Como havia mencionado em um capítulo anterior, a minha mãe era professora e como tal, ela alfabetizava as crianças e também os adultos que viviam na roça e no Retiro.
O Retiro ficava no município da cidade em que nasci, Serrinha, porém, situava-se no caminho em que tinha-se acesso à área ...Continuar leitura
Como havia mencionado em um capítulo anterior, a minha mãe era professora e como tal, ela alfabetizava as crianças e também os adultos
que viviam na roça e no Retiro.
O Retiro ficava no município da cidade em que nasci, Serrinha, porém, situava-se no caminho em que tinha-se acesso à área rural, aos sítios e fazendas da região.
Possuía uma igreja muito simples, mas acolhedora e graciosa, um cruzeiro bem no meio do pequeno povoado e que fazia frente com a igreja, também havia uma venda, onde você encontrava os famosos secos e molhados, além de fumo de rolo, bala de café, querosene para acendermos os candeeiros à noite e várias outras utilidades e a deliciosa tubaína, que nós crianças muito apreciávamos.
Algumas casas compunham esse cenário, um pequeno grupo escolar foi construído muito depois, uma espécie de galpão gigante com umas três salas.
Mas, antes disso, as aulas de que me lembro sendo dadas por minha mãe, eram em casa. Os alunos vinham da roça em sua grande maioria e tinham um carinho enorme pela professorinha.
Lembro-me de alguns alunos soletrando uma palavra nova ou então repetindo uma outra para exercício de fixação e era algo que me agradava os ouvidos, algo curioso de se ouvir por uma criança.
Soletravam assim:
P, a, pa, ce, a, sá, re, i, ri, n, h, ó - Passarinho.
Como professora criativa e inovativa que era a mamãe e, frente aos escassos recursos que lhe dava o governo municipal, ela sempre fazia um belo trabalho de aprendizagem e alfabetização de seus alunos. Já naquela época, utilizava-se de todos os recursos naturais e reutilizáveis, para exercer o seu trabalho.
Na primavera por exemplo, arrebanhava algumas carroças de pequenos proprietários, para serem utilizadas num lindo desfile no pequeno povoado. As carroças eram todas enfeitadas com as mais diversas flores encontradas, além de galhos, enfeitados com fitas coloridas ou pintados e muitos ramos, folhas, cartazes com frases bonitas, que enchiam os olhos de todos os que participavam ou apenas observavam. Para esse trabalho, uma prima de minha mãe vinha de feira de Santana, para pintar as grandes faixas que se estendiam no povoado, saudando a primavera.
As crianças vinham nas carroças representando os reis, rainhas, príncipes e princesas da primavera, inclusive eu.
A merenda escolar também ficava por conta da professora, mas algumas mães de alunos, vizinhas ou amigas, revezavam-se para ajudarem no seu preparo. às cinco horas da manhã, já estavam labutando na cozinha, com o fogão de lenha a pleno vapor e sobre suas chamas, grandes caldeirões, a cozinhar o mágico e saboroso mingau de aveia.
Antes mesmo das cinco horas, faltando uns dez minutos, Glória e Zé Rabelo, punham-se a gritar, batendo na porta da sala. Mainha, mainha, gritava Glória para minha mãe, pedindo que abrisse a porta para ela e Zé Rabelo, vinha para tomar o café da manhã. Eu, na minha cama quentinha, enfiava-me embaixo do lençol apavorada de medo dos dois.
Eram inofensivos, mas eram dois adultos já, com problemas mentais e que viviam vagando pelo Retiro e outros lugares da zona urbana e rural de minha cidade. Dormiam no relento ou onde encontrassem abrigo.
Costumava se posicionar em frente ao cruzeiro e de lá ficar gritando:
-Eu, Glória Maria Rabelo, e assim ficava desfilando palavras de ordem e costumes, que mais pareciam um discurso cívico.
às vezes, mamãe os dava guarida por uma ou duas noites e os deixavam dormir na sala.
Meus irmãos e eu trancávamos com sete voltas a fechadura do quarto, tal era o medo deles, especialmente da Glória que vez ou outra fica meio agressiva. Me lembro de ser eu a mais aterrorizada com a presença deles.
Muitas vezes eles sumiam por meses e do nada, reapareciam.
Recordo-me de uma senhorinha que morava ao lado da minha casa e que tinha também um filho com problemas mentais. Andava o dia todo com uma toalha feita de pano de calamaço, amarrado à cintura, um pano de algodão preso à cabeça, descalço, e gostava de correr atrás das pessoas, algumas vezes deixava cair da cintura a toalha que lhe cobria a intimidade.
Eu gostava de colher algumas florzinhas do campo, montar um ramalhete e ir até a casa da boa senhorinha, presentear-lhe com as flores. Na verdade, eu amava fazer isso, pois toda vez que ia lá, ela me presenteava com um lindo ovo.
Ainda hoje, o Retiro está lá, mas a venda não, algumas casas se modernizaram um pouquinho, outras desabaram e no seu lugar só chão seco e um matinho lhe cobrindo a extensão, a igreja ainda é a mesma e o cruzeiro também. Muitos conhecidos viraram estrelas e muitos ainda estão lá, cumprindo a missão.
Glória e Zé Rabelo, não mais os vi. Dizem que saíram andando pelo mundo, alcançando terras mais longínquas, dizem também, que um dia ela voltou, Zé Rabelo não, falam até que Glória se curou e voltou ao curso normal da vida.Recolher