o Canadá, para evitar de se alistar. Foi um tempo nos Estados Unidos bastante intenso nessa lógica bem da década de 70, após 68.
Aos cinco anos de idade começa a mudança. Tinha um acordo entre meu pai e minha mãe que a próxima mudança seria ela que apontaria para onde ir, e ela foi convidada para ajudar a montar uma pós-graduação de… Agora eu não lembro se é Sociologia, eu acho que é Antropologia; uma pós graduação de Antropologia na federal do Rio Grande do Norte. Ela gostou da ideia, aí nos mudamos todos para Natal.
O meu pai então ingressou na federal do Rio Grande do Norte por um tempo, mas depois de um tempo eles se separaram, quando eu estava com… Agora não sei se eu tinha seis ou oito anos de idade, por aí. Eles se separaram, meu pai então se tornou professor na [Universidade] Federal da Bahia e morou lá em Salvador, e foi lá que a minha irmã nasceu, já da segunda esposa do meu pai. Nos Estados Unidos nasceu o meu primeiro irmão, o Ivan, quando a gente estava lá, uns dois anos e meio, mais ou menos.
Em Natal nós passamos um tempo todos juntos, depois só a minha mãe, eu e meu irmão. Ela [estava] muito envolvida com a construção da Antropologia e aí foi o momento que ela se sindicalizou, se envolveu com o movimento de mulheres, fundações de diretórios do PT, enfim. Nessa época conheci o Lula, acho que eu tinha seis anos de idade quando eu conheci o Lula em Natal, então foi em 79, por aí, foi antes até da criação do PT. Ela ajudou bastante nisso, isso foi até uns dez anos de idade.
Eu morei em um lugar que era na época uma vila de pescadores. Depois ficou bem turístico, depois que montaram aquela Estrada do Sol; não tinha na época em Natal, mas era Ponta Negra onde a gente vivia, e era uma vila com pescadores, né? De manhãzinha, ajudar o arrastão de pegar peixinhos e tal, aos seis, sete anos de idade brincando de bola na praia, então foi um período muito gostoso, apesar de que na escola não foi muito bom, não.
Aos dez anos minha mãe decidiu voltar para o Rio de Janeiro. Ela tinha um convite para atuar na [Universidade] Federal Fluminense com Comunicação Social, não mais Antropologia, então a gente foi para o Rio de Janeiro e lá eu morei dos dez anos, mais ou menos, até os quinze. Aos quinze anos, por um convite do meu pai, porque nesse ínterim meu pai saiu da Bahia e depois de um tempo foi contratado como professor da UNICAMP, ele convida a gente… Ele se tornou professor convidado na Alemanha, convida a gente para viver um ano na Alemanha. Isso foi em 80… Não, a gente ia para a Alemanha para viver lá, eu não me lembro quando foi, 87 talvez, mas decidi com quinze anos ir morar com meu pai, queria ter a experiência de morar com meu pai em Campinas, foi isso. Em 88, então, eu fui morar em Campinas e aí é que aconteceu dele ir para Alemanha para ficar um tempo maior, acho que era um ano como professor visitante; eu fui junto, e meu irmão também, o Ivan.
Nós vivemos lá justamente quando caiu o muro. A gente chegou lá em dezembro de 89, dois meses depois da queda do muro de Berlim, então o tempo que a gente morou na Alemanha foi o tempo da loucura, do caos, da reconstrução, da unificação da moeda, criar o DM, o deutsche mark unificado, todo o conhecimento de como era o lado de lá… Eu mesmo também peguei um pedaço do muro, também [bati] com um martelinho, lá em Berlim.
Foi um ano na Alemanha, depois voltamos para Campinas e aí eu prestei o vestibular. Só prestei um vestibular na vida, foi na UNICAMP, para Física. A prova foi em 91 e eu ingressei em 92, foi onde eu cursei a graduação em Física.
Logo depois de ter entrado no curso, um dois, três meses, eu saí de casa, eu queria viver uma vida mais independente e a partir daí eu não voltei mais. Eu tinha uns dezoito anos quando saí de casa, mais ou menos. Já ultrapassei a infância, já estava na vida adulta aí.
(14:06) P/1 - Eu vou só voltar um pouquinho na sua infância antes da gente falar sobre esse momento que você entrou na faculdade. Pelo que você conta, então, tanto na sua infância quanto na sua adolescência você estava sempre circulando, passando um tempo em vários lugares, depois você se mudava para outros. Como você acha que isso influenciou os seus gostos, a sua maneira de enxergar as coisas, ou influenciou a sua decisão por fazer Física?
R - Eu tenho refletido as vezes sobre isso, estou chegando nos 50. Dizem que é uma época reflexiva, vai ser agora, daqui a um mês. Eu tenho refletido um pouquinho sobre isso. Eu sinto que teve dois marcos bem importantes, um marco dos Estados Unidos e o marco de Natal; foram duas realidades absolutamente diferentes e acho que fazem muito do que eu sou hoje.
Nos Estados Unidos é uma experiência muito profunda, do exercício da liberdade, da diversidade, da busca da emancipação, da cooperação, da coletividade; um humanismo, digamos assim, que supera uma lógica dogmática e vai para uma lógica humanista, dialógica. Por exemplo, essa professora era uma referência, a Patsy.
Vou dar um exemplo, um caso assim. Isso é mais a minha mãe que conta, mas eu sempre, isso reverbera, mas quando a gente tinha uma briguinha na nossa sala de aula, ela botava os dois que estavam brigando, fazia um semicírculo com o resto da turma e os dois tinham que argumentar. No final era votado quem tinha razão na briga, tinha um voto. Esse é um exemplo dos Estados Unidos.
Outro exemplo era o jornalzinho, que era um jornal autogestionado das crianças com essa idade, de três, quatro anos de idade, e nesse jornalzinho ficava mudando a equipe. Nos Estados Unidos tem muito essa coisa de trabalho em equipe, é inacreditável como estadunidenses sabem trabalhar em equipe. Você tinha funções diferentes, então tinha o conselho editorial, duas crianças, por exemplo, aí tinha os jornalistas, repórteres, aí tinha um tanto de crianças… Eu não lembro mais. Tinha o pessoal da arte gráfica, o pessoal do texto, da redação. Claro que não sabíamos escrever, colocavam aquela coisa no mimeógrafo, aí saia uma edição por semana e a equipe mudava, então a equipe editorial, a equipe de jornalistas, a equipe de redação, a equipe gráfica iam mudando. A pauta era definida pelo editorial, então contava: “Hoje eu vi uma tartaruga.” E tinha o desenho de uma tartaruga, pronto, essa era a notícia.
Era uma prática de autogestão interessante, de estimular que as pessoas tenham diferentes funções e assumam responsabilidades diferentes.
Acho que outro exemplo que também me marca dessa época era o fato de que as pessoas eram de múltiplas nacionalidades, de múltiplas origens, de múltiplos backgrounds, múltiplos idiomas, múltiplas religiões, e isso quer queira, quer não… Aí a gente entra um pouquinho na própria física. Quando você tem um grau de diversidade muito grande, você começa a perceber essências, então isso fortalece uma visão humanista. Quando você começa a ver pessoas com diferenças tão grandes, você começa a perceber o que nos une, de uma maneira ou de outra, então isso dá uma capacidade de compreensão, de relação, de respeito com outras culturas, uma lógica intercultural muito forte.
Imbuído disso, chega-se em Natal, em uma vila de pescadores, em que você tem já uma cultura bem específica, e é uma cultura totalmente diferente do que estava, que se plasmou nos Estados Unidos, que era aquela coisa múltipla, cosmopolita. Ali era aquela coisa da vida, do dia a dia, do trabalho relacionado à vida diretamente. Você trabalha para viver, você não tem essa coisa, essa abstração da intelectualidade, que a pessoa intelectual recebe dinheiro, faz o trabalho com o meu software e recebe dinheiro; não, o seu trabalho está totalmente vinculado ao próprio meio de produção. Você tem a rede, você pega o peixe, você vive daquilo. E esses eram os meus amiguinhos, o meu dia a dia, então isso gerou uma experiência muito profunda.
O pessoal sempre diz aqui em Caldas: “Nossa, como você é uma pessoa humilde.” Vem meio que… A nossa casa tinha porta aberta e a galera entrava e saía, a turma de pescadores, era todo mundo pescador, e eu era aquele que era amiguinho também. A gente ficava, corria para um lado e corria para o outro, às vezes eu trazia um Lego - ninguém tinha Lego, né? - e a gente brincava de Lego. Eles também traziam uma bola de meia e eu brincava de bola de meia de futebol, que eu nunca tinha brincado.
Toda essa mistura, que foi muito interessante, trouxe características também boas em relação ao idioma. Como eu tinha nove meses de idade [quando saí do Brasil] eu não dominava muito o português, acabou que meu primeiro idioma acabou sendo o inglês, e aí no Brasil volta com tudo o português, e isso abre um canal. Essa é outra reflexão que eu faço, a pessoa que é desde cedo bilíngue… É muito fácil se apropriar de outros idiomas, porque você pega de novo, né? Você vai pegando a essência da linguagem, porque você está vendo as diversidades e percebe que tem algo em comum por trás. Talvez você esteja percebendo - é um pouco isso que eu acho que me levou pro caminho da Física - que na Física nada mais é do que, no meio do ruído, do barulho das coisas, da pluralidade de tudo, você começar a perceber padrões, modelos; começa a perceber comportamentos, leis que estão ali atrás. Eu sinto isso fortemente na minha educação.
Aí teve a [fase] do Rio de Janeiro. Eu sempre digo que Rio de Janeiro é para profissional, um lugar muito difícil. Sofri muito bullying, soco no estômago, ser chamado de judeu, aquelas coisas, não pegar menininha por não ser do estilo que tem que ser… É uma classe média muito barra pesada no Rio de Janeiro, uma coisa muito exigente. Você está jogando bola, fala uma coisa e o outro discorda; todo mundo já faz a roda: “Aí sim, porrada, quero ver, a porrada…” É um ambiente absolutamente tóxico.
Eu acredito que aquilo me ajudou um pouco na política. A política no geral é um ambiente bastante tóxico [e aquela fase] pode ter contribuído para isso, porque são momentos em que você tem que ter muita resiliência, e de alguma maneira você tem que buscar quem você é nessa história toda, porque você entra em crise, você se acha… Eu me achava um nerd, um idiota, um bobão, um atraso, né? Todas essas coisas que vão vindo em um ambiente de bullying. Você não é o cara sarado, que está lá… Eu não me interessava nem por carro, eles gostavam de ver, tipo jogar Uno de carro, e todos eles comentavam como era o carro - ninguém tinha carro, mas todo mundo sabia qual a diferença de um Corcel para um Chevette, para um… sei lá os nomes que tinham na época. Eu não tinha o menor interesse por carros, por esse tipo de coisa.
O Rio de Janeiro trouxe esse elemento, e foi no Rio que eu tive vontade de programar pela primeira vez, e é uma marca muito profunda minha. Talvez uma das experiências mais profundas que eu tive foi quando em um computador, aqueles… Não lembro o nome, o HotBit, eu acho, que você ligava e ele tinha uma tela azul. Você já caía em uma tela com o número dez para fazer o Basic. Eu já fazia programação, então… É uma sequência de comandos ridículos, mas revolucionou e eu nunca vou esquecer. Você bota “input”, aí você abre aspas: “Qual é o seu nome?” Aí você bota a variável $nome, digamos assim, a gente botava $m, ‘dólar’ m, e aí ficava o cursor parado; quando você estava run, ficava o cursor parado. Você escrevia, sei lá, Genivaldo, dava o enter, aí tinha o próximo comando, que tinha armazenado esse valor da variável, e dizia: “Olá, Genivaldo, como vai você?” Nossa, foi muito… Abriu para mim… [Pensei:] “Eu posso fazer qualquer coisa”.
Eu lembro que eu via que mudava e botava nomes grandes, nomes pequenos, e se ajeitava, e não ficava com espaço grande constante, que eu gostava muito de escrever com máquina de escrever daquela tipo Olivetti, então você tinha que sempre calcular os espaços, fazer o hífen. De repente, eu vi que o negócio fazia sozinho os espaçamentos; botava a palavra “Genivaldo” e a palavra “Zé”, ele lia diferente. Aí entrei de cabeça em programação.
Acho que eu tinha uns treze [anos]. Gostei muito de programação, passava horas, horas… Eu tinha todas aquelas revistas chamadas… Inclusive o nome é Input, aquela revista chamada Input, que dava dicas de programação. Fazia aqueles joguinhos, fazia as minhas contas pessoais, então eu dizia quanto que eu tinha gasto na semana, aí depois eu salvava - tinha fita para salvar. Quando ia salvar fazia (imita o som), aí salvei na base de dados. Tinha outra fita que quando eu ligava o computador, que era o programa que eu tinha feito, tinha um programa, (imita o som), aí carregava o programa. Carregou: “Oi, vamos lá”, aí eu tinha que botar o outro, (imita o som), botava o banco de dados. “Pronto, isso aqui é o seu total da semana, quais foram seus gastos?” Eu botava os gastos, aí eu tinha que corrigir o programa. Quando corrigia o programa tinha que gravar também no toca-fitas, e aí… Nossa, fui feliz com programação.
Eu sempre gostei desse tipo de coisa, gostava muito de escrever, eu escrevia livros, livrinhos de ficção científica, histórias, casos. Eu lia muito, toneladas de livros, eu li muito, muito. [São] alguns elementos bem gerais da infância, para vocês verem.
(24:55) P/1 - Está certo, não tem errado na forma como você conta sua história, fica tranquilo. Bom, então voltando, Daniel, para a sua vida escolar, mas agora entrando na faculdade, que diferença você sentiu quando você entrou no ambiente acadêmico universitário em relação às experiências que você teve de estudo no seu ensino primário, no seu ensino secundário?
R - Nossa, é tão difícil dizer isso. Acho que a primeira coisa, como eu entrei na Física e entrei com nota boa no vestibular… Eu tive nota para entrar em Medicina, então eu tinha um sentimento de que eu era muito bom, do ponto de vista intelectual, então foi um choque, né? Porque na Física você vale zero, você volta lá para baixo.
Foi a primeira coisa que eu percebi. Eu tive contato com pessoas que de fato eu posso dizer hoje que são gênios, aí eu vi: “Nossa, eu sou absolutamente mediano.” Acho que a primeira prova que eu fiz na faculdade eu tirei uma nota baixíssima, tipo 2,5, então eu acho que a primeira coisa que eu senti foi isso: “Nossa, existe muito caminho para trilhar no lado do crescimento intelectual, muito além do que eu esperava.” A gente sai meio que acomodado da escola, achando que a gente é supergenial, inteligente, não sei o que, e percebe: “Não, eu sou mediano, eu sou uma pessoa mediana.” Inclusive eu me caracterizo hoje como uma pessoa de inteligência mediana, mas com capacidade de fazer muitas pontes com diferentes temáticas, então talvez a minha experiência universitária não tenha sido tanto do ponto de vista do conhecimento acadêmico, mas também da vida de campus, acho que foi o que definiu a minha experiência.
Antes eu era muito de estudar, estudar, estudar. Continuei estudando, porque na Física tinha que estudar muito, de qualquer jeito, mas foi onde eu fui fazer filosofia, circo, dialogar com outros temas, montar grupos, organizar a reciclagem na universidade, me envolver politicamente, então o que me vem, que me dá gratidão da academia, foi esse ambiente plural, pessoas diferentes convivendo juntos 24 horas por dia, o tempo inteiro.
A experiência de campus… Inclusive isso me faz ter uma teoria: acredito que todo ser humano deveria passar por uma experiência universitária, pelo simples fato de abrir a cabeça, só. Você volta para o seu lugar depois com muito mais capacidade de propor e inovar. Você sai de determinados circuitos fechados das tempestades em copo de água, das restrições morais de uma tradição muito bem definida. Eu tenho o sentimento de que a experiência universal de uma universidade, se ela for feita desse jeito… Porque depois eu vi o meu irmão, ele fez Direito e eu não vi essa experiência lá, era quase que a escola de novo. O pessoal ia lá, tinha as aulas e voltava, enquanto que o nosso não, o nosso era noite e dia, madrugada, o tempo inteiro debates, pensar, seja coisas da própria Física, problemas, resolver coisas… Nossa, eu tinha um prazer com alguns professores que, por exemplo, davam provas com consultas assim, aula de cálculo, e passar seis horas fazendo uma prova que você pode consultar, você é desafiado. Nossa, isso era tão gostoso, sentir o conhecimento pulsando, era muito bom.
Eu gostei muito da minha experiência acadêmica, foi muito legal. A universidade foi muito boa para mim, muito boa, foi espetacular.
(28:52) P/1 - E durante esse período da universidade você já pensava em algum tipo de atuação profissional, no que você queria fazer? Estava mais na sua cabeça a Física ou programação? Conta um pouco como foi isso para você.
R - É interessante essa pergunta. Acho que eu nunca pensava muito sobre o que viria para frente. Acho que peguei isso pela vida que eu acabei levando, de estar viajando muito. Eu sempre achava que alguma coisa ia dar para fazer, mas não tinha assim… Eu nunca quis, por exemplo, prestar um concurso, ir para uma carreira. Nunca, nunca quis ter uma carreira, então eu não imaginava o que seria. O que me pegava de fato na universidade, e isso foi ficando cada vez mais intenso até o final da graduação - inclusive eu termino a graduação com uma carta, deixei uma carta aos físicos na biblioteca - foi a questão social. Eu cada vez mais percebia que era um privilégio muito grande estar estudando na universidade, gigantesco, não só pelo estatístico. É uma população mínima que tem acesso a tudo isso, que pode ter um bandejão de trinta centavos - na minha época o bandejão era baratinho, era totalmente subsidiado, era trinta centavos - mas não só isso, de ter uma vida subsidiada, moradia gratuita etc; a própria experiência em si, o grau de conhecimento, o grau de conhecimento das professoras, dos professores com os quais a gente tinha contato, das pessoas com as quais a gente discutia, os assuntos acalorados que a gente debatia… Me incomodava muito a ideia de que depois eu vou ter o meu emprego e me dar bem. O meu caminho, eu pensava: “Qual função eu vou ter nesse mundo?” Era só isso que eu pensava, essa pergunta eu me fazia: “O que eu vou fazer para o mundo?” Essa que era a motivação maior que gerou uma outra etapa que vai vir depois que a gente sair dessa parte da graduação, que foi o que motivou, talvez o que transformou a minha vida, mas eu tinha essa preocupação, e aí no final da graduação a carta aos físicos era um pouco isso. Eu começo dizendo porcentagem e tal, e pergunto para as pessoas: “Você tem noção de quanto dinheiro está sendo colocado do povo brasileiro para você se formar? Então pense nisso para decidir o que você vai fazer depois, você tem que estar a serviço da nação brasileira, porque você está sendo muito bem pago para chegar onde você está chegando.” Era uma coisa assim, claro que [como era] mais jovem, [era] uma fala mais emocional, talvez. Eu devia estar com vinte e dois anos quando concluí [o curso], por aí.
Acho que era isso, eu não me preocupava tanto com carreira. Eu me preocupava com o mundo o tempo todo, né? As guerras, problemas, a fome no Brasil, a desigualdade social, eram as questões que pegavam para mim.
Acho que é importante que isso me gerava uma crise com a Física, porque a Física era muito pura, né? É chamada uma ciência pura, de baixa aplicabilidade. Isso me gerava muita crise, tipo: “Será que o que eu vou fazer no final das contas vai servir para fortalecer o capitalismo, para as grandes empresas poderem fazer uso de um conhecimento chamado conhecimento puro, já que está tão longe da aplicabilidade, ou será que isso vai gerar uma bomba?” Pensava muito nisso também.
(32:51) P/1 - E após a sua graduação, qual foi o seu próximo passo? O que você pensou em fazer?
R - Teve uma transformação muito grande aí. Essa crise foi se intensificando e virou uma crise com relação à minha participação no próprio mundo. A coisa estava ficando brava, já. As pessoas _____ muito bonitas, muitas amizades, o pessoal sempre dizia que achava que eu era ou do teatro, ou era das [Ciências] Sociais, nunca achavam que eu era da Física. Eu vivia circulando, eu me virava, porque há tempos eu estava vivendo dos meus próprios recursos, dando monitoria, dando aula para alunos recém ingressados, envolvido em um bocado de coisa, iniciação científica, essas coisas. É muito fácil ter bolsa na Física, é uma das ciências que têm bolsa facilmente, e aí aconteceu aquele lance lá, não lembro o ano certo, não sei se foi em 96, ou em 95… Acho que foi em 96 que começou aquele processo da unidade real de valor, a URV, que botou um para um do real com o dólar, para um processo de transição e controle da inflação.
Eu estava juntando dinheiro, porque eu não sabia o que eu ia fazer depois da graduação, na moeda que eu esqueci qual que era, não sei se era cruzeiro novo, cruzado novo, já não lembro qual era a moeda, mas aí virou URV, então valorizou para danar. Eu tinha cinco mil e virou cinco mil URVs, que são cinco mil dólares. Estava cheio de dinheiro que eu acumulei dando aulinhas.
Nessa crise, eu escrevi essa famosa carta. Fechei o olho no mapa, fechei o olho e fiz assim, e caiu o meu dedo ali na Indonésia, caiu em Jacarta - não foi em Jacarta certinho, caiu na Indonésia; a Indonésia é grande, caiu ali. Comprei a passagem, gastei 1800 desses URVs em uma passagem; transformei o resto, 3200, em traveler check e botei no negócio, tipo uma pochete interna que você bota junto com a cueca, porque naquela época não tinha cartão. Deixei essa pochete interna no meu passaporte e 3200 URVs, que eram dólares em traveler check. Peguei o avião, era um voo ida e volta de três meses, e aí foi isso.
Começou a viagem, eu comecei a entrar profundamente em uma viagem solitária, eu e minha mochila, e essa viagem acabou se transformando em uma viagem de um ano. A cada vez que chegava no prazo da passagem - eu levava a passagem aqui também, a passagem final era completamente amassada, mas era isso, o que eu tinha era isso aqui…. Chegava perto, eu ia em algum lugar e tentava remarcar, porque podia remarcar até um ano de graça, então no final das contas acabou completando um ano.
Foi a experiência que mudou a minha vida, de fato. Eu fiquei de mochila sozinho, não me comunicava com a minha família - na verdade, eu mandava aerogramas para os amigos e para a família, e ia chegando para as pessoas. Às vezes as pessoas conseguiam se comunicar comigo quando eu sabia mais ou menos para onde eu estava indo, porque o rumo foi totalmente não planejado, mas eu imaginava: “Olha, acho que daqui uns dois, três meses eu vou estar passando por Bombaim”, então aí eu falava por aerograma.
Tinha um truque da posta restante, que eu só podia mandar para a central de correios daquela cidade. Eu ia para cidade, ia para o correio e perguntava se tinha uma carta no meu nome. De vez em quando chegava alguma coisa para mim nesse ano.
Foi Indonésia, principalmente a ilha de Java, que é a principal, mas também Bali, Sumatra - fiquei bastante tempo na Sumatra - depois Malásia, depois da Malásia, Singapura. Desculpa, onde está Bangkok… Meu Deus, qual é o nome do país onde está Bangkok, das massagens? Tailândia. Fiquei bastante tempo na Tailândia, depois fui para o interior, nordeste da Tailândia, perto do Khmer Rouge, o Khmer Vermelho, aí depois fui para a Índia, e na Índia foi onde eu passei a maior parte do tempo. Conheço a Índia inteira, passei quase seis meses na Índia, e depois de lá da Índia fui para Birmânia, que era um lugar muito fechado. Depois mudou para Mianmar, mas naquela época se chamava Birmânia. Fui para um retiro de meditação vipássana, fui para meditar. Fiquei quarenta dias em meditação. Depois eu saí de lá e fui para Laos, depois Tailândia de novo e aí voltei para o Brasil, completamente outra [pessoa]. Foi uma experiência muito profunda, muito profunda.
Antes de sair nessa viagem eu fiz a prova de mestrado na Física, passei com bolsa e abri mão. O que aconteceu foi que quando eu voltei ao Brasil sem nada, que tinha acabado todo o dinheiro, esse dinheiro de papelzinho que estava aqui, eu perguntei na Física se eu ia ter que fazer uma prova para o mestrado. Eles falaram: “Não, você já não fez uma prova?” Falei: “Fiz.” “Não, você está com bolsa.” Eles me deram uma bolsa quando eu voltei para o Brasil para fazer o mestrado.
Voltei para a UNICAMP de outro jeito. Voltei hiperativo, mega ativo. Hoje eu sou uma pessoa da história da UNICAMP pela minha volta depois, porque a quantidade de coisas que eu participei da criação na UNICAMP nessa volta aí, que foi no tempo do meu mestrado, foi muito grande. Foi um envolvimento muito grande em vários movimentos, principalmente ambiental, mas também de educação de jovens adultos, aí vem reciclagem… Nossa, a gente criou uma organização chamada…Tinha o Amor à moradia, que eram várias coisas que a gente fazia lá na moradia, mas teve a organização, que era Além do mundo... A fim do mundo, que era um grupo interdisciplinar. Tinha uma pessoa que puxava, um professor, que era o Sandro Tonso; ele tinha esse sonho de juntar alunos de diferentes áreas, e a gente fez um bocado de coisa. Um dos nossos grupos inclusive foi para o Amazonas por causa disso, trabalhar com ribeirinhos, diferentes trabalhos.
Acabei trabalhando com arte e educação com crianças de rua em Campinas [por] bastante tempo, em uma organização que hoje já está consolidada, que é o Mano a Mano, que a gente criou na época, com a Simone, o projeto, mas também a gente implantou a coleta seletiva na UNICAMP, coleta seletiva na moradia, implantamos a compostagem. Na minha sala na pós-graduação ficava o material reciclável e a gente entregava para os catadores que ficavam juntando, até que a gente conseguiu formalizar isso.
Foi muita coisa que a gente se envolveu, muita coisa, e só a pontinha do iceberg de coisa nesse tempo de mestrado.
Já estava muito claro que eu não ia continuar depois no mestrado. Eu criei toda uma confusão na minha defesa de mestrado, um caos, porque eu não aceitava as normas de margem e de espaçamento de linha. Para economizar papel, eu botava margem menor e linha menor, e não aceitava fazer em papel branco a dissertação, tinha que ser no [papel] reciclável. Aliás, foi uma coisa muito interessante, que demonstrou bem como que são os físicos: o reitor na época era um físico de direita do estilo PSDB - quando eu falo direita é uma direita que da para diálogar, tá? Aquilo que ainda existia, [no] estilo da turma do Mario Covas, Fernando Henrique, apesar das bombas que a gente tomou em 2000, a gente tomou bomba lá no sul da Bahia, nos Outros 500 Anos. Tem até uma publicação que a gente fez, Outros 500, sobre a repressão que foi feita do FHC contra aquela coisa dos outros 500, dos 500 anos [do Brasil].
Mas o fato do reitor ser físico foi interessante. Apesar dele ser bem de direita, ele me chamou para o gabinete dele e falou: “Você é físco, eu sou físico. Você vai ter que me convencer que dá para fazer a impressão dessa dissertação em papel reciclável.” Aí eu tive que trampar, né? Tive que usar indicadores, tive que ir para fábricas de papel reciclado, ver como era o processo de produção, demonstrar os benefícios ambientais, mas também provar que dava para imprimir, que passava na máquina, coisa funcional, e aí foi.
Depois que eu apresentei meu trabalho para o reitor, ele publicou uma nota de que a partir dali alunos de mestrado poderiam decidir se a sua dissertação seria em papel reciclável ou papel branco.
Outra confusão foi que eu não aceitava deixar a tese normal, eu fazia questão de deixar uma nota de que eu proibia qualquer uso, em qualquer tempo futuro, direta ou indiretamente, para fins bélicos do material que eu desenvolvi no mestrado, porque como era muito teórico, era física teórica no estado sólido, física quântica, dali poderia avançar para alguma coisa de uma bomba magnética, por exemplo, ou quântica, enfim, alguma coisa nesse sentido. Poderia ser usado para computação quântica, então eu não proibi o uso capitalista da tecnologia, mas proibi o uso bélico, para fins bélicos.
Enfim, foi um tempo bem ativo na UNICAMP durante o mestrado, então eu já sabia que eu não iria seguir carreira acadêmica, estava muito na cara, já. Comecei a ter contato… A gente fundou lá a VEJA, que era a Vivência Educacional de Jovens e Adultos. A gente fazia educação gratuita para jovens e adultos que não tinham concluído o ensino médio e a gente também ofereceu um cursinho na moradia, a gente criou o cursinho da moradia que hoje é bem conhecido, já está em outro patamar, mas a gente estava ali no começo. E sempre que tinha o início de semestre a gente chamava os novos que tinham chegado e convidava para eles poderem ser professores, para dar aula, seja no ensino médio, no Veja, seja de cursinho.
A gente tinha um grande problema com relação ao local. Como a gente fazia na UNICAMP e na UNICAMP é integrado o campus, é aquela coisa de festa. balada, caos. A gente não conseguia se concentrar nas questões de Paulo Freire, na educação popular, aqueles debates que a gente queria fazer. Um dia a gente precisava achar um lugar para formar essa turma e falaram que tinha um professor das [Ciências] Sociais, Carlos Rodrigues Brandão, que tinha um espaço aberto, que é a Rosa dos Ventos, que ele tinha fundado há pouco tempo, estava iniciando, mas que era uma casa aberta. (chora)
O Brandão faleceu faz muito pouco tempo…
(PAUSA)
(44:41) P/1 - Voltando, Daniel, você estava comentando do momento em que cursinho pré-vestibular, e as aulas também para ensino médio saíram da UNICAMP e vocês encontram outro espaço.
R - Na verdade não, era só para a formação dos alunos que queriam se tornar professores voluntários. A gente precisava fazer uma formação sobre educação popular, para que a pessoa pudesse se preparar para poder dar as aulas voluntárias e o ambiente na UNICAMP para isso era muito ruim. O local das nossas aulas se manteve o mesmo, era na moradia estudantil da UNICAMP, então a gente recebia a comunidade dos bairros vizinhos para fazerem cursinho ou Veja, era nos mesmos horários inclusive.
A gente ficou sabendo de um professor chamado Carlos Rodrigues Brandão, que tinha construído um espaço de acolhida solidária chamado Rosa dos Ventos, que poderia ser um lugar interessante para a gente poder fazer isso. Entrei em contato com esse professor e ele se animou para caramba, ele adorava educação popular, e foi assim. Nossa, que alegria.
A gente se organizou, montamos um ônibus com recursos da pró-reitoria de extensão e levamos a primeira turma de alunos que se tornaram professores voluntários para a Rosa dos Ventos.
Até o final da vida o Brandão apelidou esse pessoal, ele chamava de “a turma do Daniel”, porque a gente começou a todo semestre trazer um ônibus com alunos que iam dar aula, para a gente fazer uma avaliação do semestre e trabalhar os temas da educação popular - como lidar com o conhecimento, com a diversidade do conhecimento, e poder tocar as coisas com essa gestão dos cursos que a gente dava.
Esse lugar, Rosa dos Ventos, ficava na zona rural, em uma pequena cidadezinha não muito distante de Campinas, onde ficava a UNICAMP. Uma cidadezinha chamada Caldas, em um bairrozinho chamado Pocinhos do Rio Verde, e na verdade um bairro um pouco mais rural, Pedra Branca. Pronto, eu comecei a ir lá sempre. Organizava os ônibus, passava no CEASA, fazia rodízio de cozinha… Era um caos aqueles dois dias que a gente dava de formação. Essas idas e vindas começaram a ficar cada vez mais frequentes, começou a ser gerada uma relação pessoal com o próprio Brandão, sobre a Rosa dos Ventos e tudo mais, e a gente sempre tentando aportar nesse espaço.
Acabou que nessas idas e vindas eu já estava me aproximando do momento da minha defesa de mestrado. Aconteceu de um grupo de professoras - o Brandão dialogava muito com as professoras da rede estadual e municipal em Caldas - começar a contar de um problema que tinha em relação a mineração de urânio, INB [Índustrias Nucleares do Brasil] e tal, e eu me interessei. A gente teve um momento ali de crise que tinha que ter uma ajuda rápida e eu fiz uma supermobilização na cidade, a gente fez um negócio que deu jornal, TV, que a gente estava contra o processamento de _________. Pesquisamos, enfim, uma série de coisas que a gente fez, já não lembro todos os detalhes. Pusemos um monte de alunos na rua contra a energia nuclear, “aqui não”.
Acabou que quando a gente conseguiu aquela vitória, a gente viu que tinha muita dificuldade de lidar com esse tema e as professoras me perguntaram o que a gente poderia fazer para tentar de forma mais orgânica isso, para quando viesse esse tipo de ameaça. Na época, então, eu propus de fazer um trabalho com as professoras de educação ambiental para a gente construir um material pedagógico próprio, uma experiência muito legal. Recebi duzentos reais por mês, mas foi…
Nisso, a companheira, na época, a Anita, uma pessoa muito especial, a gente decidiu então sair de Campinas. No momento em que eu defendi o mestrado, ela também estava construindo a proposta dela do doutorado, ela já tinha feito o mestrado, e então a gente decidiu morar na Rosa dos Ventos. A gente morou na Rosa dos Ventos por um tempo, depois moramos em um bairro bem popular da cidade de Caldas, na Olaria, e por lá ficamos.
Esse processo foi aumentando, a gente fez trabalhos com o Brandão com todas as professoras da cidade - projeto de formação de professores, educação popular, livre etc. Uma série de questões, sonhamos com a possibilidade de uma Universidade Livre da Pedra Branca, uma série de coisas que a gente estava fazendo naquela época, envolvidos em milhões de coisas, e claro, com duzentos reais por mês você não vive, né? A questão financeira era apertada. Claro que na Rosa dos Ventos a gente não tinha que pagar, houve um determinado momento que a Anita passou no doutorado com bolsa, então isso segurou a nossa família os dois anos lá na Rosa dos Ventos, então a gente continua morando lá.
Eu vivia andando pela estradinha rural, para cima e para baixo. Dei aula de eletrotécnica em uma universidade privada próxima, no CREUP, para dar um complemento de renda, e primeiro comecei a gerar uma certa… Um certo incômodo com relação a tudo que envolvia meio ambiente. A gente apresentou os professores de Caldas em um evento nacional de meio ambiente, de educação ambiental, e a gente via muito o meio ambiente sendo usado como bucha para eurocapitalismo mais retrógrado. A crítica ia ficando muito forte, ou seja, sem trabalhar a questão econômica junto não tem como trabalhar a questão ambiental, vai ficar só no politicamente correto, mas eu estava bem profundamente [envolvido] na questão da educação ambiental. A gente organizou as conferências escolares de meio ambiente… Era a Marina Silva e tinha o Marcos Sorrentino. Eu era muito próximo do Marcos Sorrentino. Ele sempre vinha na Rosa dos Ventos e ele era o Coordenador de Educação Ambiental no Ministério do Meio Ambiente - ele é de novo agora, no Lula 3. A gente organizou então essas conferências infantojuvenis de meio ambiente.
Nossa, é tanta história para contar… Eu não sei por onde que a gente vai, está cada vez… É muita coisa que tem, mas enfim, eu comecei então a me envolver, a conhecer um pouco da chamada socioeconomia solidária. Eu não vou saber o ano. Em 2001 eu fui lá para o Fórum Social Mundial, fui nos principais lugares, vi Boaventura de Souza Santos, li o livro dele, aquele grande. Eu esqueci o nome daquele… Contra os Subterfúgios da Experiência, alguma coisa assim. Eu esqueci o nome do livro, um livro grande, bem interessante, gostei muito. Ele fazia um bom desenho sobre modernidade. Depois da tentativa de sair da pós-modernidade é que eu acho que deu alguns escorregões, mas o desenho sobre a modernidade era muito interessante.
Comecei a me envolver com essas questões mais nacionais por Caldas.
(PAUSA)
(51:49) P/1 - Então, Daniel, você estava falando sobre o seu envolvimento nos fóruns relacionados à economia solidária, meio ambiente.
R - Isso. Eu tinha essa participação em Caldas, estava muito ativo. A gente criou uma associação, Oportunidades, que é uma espécie de banco comunitário antes de existir os bancos comunitários. Na verdade já existiam, mas eu não conhecia. A gente juntava dinheirinhos, e quando tinha um tanto a gente fazia edital para iniciativas emancipatórias em Caldas, já apoiou muitas coisas importantes aqui no município. Capoeira, os indígenas, fabricação de sabão artesanal, uma série de coisas que a gente fez que hoje já estão brilhando aí.
Comecei a me interessar muito por essa questão também econômica, junto com a questão ambiental, e a gente montou aqui um debate entre candidatos do município para prefeitura. Eu cheguei a fazer um estudo do ICMS, da possibilidade do ICMS ecológico aqui, eu estava muito envolvido. E a luta com a nossa mineração [era] muito forte aqui, a gente estava fortemente… Eu estava junto à Associação de Moradores da Pedra Branca, participando de audiências públicas, e fazendo a luta ambiental, aí eu conheci a socioeconomia solidária. Era uma Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária e ia ter o Fórum Social Brasileiro, não me lembro se era esse o nome, mas era em Belo Horizonte, então não era tão longe. Eu já tinha ido ao Fórum Social Mundial e eu já estava tendo um diálogo através de grupos de e-mail com o pessoal da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária: o Euclides Mance, Adriana Bezerra, o Marcos Arruda. A gente se falava muito por e-mails; quando a gente se encontrou lá em Belo Horizonte rolou muita sinergia, e estava em um processo de fazer um encontro nacional de moedas solidárias, aí perguntaram se eu queria ser o relator geral, o secretário desse evento. Eu falei: “Vou, vamos lá.”
O processo de constituição da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária se deu depois, em Guarapari, e eu fui nesse encontro, já participando da própria organização do encontro, da coordenação, então estava um caldo muito forte. Teve a eleição do Lula, veio o processo de construção do Fórum Brasileiro de Economia Solidária; eu participei também desse processo de construção. É nomeado o [Paul] Singer, começa um novo governo em 2003, e depois de um tempo, nesse processo de organização, eu participei também das plenárias de economia solidária.
Acontece de repente que conseguem um recurso para o fórum em 2005 e o pessoal me manda uma mensagem, um e-mail, me convidando para ser secretário executivo nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária em Brasília.
Tinha acabado de acontecer uma eleição em Caldas em que a gente fez um debate dos candidatos. O candidato que foi eleito ia sempre a pé para a feira. Eu ia voltando de chinelinho Havaianas da feira, com as minhas compras; parou o prefeito recém eleito e falou: “Quero conversar com você.” Deixei as compras em casa, fomos lá bater um papo, aquele jeito mineiro que fala sobre todos os assuntos menos sobre o assunto, e finalmente chegou me convidando para ser secretário de turismo do município, mas isso uma semana depois, ou algumas dias depois de eu ter aceitado ir para Brasília, para o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, então eu neguei. Foi uma pena, eu queria muito, estava com muita vontade, muitas ideias naquela época, cheio de ideias. Hoje continuo cheio de ideias.
Fui para Brasília, era 2005. Passo a morar em Brasília, moro lá de 2005 a 2012. A gente não foi direto para Brasília, a gente foi primeiro para o Fórum Social Mundial em janeiro de 2005. Mas no Fórum Social Mundial, que aí a economia solidária ia ter o seu território pela primeira vez, eu entro na secretaria executiva do fórum para fazer o território da economia solidária, já estando na coordenação disso, com o pessoal da Coordenação Nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, e a constituição do território - a gente se enquadra na última letra, E ou F, já não lembro qual era a letra, enfim.
Aí vem os anos mais intensos em termos de trabalho, que foi de 2005 a 2012, em Brasília. Não existia noite, não existia madrugada, não existia dia. Era o tempo inteiro trabalho, reunião, trabalho, reunião, briga, conflitos de todas as ordens. A gente participou de grandes conflitos nacionais, e aí pronto, viajei o Brasil inteiro, viajei o mundo inteiro representando o Brasil em outros países, representando o nível nacional junto, os processos locais, os estados. Foram então sete anos extremamente intensos, em que eu nunca me desconectei do processo de Caldas. Eu pegava um ônibus de quinze horas, ia para Caldas para ajudar com as nossas organizações que a gente tinha criado. Eu continuava em contato com Caldas, de um jeito ou de outro, mas vivi intensamente Brasília.
(56:53) P/1 - E foi nesse período que surgiu a Aliança em Prol da APA [Área de Preservação Ambiental] da Pedra Branca?
R - Pois é, essa aí, ela já é da minha volta. Essa intensidade de sete anos de Brasília pode ser talvez colocada em paralelo com a intensidade de um ano que eu passei viajando na Ásia, que eu nem entrei no assunto do que aconteceu ali, mas foram coisas muito profundas que me colocaram para agir, me colocaram… Eu me encontrei, né? E nesses sete anos de fórum eu me encontrei na política, na articulação, nas construções coletivas, e a economia solidária é que encanta, né? A economia solidária me conquistou por completo, para mim eu vi na economia solidária a síntese entre a questão ambiental e a questão social.
Eu vejo a economia solidária como quem pode trabalhar através da autogestão, através do núcleo da economia voltada à vida, você ter a possibilidade de trabalhar a questão ambiental sem cair nas armadilhas da computação, então foi muito essa experiência intensa que ocorreu, que nos traz depois de volta para Caldas.
Eu não sabia se ia voltar para Caldas ou não. Tem a decisão de sair do fórum que eu acho que vai ser importante a gente tratar, mas quando volto para Caldas é que a gente entra em um enfrentamento muito mais forte que a gente decide fazer com relação à mineração, e aí é a hora que rolou um negócio meio do tipo… Como que chama aquilo lá dos cinco coloridos? Spectreman, né? Que era assim, você tinha aquela luta, eles eram pequenininhos, aí tem uma hora que o monstro fica grandão, e ele meio que se reproduz e vira… Aí eles também têm que se reproduzir e virar um grandão, né? (risos) A Aliança foi isso, a gente estava tendo muitas vitórias, aí as mineradoras se organizaram e ficaram muito melhores, muito mais articuladas. (risos)
A gente criou a Aliança da Pedra Branca e geramos esse debate, que hoje está plasmado no Supremo Tribunal Federal. A gente teve vitórias e gerou um precedente de uma arquitetura jurídica que permite ao município conseguir impedir o avanço da mineração sem cair em problema de competência entre as esferas municipal, estadual e federal, se aproveitando do fato do sistema nacional de unidade de conservação ser uma lei federal e permitir a restrição, então a gente conseguiu criar a nossa ‘jabuticaba’ jurídica que fez com que a gente tenha uma lei municipal que cria a APA Santuário Ecológico da Pedra Branca, que impede a expansão da mineração, e nesse nosso período de luta a gente conseguiu reduzir de quatorze frentes de lavra para três frentes de lavra hoje, em um processo muito mais dialógico com a mineração, muito mais tranquilo do que no ápice dos grandes conflitos, mas isso é um capítulo à parte.
Foi uma luta ambiental muito profunda que a gente teve depois da volta do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, mas mesmo voltando do Fórum Brasileiro de Economia Solidária para Caldas, eu comecei trabalhando em home office. Eu recebi um convite para ser o Secretário Executivo Internacional da Rede Brasileira de socio… Desculpa, da Rede Intercontinental de Promoção da Economia Solidária, que é a RIPS, e nisso eu comecei a viajar muito, [para] todos os continentes. Foi quando eu tive algumas intervenções na ONU, né? Quando a gente estava na construção dos objetivos do milênio, em que a gente trouxe propostas mundiais da economia solidária com uma cartilha de indicadores e proposições para o desenvolvimento sustentável do planeta, isso estava acontecendo já estando em Caldas. Saía de Caldas para viagens internacionais e [tinha] também as lutas locais que a gente estava tendo, mas tem o período de sete anos no fórum que eu acho que teve muitos aprendizados, muitos momentos importantes e críticos da história da organização da economia solidária, da forma de se colocar na parte de construção de políticas públicas, que são também importantíssimas. A principal delas talvez tenha sido quando a Dilma ganha as eleições. A gente tentou fazer o que aconteceu quando o Lula ganhou pela primeira vez, aquela carta, o processo de transição, e tentar ampliar para não ser uma secretaria dentro do Ministério do Trabalho e Emprego. A gente ter um ministério, uma secretaria especial, específica para o desenvolvimento econômico solidário, endógeno e sustentável, era a nossa proposta. Era meio que uma proposta do MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar], incluindo também a questão urbana, não só a questão da agricultura familiar, e trazendo a economia solidária. Era por aí que a gente queria avançar, mas a resposta que a Dilma dá naquele momento, junto com a CUT, o que gerou um grande conflito no fórum, foi: “Não, na verdade a gente vai criar uma secretaria especial, o Ministério da Micro e Pequena Empresa e aí a economia solidária fica junto, porque é isso, MEI” [microempreendedor individual].
A gente fez uma grande mobilização, que eu acho que é dos materiais mais ricos que a gente produziu, que são os resultados, os relatórios finais de 25 audiências públicas estaduais que a gente fez em assembleias legislativas de 25 estados, e uma audiência pública nacional, com a pergunta se a gente se identifica ou não com a micro e pequena empresa, e aí veio essa coisa da economia solidária dizer: “Nós nos identificamos enquanto trabalhadores e não nos identificamos como empresários. Somos detentores dos meios de produção, porque isso é da natureza da economia solidária, mas nos identificamos como trabalhadores, e não como empresários. Nosso futuro, nosso horizonte futuro não é ser patrão, nosso horizonte futuro é continuar trabalhando no chão.”
Acho que foi das coisas mais ricas que a gente fez. Foi um enfrentamento muito grande, que gerou um racha muito grande entre dois campos, o campo mais ligado às igrejas, com o [Grupo] Cáritas, maristas e TCPs também, e um campo mais ligado ao movimento sindical, à CUT, as tendências dentro do PT, o próprio PT. Isso gerou uma série de dificuldades e no final das contas eu acredito que a gente teve razão, porque quem a Dilma escolheu ______ foi _______ para assumir, mas infelizmente a gente ficou com uma Secretária de Economia Solidária dentro do Ministério do Trabalho e Emprego, o que é pessimo, horrivel.
Fico muito triste nessa eleição do Lula que o nosso movimento de economia solidária, agroecologia, mulheres, vários campos… Eu acho que, na minha percepção, [o governo] se equivocou em tentar reproduzir o modelo antigo de cada um nas suas caixinhas, em um momento em que a gente está enfrentando o fascismo. Eu acredito que a gente precisava se juntar todo mundo em lugar só, era para ser MDA e ali tinha que estar a economia solidária, ali que tinha que estar o corporativismo, ali que tinha que estar a agroecologia, ali que tinha que estar para gente se fortalecer, [criar] políticas públicas de desenvolvimento territorial e olhar o território na construção de cadeias solidárias. Mas aí a gente avança muito para os dias de hoje, talvez, porque depois que eu saio de Brasília vou para Caldas, uma cidadezinha, atuar de novo no local. Uma cidadezinha de quinze mil habitantes, aqui não tem semáforo, e a gente ao mesmo tempo atuando mundialmente como secretária executiva nacional, nos objetivos do milênio, na constituição pós-2015. E depois um movimento de luta muito forte com relação à mineração, as construções alternativas na agroecologia, a aliança em prol da Pedra Branca se torna a denúncia e o anúncio das propostas do turismo de base comunitária, da agroecologia, que é o que a gente trabalha.
Na cultura popular, a gente tem o Festival Pedra Branca de Violas e Sonhos, que é famoso. A gente traz os violeiros, poesia e tal. A gente percebeu, eu percebi, nessa minha vida de ponta, de estar aqui no terreno, como a lógica de políticas públicas está equivocada na forma de se relacionar com o território, por isso eu tive tanto ímpeto depois de uma batalha brutal para tentar eleger o Lula. A gente lutou muito aqui no nosso município, demos sangue aqui. Eu mesmo, pessoalmente, fiz mais de duzentas bandeiras, espalhadas; tinha trator com bandeira do Lula aqui em Caldas. E depois, no final das contas, acabei sendo eleito vereador aqui, por causa do fruto dessas lutas.
A gente percebe a dificuldade que tem de conseguir transformar políticas públicas emancipatórias, progressistas em realidades se a gente não tem uma… A ponta, que é onde eu estou agora, hoje, [está] suficientemente organizada, com capacidade de poder dar vida para esse tipo de ideias maravilhosas que a gente tem quando está em Brasília. Acabou que eu vivi os dois mundos: eu vivi o mundo de Brasília, que a gente passava madrugadas, noites em claro pensando as políticas, como a gente ia fortalecer o desenvolvimento local, territorial, endógeno e tal… Muitas vezes acaba que a gente não conseguia fazer com que isso tivesse a liga, porque a gente dependia muito do que pudesse estar acontecendo no local, e às vezes essas políticas não conseguem reproduzir a realidade do território.
(01:06:39) P/1 - Você acabou entrando na minha próxima pergunta, que era justamente a ideia dos ganhos de políticas federais, estaduais, ou municipais relacionadas a essas lutas nas quais você estava inserido. Você acredita que houve alguns ganhos? Ou realmente a maioria, como o você comentou agora, acabou ficando mais no projeto?
R - Olha, eu refleti tanto sobre isso que eu consigo fazer essa resposta muito rápida para você. A grande política pública que funcionou, que deu certo e que deveria ser expandida para outros setores que não sejam só a agricultura, foi o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar] e a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Não tenho a menor dúvida disso, foi política que conseguiu chegar na ponta e fazer a diferença nos territórios. Obrigando as escolas a no mínimo 30% ser comprado da agricultura familiar local, você gera um processo de organização tremendo. Usando mecanismos que eram obsoletos e aproveitando esses mecanismos obsoletos como a CONAB [Companhia Nacional de Abastecimento], que estavam obsoletos, não serviam mais para nada, você dá um sentido social para aquilo, que são as compras públicas de produtos da agricultura familiar. Você está mexendo no coração, tanto que isso foi questionado pela Organização Mundial do Comércio, por países… Acho que foi o Canadá ou Estados Unidos que questionaram. Outros países não conseguiram porque eles tiveram um tratado, o Brasil se livrou, não fez o tratado que o Fernando Henrique Cardoso queria, que era a ALCA [Área de Livre Comércio das Américas]. Como o Brasil não teve, não foi, não sofreu as consequências de fazer um PAA, um PNAE, que vai contra a livre concorrência, ele dá prioridade para a agricultura familiar.
Para mim essa é a política, política com P maiúsculo, que conseguiu ser plasmada. Acho que ela precisava se tornar lei, precisava ir para outros campos. Para os campos de serviço, para o campo de produção, de outras áreas. Essa para mim é a política que poderia fazer a economia solidária ir para a frente.
A gente se fragiliza muito quando se fortalece tremendamente a questão do MEI. Apesar de eu super compreender, é importante. Não acho que o MEI seja contra a economia solidária, acho que essa visão eu mudei com o tempo. Acho que também é economia popular, porque está reproduzindo a vida, não necessariamente reproduzindo o capital, mas não necessariamente ajuda nos processos de organização; PAA, PNAE ajudam, né? Claro que a gente teve possíveis políticas que seriam de um milhão de cisternas, também vejo como uma grande política, porque ela vinha casada com os processos de organização popular, para a construção de cisternas, que foi outra briga que a gente teve com a Dilma na época. A Dilma queria: “Vocês querem um milhão de cisternas? A gente faz um edital e tem um milhão de cisternas, uma licitação e temos um milhão de cisternas.” Aí a gente dizia: “Não, tem que ser um processo de construção de cisterna através do mutirão, ele é tão ou mais importante que ter a própria cisterna em si.” Ou seja, [era] o processo pedagógico de construção, só que era uma coisa que vinha muito desses diálogos que teve do Lula com os movimentos sociais, assim como outros programas.
PRONATEC [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego] eu acho superlegal também, o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, também acho superinteressante, mas não são programas, tinham uma certa fragilidade, viraram políticas muito vinculadas ao próprio governo. O PAA e o PNAE conseguiram sobreviver, é inacreditável, mesmo tendo sido colocados em níveis recordes de baixo investimento. A política ficou ali, eu sei disso; aqui em Caldas o pessoal continuou vendendo para PNAE, continuou, estava rolando ainda, [com] muito menos recursos, muito menos parrudo, então para mim essa é a grande política.
Na economia solidária, nós nos equivocamos tremendamente, em todas as áreas, sabe? Eu não vejo, mas eu sou muito crítico, tá? Porque eu estava no centro, estava junto na construção, então a gente fica mais crítico, o que é uma autocrítica. Eu acho que a gente derrapou demais em debates teóricos, profundos sobre economia solidária, e eu acho que a gente tinha que ter pensado sempre no saldo. Foi o que eu tentei falar na transição agora, mas como eu não estava mais no nível nacional, estou muito na ponta, eu percebo que a minha voz foi para as paredes. Mas eu estava dizendo: “Gente, pelo amor de Deus, vamos pensar no saldo de quatro anos que nós vamos ter. Eu só vejo saldo possível se a gente juntar o povo todo em um lugar, ficar o tempo todo junto ali e gerar políticas um pouco mais consolidadas, menos políticas, menos dispersas, mas mais consistentes.”
Eu vejo uma tentativa que se fez na época, que é aquela construção dos territórios da cidadania. Ali eu vejo um caminho que poderia ir para algum lugar, mas que não teve força suficiente de agregação dos vários campos. Era essa lógica de você ter espaços no território, no debate territorial, para você ter recursos, fundos, com pessoas eleitas, que estariam deliberando sobre o uso daqueles recursos para conseguir gerar instrumentos de desenvolvimento no território, parecido com o que os bancos comunitários fazem.
Eu admiro muito os bancos comunitários, pelo fato de que eles geram fórum econômico local e a questão financeira vem casada com um projeto de debate sobre qual desenvolvimento a gente quer aqui no nosso território. Por aí que eu vejo possibilidade de políticas públicas. Mas ainda era muito fragilizado, muita gente era… Contratos, né? Tinha um campo legal, mas a gente da economia solidária estava derrapando, a gente estava atirando para todos os lados, indo para lugar nenhum, era muita coisa. “Ah, a gente quer a formação mais especial do mundo.” Um monte de teorias sobre a nossa formação que acabaram ficando na teoria. “Não, agora, agentes de desenvolvimento”. Agente de desenvolvimento virou muito mais aparelhagem do que qualquer outra coisa, não estava gerando… Poderia ter usado aquele recurso para fortalecer os territórios de cidadania, para poder ver se conseguia casar mais a questão da agroecologia, da economia solidária, do processo do cooperativismo, o campo e tudo mais, e ter um horizonte mais claro, como a gente distribuir alimentos de uma forma que empodere quem está distribuindo, para se tornar núcleos de organização comunitária. Não dá para qualquer um fazer essa distribuição, porque você acaba fortalecendo atores que não estão querendo avançar em uma sociedade democrática. Acaba que quem está distribuindo, digamos assim, acaba sendo uma igreja neopentecostal. Você, no final das contas, o saldo final… Acho que é isso que eu senti que faltou.
A gente estava no espírito do Fórum Social Mundial, a gente estava no espírito de que o Brasil era ponta de lança de tudo, que a gente era a organização social pujante, a sociedade civil diversificada e não sei o que, e de repente, acho que a gente não percebeu que à espreita existia um núcleo muito duro de combate as nossas propostas que deveria ter sido visto; eu não vi, não percebi com tanta clareza. A gente achava que estava lá na frente, a gente falava dos parâmetros ________ nacionais, a gente achava que estava superavançando. Quando a gente viveu o que viveu nesse período recente, a gente tem que entender que a gente não está mais na época do Fórum Social Mundial, e às vezes eu sinto que na construção que a gente teve no processo de transição para agora meio que se reproduziu essa euforia. Não consigo entender tanta euforia em uma situação que a gente vê claramente o que nós estamos vivendo.
Respondendo à sua pergunta, as políticas nacionais que foram construídas no âmbito da SENAES (Secretaria Nacional da Economia Solidária), na minha opinião, elas não tiveram saldo, não tiveram lastro. Essa crítica não é para outros, essa crítica é para nós. Eu estava no bojo dessa construção, eu estava dentro dessa construção, então a crítica é interna, ela também é para mim, para o nosso grupo, para o próprio fórum.
(01:15:14) P/1 - Por uma questão de tempo, não vou conseguir desenvolver tanto quanto a gente gostaria, mas eu queria que você falasse também sobre o seu trabalho com os desenvolvimentos de software, sobre a [Cooperativa] EITA. Conta um pouco para gente como isso surgiu, e qual é o trabalho que vocês fazem?
R - Eu fico muito feliz de você ter me perguntado isso. A EITA é meio que… Quando você está em um deserto e você tem árvore frondosa, com uma sombra deliciosa. A EITA é assim.
Acho que eu tenho duas grandes alegrias. Meu casamento, a Noemi, minha companheira, que a gente se conheceu em um encontro de economia solidária no Canadá, ela vindo da Costa Rica, eu vindo do Brasil. A gente se apaixonou loucamente, nossos filhos já nasceram já aqui em Caldas, então eu acho que é um pilar que é fundamental. O outro pilar é a EITA, esse coletivo autogestionário de economia solidária, com horas iguais, valor igual para todo mundo, todos recebem igual, independentemente de quantos anos estão, que a gente fundou naqueles idos de 2011, no processo em que eu já estava percebendo que haveria a minha saída do fórum a qualquer momento. Foi quando a gente teve aquela vitória com relação à questão da micro e pequena empresa, foi o momento que eu decidi que ia sair do fórum. Eu senti que o dever estava cumprido, de que a gente conseguiu trabalhar, de que nós somos trabalhadores, e isso ficou muito plasmado. E aí foi a decisão de sair.
A gente já estava começando a construção, já estava existindo a EITA, estava começando a pegar os primeiros trabalhos, desde 2011, então hoje nós estamos com doze anos. Em breve, agora em maio, vamos chegar a treze anos de idade.
A sustentabilidade financeira da nossa família é da EITA. A gente vive da economia solidária e é uma experiência magnífica, né? Com todos os tipos de conflitos internos que já tivemos, os debates… A gente se reúne toda semana virtualmente, toda santa terça-feira - agora às quartas-feiras, esse ano a gente começou a fazer às quartas-feiras. Eu estou vindo de uma reunião semanal da EITA, antes de dar essa entrevista aqui, que a gente não pode faltar de jeito nenhum, é um momento sagrado da autogestão, e [tem] as assembleias presenciais, que a gente faz uma ou duas por ano, que todo mundo se junta - a gente chama de carnal, que é a hora que todo mundo se aproxima e principalmente trabalha.
A gente desenvolve software, somos mais ou menos treze - tem pessoas se aproximando. Para você se tornar cooperado… O cooperado é um casamento, né? Então a gente tem pessoas constelando, se aproximando.
[São] milhões de trabalhos que a gente está fazendo, a gente não para de ter trabalho, não para de ter demanda. A gente fez coisas que a gente se orgulha muito. Estou até com a camiseta aqui do aplicativo Estou no Mapa, que é maravilhoso para o automapeamento de povos e comunidades tradicionais. Toda a base de dados em sistema de gestão, filtros, cruzamento, gerações de relatórios da CPT para outros relatórios que são feitos, de violências no campo, os dossiês que são gerados, o site do MST, as lojas virtuais do Armazém do Campo… Nossa, é muita coisa que a gente tem trabalhado, junto aos movimentos sociais. A plataforma Agroecologia em Rede, a plataforma do Lume [Método de Análise Econômico-Ecológica de Agroecossistemas], a plataforma das mulheres, das cadernetas, muitos sites de movimentos sociais, de grupos.
O que é a EITA? A sigla significa Educação, Informação, Tecnologia para a Autogestão, então o que a gente faz? A gente desenvolve tecnologias livres da informação, software livre, com o objetivo de fortalecer as lutas progressistas dos movimentos sociais. Essa é a nossa função.
A gente usa uma frase, a gente brinca que faz a liga entre “movimentês” e “computês”, porque a gente sabe que existe sempre… Em qualquer organização que você for conversar, essa organização tem uma história traumática para contar de relação com uma empresa de software, todas, porque elas não entendem uma linguagem de movimentos populares, os processos de organização, então a gente tem toda uma forma de lidar com os processos de especificação da solução, o desenvolvimento de para onde isso vai, como solução, e assim por diante.
Muitos de nós vêm dos movimentos sociais. Uma das co-fundadoras, a Rosana, estava comigo na Secretaria Executiva Nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, a Rosana Kirchner. Outros fundadores, o Pedro vem do mundo das produtoras culturais colaborativas, do mundo da cultura; o Alan vem de todo o movimento da agroecologia, da luta da campanha contra os agrotóxicos. O site que faz assinatura dos agrotóxicos é feito pela EITA, que tem milhões de assinaturas.
Eu posso falar que, do ponto de vista profissional, eu sou uma pessoa realizada. Nunca imaginei que ia ter uma carreira, mas da EITA eu não quero sair, não. Realmente é uma casa, é como eu falei, é a sombra de uma árvore frondosa, é um espaço de muita realização, muita realização do sonho antigo. A forma como a gente foi criando a EITA era isso, a gente queria conseguir alinhar as nossas lutas com a nossa remuneração, mas a gente não queria isso na forma de uma ONG, uma entidade que faz projetos para editais, participa de editais, pega o recurso e faz um trabalho social. Supervalorizo, faço parte de uma, que é a Aliança em Prol da APA da Pedra Branca, é importante, mas é um campo.
A gente queria estar no campo econômico, a gente é uma cooperativa, uma entidade com fins econômicos sem fins de lucro, como o Daniel Heck fala. A gente é uma entidade que presta serviços, a gente não participa de um edital, chamada pública. A gente faz orçamentos, compete, às vezes ganha, às vezes perde. Quando a gente ganha, a gente desenvolve a solução como um empreendimento, como uma empresa, como uma cooperativa, e a gente vive disso.
Nunca vou esquecer a primeira retirada que a gente teve, o forte que foi para todos nós dizer: “Pô, estamos vivendo do nosso trabalho autogestionário, da economia solidária.” A EITA é uma experiência fantástica de vida e de trabalho, uma realização profissional.
(01:22:07) P/1 - E você acha que o seu trabalho com a economia solidária, nesse caso da EITA, mudou sua forma de enxergar a vida?
R - Com certeza. Na verdade, a aproximação com a economia solidária sempre mexeu muito com a gente, desde o começo. Lidar com os processos de ter que discutir entre si, não ter fuga, né? Você não tem muito o que fazer, você tem que tentar resolver o problema com diferenças; eu acho que é um grande aprendizado enquanto seres humanos. É meio que o oposto do que as redes sociais geram. As redes sociais geram cada vez uma amplificação, uma caixa de reverberação de intolerâncias, e a economia solidária é o contrário, ela cutuca em você para você se tornar alguém que seja capaz de escutar, capaz de falar, capaz de construir junto. Então sim, a economia solidária é parte da minha vida, ela é a minha vida, não só na EITA, mas em todos os espaços possíveis, desde o ambiente doméstico até o ambiente político.
Nosso mandato é um mandato-movimento, um mandato Movimento Caldas. Ele também tem um processo de construção coletiva, sem uma lógica infantil, ou de mãos limpas, de assembleísmo, ou uma lógica purista de democracia, isso não existe, todos temos mãos sujas.
Eu gosto disso da economia solidária, na economia solidária a gente suja as mãos, porque a gente se mete com a economia. É isso que eu chamo de sujar as mãos, a gente chegar lá, ter que prestar conta do trabalho, ter que entregar algo que quem nos contratou está esperando, e vai ter que ter qualidade, e vai ter que dar retorno, tem que ter resultado. É economia. A gente vai ter que gerar a retirada do mês seguinte, se não nós não vamos ter o que comer, então é isso.
A gente não está conversando sobre economia solidária, a gente está vivendo a partir da economia solidária, então sim, mudou minha vida.
A oportunidade de viver no Fórum de Economia Solidária me fez conhecer muitos empreendimentos de economia solidária, então nessa coisa entranhada dessa vida bonita da economia solidária, com todos os seus desafios e dificuldades e lutas, brigas, conflitos, a gente vê empreendimentos muito bonitos, sabe? De agricultura, de artesanato, de redes, de empresas recuperadas, processos que a gente vê que o pessoal está ali pro que der e vier, enfrentando vários contratempos. Isso veio antes da gente criar a EITA, então não diria que tenha sido somente a EITA que fez essa economia solidária não sair de mim, a EITA também, mas a EITA, como é o que gera o próprio sustento da nossa família, acaba sendo uma coisa muito mais objetiva do que as outras experiências. Mas elas foram fundamentais, foram o que fez com que eu simplesmente não abandonasse mais a economia solidária.
(01:25:21) P/1 - E como você vê o futuro desses coletivos que você participa?
R - É uma pergunta muito difícil de responder. A EITA eu vejo, com o futuro, se tornando uma incubadora de outros empreendimentos de desenvolvimento de software. Eu vejo isso muito forte, sinto que a cada ano que passa a gente está sistematizando mais tanto nosso processo de gestão, com cálculo do preço, valor da retirada, formas de lidar com os diferentes clientes, parceiros, e a gente percebe que o grau de demanda é muito alto, então a gente percebe muito fortemente que em algum momento vamos estar apoiando outros grupos. Já apoiamos vários grupos, mas sinto que isso vai se tornar cada vez mais forte.
Eu também acho que a EITA também tem uma… Quem fez a gente descobrir isso foi Paulo Petersen, da AS-PTA [Agricultura Familiar e Agroecologia]. Eu acho que a EITA tem a possibilidade de avançar em uma inteligência suprassetorial, porque de um jeito ou de outro, ao lidarmos com tantos problemas, diferentes movimentos sociais e diferentes perspectivas, esses dados de uma maneira ou de outra estão circulando, então quer queira ou quer não a EITA virou uma mediadora entre movimentos sociais do campo dos dados da tecnologia, e eu acredito que pode ser que a gente avance. É um sonho antigo nosso, mas acredito que podemos avançar para PIs, sistemas de dados mais integrados, diferentes plataformas que permitam inteligências importantes sobre ação dos movimentos sociais nos territórios. Acredito que a gente vai avançar para isso, isso está ficando cada vez mais claro.
De maneira um pouco automática tem acontecido, porque a gente está tão envolvido em tantos projetos, né? Hoje, nesse momento, a gente deve estar com trinta projetos diferentes sendo executados na EITA - alguns de curto prazo, outros de longuíssimo prazo, então eu vejo isso.
Na Aliança em Prol da APA da Pedra Branca, eu sinto que a tendência que ela tem é ser um congregador dos esforços de trazer alternativas de desenvolvimento para o nosso território, que é o Vale da Pedra Branca, tanto do ponto de vista de geração de trabalho e renda, como também do processo de defesa ambiental. Na geração de trabalho e renda, acho que a gente vai avançar para um processo forte de aliar os processos produtivos com os processos de turismo, o turismo de base comunitária e o turismo artesanal através da nossa realidade, da nossa cultura. O alinhamento do processo da cultura e da tradição antiga dessa nossa região com os processos produtivos, isso tem como síntese o turismo de base comunitária, é ele que traz essa articulação dos dois. Então meu sonho muito grande na aliança é que ela seja uma grande reflorestadora, uma grande recuperadora de áreas - a gente tem um superviveiro - e uma geradora dessa síntese, de um processo de desenvolvimento que não é íngreme, ou seja, ele é muito lento no tempo, mas que seja consistente, e que gere emancipação aqui no território com relação a processos econômicos tóxicos, nocivos do ponto de vista de retirar a soberania e o próprio reconhecimento da cultura local.
Isso talvez não seja um processo apenas da Aliança em Prol da APA da Pedra Branca, mas também seja um projeto que a gente está construindo politicamente aqui na região, com a organização de partido, com candidaturas. Ano que vem vamos com certeza estar participando do processo também do executivo municipal, então a gente percebe que essas coisas estão casadas, né?
Aquela organização que foi criada em 2001, 2002, a Associação Oportunidade, [é] meu sonho, muito claro, muito fácil. Preciso achar só gente, porque não vai dar para ser quem está em tanta coisa, mas vai ser um banco comunitário, não tenho a menor dúvida. Criar uma moeda local é a oportunidade que vai ser. Eu tenho um CNPJ, ela foi feita para isso. Fiquei muito feliz quando o Joaquim me convidou para ir para o encontro dos trinta anos dos bancos comunitários, eu tenho admiração tremenda pelos bancos comunitários, uma saudade gigante da Sandra, eu sinto que a Sandra e o Joaquim, naquela construção, estavam apontando para grandes políticas de economia solidária, se tivessem sido apropriadas pela próprio SENAI de maneira mais central, mas ficava sempre uma disputa, que eu acho que era muito pequena, entre o que é fundo rotativo e solidário, o que é banco comunitário, o que era muito pequeno em frente a uma questão muito mais ampla, que é você criar instrumentos onde os programas, assim como foi feito PAA, PNAE, em termos de política pública, para poder gerar capacidade no território, autodeterminar o seu processo de desenvolvimento, de geração de empréstimos, de fazer girar o capital. Ali tinha grande vetor para política pública que não foi aproveitado, a gente perdeu muitas oportunidades no tempo em que a gente participou do governo federal.
(01:30:47) P/1 - Como última pergunta sobre esse assunto, você estava falando sobre os bancos comunitários, e o Paul Singer era um grande defensor dos bancos comunitários. Você chegou a conhecê-lo?
R - Eu era muito próximo do Paul Singer, muito próximo, [tinha] um carinho gigante por ele. A gente tinha os nossos jantares. A gente estava tendo muita confusão entre SENAES e o Fórum Brasileiro, as coisas estavam meio que se perdendo com relação ao que a gente estava fazendo, e aí nisso um ligava para o outro e falava: “Vamos fazer um jantar.” Conversar sobre desde os kibutz, organização da Índia até as políticas públicas que poderiam efetivamente trazer uma transformação.
A gente teve muitas reflexões muito profundas sobre o mundo, sobre economia, sobre a vida, então eu tinha uma felicidade muito grande de trocar com ele, como grande pensador. Uma potência muito grande que ele tinha, um grau de escuta e acolhimento surreal, ou seja, talvez o que mais impressionava no Paul Singer é que ele respirava, transpirava democracia. Ele era um ser genuinamente, do fundo da alma, democratico, [com] uma capacidade de ouvir a uma pessoa que estivesse gritando e tentando ver qual é a dor que está gerando aquele grito. “De onde está vindo? O que essa pessoa está me dizendo? E de onde está vindo o que essa pessoa está me dizendo?” [Era] sempre uma tentativa de escuta, sempre, e isso eu levo comigo. É impressionante a sabedoria do Singer, sempre admirei muito.
Do ponto de vista de gestão da SENAES, eu acho que pelo pouco tempo que a gente tinha, talvez não fosse o melhor. Eu preciso reconhecer isso, porque eu acho que a gente precisava também de [gerir de] uma maneira um pouco mais dirigida, afirmativa, né? Mas do ponto de vista de experimentação social, vamos supor, se eu tivesse tido… O golpe contra a Dilma em 2016, não tivesse tido a vinda da extrema direita, eu tenho certeza que esse processo de experimentação social que o Paul Singer estava gerando dentro no âmbito das políticas públicas geraria as melhores políticas públicas que poderíamos ter. O problema é que o tempo não agiu a nosso favor, e de fato os processos democráticos são mais lentos, eles são processos de construção, só que são muito mais robustos, muito mais firmes. Com a política mais pesada vindo com os processos de disputas dos vários campos, e muitas vezes ele tendo que mediar disputas que não tinha que mediar, sinceramente era uma coisa muito triste, muito ruim que a gente teve.
Uma diretoria representava um campo da economia solidária, a outra diretoria representava o outro campo, e ainda tinha o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, que representava de um jeito ou de outro um certo campo, e que dentro desse fórum também tinham disputas desses campos. Eu também tinha que ficar mediando entre esses campos no fórum; o papel que eu tinha, de coordenador executivo, uma coisa assim… Tinha um nome que tinham dado para mim que eu nem lembro mais qual foi, eu era secretário executivo e também era articulador de alguma coisa, não lembro mais muito bem o que era, mas se não houvesse tantas disputas - elas são naturais no meio - com certeza aquele tempo poderia gerar uma política pública mais eficaz. Tendo esse tipo de disputa, também era possível, mas era necessário um tempo maior de maturação, e o Brasil não nos ofereceu esse tempo. O Brasil derrubou a Dilma, derrubou a democracia por um tempo e gerou uma situação de muita fragilidade no nosso país, e agora, nessa reconstrução, eu acho que a economia solidária entra na política pública de maneira muito, muito frágil, muito equivocada.
Acho que é isso, o Paul Singer, ao exercitar essa escuta o tempo inteiro e buscar sínteses, ele ensinou muita coisa para muita gente, muita gente que conviveu com ele, tanto na SENAES como nos fóruns de economia solidária. Saíram de disputas muitas vezes medíocres, pequenas, quando ele botava a coisa em outro patamar, sempre. Paul Singer colocava a coisa em outro patamar, sempre, ele não deixava o debate ficar medíocre, de interesses de disputas mesquinhas; ele sempre perguntava: “Mas o que a gente quer? Qual o nosso objetivo? A gente não quer trazer a autogestão?” Ele botava para autogestão, a gente não quer a autogestão?
Ele era uma pessoa fabulosa e muito interessante, talvez um caso único no Brasil. Ter uma pessoa como o Paul Singer em uma política pública nacional… A gente teve o Paulo Freire em uma política pública municipal, também foi uma coisa espetacular, mas no nível federal eu acho que é difícil reproduzir o que significa o Paul Singer em um espaço de construção de política pública. Uma coisa maravilhosa.
(01:36:10) P/1 - Bom, então agora a gente vai para as perguntas finais, São perguntas um pouco mais pessoais, tá bom? Primeiramente, como foi para você se tornar pai?
R - Uma alegria muito gostosa, Acho que o mais forte para mim foi quando caiu a ficha, ainda estava nos processos finais. Botando um monte de roupinha que a gente lavou no varal, aquelas roupinhas, eu falei: “Nossa, nossa casa vai ser outra casa. Não tem só a minha roupa, a roupa da Noemi. Não, tem aquela coisinha ali, tem um serzinho vindo, né?”
A gente sonhou muito com o primeiro filho, sonhamos muito com o segundo filho. O Antônio tem agora nove anos de idade, o Emiliano tem cinco.
Acho que o que veio para mim ao me tornar pai foi um sentimento de potência, talvez, de que há a possibilidade, pelo menos, com tudo dando errado em todo lado, da gente pelo menos lá em casa, almoçando, no café da manhã, no cotidiano, dia a dia a gente estar buscando de alguma maneira compartilhar valores profundos nossos, que pode ser uma maneira mais objetiva de contribuir para melhorar o mundo. Meu sonho sempre era “que o António e o Emiliano sejam pessoas boas, é só, é tudo que eu quero.” Acho que foi esse sentimento, talvez.
Quando a gente está em uma situação difícil, por vários motivos, né? Agora que eu estou na política como vereador, tem horas que você dá aquela baixa, você fala “nossa”, aí você chega em casa, você está lá, conversando das coisas que valem a pena.
O sentimento foi muito bom, foi muita realização ser pai. Curti muito, estou curtindo.
(01:38:24) P/1 - Em relação à pandemia, como ela impactou a sua vida, pessoal e profissional também?
R - A pandemia, ela foi assim: a Noemi falou que não sabia que tinha casado com um bombeiro. Eu atuei fortemente na pandemia. Vocês moram em cidade grande, talvez muito grande; aqui a cidade é muito pequenininha, então a gente percebia que o prefeito estava querendo… Eu não estava na área política ainda, nem pensava em ser vereador, mas imediatamente criei um grupo de Whatsapp para galera se autoajudar, e esse grupo existe até hoje, os grupos de delivery também, e o grupo das barreiras. Comecei a organizar os mutirões, as barreiras sanitárias que a gente fez, a questão das máscaras. Fiz muitas, muitas lives para a população Caldense sobre o vírus, sobre como funcionava, combate a fake news, então acabou que a pandemia virou uma época extremamente ativa para nós, ao contrário de outras pessoas que acabaram tendo que parar. Para nós foi uma coisa extremamente ativa, eu estava na ponta de lança, me reunindo todo santo dia com o prefeito, com as máscaras, a distância, lugar aberto, não sei o que, para ver que lutas a gente ia fazer - se ia construir um novo hospital, novos leitos, buscar respirador, tentar arrumar máscaras. Fiz uma movimentação com as mulheres da cidade, a gente produziu 5000 máscaras; o nosso município tem 15000 habitantes, então foi uma coisa tremenda que a gente fez mutirão, todos em casa, separados. Foi um processo bastante intenso.
Para os meus filhos foi difícil, apesar de que a gente teve sorte porque a gente mora em uma cidade do interior, na roça. Isso é uma coisa que eu sempre fazia questão de falar para as pessoas: “Gente, entendam que vocês estão na roça. Você pode sair de casa na zona rural sem encontrar com ninguém. O “fique em casa” tem a ver com regiões densamente populadas. Se estiver a mais de dez metros da pessoa, pode sair de casa.” Era uma coisa que eu trabalhava muito.
Eu tive que fazer muito processo de pandemia da zona rural. Como é o processo de pandemia da zona rural? É diferente, você pode dar uma andada, você pode tratar dos cavalos se você consegue, e isso foi muito bom para a nossa família, para o Antonio, para o Emiliano. Eles puderam brincar.
Acho que teve bastante impacto sobre eles, eles ficaram muito ermitões depois, não brincavam com mais ninguém, era só os dois, entre eles; foi difícil depois a relação para voltar com as crianças.
E do ponto de vista profissional, a EITA já era assim, a gente já trabalha em casa, separados, então continuou rolando assim. Do ponto de vista do negócio, do nosso empreendimento solidário, bombou. Todo mundo queria alguma solução que ajudasse para processos virtuais. A gente gerou então o varal para processo de formação virtual, gerou o rios, o processo de organização à distância, gerou as lojas delivery, lojas de entregas que hoje a gente usa em várias soluções aí pelo Brasil, então acabou que a demanda só aumentou, então o meu trabalho aumentou.
Dava aquelas desesperos, né? “O que vai acontecer com os meus filhos? Nunca mais vão ter relações com ninguém.” Foi muito ruim, sentia muita falta de encontrar pessoas, de poder fazer qualquer coisa, tomar um café. Isso teve um efeito bastante grande, mas no mais eu acho que a gente lidou muito bem na nossa família. Noemi e eu, as duas crianças, ficamos bastante bem, mas eu tinha que fazer aquelas coisas meio malucas, né? Como eu ia fazer reunião com o prefeito, eu tinha que voltar para casa, tirar o sapato do lado de fora, ir direto para o banho, ficar botando um monte de coisa, então era uma coisa meio, sei lá, parecia uma coisa meio apocalipse. Não podia comprimentar as crianças, tinha que primeiro ir para o chuveiro; as roupas todas tinha que botar em um saco e botar lá fora para a gente já lavar, então era um processo que a gente foi entendo mais.
Demorou muito para a gente entender a pandemia, depois a gente começou a pegar o jeito - onde está com mais risco, onde está com menos risco de pegar, e aí vai dando jeito, e passamos. Não tivemos nenhum caso na nossa família, só depois que já abriu depois que teve o problema também, isso foi um processo que até queria muito um dia refletir sobre isso. As pessoas entraram tanto na questão do isolamento que esqueceram a razão do isolamento. O isolamento não era pela força da covid, era porque o covid era altamente contagioso, desconhecido no nosso corpo humano, não tinha vacina, e por isso o problema era o impacto sobre o sistema de saúde, ou seja, você tem um volume muito grande, então o indicador que tinha que ficar na cabeça de todo mundo, e eu sempre usava esse indicador quando falava com as pessoas, é a quantidade de leitos ocupados, é a questão de não ter como entubar, ou não poder fazer cirurgias eletivas. No momento que você baixa a quantidade de leitos e você tem a possibilidade, gente, aí já pode começar a se arriscar mais, porque o sistema não está pressionado. Toma vacina, veio a baixa; tomou as duas, três doses, já deu a baixa. Agora já pode voltar a começar a se relacionar. Mas aí entrou em uma neura de que não podia pegar covid nunca, depois que já tinha tido a vacina, e o pessoal até ficava decepcionado: “Poxa, mas pegar covid até com vacina.” “Gente, baixou o ritmo, está liberado. Você pode se dar ao direito agora de pegar covid, a gente passou pela fase que era pressão sobre o sistema.”
Eu sinto que tem umas pessoas que até hoje não conseguiram entender, que hoje o covid é parte da nossa realidade. Peguei covid? Peguei. Agora pode, tem leito, tem entubadora, tem respirador, então está tudo bem.
Acabou que eu tive um papel muito forte de liderança e diálogo com a população toda. Eu resolvia todo tipo de dúvidas possíveis e imaginárias durante o processo da pandemia.
(01:45:00) P/1 - E o que você gosta de fazer hoje em dia fora de todos esses seus campos de atuação? Nas suas horas livres.
R - Ufa, é que tem as coisas que eu gosto de fazer e não estou fazendo, né? Eu gosto de jogar basquete, não estou conseguindo jogar. Adoro jogar tênis de mesa, fui da equipe de tênis de mesa de Campinas. Eu defendia Campinas, cheguei a jogar com Claudio Campos uma vez, adoro tênis de mesa.
Eu conheci um tipo de exercício que eu adoro que é de pirâmide, pirâmide integral, que é você ficar pendurado, se esticando. Curto muito. Adoro praia, tive algumas fases da vida com praia, então quando a gente consegue ir à praia eu até falo para Noemi: “Eu não quero fazer nada”. “Vamos passear?” Eu: “Não.” Eu quero só ir para a praia, mas é bom que as crianças também gostam desse jeito, então está tudo bem. A Noemi que fala: “Pô, a gente poderia dar um passeiozinho.”
Eu gosto muito de praia, gosto de ficar sozinho em alguns momentos. Gosto de ficar sozinho, adoro cozinhar, então lá em casa a gente é bem ativo nessa parte. Gosto muito de ler; não tenho lido mais, parei de ler, nunca mais li. Faz muito tempo que eu não leio, mas gosto. Gosto de ler livro de ficção, odeio ler livro de reflexão. Um que eu gostei foi esse da Alice, uma boa leitura, eu gostei muito desse livro, Um Conto de Feitiço da Experiência, é alguma coisa assim o nome do livro. Gostei desse aí. mas eu tentei ler aquele outro, Multidão, e achei um saco, parei.
Eu vi um que mistura história agora, mistura história também, fica legal, aquele do Última estação: Finlândia. É interessante, eu achei bem legal essa coisa de contar a história pessoal do Marx, como ele era. Mas eu gostava mesmo era de romance, ficção - Guimarães Rosa, Isaac Asimov, Dostoievski, eu gosto disso. Esse é o tipo de livro que eu gosto.
Eu curto caminhar, sempre gostei muito de caminhar longas distâncias. Já fiz caminhadas longuíssimas a pé, descalço, com mochila; já atravessei estados caminhando. Gosto de cachoeira, adoro, adoro natureza. Eu curto ficar em um espaço bom, gosto muito de estar com os amigos, gosto de música, mas não tenho mais tocado violão, estou com uma resistência. Mas adoro música.
Nossa, eu gosto de tanta coisa. Gosto de bastante coisa.
(01:48:07) P/1 - E quais são as coisas mais importantes para você hoje em dia?
R - Talvez o que eu acho mais importante seja cultivar os espaços de diálogo. Acho que é o que está me deixando mais ansioso hoje em dia. Pode ser uma etapa em que eu estou hoje, mas senti que a gente não está conseguindo ter espaços para conversar, para, de maneira mais solta, sem ir para um lado, aquela coisa horrorosa da extrema-direita, moralista, porém com moral, mas também sem ir para o outro lado, essa coisa superficial do politicamente correto, que eu acho que é um outro pânico moral. Ter capacidade de de fato dialogar de maneira livre, solta e sem se preocupar muito com as consequências daquilo, e isso poder gerar sinergia, sabe? Sínteses, você olha a minha trajetória de vida e tudo que eu consegui foi através de grandes sínteses, de processos que não eram ideias só minhas, são conjuntos de coisas que geraram ideias sinérgicas, que foram outra coisa, né? A própria EITA, tudo veio de um processo que não era de uma pessoa só, é de um conjunto, quando você tem aquela liberdade de construir.
E talvez a segunda coisa, mas eu acho que está muito ligado à primeira, isso para mim é a coisa mais importante: a paz, a paz de ser quem é, a paz de poder comer, a paz de poder viver de maneira digna, de ser respeitado. Eu sinto que a gente está precisando fortemente, e aí mistura paz e espaço de diálogo. Eu sinto que a gente está precisando de cura, recuperar mata, recuperar seres humanos, recuperar comunidades, recuperar capacidade de ser, de se expressar. Eu sinto que são essas as coisas mais importantes para mim hoje.
(01:55:56) P/1 - E qual legado você gostaria de deixar para o futuro, Daniel?
R - Legado? Deixar para quem?
(01:50:55) P/1 - Que você gostaria de deixar para o futuro?
R - Ai, ai… Que legado que eu gostaria de deixar? Eu sempre dizia, quando eu falava da economia solidária, que a economia solidária não é a resposta, ela é o caminho para criar ambientes, para que quem viva aquilo e outras gerações possam dali, daquele patamar, gerar algum tipo de resposta, porque eu sinto que a gente está dentro de determinados paradigmas que a gente não é capaz de gerar resposta, então eu não acho que o meu legado seria apresentar respostas. Eu sinto que o que eu gostaria de deixar como legado é um ambiente que permita que propostas de cura, de melhorias do mundo possam surgir, então eu não acredito que eu consiga deixar um legado, um mundo melhor. Eu acredito que talvez o meu desejo mais profundo seja como legado deixar um ambiente que propicie, através das estruturas que a gente está tentando montar, sejam elas jurídicas, organizacionais, políticas, financeiras… Estruturas, de alguma maneira, que possam ser berços de perspectivas de melhoria do mundo.
(01:52:37) P/1 - Agora nós vamos para a última pergunta, Daniel. Como foi para você contar um pouco da história da sua vida hoje?
R - Foi uma surpresa, na verdade. Acontece o seguinte, eu acho que eu não sabia muito bem onde que eu estava entrando, porque quando você se introduziu falando que quem tinha me indicado era do instituto Paul Singer, eu tinha achado que ia ser um debate mais político, de política pública, então eu vim com essa predisposição do debate sobre política pública, tanto que depois eu falei: “Não, acho que meia hora não vai dar”, e você falou: “Não, vai ser uma hora e meia, duas horas.” “Caramba, vai ser um assunto mais…” Aí você começou: “Não, vamos falar da sua infância.” Eu fui pego de surpresa, não estava preparado. (risos)
Achei superlegal, sabe o que eu curti? Primeiro a postura de vocês, da equipe, muito aberta para conversar. Segundo que eu estou em um dia de reflexão, que é o dia do meu jejum. O dia primeiro de todo mês, desde 1997, é um dia de reflexão, que acabou virando uma reflexão para mim também, e o fato de que hoje é exatamente o marco de que faltam exatamente um mês para o meu aniversário de cinquenta anos, de meio século de vida, então meio que juntou uma série de fatores, somados à surpresa que me fizeram sentir essa experiência de hoje [como] uma experiência muito boa, muito positiva; me abriu, foi bom.
(01:54:18) P/1 - Em nome do Museu da Pessoa e do Instituto Paul Singer a gente agradece muito a conversa de hoje.
R - Eu que agradeço a paciência.
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