Depoimento de Cecília de Lourdes Fernandes Machado
Entrevistada por Márcia Trezza e Priscila Leonel
São Paulo, 29 de outubro de 2018
Entrevista número PSC_HV025
Transcrito por Fernanda Regina Ferreira
P/1 - Cecília, vamos começar. Por favor, fala seu nome completo, a data e o lugar em que você nasceu.
R - Meu nome é Cecília de Lourdes Fernandes Machado, nasci em 11 de fevereiro de 1967 em São Paulo, na maternidade Cruz Azul. Posso falar da minha família já?
P/2 - Se você puder falar dos seus pais, da sua origem, e também um pouco deles: como você descreve seu pai e sua mãe.
R - Meu pai: Adriano Augusto Machado; minha mãe: Terezinha Fernandes Machado. Eles são de família portuguesa. Meu avô veio para o Brasil com uma missão específica - ele era militar. Meu avô paterno veio com essa missão e trouxe, já casado, a minha vó Cecília - daí que vem meu nome - e o meu sobrenome Cecília de Lourdes é porque eu nasci no dia 11 de fevereiro, que é o dia de Nossa Senhora de Lourdes. Minha família materna tem uma influência muito grande, porque nasci inclusive na casa da minha vó. Quer dizer, nos primeiros dias eu fui para lá. E a minha vó Herminda e meu avô José…. Meu avô José é marceneiro e eu tenho profunda fixação por atividade com madeira; acho que vem daí. É interessante isso. E acabei herdando dois anos atrás uma das mesas de ferramenta dele, que é do século XIX. Incrível. Desmontaram uma das casas da família lá onde estava - eu nem sabia da existência e acabou ficando comigo. Acho que é uma coisa meio de retomada disso e tal. Meu pai também era militar. Uma pessoa extremamente carinhosa e inteligente. Uma das memórias mais fabulosas que eu conheci. Ele dava aula de História e prosseguiu na carreira militar em função do meu avô. Ele entrou muito cedo e se dedicou à pesquisa, em grande parte. Tem uma história interessante, porque na ditadura militar ele já estava procurando se aposentar, porque realmente tinha muito pouco a ver com repressão a vida dele, ele tinha uma atividade burocrática. Ele acaba se aposentando no Corpo de Bombeiros, que é uma coisa... Quer dizer, para quem queria se afastar da rua no meio da ditadura militar, ele vai para o Corpo de Bombeiros e aí, enfim, a proximidade dele com diversos padres em Santo André, no centro ali da atividade metalúrgica.
P/2 - Fala um pouco disso mais detalhes.
R - Isso é muito importante, porque foi fundamental, sempre a discussão que eu tinha com meu pai, embora o perfil da minha adolescência, pré-adolescência... Vou contar um pouco também a minha história, que tem muito a ver com a influência do meu pai. Isso é imprescindível na minha vida. Eu fui estudar no colégio de freiras e aí com 11 anos - em plena ditadura militar - eu tinha uma professora de História que já estava dando os primeiros indícios de uma atividade política importante, e eu era muito dedicada à História. Desde os 11 anos que eu já falava, escrevia e todo mundo sabia que minha história era fazer história. E eu tinha pretensão de fazer arqueologia como pós-graduação, mas a vida levou por outros lados. Não que eu não tivesse tentado, mas enfim.
P/2 - E quando você tinha essa idade de 11 anos, como você pensava “quero fazer história”...
R -
“Quero fazer história porque eu quero mudar o mundo”. Essa era uma coisa que dava uma certa sensação de mal-estar em toda a família, porque a minha intenção de mudar o mundo era justamente dar voz, enfim. Aí eu resolvi ser freira. Não só fazer história quando eu pudesse, mas com 12 anos eu comecei a encher o saco de duas freiras - a atividade política começa exatamente aí - que tinham acabado de voltar pela lei da anistia - estamos em 1982. A Irmãzita, que é uma famosa dentro da ditadura militar, uma voz muito importante dentro das irmãs de São José. Inclusive ela foi exilada em função dessa... E a irmã Loreto. As duas foram exiladas na França e voltaram naquele ano. E aí eu persegui as duas porque eu queria ser freira. “Por que você quer ser freira?”, “Porque eu quero mudar a situação social”... Imagina, fui trabalhar em periferia com comunidades de... Imagina. E aí já tinham indícios de uma atividade política, que naquele momento era um movimento operário, e tinham muitos amigos naquela história. Eu devia ter uns 12, 13 anos.
P/2 - E você morava em Santo André?
R - Não. Meu pai foi para Santo André e se aposentou lá, mas eu sempre morei em Santana. Era um núcleo, inclusive, de resistência contra qualquer tipo de ação de militância, enfim. Só que o Colégio Santana, que foi onde eu estudei e tive contato com essas freiras que eram bastante… na verdade, do meu colégio saíram muitas mulheres que hoje são importantes politicamente. Eu não vou citar o nome porque pode, enfim. Mas são pessoas de uma militância bem… uma delas, inclusive, foi torturada.
P/2 - Eu vou pedir… isso. Porque depois, espero que a gente volte para você falar com detalhes dessa parte, mas voltando para sua infância, e até porque você falou do seu avô. Você lembra assim de alguma cena com ele na marcenaria, ou alguma coisa dele que tenha...
R - Ele morreu e a minha mãe tinha oito anos. Eu não cheguei a conhecê-lo. Ele era um artista plástico e trabalhava no escritório do Ramos de Azevedo desenhando acabamentos de marcenaria para as portas. Foi professor do Liceu de Artes e Ofícios. E eu tenho uma predileção por uma das portas que ele fez lá e que tem muitos desenhos.
P/2 - E como você acha que ficou tão presente em você. Você consegue contar alguma coisa que foi te deixando essa influência?
R - Parte do mobiliário do Liceu, minha vó sempre falava assim: “Seu avô deu aula no Liceu, e esse mobiliário...”, etc. Toda a casa dela era de mobiliário que foi produzido no Liceu. Como muito cedo também eu vi que uma vocação ali era produzir ou discutir algum tipo de questão relativa à História, eu adorava. Os primeiros livros que eu li - e acho que é influência do meu pai - tinham a ver com memória, biografias, enfim. A única história que meu pai adorava e eu detestava era história das guerras. É impressionante. Ele e meu tio ficavam assim, semanas conversando sobre a história da Segunda Guerra Mundial e eu falando: “Que coisa mais chata”.
P/2 - O irmão dele?
R - Não. O marido da irmã da minha mãe, meu tio Geraldo. Que também tem uma história interessante, porque ele é o idealizador do Centro de memória do MMDC. Ele é um constitucionalista que na década de 1950 já coletou tudo o que podia e fez esse centro de memória, que hoje fica numa escola, mas ocupou na Anita Garibaldi, que era a sede do MMDC...em 1984 essa sede já existia, ela é construída para ser sede do movimento constitucionalista brasileiro. E ele trabalhou a vida toda. Ele também idealizou um pouco, participou da idealização do monumento.
P/2 - E você falou que seu pai contava ou lia histórias para você...você tem momentos. Fala com era.
R - Não, assim, ele falava sobre história. E tinha muito livro e eles circulavam muito mesmo, livros sobre arqueologia, aí ele comprava muitos livros para eu ler - tenho uma biblioteca fabulosa em casa até hoje, porque não consigo me desfazer. Não sei o que fazer, na verdade, com tanto livro. Porque tem a minha depois, daí tem do Sérgio, do Artur… a coisa está ficando grande. A gente precisa dar um jeito na biblioteca, "ou os livros, ou eu", minha mãe sempre falava isso.
P/2 - Falava para quem?
R - Falava para todo mundo: “Gente, ou esses livros ou vocês”. E no meu quarto então eu já cheguei a dividir a minha cama com alguns livros, quando eu era adolescente. Foi engraçado. Não tinha onde colocar. Não comparando, evidentemente, mas eu vi várias bibliotecas de intelectuais que são assim. Tem uma foto do Haroldo de Campos que ele está encostado e têm duas pilhas de livros mais ou menos assim ao lado dele. Eu falei: “eu não sou tão bagunceira assim”. Imagina né, eles têm muito… tem umas coisas que o Fernando Henrique fala, que para chegar até o livro ele tem que calcular quanto tempo vai demorar para achar. Isso antes do instituto, porque as bibliotecas são muito grandes. Ana Maria Camargo, que é um grande mito para mim também, tem uma biblioteca que é um corredor assim. São, sei lá, 100 mil livros. Uma coisa absurda - não sei, estou brincando.
P/2 - E você, é muito grande seu espaço, seu acervo?
R - Meu marido é bibliotecário, não é marido...
P/2 - Para, depois a gente volta. Vamos para infância. Que lembranças, que memórias você tem da infância que marcaram você?
R - As coisas mais legais que eu lembro é na casa da minha vó - a vó materna, Herminda, tinha um monte de primos e era uma família muito grande e a gente brincava muito e se sujava muito na terra. Aí tinham umas coisas que a gente fazia que eram muito de arte assim - arte de arteiro, não de artista. Quebrei dente, ralei, coisa que hoje em dia a gente não vê mais. Andei muito de bicicleta, skate - que não era skate, era uma coisa que a gente tinha lá. Não era skate na minha infância.
P/2 - Rolimã?
R - Rolimã. Mas a gente ia em pé, porque tinha que cair, claro. Se não, não tinha graça.
P/2 - Como você quebrou os dentes?
R - Várias vezes. Uma vez a gente, depois da chuva, tem uma coisa interessante: o meu avô materno veio para o Brasil pela atividade de marcenaria - isso é superimportante até para o bairro - para construir a Igreja de Santa Terezinha em Santa Terezinha. Então, ele veio para uma colônia… o bairro de Santa Terezinha era o sítio dos padres salesianos. Era o lugar que eles tinham ali de retiro. Eles decidiram construir em 1929, se não me engano, essa igreja. Meu avô veio bem antes, mas em 1929 eu tenho certeza que foi a decisão da construção da igreja. Aí vieram algumas - ou foram contratadas, enfim - pessoas para esse ofício de construir. E ele foi um dos marceneiros responsáveis. Então, era uma colônia, como se fosse uma colônia de fazenda. E a casa dele, enfim, até bem pouco tempo estava lá toda a colônia, mas agora são prédios. E a minha mãe falava muito - ela também pintava super bem. Não como ofício, mas era bem importante a produção dela. Ela aprendeu a pintar com um artista que agora eu não vou lembrar o nome, era um italiano, que fez toda a parte da pintura do teto e das paredes da Igreja de Santa Terezinha. Lá tem muito afresco. É exaustivo até, super barroco, cheio de brilho e tal, que era o que os salesianos tinham como estética em todas as igrejas.
P/2 - Sua mãe?
R - Minha mãe. E aí o meu avô trabalhou nessa história. E para mim é interessante porque é nessa casa da colônia que a gente passa a infância, e a igreja era assim, o fundo da nossa casa. Para descer da casa para a igreja, a gente descia de papelão ou pedaço de madeira o morro, e quando chovia era muito mais divertido, porque nós íamos bem mais rápido. Uma das vezes foi aí que eu quebrei. Outra vez foi com bicicleta que eu quebrei o dente...
P/2 - Você não conseguiu brecar.
R - Raramente. E no fim disso tinha a linha do bonde, que a minha mãe falava, mas para gente era trem.
P/2 - Gente, e funcionando a linha?
R - Na minha infância não mais, mas a minha mãe passou a vida pegando esse bonde. A linha estava desativada, mas tinha esse problema. Se não brecasse ia parar no meio da linha e aí o acidente podia ser mais… nossa, eu tenho um primo que eu não lembro dele sem gesso em uma parte do corpo. É interessante. A gente estava sempre quebrado, mas era muito divertido. Coisa que eu acho que não tem mais hoje em dia.
P/2 - Cecília, e você… sua mãe pintando, esses livros que seu pai comprava… e você, conta dentro da casa. Fora era essa...
R - Eu nunca tive habilidade manual. Contar um segredo - meus professores que me perdoem: todos os trabalhinhos de artes, ela que fazia. Eu sempre tirava dez. Era muito importante tirar dez na aula de artes, mas ela realmente não deixava eu arriscar sozinha. Porque era muito… até hoje eu sou péssima em qualquer trabalho manual, mas eu venho de uma família que era um pouco exigente com essas coisas. Meu pai nunca me tratou como uma… isso foi muito legal, assim, apesar de ser a filha querida e tal, nunca me tratou com essa coisa… eu nunca achei ele machista. Isso é muito interessante. Tanto que quando eu decidi fazer… nossa, 11 anos de idade, imagina, minha carreira era ou ser freira… voltando para essa história que eu tinha deixado para trás: as freiras me dissuadiram de seguir a carreira de freira.
P/2 - O que elas falavam, você lembra?
R - “De forma alguma. Não é para isso que você veio ao mundo”. E assim, meninos não eram interessantes, não tenho recordação disso. O meu interesse sempre foi por ler muito, estudava muito; era CDF, sem dúvida. E sempre super preocupada em estar aprendendo alguma coisa. E a questão política foi muito cedo. Tanto que com 14 anos eu já estava em movimento político, ativamente mesmo. Foram as Diretas, e a gente já estava no grupo, eu participei da Molipo, nunca fui filiada a nada. Também tinha isso. Porque a minha pretensão era escolher e saber direito e tal, sempre muito crítica assim. Mas eu gostava muito do bochicho né.
P/2 - Você sempre estudou nessa escola?
R - A vida toda. Desde o pré até o terceiro colegial. Eu saí e fui fazer PUC, História.
P/2 - 12 anos, já era o que se chamou… ensino fundamental dois, na sua época.
R - Isso. Com 14 é médio.
P/2 - E com 11 você já estava no fundamental dois, que hoje seria quinto ano.
R - Acho que era sétima, oitava série. 13, 14 anos; com 14 anos, tinha isso também: como eu estava um ano na frente, eu entrei na faculdade com 17 - era possível naquela época. Então sempre...
P/2 - Adiantada. E quando você… ainda antes de começar mesmo todo esse interesse pela história, até quem sabe seguir, ser freira enquanto criança, na escola, você tem alguma lembrança forte?
R - Tenho. Eu era um peixe fora d’água. Não lembro de bullying, mas eu era estranhíssima para todos.
P/2 - No que, você acha?
R - Gordinha, CDF, não tinha muitos amigos, não usava saia curta - porque a mãe não deixava, mas assim, já era uma época em que a mulherada era super produzida e tal, ia para escola; eu era super “não” para tudo isso. Não para muitas atividades sociais, festinha e tal, eu era bem… mas sofri um bullying louco assim. Mas é interessante isso, porque eu não vejo isso como negativo na minha formação.
P/2 - Você não se incomodava?
R - Algumas coisas, sim. Por exemplo, se eu estava afim de fazer alguma coisa e aí eu sentia que tinha algum preconceito em eu estar junto, eu ficava bem chateada, mas isso já serviu um pouco como motivador para...“não me pertence”. E muita coisa crítica foi em relação a isso também.
P/2 - Você lembra de uma história assim para dar um exemplo?
R - Lembro de várias.
P/2 - Uma que você ache importante registrar.
R - Bem pequenininha, eu tinha o cabelo bem… me chamavam de Maria Machadão. Eu tinha um cabelão, sempre tive. E eu ia sempre de rabinho. Aí alguns dias eu fui de cabelo solto, então as meninas começaram a zoar por causa do cabelo. E eu sempre fui muito peluda também. Aí, era Maria Machadão, macaco, mas engraçado assim, porque a minha atitude - e não sei se isso é bom para biografia - era realmente de dar na cara. E aí foi um processo que, enfim, é isso: me incomoda, não vou ficar… e como eu tinha muito primo, uma "primaiada" sem fim, você vai criando uma coisa assim: como você chega num cara que é 50 centímetros maior que você? Se virando né. E os primos tinham essa… só que claro, molecada né gente, enfim, “você é pirralha e vai para o canto”, “não vou para o canto. Vou jogar futebol, porque eu quero”. E tem isso, são três mulheres num grupo de acho que uns 16. Três meninas e o resto é tudo marmanjo. E a gente teve que se virar mesmo, as três.
P/2 - Você tinha irmãos, ou eram os primos...
R - O meu irmão é mais novo - coitado, sofreu também, porque era o mais novo de todos. É uma diferença grande. Quando a gente é pequeno essa diferença é maior. O meu primo mais velho tem dez anos a mais que eu, então tinha quinze a mais que meu irmão. E era a galera ali né, a gente era uma gangue na verdade. Nós aterrorizávamos o bairro.
P/2 - E todo mundo morava perto?
R - Todos no mesmo terreno por causa dessa casa do meu avô; são várias casinhas, era uma coloninha.
P/2 - Seus primos moravam nessas casas também?
R - Sim. Tem cinco de um só, que é do meu tio Altino; três de um outro; eu e meu irmão, somando dá 16.
P/2 - E na escola, então, você reagia, não se intimidava.
R - Não. Ficava triste, chorava em casa, “por que é assim a vida?”, mas aí lia um livro e já ia para outras histórias. Nunca fui muito de, assim...
P/2 - Teve histórias que você leu ou conheceu que até hoje fazem parte de você? Porque pelo jeito você lia bastante.
R - Lia muito.
P/2 - Mas aquelas que te formaram. Tem algumas especiais? Quando criança ainda.
R - Criança, aí tem que voltar um pouquinho...
P/2 - Ou adolescente ainda...
R - Eu li Machado de Assis e me influenciou um pouco para uma poética que eu sei que até hoje tem. Eu procuro bastante isso. Então, os meus autores prediletos na poesia são Edgar Allan Poe e o enfim, depois eu falo sobre isso. Mas o Edgar Allan Poe é superimportante. O Baudelaire, por outro motivo, já dentro de uma ótica política anarquista de história, mas os dois são os meus mais importantes.
P/2 - Depois você vai falar.
R - Mas eu li Os Miseráveis - lembro dele assim bem cedinho. E o Memórias do Cárcere também, que são totalmente fora da idade, os pedagogos dariam uma advertência para o meu pai, mas eu li os dois. E Os Miseráveis, é a obra que sem dúvida eu sinto vontade assim de dialogar com o Victor Hugo. Tem essa história na minha vida também: todos os personagens que eu vou pesquisando muito profundamente e me apaixono, começam a fazer parte como se eu tivesse alguma relação com eles.
P/2 - Conta mais disso. É tão bonito...fala agora, porque depois nós vamos perder. Como é isso, essa história?
R - Eu me envolvi primeiro foi justamente com o Victor Hugo - Jean Valjean, aí eu o transferi porque para mim é um pouco um aspecto biográfico ali do Victor Hugo. Ele foi uma grande paixão, mas eu ainda não identificava como "oh!". Aí fiz história… é, tem, mas menos assim. Mas quando eu fui fazer museologia, o primeiro projeto mesmo que eu tive contato - e eu adoro futebol - foi com jogador de futebol de início do século… hoje ele é uma figura muito conhecida, mas naquela época era quase uma descoberta, que é o Arthur Friedenreich. Eu me apaixonei de tal forma por ele que eu assim… não sou só eu, muita gente tem essa loucura na área da museologia. A gente fica meio viúva do cara, tem um envolvimento, enfim - ou viúva da mulher. Porque nós participamos de um luto, de uma ausência, uma memória que compartilha com eles… porque quando a gente - eu, pelo menos...
P/2 - Conta, assim, como é… porque para vocês isso dá para entender bem, mas para gente que… como é isso, do luto? É durante, depois...
R - Não, é depois que está morto. Morreu, já faz mais de 100 anos...
P/2 - Mas enquanto você está estudando essa pessoa você está convivendo com ela.
R - Exatamente.
P/2 - Fala como que acontece.
R - Você está descobrindo, está envolvido… e assim, toda vez que eu retomo ...o Arthur Friedenreich é o primeiro; depois isso acontece com outros. Aí tem o Prudente de Morais, o Henrique de Aguiar Valim...tem vários. Até hoje tem. E isso acontece com frequência. Você vai se envolvendo de uma maneira que passa a fazer parte. Ainda mais quando a gente tem que dialogar de alguma maneira, porque nós temos que propor uma reflexão sobre essa vida. Então isso, são personagens. E isso está presente na infância também, porque os personagens dos livros, eu conversava. Imagina, eu não só sonhava, eu interpretava, ficava conversando e tal… eu não considero nenhum distúrbio porque eu vi que muita gente tem depois que fiquei adulta.
P/2 - Por isso que a gente insiste para você contar. Você conta o que acontecia, mas aí eu insisto: conta como acontecia. Porque não estamos entendendo - eu, pelo menos. Não é um distúrbio, é que isso é vivo...
R - É uma vivência.
P/2 - Fala na infância, alguma que aconteceu...
R - Então, o Victor Hugo na infância, e permanece até hoje, inclusive, mas toda hora assim. A paixão dele foi uma paixão da vida toda. Ele se apaixonou pela única mulher que ele teve, com 12, acompanhou toda a vida, começou a escrever por causa de dor com ela. Então, todo esse movimento dele é como se eu tivesse vivenciado. E aí eu consigo entender perfeitamente as doenças que vêm do coração, enfim, é uma paixão. Porque essa paixão não é um personagem, é uma pessoa que viveu e que, apesar de eu não ter estado na vida dele, ele está muito na minha. Então essa ausência dele… por exemplo, meu avô, que acabei de citar - ele é uma presença muito física na minha vida, embora eu não tenha convivido. Com o outro que faleceu quando eu tinha seis anos, eu tenho memórias que assim, eu nem sei se são minhas, ou se eu criei e até hoje eu dialogo com essas coisas. Porque são influências importantes.
P/2 - E você fala… - é uma pergunta,pode ser que não - você fala também do Que você está vivendo, nesses diálogos?!
R - É uma vivência. Com certeza. Não é assim… não é como se eu estivesse escrevendo uma novela, ou um romance, porque as vezes eu já até pensei, mas eu não tenho essa habilidade. É uma vivência emocional mesmo. Também é uma admiração que eu tenho, desde a infância, por conhecer o ser humano. Como o ser humano é? Eu nunca pensei em fazer psicologia, isso é fato, mas o outro me interessa profundamente, a outra pessoa. Eu adoro conhecer gente e assim, entender como é a vida da pessoa. E essa relação nunca é uma relação… eu sempre me envolvo bastante com as pessoas para tentar entender.
P/2 - Aquelas que estão presentes fisicamente e aquelas que não.
R - Fisicamente e aquelas que não também. Porque são personagens importantes para mim. E também não é por todo mundo que eu me interesso.
P/2 - E os dois poetas que você citou?
R - O Edgar Allan Poe e o Baudelaire não. São só influências. Não tem essa relação.
P/2 - E no que eles te influenciaram? Se você puder contar… a primeira, por exemplo.
R - Na poesia mesmo. Na construção. Edgar Allan Poe é uma referência para mim de como despertar uma rotina mesmo de construção poética, de tudo. Também não faço poesia. Já experimentei muitas vezes, mas eu adoro poesia. De todas as artes possíveis, a que eu mais curto é poesia. Grande parte da biblioteca é dedicada a isso.
P/2 - Tem alguma dele que você consegue falar, ou você acha que não é o caso agora?
R - Não, mas enfim, todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo… têm vários. Têm vários da Tabacaria...
P/2 - Eu digo de você falar a poesia. Tem alguma...
R - Acabei de falar.
P/2 - Não, declamar.
R - Não é o caso. E também não estaria inspirada para isso, mas muitas vezes eu declamo. Mas é uma coisa meio de interpretação, tem que estar… motivação.
P/2 - Eu pensei até se você tinha vontade de deixar o registro de alguma, mas não necessariamente.
R - Se no decorrer do conversar… eu estou mais assim na vibe mesmo. Em função da eleição de ontem eu não consigo me desvincular dessas questões políticas. O Victor Hugo é um participante da revolução francesa, liberal; um cara que luta pelas transformações sociais de fato. Elle viveu a vida toda nesse sentido. E eu acho que isso é importante, falar sobre essa relação. E outros importantes personagens da vida, mais do que, por exemplo, citar uma poesia do Edgar Allan Poe.
P/2 - Então, Cecília, acho que até a gente vai culminar depois com o dia de ontem, na sua vida, mas você então estava contando como que você foi se envolvendo no movimento, na militância. E se você puder descrever um pouco mais como acontecia, como você participava… Você já falou que não foi filiada a partidos, mas até isso, como que era...
R - O porquê, né? Também foi muito, muito lá atrás. Então, tinha essa professora, Dona Ester, e ela é tão importante - não só para mim - que eu lembro que a gente, no final do curso - quatro anos depois isso que eu estou contando - ela ainda era a professora mais importante para gente. Ela foi… tinha um nome isso, da pessoa que não é oradora.
P/2 - Paraninfa?
R - É isso?
P/2 - A paraninfa falava.
R - É, a pessoa que a gente homenageou. A professora que a gente elegeu para representar essa classe. Como eu disse, não só eu: pessoas muito mais importantes politicamente nasceram também desse grupo ali que atuou nessa época nesse colégio. Hoje esse colégio não tem protagonismo político nenhum, mas na década de 1970 teve, sim. Eu peguei em 1982, exatamente a volta dessas importantes freiras, que tem realmente nomezinhos aí. Muitas freiras dessa Ordem foram exiladas. Elas tinham uma ação política realmente muito importante. Não estavam envolvidas com nenhum tipo de guerrilha, mas com resistência e formação de partidos políticos...
P/2 - Qual era a Ordem?
R - Irmãs de São José. Hoje elas estão quase extintas. Tem muito no interior, mas em São Paulo não. Inclusive a Irmã Loreto, que cheguei a encontrar 30 anos depois disso que estou contando por causa de uma ação museológica. Ela estava em Uberaba nos últimos dias e um aluno de um curso que eu fui dar em Uberaba… eles estavam pleiteando a criação do museu do Zebu - era uma associação, e uma das contrapartidas sociais era fazer um curso, uma capacitação para comunidade museológica. Isso a gente está super acostumado a fazer. E aí foram sei lá, 20 pessoas, e um deles - eu lembro bem - era um estudante que já tinha tido contato com uma grande colega minha, a Gisele Paixão, e ele falou assim: “a Gisele sempre fala de você, quando eu falei que estava fazendo o curso...” e ele estava trabalhando em Franca, numa Ordem religiosa. Aí ele falou qual era a Ordem e eu falei: “nossa, estudei no colégio”, e tal e assim, sem querer falei: “e quais as irmãs que estão?”, “então, a gente está fazendo a memória da irmã Loreto”. Quando ele falou isso, foi arrepio. Falei: “não é possível. Ela está com quantos anos, 100?”, ele falou: “94”. E eu fui ver… nossa, foi incrível isso. Porque eu falei assim: “ela não vai lembrar de mim, 94 anos”. Aí ela olhou e falou: “nossa, não acredito”. Eu falei: “irmã, ainda tenho os santinhos”, porque ela me mandava santinhos de onde ela estivesse e tal...
P/2 - E ela te reconheceu?
R - Me reconheceu. Ela lembrou meu nome, mas na hora eu não lembro exatamente qual foi… ela falou: “nossa, você ainda tem os santinhos que eu te mandava?”, eu falei: “irmã, tenho os santinhos que a senhora me mandava”. E ela virou missionária, muitos anos depois. Enfim, eu só percebi que ela estava circulando o mundo porque ela me mandou vários santinhos mesmo da China, Índia… de onde ela estava.
P/2 - E quando você, dentro da escola… você nasceu em 1967… em 1980 você já começou.
R - Sim.
P/2 - E dentro da escola, como aconteciam essas conversas? Como era isso?
R - Então, em 1982 a gente já tem a preparação das Diretas Já e eu lembro de algumas coisas, porque eu tenho minha memória também um pouco organizada dessa época. 1982 a gente tinha uma máscara que a gente grafitava, que era do movimento operário - se chamava MOP. Eu lembro que nós fizemos várias inserções na cidade, e aí essa mascarazinha… ,era um stencil, hoje, do grafite. E a gente manifestava publicamente, mas...
P/2 - Fala o que queria dizer, movimento...
R - Movimento operário. Que acabou sendo a gênese do PT. Logo depois disso acontece o PT, e a gente… enfim, a gente era pirralho ali, mas eu lembro de muita gente que depois protagonizou muita coisa legal.
P/2 - E você lembra assim do que você ouvia, talvez dos mais velhos, dos alunos mais velhos? O que te sensibilizava.
R - Primeiro da união para transformação, que era muito importante nessas gêneses. Eu fui… essa habilidade que eu tinha em relação a História, isso ficou evidente e a professora Ester sacou isso bem rapidamente. Eu acabei, muitas vezes, auxiliando em diversos debates ali na sala de aula, mas era uma escola que também dava muita margem para gente discutir politicamente muita coisa. Então, engajamento, as formas de transformação… Por isso que desde sempre elas falaram: “não precisa ser freira. O que você quer é outra história; é uma carreira política que você vai ter”. Mas eu nunca tive liderança, como falei. Eu não sou uma pessoa que lidera. Eu sou uma pessoa que faz seu trabalho e compartilho muito mais do que lidero. Isso eu sinto desde sempre.
P/2 - Mas você contribuía nas discussões.
R - Sim, muitas vezes.
P/2 - Daí, de dentro da escola para sair para cidade, como aconteceu?
R - Então, antes dos partidos, digamos assim, a gente dava auxílio para atividades. Por exemplo, junto a asilo, que era uma atividade que... mas nos asilos a gente tinha uma outra questão também, de pegar memória de como era. E a gente trabalhava muito com memória de ferroviário no asilo em que trabalhávamos. Então nós tínhamos uma discussão interessante do porquê das pessoas estarem ali. Depois, isso se refletiu num projeto - muito tempo depois, e que hoje está retomado - da questão manicomial. A questão do asilo me remetia muito a isso: por que a pessoa está aqui quase abandonada? Que reflexões são essas? Tanto que logo depois, com 18, 19 anos nós tínhamos uma casa na família que eu e as minhas duas primas queríamos transformar em asilo, porque a gente achava que a discussão era outra e não aquele abandono que nós víamos. Depois, a gente trabalhou com… Essa questão das comunidades carentes eram um subterfúgio da escola para gente inserir já algumas ideologias. A gente percebia isso também.
P/2 - Eu vou te perguntar: que grupo era esse? Você está falando “a gente fazia”. Quem eram essas pessoas?
R - Era voluntário, então as freiras convidavam e a gente ia nesses lugares. Então , você até escolhia. E eu escolhi o asilo primeiro acho que pela facilidade, era fácil de chegar. Foi o asilo de Jaçanã - até hoje temos algumas atividades lá. Eu me encantei fabulosamente por tudo. E era encantadora também a relação com aquelas pessoas. Naquela época, o território do asilo era três vezes maior do que é hoje.
P/2 - Você lembra de alguma história de uma pessoa que você ouviu que te impactou, que você ficou bastante ligada?
R - Sim. Era um ferroviário bem velinho, ele estava quase cego e tocava violão. Ninguém nunca ia visitar ele e eu lembro dos óculos dele, que era parecido com os do meu pai. Eu lembro perfeitamente dele. E tinha uma senhora que tomava conta deles que era uma voluntária. A gente conversava muito, mas o que eu mais lembro mesmo era das várias histórias de vida - muitas mesmo. Vou ter que puxar da lembrança uma do início até o fim.
P/2 - Mas é a dele que você lembrava?
R - Ele era ferroviário, mas tinham vários. Porque Jaçanã é lugar de ferrovia, e aí ele contava incríveis histórias. Eu me apaixonei por ferrovia aí também. Dentro da história é uma das áreas que eu mais me dedico até hoje. A formação do território paulista por meio dessa inserção de ferrovia.
P/2 - E você considera que o trabalho nesse asilo, e principalmente com ele, te levou a esse...
R - Muita discussão, eu fiquei encantada por ferrovia, que era uma coisa que eu já não via tanto. Eu via só quando ia para Santos, o trem. Mas não era uma coisa assim tão… Tem gente que é apaixonada por ferrovia, uma loucura e tal, mas o meu interesse nasceu aí por causa justamente dessa história, o motivador, mas eu realmente passei a perceber a ferrovia e a entender toda essa ocupação de território. Ele contava muito sobre a ida dele para cidades que eu não sabia onde era, não entendia… jovem, também.
P/2 - Nessa época do asilo você já estava mais velha?
R - Não, ensino médio.
P/2 - 16, 17...
R - Isso, 15, 16.
P/2 - E aí você já estava indo para rua mesmo, fazer a grafitagem. Como que deu isso?
R - Então, grafitagem em si numa ação, mas outra ação, que era muito... Então, uma das coisas que me incomodava de verdade, vamos dizer, na estrutura política, era o que mais tarde a gente - como anarquista - começou a criticar e colocou o nome de aparelhamento. Então era assim: nós tínhamos aulas de como proceder em relação àquelas comunidades com as quais a gente trabalhava. Então, a gente tinha que ensinar esse povo a se organizar; ensinar não sei o que, e isso é muito incipiente, de verdade, porque eu não tinha a menor referência teórica sobre isso, mas eu achava que nós não ensinávamos nada - desde cedo mesmo, juro para vocês. Eu falava: “ensinar nada. Estou aqui muito mais para aprender”. E essa dinâmica era outra para mim. Então, chegava na comunidade e eu queria saber de todo mundo, de que maneira… Era meio rebelde dentro desses movimentos, que eram de verdade mesmo, depois a gente vê o quanto eles tinham de intenção absolutamente importantes dentro do viés dele, mas que eu era uma fichinha que não se enquadrava muito bem porque tinha essa vibe. Então, vamos trabalhar tais coisas, etc, sem precisar, por exemplo, ordenar isso; transformar isso numa coisa com regras. Tinha muita regra. E aí a regra me incomodava um pouco. Tinha que cumprir, preencher, e enfim...
P/2 - E ainda era clandestino o movimento.
R - Eu acho que sim, nessa época. Tinham alguns sindicatos envolvidos. Sindicatos já existiam desde 1956, se não me engano.
P/2 - Você participava mais do movimento sindical então?
R - Não participava. Entrava porque assim, “tinha que dar aula na favela não sei o que”, e eu “vamos lá, que legal”, e aí eu ia junto. E aí a atividade dentro disso era assim: “vamos dar aula”, mas a aula não era aquela de marxismo, stalinismo, trotskismo, pouco me importavam esses “ismos”. Mas era uma coisa que a gente fazia...
P/2 - Discutir, debater...
R - Eu queria muito mais saber da vida deles, na verdade, do que falar muito sobre o que partido ou quem quer que seja que tenha me mandado naquele momento - o partido veio depois mesmo, mas no partido eu já estava no movimento anarquista, e aí não participei mesmo.
P/2 - Conta como foi então a sua descoberta. Teve a ver com a conversa com os ferroviários? Teve alguma influência para você ser identificar?
R - Não, são paralelas. Metalúrgicos me importavam muito também. Estava muito agito, muita ferveção. Então, a gente ia para Santo André, São Bernardo, ia na greve e distribuía folhetos e tal… movimento estudantil, obviamente que já estava… Acho que a UNE, um ano ou dois antes de eu entrar na faculdade - entrei em 1984, não vou lembrar exatamente, mas um ou dois anos - deixou de ser clandestina e a gente já começou de novo com o movimento estudantil. Mas eu tinha um verdadeiro horror de DCEs; centro acadêmico só se fosse autogestionado, já tinha uma forte tendência...
P/2 - Já tinha aderido.
R - Mas aí eu já tinha lido muito também sobre anarquismo. Então, quando eu cheguei na faculdade, já sabia meio por onde eu ia caminhar. E a PUC, naquela época que era um lugar de resistência mesmo, os professores mais fora da caixinha, digamos assim, estavam lá, a história das mentalidades estava lá, então eu não tive muito professor marxista. Porque aí eu acho que teria não feito história, se tivesse muitas amarras ali como eu via na USP. Meus colegas da USP eram ortodoxos. Falava: “nossa gente, não, mas legal. Vamos pensar nas mulheres perseguidas, bruxas queimadas...”, foi esse o meu trabalho de conclusão.
P/2 - Então, já que você está falando por aí, como que você foi se identificando com o movimento anarquista? Quem eram na época?
R - Maurício Tragtenberg. Ele dava aula na UNICAMP e tinha aqui em São Paulo um grupo… Eu tinha alguns amigos que eram do movimento punk. Em 1982, eu já fui no movimento chamado Começo do Fim do Mundo, mas eu ainda era uma anarquista fora do movimento. Tinham muitos intelectuais mais velhos do centro de cultura social que… O centro de cultura social foi formado por anarquistas espanhóis que vieram com a perseguição dos anarquistas, já eram velhinhos. No Centro de Cultura Social, eu conheci o Maurício Tragtenberg como professor, meio que perseguia onde ele estava e, enfim, tem uma questão intelectual que eu nunca abandonei e sempre gostei muito de me aprofundar na teoria e nos conceitos. E assim, nunca fui uma ativa punk, mas era o grupo ali que resumia alguma ação social um pouco mais efetiva e paralela aos movimentos políticos partidários. Não que eu tivesse alguma divergência, a gente andava muito bem junto, mas por exemplo, no movimento estudantil eu sempre fui do grupo dos anarquistas, e a estruturação da UNE, que naquela época era convergência socialista, deixava a gente um pouco incrédulo em relação a isso.
P/2 - Na PUC você lembra de qual grupo você se aproximava?
R - Anarquistas. A gente tomou o CACS - centro acadêmico de ciências sociais. Foi uma experiência anarquista importante para PUC e para o movimento estudantil.
P/2 - Então, conta. Porque eu lembro que tinha o movimento… era dessa época.
R - Era dessa época. Inclusive a Rô estava junto.
P/2 - Então, fala desses movimentos e como que… porque é a sua história, mas é importante o registro, porque é uma história...
R - Sabe, que eu lembrei, dia 22 de setembro de 1977 foi marcado com a invasão do Coronel Erasmo Dias na PUC. Vários estudantes foram presos - eu ainda era pequenininha, não participei disso, mas em diversos momentos, - claro, desde que eu me interessei por isso - o movimento estudantil estava ali latente. E esse era um marco para mim. Quando prestei vestibular foi para UNICAMP por causa do Maurício Tragtenberg, Ciências sociais, mas eu prestei História na PUC também. Eu acabei ficando na PUC por preguiça mesmo de viajar e morar longe. A minha mãe sempre foi uma pessoa que cozinhou muito bem, e eu tinha uma dificuldade de ficar lá em Campinas sem comer nada...
P/2 - Aquele monte de primos, aquela festa...
R - Foi bem isso mesmo. Tinha aquela chance de optar… Meu pai, claro, que pesou. Ele falou: “bom, vou te que te pagar para ficar lá morando, ou pagar a faculdade aqui”. Aqui, eu tive condições algumas vezes de fazer alguns trabalhos para PUC também, mas muito sazonal, e abaixava um pouco a mensalidade, mas muito poucas vezes. Isso não é nem considerado dentro da família que ajudei a pagar a faculdade.
P/2 - Então, quando você entra na PUC você lembra - até para fazermos o registro dessa história e de você fazendo parte - que grupos do movimento eram mais...
R - Convergência socialista, eu tinha muitos amigos que estavam ligados à convergência. Mas os meus primeiros amigos na PUC já foram completamente anarquistas. Não é coincidência. É claro que você vai buscando as pessoas que mais se adequam. Por exemplo, na classe...eu estudei a PUC toda com a Rosana Miziara. E dentro da classe que a gente estudava tinham uns caras que a gente - eu pelo menos - politicamente não eram do mesmo grupo da Rô. Pelo contrário: eles tinham uma visão política um pouco mais partidária, etc, e a gente era de um grupo completamente avesso a isso. E tinham uns caras muitos chatos da convergência, mas muito chatos mesmo. Até as festas eram muito chatas. Nós já tínhamos uma outra visão, enfim, de estética mesmo, roupa… a gente transgredia muito mais. E a gente tinha umas ações de forte impacto, que hoje eu lembro que eram assim, a gente não tinha essa pretensão, mas acabavam sendo de impacto de mídia. A gente chamava muito a atenção com essas ações.
P/2 - Fala uma.
R - Por exemplo, a praia. A gente resolveu fazer uma praia na PUC, porque não tínhamos praia. Fizemos uma praia. Colocamos piscinas, trouxemos caminhões de areia e isso tudo assim, a gente arranjava: “chama lá o cara, ele não tem um caminhão? Vamos encher de areia”.
P/2 - E onde era a praia?
R - Na frente do CACS para chamar a atenção. A gente tinha várias… depois a PUC (Tacara) [00:51:45], foram vários movimentos, alguns movimentos acabavam reforçando, por exemplo, invasões de reitoria. Então, a PUC Toda hora invadia a reitoria, mas nunca eram os anarquistas que estavam puxando a invasão. Eram os organizados, que a gente falava. Esses organizados tinham aquela coisa, invadiam, discutiam e tal e os anarquistas acabavam protagonizando a mídia. Então, estava sempre com imprensa lá. Nós tínhamos uma rádio pirata, que um importante político até que deu várias coberturas, porque a gente acabava via de regra sendo preso. Ações e reações, obviamente. Então a gente dava umas passeadas lá na 23ª.
P/2 - Você chegou a ir alguma vez?
R - Várias vezes.
P/2 - Teve algum momento que você acha importante?
R - Nenhum. A gente ia, prestava esclarecimento, tinha aquela coisa. Uma vez, a gente comeu pizza dos delegados e isso pegou muito mal.
P/2 - Como assim?
R - Eles deixaram a gente numa sala e tal, ficava lá passando o tempo. Porque era estudante, já estava… uma vez foi trash. A rádio transmitiu uma manifestação internacional. Foi logo depois do Félix Guattari ter feito uma palestra. A gente captou uma transmissão da França e replicou com umas tradições… a gente tinha um programa e uma rádio, então tinha todo esse domínio e transmitimos. Isso caiu numa… enfim. Claro, isso eu estou falando, gente, em 1986. Já não era mais ditadura militar, mas era o Antônio Carlos Magalhães o ministro das telecomunicações, ou ministro da comunicação, enfim. E tinha um pouco de controle demais sobre esse ambiente que a gente falava, das ondas. Eu não sei o que deu, acho que sei lá, a Polícia Federal ou alguma coisa detectou essa nossa transmissão - tanto que tivemos o material apreendido. Só fomos reabrir um ano e meio depois lá na USP, mas não teve o mesmo impacto. Outro momento histórico e tal. A gente chegou a ter uma TV piratinha também, pouquíssimo...
P/2 - Isso já no centro acadêmico?
R - Tudo isso, atividade do centro acadêmico.
P/2 - E como foi? Vocês nesse grupo assumiram o centro acadêmico? Você ia contar essa história.
R - A gente tomou, acho. Chegou lá e ficou. Eu não lembro exatamente. Lembro que todo ano tinha eleição e nós não colaborávamos. A gente zoava bastante a eleição. Na eleição da UNE, umas duas vezes a gente protagonizou o fim da reunião. Adorávamos fazer isso.
P/2 - Era um grupo grande?
R - Tinha umas 30, cada vez tinha mais. As festas davam uma ideia, umas 300 pessoas.
P/2 - E havia uma preparação...
R - Não, muito espontâneo.
P/2 - Porque era um outro jeito de organizar.
R - Isso. Mas a gente tinha muita discussão, para o bem e para o mal. Tinha vez que eu ficava semanas sem ir porque eu estava muito brava com alguém. Disso eu me lembro muito bem. Porque era aquela coisa, mas era autogestionário. Tinham algumas lideranças de carisma mesmo. Eram lideranças, falavam muito bem… às vezes, falava uma tremenda asneira com um domínio que até hoje eu admiro, porque eu encontro isso com frequência. Isso é uma experiência de vida. Você encontra pessoas falando nada com uma importância que você fala: “parabéns”. E na área de museu tem um monte. As pessoas políticas da área de museu têm esse domínio. Eu não vou falar o nome porque pega mal.
P/2 - Mas você não se identificava com isso, com esse jeito de...
R - Com essas lideranças?
P/2 - Não, com esse jeito de discussão, por exemplo.
R - Eu me identifico até hoje com isso. Eu acho que é muito melhor a gente conversar e não protagonizar nenhum tipo de... como vou dizer? Predominância de uma ideia em relação à outra. Eu acho que é muito é interessante isso, porque recentemente - não sei porque, e às vezes eu fico imaginando que por causa de algum cargo político, etc - as pessoas expressam que eu tenho um certo autoritarismo quando falo. Eu dou risada e às vezes falo: “autoritário é como eu soo”. Porque eu me aproprio dessa crítica… dessa crítica não, dessa afirmação. Mas eu me divirto muito, porque na cabeça, na concepção é absolutamente o contrário. Não sei se eu também reflito exatamente o que essas pessoas dizem que eu sou, mas de fato na minha cabeça é exatamente o contrário. Eu falo coisas que assim, “gente, as pessoas realmente estão acreditando no que estou falando?”. Eu sempre fico em dúvida.
P/2 - Voltando ao movimento anarquista/punk.
R - Punk já é meio paralelo.
P/2 - Você não era do grupo, mas...
R - Eu gosto muito da presença deles nesse momento da década de 1980...
P/2 - O que era mais, para você?
R - Música e as "minas" . As minas punks são super importantes para mim.
P/2 - Em quê?
R - Na firmeza de… porque apesar de toda a liberação sexual da minha geração, que é até anterior à minha, mas enfim… As minas eram as estudantes universitárias. Eu tinha várias amigas que os caras falavam: “gente, é fofa; que linda; que gracinha; bonitinha”, e não sei o que. Mas não é só isso. E a minha postura - e a de várias - era de respeito político. Não quero ser bonitinha. "Bonitinha" nunca passou perto de me caracterizar, tinham realmente mulheres lindas e maravilhosas, mas que tinham uma ação política importante. Então, não era isso que elas eram, “as gatinhas”. Era meio repugnante isso, quando vinha. Importante salientar: não tenho nada no meu currículo que me ligue ao feminismo. Não. Porque feminismo também, na minha geração, é um certo proceder autoritário e que hoje eu enxergo mesmo nas gerações uma coisa assim de: eu quero submeter a minha vontade a outras vontades. Aí sou contra, sempre. Isso é essencial para mim, mas é uma luta. E é uma luta que assim, vou confessar uma coisa: teve uma passeata duas semanas atrás que era das mulheres contra o Bolsonaro. E teve uma menina, sei lá, recém saída da adolescência, 20 e poucos anos, que falava da luta histórica que ela estava protagonizando nos últimos cinco anos. Eu dei um pouquinho de risada e falei: “amiga, cinco anos… você não tinha nem nascido quando já tinha uma mulherada ralando o joelho. Então, presta atenção né”. Não pode ser considerada uma liderança de nada, desculpa. Mesmo porque eu também questiono essa questão de liderança, mas por exemplo, o Boulos fala com uma propriedade que é de estar junto com pessoas, então nele eu acredito. Desculpe falar politicamente, mas assim, eu compartilho dele. Então, eu estou falando de pessoas que, naquela época, já ditavam essas questões, do protagonismo de umas em relação a outras, no caso, as feministas, e um certo machismo, também, imperativo na sociedade brasileira que era dos caras ficarem agraciados com a beleza feminina. Que bonito, eu também as acho lindas, mas enfim, somos muito mais que isso. E isso sempre foi um motivador de muita adrenalina, muito gasto de energia, e no movimento Punk eu sentia a mulherada protagonizando, tinham bandas punks significativas que me impactavam positivamente. As meninas estavam começando a tatuar, que era uma coisa muito rara, quem era tatuador, ou quem era tatuado, pior aind. Então, tinha um protagonismo de visual, que eu acho extremamente revolucionário o visual punk. Tanto que ele é assimilado pela mídia, logo depois, assim como tudo no capitalismo, mas era muito marcante a influência, porque a gente nunca deixou de ver a origem desse movimento, embora tenhamos esse grupo intelectual, a origem do movimento era um grupo operário, de reivindicação social bem claro...
P/2 - Isso que eu ia perguntar. Isso na faculdade, e depois você fez história. Conta um pouco depois, saindo da universidade...
R - Eu tinha um amigo, que é um amigo de vida, o Charles Bonetti, a gente fez uma prova para fazer a pós em arqueologia na USP, ele passou porque ele foi na prova, eu dormi demais, não fui, eu acho que teve uma festa um dia antes, acabei faltando, enfim, ele ficou super bravo, porque ele prestou arqueologia primeiro. Vocês lembram que na minha infância meu sonho era ser arqueóloga. Meu grande amigo foi comigo fazer arqueologia, ele é um grande arqueólogo hoje, tudo deu certo, e eu acabei levando ele para museologia, porque alguns meses depois a gente viu um folheto circular no CACS, nesse Centro Acadêmico de Ciências Sociais da PUC SP, um folheto promocional da FESP, que sempre foi parceira da PUC, e eu falei assim: “Nossa, museologia, topa?”, ele falou assim: “Eu topo se você for dessa vez”, eu falei: “Não, eu vou”. A gente entrou na Museologia. Então, ele acabou fazendo duas pós juntas, coitado do Charles, mas é como eu digo: ele é um grande arqueólogo. Isso a Arqueologia deve a mim.
P/2 - Antes de entrar na vida profissional, teve alguma festa inesquecível dessas que você dormiu e não acordou no dia seguinte? Como eram essas festas? Como você viveu?
R - Fora várias que eu dormi no próprio CACS - não era só eu que fazia isso - têm várias, tiveram várias que foram em sítios, mas eu vou chamar a atenção de uma que foi na PUC, chamava Barbárie, todas as nossas festas eram Barbárie. Essa foi Barbárie 4, é interessante, é incrível que a gente fale, não havia repressão mesmo, não tinha polícia, tinham bandejas de sexo, drogas e Rock'n Roll, que essa foi a vibe mesmo durante toda a universidade. E eu acho que falta um pouco isso, às vezes, porque a gente não era só isso, tinha uma motivação, não era uma orgia. Nós conseguíamos juntar tribos de muitos lugares, então era uma festa na PUC, mas que vinha gente do interior, da UNESP, de ônibus, gente da USP. Depois, a gente transferiu para a USP, quando puseram um portão na PUC, não tinha... e a gente ficou meio inibido de virar a noite lá, porque o portão estava fechado, mas quantas vezes a gente não pulou o portão na PUC, muitas vezes, era a nossa casa.
P/2 - E essa festa que tinha as bandejas, continua...
R - Isso, sexo, drogas e Rock'n Roll. Tinha muito vídeo e desses grupos saíram várias pessoas que hoje estão... Marcelo Masagão, Festival do minuto. Parece que é uma coisa muito lê-lê-lê, mas as pessoas se envolviam na produção das coisas, saíram profissionais muito legais.
P/2 - E filmavam momentos... filme?
R - Não, faziam produções mesmo, de vídeos...
P/2 - Para exibir na festa?
R - Sim, atividade musical. Tinha um grupo afro que nasceu também nessas festas, era de dança. Se não me engano, a Rô participou de uma dessas, ou ela trouxe um grupo, enfim, eu lembro da Rô participando. Demorou porque começou a expandir… a gente não tinha ideia, mas era realmente uma estratégia de marketing da difusão, a gente causava para poder, para o bem e para o mal… vinha imprensa, às vezes vinha polícia, também, mas tudo sempre, assim, teve uma vez que baixou realmente uma repressão, levou todas as coisas, a gente fechou a rua Monte Alegre. Nem de longe, nem sombra do que era a repressão no período da ditadura, mas a gente ficou muito incomodado com aquilo, discutimos bastante com o reitor. A questão da polícia no Campus era vetada mesmo pela reitoria, então a gente sentia que era um campo realmente muito fértil, muito criativo, tinha desde escritor...
P/2 - A gente podia dizer que era um espaço de Liberdade?
R - De absoluta liberdade, e é uma conquista isso, uma conquista mesmo. Hoje eu vejo como são as universidades, e que coisa mais sem sentido, ali era... todo dia tinha uma coisa acontecendo, até a disputa de futebol que vinha a comunidade de Heliópolis, tinham times, a gente tinha tentáculos, tinha uns caras de Geografia, e não era uma coisa de um curso, era uma coisa da universidade. Então, nós tínhamos gente da Economia, muita gente da Economia. Quando fazia festa, era na universidade toda, toda ela, todos os prédios e tinha muita gente da Economia. Tinha uma peculiaridade da PUC nessa época que infelizmente acabou, que todo os cursos tinham aulas em comum. Então, eu tenho muitos amigos do Direito, da Economia que são dessa época, Sociologia… e tinha uma moçada da Geografia que fazia muito trabalho no litoral, e levavam outras possibilidades de entendimento, de tudo. A gente discutia meio ambiente, um monte de ações já naquela época, então saíram muitos movimentos políticos daí.
P/2 - Fala de 87.
R - Em 1987, eu já citei, que o movimento estudantil… a gente acompanhou essa história da invasão da PUC, então eu tinha uma predileção por estudar na PUC. O motivo, pode parecer que não, eu enganei meu pai durante muito tempo, mas era do movimento estudantil da PUC, sem dúvida nenhuma, que era muito mais intenso para mim, que a resistência da USP. E eu acertei intuitivamente, porque os professores que mais me interessariam por essa história que não era Marxista, estavam na PUC, mas isso foi um acerto aleatório, a intuição foi o movimento estudantil, mas a PUC me propiciou essa liberdade teórica muito maior do que se eu tivesse estudado na USP com essa vertente Marxista mais ortodoxa, então a minha visão de história é essa. Em 1987, eu estava no terceiro ano de PUC, teve a comemoração do TUCA, dos 10 anos da invasão de 1977 e estávamos todos muito felizes até que teve um incêndio intencional, criminoso em 1987, que justamente, para nós marca assim: “se a gente acha que a ditadura está longe, ela não está”, isso em 87, nós estamos em 2018. Vejam bem como a gente não consegue se livrar desse negócio. Então, em 87 foi o incêndio criminoso, acaba assim, estava tendo uma festa que era marcada, eles dizem inclusive nos próprios depoimentos que foram os Punks que colocaram, porque tinham, evidentemente, como eu falei, várias tribos de vários lugares, não me lembro de ser uma festa só de Punks, mas era um festa de todos nós, com certeza. E um dos depoimentos diz que era uma festa de Punks… Acabam acusando o outro menino, mas sem grandes desdobramentos, mas não cumpriu, não foi julgado, porque era bem assim mesmo: "já está abafado, a opinião pública está contente". Só que a gente começa um movimento, que é também histórico na PUC, pela reconstrução do TUCA, e tem uma pessoa importante ali que é o Renato Ganhito, que assume a responsabilidade, é um economista, esse estudante que está se formando nessa época, um cara do CACS que assume o projeto de reconstrução, de captação de recursos. Então, a gente consegue reconstruir o TUCA com pouco dinheiro da Cure, eu lembro disso. Era dinheiro diverso, e o Renato, que é um economista, se dedica a essa área até hoje, de captação de recursos, de viabilização de projetos sociais. Ele é da área de Marketing e Comunicação, voltada para isso, tem um escritório até hoje, uma experiência bem legal, importante. No final da faculdade, aparece a museologia, e eu vou fazer com o Charles. Na faculdade eu tenho aula com a Valdiza Russel Carmargo Guarniere; a gente não sabia disso, mas é a protagonista de uma ideia de museologia social. A reflexão é até hoje, por isso eu uso a palavra ideia, porque para ela a Museologia é uma ciência, hoje, a museologia mais contemporânea acredita que a museologia seja um processo. Então, a gente trabalha com isso desde essa época, mas o mais importante na museologia social é o protagonismo da sociedade em relação a preservação de memória, que é quase uma inversão em que tudo tem a ver, inclusive, com essa história da minha vida que eu contei para vocês, a maneira como a gente identifica a necessidade social para poder reverter isso em um processo de diálogo de história. O diálogo é uma coisa que eu aproprio na mina retórica depois de conhecer a proposta pedagógica da Valdiza, mas no momento em que eu comecei na museologia, eu tinha essa intenção de "eu tenho como função contar uma história que não é a história das elites", e a gente visita os modernistas, enfim, esse foi o início da minha vida na museologia e sinto na Valdiza essa… enfim, ela foi minha orientadora em um trabalho importante na faculdade.
P/2 - E a Arqueologia, você não ficou com pena?
R - Não, até hoje não. Eu adoro o museu de arqueologia, mas eu também adoro museu de mineralogia, de ciência, ferrovia. E tem uma coisa importante - retomando a ferrovia - na minha trajetória, dentro da museologia, tem um assunto que me interessa que é a formação do Estado de São Paulo, por quê? Em 92 eu sou convidada, tem alguns trabalhos que eu faço antes, esse do futebol, enfim, quem me leva para a museologia de verdade é o Emanuel Araújo, ele me acha e a gente começa a conversar sério sobre museu e eu já estava...
P/2 - Onde que ele te achou?
R - No Clube Atlético Paulistano. Eu estava fazendo uma revisão, a Amanda Tojal, uma mestra minha, é a introdutora aqui no Brasil das exposições acessíveis, então ela tem uma preocupação de acessibilidade para as pessoas com deficiência, e a história da vida dela até hoje...
P/2 - Antes de você falar do Estado, desse seu interesse, você entra... se pudesse fazer alguma relação, se existe para você, forte, entre a sua postura, sua concepção anarquista e lá, chegando, entendendo, mas você.
R - Sim, eu levo. Então, o curso de museologia é estruturado de uma maneira transdisciplinar e a Waldiza transgride também tudo o que vem antes dela, então, já está em um território super familiar. É claro que ela estrutura de uma maneira metodológica a museologia, mas a gente que a estuda... ela não tem grande profundidade teórica, não é uma pessoa acadêmica. Ela pontua assuntos e, quem teve a oportunidade de vê-la falar sobre um dos pontos, de cinco, ela é capaz de falar durante cinco dias. Então, é uma pessoa de muita visão, e as coisas vão entrando por um outro caminho. Ela produz muito pouco em termos de textos, mas os textos dela até hoje são referências mundiais. A produção dela não chega a 50 folhas, e todas as publicações dela, a gente junta as revistas, é sempre um diálogo assim: “Eu trouxe para vocês uma ideia, uma questão para a gente conversar”...
P/2 - Você trabalha assim? Você dá aula? Você tem a ver com esse jeito?
R - Dou. Tenho, desde a aula de História, porque eu comecei a dar aula de história, também. De vez em quando ainda dou, eu sinto falta disso, mas é sempre uma reflexão mesmo. Trago, falo o meu ponto de vista e procuro que as pessoas... mas tem uma coisa na aula de museologia que é diferente, porque como eu dou aula no primeiro módulo, eu tenho que colocar para todos compartilharem tudo o que vem de bagagem, então é pouco tempo para você dispor de muita coisa. Agora, eu gosto muito mesmo quando eu trago, por exemplo, um texto, e a classe reflete sobre ele e questiona mais do que eu falo, isso realmente eu gosto, é onde eu me sinto mais confortável de dialogar, isso também com os pimpolhinhos do Ensino Médio, sempre foi, tanto que eu opto por dar aula de Filosofia do que de História, porque História tem conteúdo, aquela coisa, e a Filosofia, não, você traz o tema, você debate sobre e acho que eles gostam mais da Filosofia do que da História. E na museologia, me deparei com Valdiza, com um monte de gente legal, que eu amo até hoje.
P/2 - Você não falou aonde era o curso.
R - Na fundação escola de Sociologia de São Paulo, que era escola pós-graduada. Ela ficava na Rua do Ouvidor, número 37, que hoje é a ocupação do Ouvidor. Logo, durante a minha faculdade o prédio foi ocupado, então tem uma coisa muito legal. No terceiro andar do prédio, ficava a biblioteca pública do Estado de SP, que a gente teve que recuperar para o Estado durante a ocupação e foi uma dinâmica super legal, porque os caras tratavam aquela biblioteca com muito carinho, eles diziam: “Para onde vai a biblioteca?”. Ela ficou quase que encarcerada no arquivo do Estado durante um certo tempo, hoje eu nem quero falar sobre o que aconteceu com ela, porque foi uma dinâmica legal. A gente estava no arquivo do Estado e levamos a biblioteca para lá, isso é uma outra história completamente paralela. Então, era lá que a gente tinha o curso, que era de três anos, e a gente fazia estágio obrigatório desde o primeiro ano e era um volume de aulas muito grande, mil e quinhentas horas. E no segundo ano a Valdiza morreu. Foi um impacto muito grande para a museologia mundial. Ela era muito jovem, tanto que os parceiros dela da museologia social estão vivos até hoje, todos eles, ela é a única falecida. H. de Varine-Bohan, a Daniele Geraldine, o Mário Moutinho e outros tantos, então esse grupo está vivo e ela só que faleceu, mas ela é uma protagonista mundial. A museologia mundial deve muito a ela e o Brasil como protagonista, inclusive, em uma discussão na América Latina, isso é muito importante. É da América Latina que nasce a Sócio museologia, de uma necessidade, identificada por intelectuais, em 1973, (deixa eu ver se tem pessoa que está aqui me escutando), com a conferência de Santiago, e ela acontece oito meses antes do golpe do Pinochet, então Salvador Allende identifica uma coisa que está acontecendo na América Latina como um todo, convida intelectuais para discutir sobre a memória da América Latina, que é de onde saem essas primeiras referências sobre a sócio museologia, que é uma museologia baseada na educação. A gente tem a presença - não física, porque ele está exilado - do Paulo Freire, a Valdiza também está no autoexílio dela. O Brasil já estava desde 64 na ditadura, então quando isso acontece, o Ministério da Educação manda uma pessoa representante do Brasil, um nome - que, francamente, nem sei quem é, uma mulher, mas existem arquitetos, educadores, e muita gente que trabalha com patrimônio discutindo sobre isso - e sai uma carta de proposição da museologia, como tendo um aspecto educacional, não de reforço da educação formal, como até então a gente tem, mas como uma proponência de uma mudança social. E é naquele Lócus, naquele local que a gente pode discutir sobre os processos de transformação social. Então, é o museu como uma instituição que transforma a sociedade e que reflete… primeiro, que identifica na sociedade as suas necessidades de encaminhamentos e que oferece o seu lugar para ser o fórum de discussão, que é bem bacana.
P/2 - Isso na museologia… você lá, tem algum momento nesse processo todo que você, como uma história, mesmo, sua, que tem tudo a ver, “olha, o museu é isso, tem tudo a ver com o que eu sempre quis, transformação social”, você lembra de um momento, ou é difícil de identificar?
R - As primeiras aulas já são de muita reflexão...
P/2 - Ou alguma ação que aconteceu.
R - Ações dentro da museologia vêm depois, eu acho, depois do curso terminado, porque as reflexões eram internas, muita teoria, a gente produzia muito texto. Eu lembro de uma aula da professora Beth (Soczewki) [01:22:42] e a gente leu um livro do Edgar Morin, O Paradigma da Complexidade. Falei assim: “nossa, esse é o meu chão”, lembro que eu estraçalhei, tirei 10, “sou uma museóloga de verdade”. A Beth me elogiou, foi falar com a Valdiza, foi realmente um impacto, uma das coisas que eu produzi mais legais, porque tinha essa coisa, primeiro que transgredia completamente a questão da História ter começado em um determinado momento e que para mim, não, imagina, hoje é tão óbvio, mas a gente tinha dúvidas naquela época.
P/2 - Como assim da História ter começado?
R - Que a História começa em um determinado momento, não, a História começa quando o homem se socializa, o primeiro ser humano… porque a gente identifica aspectos sociológicos inclusive em não humanos, então é nesse momento da socialização que começa algum tipo de História. Recentemente, de uns cinco anos para cá, eu ainda continuo aprendendo que a museologia e o patrimônio não é só criado pelo homem, é tudo aquilo que diz respeito ao planeta e ao universo em que a gente está inserido. Então as questões de mineralogia, paleontologia são muito importantes para mim hoje. O que eu estou realmente preocupada é com o museu de mineralogia eficiente, inclusive tem muito debate em relação a isso...
P/2 - Por quê?
R - Porque é uma memória que não é do homem, é uma memória muito anterior, de cinco milhões de anos. Qual é a relação que isso tem com o homem hoje? Como é que a as crianças se relacionam com o minério que tem cinco milhões de anos? O que é o homem perto dessa história com a qual você está se relacionando? Isso é História? Claro que é História. E dentro do ensino formal, isso não é História,porque a gente está naqueles parâmetros positivistas de História, com os quais acho que nenhum de nós deveria sequer citar, mas isso ainda está pontuado. Enfim, a escola ainda é positivista, a forma de você passar o conhecimento ainda é, também. Não é uma criação...
P/2 - E Cecília, você - estou fazendo as ligações - ouvia aquelas histórias daquelas pessoas no asilo, e como as memórias das pessoas, e a sua forma de se movimentar mais anarquista, como que tudo isso juntou com você lá fazendo esse curso, depois?
R - Não tanto passando pelo Anarquismo, mas as memórias coletadas nesse asilo, de fato, são super importantes para o meu modo de operar na museologia. Eu nunca consigo trabalhar uma memória sem escutar alguém falar sobre aquele assunto, então é muito familiar. Isso são metodologias que depois a gente... a minha formação é em 92, em museologia, e naquele momento a gente tinha ferramentas pequenas de diagnóstico, de verdade. Então, assim, a sócio museologia estava preocupada com como é que a gente abordava o que estava lá fora, antropologicamente. Então, a gente identifica, vai lá e convida a pessoa para discutir, como alguns projetos, aconteceram naquele momento, mas em 92 eu sou convidada a trabalhar no sistema estadual de museus, dentro da secretaria do Estado da Cultura, e vou trabalhar com o interior do Estado. No interior do Estado você vê primeiro os museus histórico pedagógicos, que história é essa? O museu de reforço pedagógico. Que acervo é? O acervo das classes abastadas daquele município. Que tem a ver com o município? Nada. São lugares de desolação com teto caindo, a gente quase sempre tinha que ir lá para recolher coisas ou de incêndio, ou de inundação, era esse o dia a dia da gente. Qual era o diálogo? Um orçamento que não tem dinheiro para comprar papel higiênico, o museu vai fechar porque não tem funcionário, a última funcionária se aposentou, o que a gente faz? Vamos levar a chave para a secretaria. Essa realidade era um conflito e a gente começa: “vamos melhorar tudo isso”, e a gente trabalhou com capacitação desde esse momento, em 84, capacitação de equipes, formação de… enfim, desde aquela época qual é a perspectiva? De mudar esse entendimento de museu como o lugar comum, museu como o lugar de coisa velha. O museu era um lugar de vida. A gente tinha um projeto que não é meu, é da Diná, que era a minha chefe, na época, que era Museu Vivo. Circulava com exposições itinerantes produzidas pelo MIS, coisas importantes, que circulavam e davam essa dinâmica cultural no Estado. Então, essa vivência do Estado me chamava atenção: “Que Estado é esse?”, e aí voltou a questão da ferrovia. De que maneira você entende isso? É entrevistando as pessoas, então essas duas coisas até hoje me acompanham: de que maneira esse território foi constituído, temos indiozinhos; quem que vem primeiro; como chegou e a cidade como se formou. Quase sempre é a mesma história, então tem o indiozinho, tem o portuguesinho que chegou, conflitou, destruiu, tomou posse, o Rei veio, delimitou a área e a ferrovia chegou… ou tem café, ou tem cana, e a ferrovia chegou. Quando a ferrovia chega a esse, constitui essa história da territorialidade mesmo, você vai conseguindo construir desde 1530 até as cidades mais novas que tem 40, 50 anos, que são do Oeste Paulista. Isso me interessa muito, como é que esse território foi delimitado, e como isso se configura, ainda hoje, que tipo de reflexão. Quando a gente vê a eleição, a gente vê o que aconteceu nesse Estado...
P/2 - Que relação você faz, bem de sentimento?
R - Esse Estado ainda é o Estado escravocrata, - embora a mão de obra já esteja liberta há um certo tempo - de grandes proprietários de terras e os seus, enfim, que impõem uma lógica e essa eleição é o reflexo disso, eu acho, resumidamente. E há uma grande resistência de um grupo que hoje, nesta eleição, se configurou como minoria, mas que não acredito que seja minoria, não, eu não acredito mesmo. Acho que as minhas reflexões políticas sobre essa eleição é de que foi um equívoco histórico, desde o golpe...
P/2 - Minoria... qual que se configura, para você, que viveu todos esses movimentos?
R - Eu acho que a maioria ainda tem esses aspectos, a importância. Vou chamar de esquerda, embora hoje não reflita mais a realidade. A maioria ainda é de esquerda, ainda quer mudanças, só que se apresenta, nesse momento, - de novo, não é a primeira vez - a extrema direita, como sendo a salvadora da pátria. A gente tem o Collor que é muito recente. Só que dessa vez, a gente não elegeu o Collor com militares, mas elegemos militares diretamente. Então, eu ainda vejo uma grande reflexão social no Brasil, e acho que isso é um equívoco que vai se corrigir, espero que rapidamente...
P/2 - Então, entendendo, essa vontade de transformar é bastante presente ainda, não só em você, mas em muita gente.
R - Dá preguiça, eu escrevi muito hoje, eu falei assim: “Que preguiça de voltar a 1965”, porque eu não vivi 65, eu já nasci em 67, então as coisas já estavam um pouco mais avançadinhas. Me senti derrotada por esse lado, toda uma história que não é só minha, que eu carrego, como eu falei, todas essas pessoas pelas quais eu me apaixonei. Teve um momento em que eu fui trabalhar no arquivo de Estado, com a recepção do acervo do DOPS, então eu estava no arquivo com essa missão, fui colocada lá por uma pessoa do Governo para a gente fazer a abertura, eu e dois outros historiadores muito queridos, para a gente receber e tentar criar uma metodologia para que pudesse ser pesquisado, foi exatamente nesse momento. Não tinha ainda nenhum Professor da USP, vieram...
P/2 - Você pode falar o nome dos dois historiadores juntos com você?
R - Sim, o sobrinho neto do Alexandre Vannucchi Leme, que é o Marco Aurélio Vannucchi, era um estudante de história, ainda, eu já estava formada há um certo tempo, e o Fernando Braga, que era um historiador e fotógrafo. Depois se juntaram muitas outras pessoas, Sílvia Nunes, outra historiadora, o Lauro Ávila Pereira, embora ele tenha uma outra vertente, então ele está em outra situação...
P/2 - E vocês recebem, e quando foi, o ano em que vocês começam a receber, só para a gente deixar registrado?
R - Acho que 98, pode ser.
P/2 - Depois desse movimento no interior de São Paulo, isso não é tão importante, mas só para a gente situar a sua história, depois desse movimento todo no interior de São Paulo, você faz esse trabalho?
R - Isso, exatamente, eu saio da secretaria e vou para o DOPS, então está em uma ordem, não está tão errado.
P/2 - E conta isso que você ia contar que eu interrompi, mas que vocês recebem… conta como aconteceu tudo.
R - Eu ia citar uma outra paixão que desencadeou aí. Tem uma pessoa que eu não lembro o nome dele, que era da Casa Civil, o Governo era do Mário Covas… não vou lembrar o nome dele, era uma figura importante até nessa historinha que eu vou contar. Ele propõe a gente fazer a recuperação da história de mulheres mortas e desaparecidas durante a ditadura e ele tinha um grupo de familiares dessas mulheres que queriam trabalhar com essa memória. Então, eu conheci a Amelinha, a Janaína - ela era uma menina, estudava - e hoje eu a vi de cabelo grisalho nesses depoimentos da propaganda do Haddad falando sobre tortura. A Amelinha foi torturada. E eu me apaixonei por essa questão, das mulheres que foram perseguidas na ditadura, e várias histórias delas me fizeram… então, essa piração, "eu estou no meio da história de uma mulher que foi morta, ou que foi torturada" e isso também são duas ou três paixões bem tensas durante esse período, de novo essa questão. E volta com força total toda essa tendência que tem, e depois disso, passa a ter na minha vida, um vínculo quase que permanente com o cárcere, ou tortura, ou manicômio. Talvez seja um caminho que eu busque, mas às vezes chega para mim. Então, desde esse momento, eu fui trabalhar no Itaú Cultural, trabalhei com museus de artes, me especializei em uma série de outras questões museográficas também, mas, por exemplo, o projeto do Catálogo Raisonné Tarsila do Amaral que eu participei ativamente como museóloga, aconteceu dentro do prédio do Dops, recém inaugurado, e a exposição que reabre o Dops, que era o prédio do Dops que acabou de ser destinado para atividade cultural, era uma exposição minha, a pedido do então Governador e alguns secretários. Abre como exposição minha, e é interessante um veto do governo, que é a uma foto que eu guardo em meu acervo pessoal - reprodução claro, o acervo continua sendo do Dops, mas uma foto no período da ditadura - em que o Fernando Henrique e o Lula estão em uma conversa super íntima. É importante isso. Só que o governo recém empossado do PSDB, que ganhou do PMDB… o último governador do PMDB tinha sido o Fleury e aí se dá o massacre do Carandiru exatamente nesse último ano, no dia da eleição do Mário Covas, e eu vou trabalhar com ele. Uma das pessoas que escolhe a equipe para fazer a reabertura do prédio… reabertura, não, ele estava totalmente destruído e ia passar por um restauro. A gente ocupa o prédio com essa exposição e com uma atividade do Olho vivo que é uma peça de… Prédio do Dops, que a gente chamava ainda de prédio do Dops. Ele não tinha nenhuma utilização definida, estava sendo entregue à secretaria de cultura , e a equipe do Estado é que propõe essa ocupação. A gente chamava assim mesmo, o que hoje é uma palavra interessante. A gente ocupa com essa exposição, com esse veto dessa foto do Lula com o Fernando Henrique, era alguma campanha… não foi para a exposição. Eu lembro do Suplicy falar “Não tem nenhuma foto do Lula?”, e gente, como explicar para o meu amor, - que eu admiro demais o Suplicy, desde pequena - como explicar, "não temos nenhuma foto do Lula, porque houve uma pequena censura em relação a ela". Têm outras que eu não posso falar que me dá medo.
P/2 - E você tem essa foto segurando a foto?
R - Eu tenho a foto do... já estava reproduzida, estávamos pensando em colocá-la, principalmente no período pré-diretas, pré-comícios da direta, que não houve de fato as diretas. Então, é desse período essa foto, 79, enfim, mas os dois estão ali em um conchavo muito louco e depois se separam radicalmente, mas houve esse veto, não podemos usar a foto do Fernando Henrique junto com o Lula. Tem foto do comício, depois alguém reconheceu o Lula no Comício, graças a Deus...
P/2 - Cecília, conta um pouco com mais detalhes, porque você diz: “nós recebemos esse material”, vocês já estavam lá no prédio?
R - Não, o acervo do Dops estava lá no arquivo do Estado e nós fizemos uma exposição no edifício que foi doado para a secretaria da cultura.
P/2 - Então essa exposição foi a partir desse trabalho que vocês fizeram com o recorte das mulheres?
R - Essa exposição veio depois. Nesse momento da entrega do acervo do Dops, o prédio foi também, então tinha que fazer uma ação política, tinha que fazer um movimento político. Teve uma lei, lei da anistia estadual, super importante, o Mário Covas que assina, inclusive, que era para indenizar as famílias de presos, mortos reconhecidos, durante a ditadura. É a lei estadual que vigora até hoje, com algumas expansões, precisa de depoimento para comprovar que ele foi preso, ele pode ser um preso desaparecido, mas comprovadamente desaparecido durante a ditadura, as pessoas requerem… então, têm algumas variáveis daquela lei, eu não sou especialista nisso, nem vou aprofundar, mas naquele momento, da entrega do prédio para a sociedade tinha uma exposição, tinha uma peça de teatro, que era bem impactante, muitos presos políticos. Eu conheci muita gente legal naquela época. Essa exposição ficou aberta em um prédio que estava caído.
P/2 - E você que organizou essa exposição, esse acervo?
R - Sim, a pesquisa foi totalmente minha.
P/2 - Quando você estava ali tendo que fazer essa curadoria, você lembra como você fez para escolher o que você...
R - A encomenda era para falar sobre o processo de redemocratização, foi mais tranquilo, a gente não teve que ver processos muito, enfim… Depois, a gente pesquisou muitas outras coisas, fizemos sobre a história da repressão da colônia japonesa, chamamos de "A Colônia Japonesa aos olhos do Dops", é uma coisa que vai desde o início do século XX, até bastante tempo depois da segunda guerra mundial, que é uma comunidade perseguida em diversos momentos, pela diferença. Então, várias exposições a gente fez a partir da exposição do acervo do Dops, mas essa foi a primeira e era sobre o processo de redemocratização, que era isso que eles queriam mostrar naquele momento. Então, a gente fez sobre comício, tinha muita coisa legal, muito artista, artista fichado. Nós pegávamos a foto do Caetano, cabeludão, que era a ficha dele do Dops mesmo. Tudo isso precisava de uma autorização, a gente lembra de um debate político muito grande com os advogados, para ver como… Os vivos davam autorização, e quando nós pesquisávamos um morto, quem dava? Tinha que falar com a família. Então, teve um grupo de advogados que começou a se preocupar sobre o acesso, - até hoje é uma grande discussão - , e hoje pesquisando a relação manicomial, também se tem muita dificuldade de acesso, porque o Estado é responsável pelo preso e a imagem do preso naquele momento. Hoje, nós também esbarramos no Carandiru com isso. Enquanto o preso está sob a tutela do Estado, tudo que disser respeito a ele, inclusive a imagem, é de responsabilidade do Estado, então ele pode não te autorizar a usar. É para o bem e para o mal.
P/2 - Não é a família?
R - Durante este período não, agora, com o processo de abertura do acervo do Dops, a família passa a ser a protagonista. Então, a imagem do cara está... quer dizer, o direito da imagem desse cara que agora não está mais sob a tutela do Estado, mas está possível de ser pesquisado e discutido, já é de caráter social, são outras leis, de fato elas são muito complicadas...
P/2 - Cecília, eu queria te perguntar. Se você puder, primeiro, contar assim: “eu trabalhei aqui, ali” para a gente saber um pouco do seu percurso, mas nem precisa detalhar. O que eu depois gostaria que você voltasse é nesse momento em que você trabalhou com o acervo em relação às mulheres, que depois você fala dos três focos, do manicômio, na prisão e do… Se você puder só contar, depois a gente pode voltar para isso, mas em um outro momento. E chegando no Centro memória Carandiru.
R - Que vem com o sistema estadual de museus, mas em 85 a Maureen já tentava fazer o centro de memória, são outras pessoas na secretaria da cultura. Quando eu vou para lá em 94, já têm vários e vários documentos sobre intenção de se fazer... 94 já é depois do massacre, mas...
P/2 - O Massacre, para a gente deixar registrado, foi em que ano?
R - Dia três de outubro de 92. Eu vou para a secretaria já tem dois anos o massacre, mas o projeto da Maureen já era muito anterior, que a Beatriz Cruz era a museóloga que tratava diretamente com a Morim, que sempre me confundia com ela no início, depois já ficou diferente.
P/2 - Mas nesse momento você estava no arquivo. E depois? Você fez esse percurso no serviço estadual?
R - Da secretaria de Estado da cultura que eu trabalhei com o sistema estadual de museus, eu fui para o arquivo de Estado, depois para o Itaú Cultural, depois abri uma empresa e comecei a trabalhar com projetos. Em 2007, eu fui chamada por um amigo, o Ronaldo Bianchi para coordenar a reestruturação do sistema estadual de museus e não é por acaso. Em 2006, o Governo Federal… a gente tem a criação do departamento de museus, dentro do ministério da cultura em 2003. Em 2006, o Mário Chagas, amigo de faculdade, que é o José do Nascimento Junior, me convidam para fazer o mapeamento dos museus do Estado de SP, porque eu já tinha trabalhado no sistema e eu faço isso em 2006. Em 2007, Ronaldo Bianchi, que é o secretário adjunto da cultura me chama para fazer parte da equipe dele para a reestruturação do sistema estadual de museus. O sistema estadual é de um decreto de 85, e em 2008 ele tem essa perspectiva que é exatamente essa configuração muito aproximada do que é hoje, então a gente está hoje, sob essa reestruturação.
P/2 - Essa reestruturação é uma legislação federal?
R - Não, é uma legislação que a gente criou, estadual. A equipe que a gente chama hoje de Cisem, mas foi em consonância com o Governo Federal, bastante mesmo, embora haja diferenças profundas políticas, porque aqui era Governo do PSDB, mas o João Sayad, que é o secretário de Estado nessa gestão, é muito próximo de uma política pública, e o PT está no Governo Federal de vento em popa. Na verdade, o protagonismo do PT na criação de uma política pública de museus é indiscutível, de 2003 até 2014 a gente tem a estruturação de uma política pública com a publicação de um estatuto. O departamento de museus, que era um departamento do ministério da cultura, evolui para um instituto brasileiro de museus, com a mesma qualificação hierárquica do IFAM. Dentro do ministério, então a gente tem IFAM e IBRAM, casa um com a sua definição de atuação, isso é super importante, só que hoje a gente vê uma... estão acabando com isso, é muito triste, principalmente para a gente que estava em uma escala evolutiva, de constituição mesmo de uma área importante.
P/2 - E têm efeitos já, de uns tempos para cá?
R - Têm. Após o impeachment da Presidenta Dilma, a gente tem uma ação atrás da outra para destruir tudo o que foi construído. O pouco que se tinha, hoje já não existe mais. Assim que o Presidente Temer… o Golpe que essa pessoa promoveu no Brasil, a primeira ação foi acabar com o ministério da cultura, foi com uma resistência de nomes importantes. Nos dois primeiros mandatos do Presidente Lula, o Ministro da Cultura era o Gilberto Gil, então nesse momento em que o Temer protagoniza o golpe e acaba com o ministério da cultura, é exatamente essa resistência de nomes de peso da cultura brasileira... eles que fazem com que a coisa retroaja. Então, o ministério volta a existir, mas em uma perspectiva de desestruturar completamente, o Ibram é quase extinto hoje em dia. E após o incêndio do Museu Nacional, em vez de se implantar uma política pública ainda maior para a área de museus, eles extinguem a pouca que tem e substituem as ações do IBRAM, por uma ação de uma agência brasileira de museus. Então, a gente está na mais profunda crise no universo museológico, de uma coisa que foi construída a muitas mãos, nós não conseguimos nem enumerar as mãos com que essa política pública foi construída. Nós tínhamos reuniões no Amazonas, no Rio Grande do Sul. Exaustivo. Foram dez anos... seis anos para construir em 2009, quando é sancionada a lei que institui o IBRAM como o regulador da política nacional de museus e o estatuto é publicado em 2012. Então, são quase dez anos mesmo da construção, é uma construção exaustiva, coletiva. Os fóruns tinham duas, três mil pessoas, em todos os lugares do Brasil. Tem coisa que nem dá para discutirmos, porque a gente ainda estava nessa, não era uma coisa de memória ainda, ainda estávamos vivenciando...
P/2 - E a Agência não tem nada a ver?
R - Não tem nada a ver, é coisa do Temer, ele que se vire. Não tem ninguém da área envolvida. A gente sabe que tem algumas discussões com o ICOM, mas talvez tenha uma aproximação político-partidária, não que eu tenha alguma crítica em relação ao ICOM, muito pelo contrário...
P/2 - Mas a Agência significa outra coisa?
R - Significa outra coisa, é uma agência. Ela vai agenciar recursos, mas não é política pública, isso é claro para mim. E tem gente que coloca alguns paninhos quentes, mas eu ainda estou para ver… Quando me apresentarem, eu pude discutir, ou ao menos expor a minha opinião, talvez eu me sinta inserida nessa discussão, mas até esse momento, nem eu e nem ninguém que eu conheça está inserido nessa discussão, por enquanto.
P/2 - Cecília, depois, quando você chega na ETEC, me fala um pouco daquela... depois a gente vai voltar na outra história.
R - Eu contei dentro da museologia, até o sistema estadual de museus para onde eu fui em 2007. Um pouco antes disso, tem a história da formação da museologia no Estado de São Paulo. Então, quem é museólogo de formação até 1992… que é a morte da Waldiza - quanta coisa em 92, o massacre, e a Waldiza que morreu em 92. E nós extinguimos o único curso que formava, no Estado de SP, em nível de Pós-graduação, os museólogos. Então, nós tínhamos nesse momento no Brasil, duas outras universidades em nível de graduação, que era a da Bahia e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aqui no Estado de SP, pós-graduação… Com a morte da Valdiza, nós perdemos a professora doutora que dava lastro para essa formação, e se extingue a formação de museólogos no Estado. Em 2005 - um pouco antes, tem um curso, que eu não vou lembrar se é 2002 ou 2003, eu precisaria ter me preparado, às vezes, eu dou aula sobre isso, mas hoje fugiu, tem um curso de especialização na USP para dar conta - muitos colegas nossos fazem esse curso, é excelente - que forma exatamente da mesma forma que a Waldiza formou a gente na FESP. Só que a USP não dá a qualificação que a FESP dava para a gente, então não existe registro de museólogo para os egressos desse curso, e isso cria um certo trauma na área. A pessoa faz a mesma formação e não tem registro, super chato, várias ações jurídicas, e a gente sempre ciente da qualificação. Em 2005, a Secretaria de Estado da Cultura chama o Centro Paula Souza para criar um curso técnico de museologia, porque os museus do Estado precisam dessa mão de obra qualificada. Então, eu que trabalhei em 94, sou chamada para fazer parte desse grupo. É a mesma chefe, a Diná que fica durante 17 anos no sistema de museus. Ela me chama, eu participo como Professora (não sou uma das estruturadoras do curso em 2005). Em 2006, sai o primeiro grupo. O curso é configurado como um projeto, só em uma ETEC, que é a ETESP, onde fica a sede da FATEC. Era um projeto político, o Governo do Estado de SP precisava qualificar a mão de obra dos museus do Estado e chama a ETEC para fazer esse curso. Era para ser um projeto de um grupo e extinguir assim que esse grupo fosse qualificado. Para esse curso são convidados profissionais que já atuavam em museus da secretaria, então os museus escolhiam o profissional que iria fazer o curso e esse profissional sairia como técnico, e forma-se esse grupo muito... os professores e ex professores saem desse grupo inicial, que eram os profissionais da secretaria da cultura e o curso ia acabar. E a ETEC Parque da Juventude está sendo inaugurada, em 2006, justamente. A Márcia Loduca, professora da ETESP, me conhece, e fala: “Olha, a professora Olga Laganá, está pensando em levar esse curso para a ETEC Parque da Juventude, lá para o Carandiru”, eu falei: “nossa, que interessante, vamos juntos”. Na secretaria da Cultura, nenhum outro profissional quis continuar com a coordenação do grupo da secretaria da cultura, e me chamam “Você assume isso, porque você está disponível neste momento”, a ETEC falou: “Você vai fazer o concurso para se efetivar como professora na ETEC”, e eu faço - a minha formação é de História - um concurso de História e Filosofia, e ai acabou sendo responsável pela vinda do curso para cá. Quando essa escola é inaugurada, claro, eu moro na região desde sempre e conhecia a história desse local e venho para cá na Secretaria da Cultura. Eu ainda não tinha assumido o SISEM, assumo só um ano e meio depois, mas eu já conhecia os projetos da Maureen em relação a esse espaço. Então, eu venho para cá a convite da Marcela Loduca, vem uma pessoa muito especial na minha vida que é a Fernanda Martins, uma arquiteta que tinha consolidado o curso técnico de edificações, na ETESP, também. Então, ela vem para me ajudar na estruturação do curso, e a gente pira. Fizemos o curso do jeito que achamos que tem que ser, transdisciplinar, fizemos um projeto que não só a museologia seja implantada nessa escola, mas biblioteconomia, arquivologia, que hoje é uma realidade, mas esse projeto é de 2007. São três cursos, a gente pensou exatamente na transdisciplinaridade, que outros cursos que a gente teria, as nossas reflexões são sempre essa coisa transdisciplinar, mesmo, horizontal, enfim, mas naquele momento o curso de Museologia então ele é implantado. Ainda continua como um projeto. A gente reestrutura ele completamente, trabalha - eu e a Fernanda, a Fernanda e eu -, é uma equipe enorme de professores. Se não sou eu, é a Fernanda, ou as duas juntas ao mesmo tempo na sala de aula e foi assim, realmente. Não tinha lousa, não tinha carteira, a gente...
P/2 - Era uma turma...
R - Era a primeira turma. E essa primeira turma foi uma turma assim, sagaz, que eles reivindicavam muito e são duas lideranças que saíram de lá. Uma liderança do Passe Livre, uma grande liderança do Movimento Passe Livre, e outra que é um grande assessor do Boulos, que são dois caras dessa primeira turma. A responsável hoje pela área de Museologia da UPPM, a Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico, é uma egressa dessa turminha também, a Tayná Rios. Essa eu posso falar.
P/2 - Alunos do seu curso?
R - São alunos desse grupo que foram realmente assim, heroicos. Todos os 11, inclusive. E aí nesse momento, é interessante...
P/2 - … e era ensino médio.
R - O curso técnico, ele é em nível médio de formação, mas as pessoas que procuraram desde sempre não eram pessoas do ensino médio. São profissionais da área, pessoas que gostam de História e Artes e que vêm aqui porque gostam de museus e, enfim, são várias as...
P/2 - Era um público bem, até hoje, variado. O perfil é bem...
R - Bem variado. Cada vez mais formados, também, capacitados. Tem uma aluna que é arquiteta com livre docência. Têm vários. Também temos do ensino médio, que são muito disciplinados, inclusive, né, Pri? São os alunos que cumprem prazo, que chegam na hora, fazem caderninho, entregam tudo, porque estão nessa onda ainda, na vida. Hoje a Márcia me explicou porque os mais graduados não são. É uma boa isso que ele quer.
P/2 - Começa quando o curso?
R - Em 2006. A ETEC é inaugurada com esse curso de Museologia, Enfermagem e Informática, e junto toda a constituição desse parque, que é uma história que a gente já traçou junto com a Maureen e etc, ela tem uma intenção, que é de trabalhar diversas secretarias em conjunto. Então a gente tem na entrega desse edifício a presença da Secretaria de Desenvolvimento, que é o Centro Paula Souza; a Secretaria de Governo, que é responsável pelo Acessa São Paulo, (hoje eu não sei se é Secretaria de Governo ou Casa Civil, desculpa); a gente tem a Secretaria de Parques, nesse momento em que abriu; e uma secretaria que foi criada para administrar uma coisa que se chamava Espaço Memória Carandiru, que a era Secretaria de Relações Institucionais, organizada pelo secretário Henrique Lobo. A responsável pelo Espaço Memória Carandiru era uma grande parceira nossa, que era a Silvia Antibas, a autora e idealizadora do curso técnico de Museologia. Então, as coisas coincidiram absolutamente. A Silvia Antibas e eu começamos a trabalhar o Espaço Memória Carandiru dentro do curso técnico de Museologia, então esse espaço, inicialmente era usado como laboratório. A Secretaria de Relações Institucionais é extinta no momento em que o secretário Henrique Lobos transfere para o Geraldo Alckmin, que era secretário de Ciência e Desenvolvimento do Centro Paula Souza, a responsabilidade sobre esse espaço. Do Geraldo Alckmin, que está dentro da história desse espaço de forma recorrente… é na gestão dele que há a implosão, é na gestão dele, em outra gestão, uma gestão anterior, que há a criação, vamos dizer assim, do projeto do Parque da Juventude, que é um edital, é um concurso público, e é ele que de fato… como eu vou dizer? Intermedia esse processo, sanciona, inclusive, a implantação do projeto do parque, então em diversos momentos, ele está presente. Em 2008, o governador José Serra… Então ele coincide, eu continuo como professora e aí eu já estou atuando no Sistema Estadual de Museus. O governador José Serra nesse momento faz um decreto, tem uma situação política ali com a presença da Maureen, inclusive; ele faz um decreto que institucionaliza esse espaço dentro deste edifício, qualquer que seja a ocupação que este edifício venha a ter, este espaço está garantido neste lugar. Isso é muito importante. Então, aí nesse momento, a gente transfere por decreto, também, da Relações Institucionais para Secretaria de Desenvolvimento, no Centro Paula Souza, e a ETEC Parque da Juventude passa a gerir esse espaço. De que maneira? Sendo um laboratório do curso técnico de Museologia. A Maureen, em 2012, quando se aposenta do Memorial da América Latina, ela então transfere tudo aquilo que se está sob a sua tutela para esse espaço de uma forma que a gente possa utilizar esse acervo com pesquisa, mas o objetivo dela é difusão. Então, a todo momento, desde 95 lá, desde, sei lá, antes de 85, ela quer que esse acervo tenha acesso público. Então ela luta incansavelmente para que haja uma exposição, que só acontece em 2014, com o Museu da Casa Brasileira, adotando, dentro do projeto do Museu da Casa Brasileira, Casas do Brasil, ela é convidada para participar com a experiência, da vivência do Carandiru. Então, ela leva essa exposição para lá, essa exposição é montada de uma maneira que quando ela fosse desmontada, viesse para cá, para ser remontada; isso demora dois anos para a gente conseguir, então, em 2018, em abril de 2018, a gente consegue abrir essa exposição para o público de fato. São dez anos de luta da Maureen, assim, o quanto eu estou aqui.
P/2 - Esse acervo que ficava no centro, no Memorial da América Latina, era esse referente ao Carandiru?
R - Era exatamente esse que você vê. Exatamente. Ela guardava lá, porque não acreditava que aqui tivesse a… como eu vou dizer? A segurança suficiente para preservar esse acervo, que é realmente muito importante. Mas que o acervo físico, a memória, acho que converge bastante para o Museu da Pessoa. Esse acervo que a gente tem de Espaço Memória Carandiru, é idêntico ao museu da penitenciária, só que a visão do museu da penitenciária é uma visão do Estado em relação ao preso. Aqui, para nós, é um acervo resultante de uma vivência de um morador, independente do crime que ele tenha cometido, o que nos interessa, antropologicamente, é a maneira com que ele se relaciona com grupo nesse contexto, que é uma prisão, que tem limitações, mas enquanto ele está aqui, enquanto grupo, como ele se relaciona, qual lugar, como ele come, como ele dorme, como ele pratica sexo, enfim. Tudo isso nos… E a violência também permeia essa relação. Então, é isso que nos ocupa a pesquisa, é esse diálogo. Muito diferente de qualquer outra memória prisional, então é uma memória da vivência e não da prisão. Essa é uma grande diferença, então por isso a gente tem muito cuidado com isso. Não vai ser acervo, nunca, nenhum acervo penitenciário, isso é muito importante, a gente sempre quer garantir isso. E existe um acervo que é de coleta de depoimentos, que ainda está em processo com a Maureen; precisa de muito dinheiro, evidentemente, para a gente trabalhar esse acervo.
P/2 - Que ela foi registrando as histórias...
R - Durante dez anos, são muitas horas. Então ela tem projetos, a gente, enfim, capta, mas o mais importante, inclusive, é a destinação que ela quer dar para isso, que é de fato muito relevante e com isso estamos trabalhando agora. Esse é o nosso principal assunto, meu e da Maureen.
P/2 - Que é o destino para o Centro Memória...
R - Desse material coletado, porque nós temos memória oral coletada. Ela tem muito mais do que a gente, evidentemente. São 10 anos de trabalho dela, a gente tem, sei lá, uns 20 depoimentos, enfim.
P/2 - Da época?
R - Não, de agora. O dela é da época, o nosso é posterior. São os mesmos...
P/2 - … mas são com os egressos, não sei se vocês chamam assim.
R - Sim, são os ex-moradores, é assim que eles se definem.
P/2 - Cecília, você estava aqui nesse curso, organizando, aí você falou que era você e a outra sua colega...
R - Fernanda Martins. Eu e Fernanda Martins, e Fernanda Martins e eu.
P/2 - E eram várias disciplinas?
R - Muitas disciplinas. Eram nove. Aí a gente foi, claro, um curso que está sendo estruturado. A Márcia Loduca é a heroína desse curso, ela leva isso como se fosse uma bandeira, claro que a gente ajuda.
P/2 - Por quê?
R - Porque é muito difícil. Custo e benefício; que curso é esse; é o único do Brasil; para quê ter Museologia. Agora, com o novo governador, fica mais difícil ainda a gente justificar porque é importante preservar a memória, ainda mais memória de preso, né, gente? Bom, enfim.
P/2 - Agora, o curso de Museologia, ele é abrangente. Inclui esta ação, mas é mais… inclui outras discussões.
R - Sim. Todo o semestre, a gente tem cinco ou seis, depende, ou dois ou três. De um a seis - pelo menos - projetos de TCC relativos a algum tipo de memória, em alguma instituição. Isso é a prática do curso. O TCC deles começa no primeiro módulo, geralmente, e vai até o terceiro, eles desenvolvendo uma pesquisa e implantação de todo o processo museológico. Essa é a formação do nosso egresso.
P/2 - Quanto tempo dura?
R - Um ano e meio.
P/2 - Um ano e meio. Cecília, quando você - estou lembrando do que você contou. "Agora eu vou montar um curso", o que que você, Cecília, botou nesse curso da sua vida? Ou das suas vontades?
R - É mais relativo a vivência com a Waldisa Rússio, na verdade é uma cópia e cola do curso dela, porque deu certo.
P/2 - Que você se identifica?
R - É, a gente fazia em três anos, teve que reduzir para um e meio, e foi difícil, viu? Bem difícil reduzir tudo aquilo, mas foi isso. Não teve muita criatividade, não. E a gente reflete muito. Agora, claro, que as perspectivas da imaterialidade estão muito presentes, as áreas de comunicação e educação são mais protagonistas do que eram no início, porque a gente tinha uma questão de gestão, documentação, pesquisa muito mais intensa, porque eu como historiadora e a Fernanda como arquiteta tínhamos essa coisa, hoje a gente está muito mais rendido. A Fernanda saiu, se aposentou, mas agora eu tenho novas colegas de vida, maravilhosas, incríveis, e a gente toca o curso dessa maneira. Hoje o protagonismo é da comunicação museológica, menos do que gestão.
P/2 - Mas se fosse assim: eu quero garantir tal coisa, ou a concepção do curso é, resumida, essa?
R - Transdisciplinaridade, resumidamente. O que qualifica todas as disciplinas que estão sendo dadas no momento. Nenhuma é melhor ou mais importante que a outra, mas claro que o protagonismo da reflexão se dá evidentemente com a comunicação, porque ela que media o público. Tudo que a gente faz é para o público, então, como são essas disciplinas, são mais relacionadas a ele? Nós começamos a girar em torno disso. O módulo de comunicação, que é o segundo, é o mais forte do curso.
P/2 - É que eu fico lembrando que você falou quando queria ser historiadora. O desejo da transformação, depois a relação da História com a Museologia, e ouvir as pessoas, então, no curso que hoje você atua...
R - Lembra que eu falei que, assim, lá no início, lá em 94, quando eu fui para o SISEM, antes da reestruturação, que coube a mim e a uma equipe reestruturar, lá atrás era uma maneira da gente entender o que acontecia naquele município; captação de memória oral, reflexão, diagnóstico antropológico, sociológico, para começarmos a construir as relações e entendermos que história que vai ser disponibilizada para aquela comunidade, que é sempre um processo dialógico, claro. Quem são esses personagens, como que a gente constrói, porque que tem isso e não tem isso, onde que está isso que não tem, então, são esses mapeamentos que permeiam desde lá. Aqui no curso de Museologia, a gente ensina, a gente compartilha esse conhecimento com esses alunos que estão chegando. É um conhecimento adquirido que favorece muitas reflexões. Quer dizer, há cinco anos, nós tínhamos um outro perfil de curso. A cada semestre a gente procura... são pequenas mudanças, mas cumulativamente quando paramos para refletir, poxa, em 2012, nós fizemos uma profunda reestruturação do curso e hoje já é extremamente necessário refletir tudo de novo, não tem como. Estamos obsoletos, e é engraçado que nós mesmos refletimos que temos que mudar: "isso tem que mudar agora, isso vai ter que mudar daqui a pouco". A gente está em uma perspectiva de escrever um livro sobre a memória do parque, então já é uma intenção que é nova - não tão nova, uns dois anos -, mas temos que colocar isso para acontecer. A gente tem muito pouca mão de obra, muito pouco dinheiro, aquela coisa que por isso é tão moroso. Se tivéssemos dinheiro e gente, estava tudo certinho, mas isso realmente o Governo do Estado de São Paulo ainda não nos propiciou nos últimos 29 anos. Enfim, é isso que a gente vive hoje. Tem uma coisa só em 90, em xis lá. Tem o DOPS, depois a ocupação do prédio do DOPS, aí depois tem o Memória Carandiru e o Juqueri, que, enfim, aí acaba… essa é uma vivência profissional minha de acompanhar essas memórias. Eu nunca me afastei dessas pessoas encarceradas de alguma forma.
P/2 - Então, conta agora essa história, mas, assim, a história mesmo, como que você estava ali, lendo os documentos das mulheres e aí...
R - Do DOPS. Das mulheres, ele me convidou, na verdade, e aí a gente...
P/2 - Mas então, todos que você teve acesso e tudo?
R - Isso. Isso me apaixonou por essa história. Lembra que lá desde o movimento estudantil já tinha essa vocação assim. Eu me sinto orgulhosa de ter participado desse grupo, orgulhosa mesmo. A primeira vez que passou a propaganda do Haddad que a Amelinha estava, eu chorei copiosamente pela própria história. Pela história desse país, do quanto a gente está retrocedendo com um monte de coisas. Poxa, onde foi que eu errei? Muitas vezes você: cara, que que deu errado nisso tudo, né? Gente tão legal, gente tão importante, enfim. E aí é interessante, porque no WhatsApp tinha gente que eu não via, sei lá, o Nascimento, desde que ele saiu do governo federal, 2015. Eu saí em 2013 da Secretaria de Estado da Cultura, ele era meu parceiro lá do IBRAM, e acho que a gente não se fala desde 2015; nessa história de trocar mensagens e essas correntes positivas, nós começamos a falar sobre o que aconteceu, onde que eu perdi alguma coisa, eu não estou entendendo, aonde foi? A gente tenta e muitas pessoas da PUC daquela época. Gente, como que é isso? Que que está acontecendo? Nós estamos procurando achar uma justificativa para tudo estar ocorrendo do jeito que está acontecendo. Enfim, e até assumindo um pouco de culpa, mesmo. A gente deixou acontecer, foi omisso em algum momento, a gente estava muito preocupado com alguma coisa? Enfim. Que a gente perdeu, né, a história que estava sendo escrita e que a gente não participou, de verdade, porque é muita gente: 55 milhões de pessoas votaram em um governo autoritário; não é meia dúzia, enfim. Onde que a gente estava quando isso estava estruturando? É uma pergunta. Cabe, realmente...
P/2 - Você disse a minoria? Não é a minoria? Essa parte ficou vaga.
R - São 44 milhões de pessoas que votaram, vamos dizer, pela democracia, mas eu acredito que muitas desses 55 milhões de pessoas - quando a gente vê os mapas, isso fica claro - têm uma outra perspectiva. Talvez não tenham claramente qual o fato, em si, do que elas estão fazendo; quer dizer, elas não têm um… atingindo a dimensão do que é isso de fato, a eleição dessa pessoa, por desconhecimento, por alguma coisa que elas estão buscando, pessoas que não vivenciaram o período de redemocratização, talvez, não sei, também atribuir isso aos jovens, só, essa responsabilidade, seja leviandade, mas realmente estão buscando uma, porque eles votaram maciçamente. A última votação do Lula é muito maior do que 44 milhões. Eu não acredito que essas pessoas tenham deixado de acreditar nessa mudança social, elas estão buscando uma outra via, então eu ainda acredito que a maioria pense de uma maneira social.
P/2 - Eu vou pedir para você contar a história, assim, como que você vai para o trabalho manicomial, carcerário - se eu posso dizer assim - e DOPS? Como que acontece na tua cabeça ou então alguma história que você possa contar para gente…
R - É uma série de coincidências. Como a prisão entra na minha vida?
P/2 - Melhor. Isso. Ainda bem que não é o contrário.
R - Então, não tem nada a ver com… É, isso. Por enquanto, também. Enfim...
P/2 - Como a prisão entra na sua vida?
R - É interessante, assim, toda essa história política já dá uma chance da gente pensar de que maneira essa sociedade arbitrária e autoritária… porque então essa minha veia anarquista está sempre gritando e esses conflitos estão sempre presentes. Então, o Estado é uma reflexão que eu tenho, o autoritarismo, as questões legais, enfim, está tudo aí sempre circulando, mas é de maneira muito aleatória que aparecem de fato as memórias dos cárceres. Então, na primeira eu estava lá na Secretaria da Cultura e me disseram que o arquivo do Estado ia receber o acervo do DOPS e que eu tinha sido designada para fazer parte, como historiadora, desse processo. Aí eu chego lá, me divirto a valer, quanto eles… mas as pessoas não sabiam da minha biografia anterior, quer dizer, é super coincidência eu estar na abertura do arquivos do DOPS, mesmo. Tinham pessoas lá que nunca tinham tido nenhuma, enfim, nenhuma reflexão sobre o movimento estudantil, nunca tinham participado tão ativamente, eram bem mais jovens, inclusive, nunca tinham estado de fato no movimento estudantil. Por incrível que pareça, tem muita gente que não estava no movimento estudantil, assim, até a minha formação universitária, as pessoas passaram sem entrar no centro acadêmico, sem entrar em uma discussão de UNE, ou UBES, ou que quer que seja, de verdade, mesmo. Hoje é muito mais atuante, hoje todo e qualquer estudante sabe o que é UNE, vai para a rua, é motivado, tem movimentos, enfim, hoje acho que é mais familiar, mas até a década de 90, não. É muito próximo ali, a reabertura política. Então, nesse momento eu vou trabalhar com a memória do DOPS, aí, depois da memória do DOPS, eu faço um projeto de… É interessante isso, também; durante o dia, eu trabalhava no DOPS e a noite, no Carandiru. Todos os meus amigos falavam assim “nossa, você gosta de uma cadeia, não é?”
P/2 - O que você fazia no Carandiru?
R - No Carandiru, eu dava aula, que é aqui, na escola, na ETEC Parque da Juventude.
P/2 - Que já estava?
R - É, e durante o dia, eu fazia o Catálogo Raisonné da Tarsila do Amaral, no que hoje é o Memorial da Resistência ou na Estação Pinacoteca. Estação Pinacoteca estava se estruturando e o projeto da Tarsila do Amaral estava acontecendo lá, então era DOPS e essas memórias, evidentemente. Lá a gente já estava pesquisando a implantação do Memorial, primeiro da Liberdade, hoje é da Resistência, a instituição que mudou de nome, e aqui o Memória Carandiru, então isso não teve pausa; as coisas aconteceram. E aí, o Juqueri entra no primeiro ano de pós-graduação em Museologia e eu vou para o MASP como estagiária. Era estágio obrigatório, eu escolho o MASP, tinham 2 vagas de estágio, vou eu e uma coleguinha, e aí a gente... Qual é o trabalho que a gente tem que desenvolver? O diretor era o Fábio Magalhães e o Pietro Maria Bardi. O Pietro Maria Bardi tinha intenção de fazer o Museu da Moda, é por isso que eu vou fazer Moda, inclusive, nesse momento para estudar moda, etc e tal. A gente trabalha com a catalogação do acervo de indumentária do MASP, que é oriundo do acervo da Rhodia, do acervo particular do próprio Bardi, década de 50, década de 20, tem um vestido que é do Salvador Dalí que acabou sendo comprado pelo Bardi. Então, eu estou catalogando os vestidinhos e fazendo a minha faculdadezinha de Moda. Aí chega um outro, umas caixas que estavam depositadas no MASP há muito tempo e que precisam ser catalogadas. Abre-se a coleção: é a coleção que o Osório César doa para o MASP. Desculpa. A gente vai catalogar a coleção do acervo de alienados. Eu fico envolvida, porque vai ter uma exposição, então nós começamos a trabalhar, também recebo, por exemplo, uma coleção do Toulouse-Lautrec, pelo qual eu me apaixono também e enfim. Voltando um pouco… Eu me interesso pelo Van Gogh por causa dessa coleção do Osório César que era a produção da Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri, então tudo aquilo era produzido por internos do Juqueri e de uma qualidade espantosa.
P/2 - Essa coleção?
R - Essa coleção. Então é uma das primeiras coleções, do primeiro ano de Museologia, e que eu volto a visualizar esse… No ano passado, em 2017, abre um edital no município de Franco da Rocha para trabalhar com o acervo do Juqueri, eu falo: “nossa, que coisa legal, não é?” Aí tem um aluno que mora em Franco da Rocha, - e que a gente descobre hoje que são quatro - e conversa com esse aluno, como é que é, vamos então fazer um projeto. É um edital público, a gente ganha concorrência para fazer um plano museológico e começa a se estruturar em 2017 o Museu de Arte Osório César com os objetos, com toda a produção artística então da ILAPE. Esse acervo que eu - são 100 obras - cataloguei lá em 1792, eu volto a pesquisar agora de novo.
P/2 - Está no MASP ainda?
R - Não. Aquela coleção sim, ela é doada pelo Osório César para o Bardi, porque ele qualifica a ideia do Osório César, não é uma ideia como, por exemplo, da Nise da Silveira. A Nise da Silveira é uma médica que vê na arteterapia uma evolução de uma doença, então ela vê como médica e isso tudo é uma produção ocasionada por um remédio que é a arteterapia. Para o Osório, não; essa manifestação é genuína e ela é um processo artístico daquele que a Nise chama de cliente - para ele é um artista. Então, Osório vê a produção do interno como uma produção artística, e é o viés que esse Museu de Arte está seguindo. Porque a ILAPI teve professores muito importantes: a Noêmia Mourão e a esposa do Milton da Costa, que é a Maria Leontina - desculpa, quase que eu esqueço -, elas vão dar aulas lá. A produção, ela é artística; os caras produzem arte. Não tem muito essa coisa da arteterapia ou um médico...
P/2 - Isso no Juqueri?
R - No Juqueri. Bem diferente, o objetivo da Nise da Silveira com o objetivo do Osório César. É muito diferente mesmo. Então aqui, enfim, o resultado é muito semelhante, lá tem uma visão que é o Museu das Imagens do Inconsciente dentro dessa ótica da medicina, da psiquiatria, na verdade, e como método, mesmo… dessocialização, enfim. Aqui, não; é produção artística, ponto. Tanto que as três últimas exposições com o acervo da ILAPE, que estavam no Juqueri - não é o acervo do MASP. O MASP fez uma exposição há 2 anos com essa coleção colocando como produção artística. O atual curador é um cara que trabalha no MASP, que é o Hélio. O SESC fez uma exposição dialogando essas obras com um outro tipo de arte que vamos classificar de arte acadêmica - só que não, não é? -, que é o Lasar Segall e outros artistas brasileiros que trabalham muito próximo dessa… O Lasar foi inserido na arte degenerada e durante muito tempo a arte do louco é considerada arte degenerada também. Aí, nós temos o Osório e são coisas incríveis, trabalhando, e o Mário de Andrade, e o Flávio de Carvalho também. O Flávio de Carvalho e o Osório César fazem o que vira a Semana - aliás, o que virou mês - da criança e do louco. Eles colocam desenhos infantis e também alguns artísticas plásticos. O próprio Flávio de Carvalho. É interessantíssimo isso, então aqui em São Paulo vai por essa ideia: é produção artística, sim, ponto, não cabe. A gente procura colocar um pouco do contexto da criação dentro dessa… principalmente porque nós trabalhamos - eu, né? E o grupo - com a memória do Carandiru, também do ponto de vista da produção artística, porque eles todos são artistas e a gente quer saber porque que dentro da prisão ou do manicômio, eles produzem coisas tão importantes. Por que será?
P/2 - Então, aí é que eu ia entrar, porque assim, você falou que fizeram um projeto aqui dentro do curso, para o Juqueri. Aí é um projeto de vocês.
R - Não, foi a Prefeitura que lançou esse edital, a gente ganhou, têm alunos que moram lá.
P/2 - Fora do curso?
R - Fora do curso, mas eu trouxe para o curso, porque comentando na classe: “ah, professora, a gente quer trabalhar lá, pode?” Pode. E aí tem um TCC que está rolando, que está trabalhando junto com a gente lá.
P/2 - Agora, você lá no Juqueri consegue ouvir pessoas que já viveram lá?
R - Ah, sim. Nós estamos fazendo nesse momento, o diagnóstico da região, na verdade. Tem um processo de Franco da Rocha de negar a história da existência. É muito dolorido para eles, mas a gente tenta reverter isso, porque a constituição da territorialidade se dá a partir da implantação desse complexo hospitalar. Lá nos primórdios, tudo que se conhece, a chegada do trem, a construção da usina termelétrica, quer dizer, toda a vila, que antes era Juqueri, e hoje são três municípios, - que é Franco da Rocha, Francisco Morato e Caieiras, e ainda tem Mairiporã, que faz parte também da fazenda Juqueri - então é um empreendimento essa fazenda, porque hoje são quatro municípios. Parte de um e três integrais. Então, nós trabalhamos exatamente com isso. Tem um educador que está trabalhando com a gente, que é bem legal, é o André lá da Casa das Rosas, que é de lá, mora lá; ele consegue entender que a população se apropria muito da questão ambiental do entorno. Então, tem os lagos, tem a mata atlântica, todo mundo ali está de alguma maneira vinculado a proteção desse patrimônio ambiental. Então, ele trabalha com esse viés. E tem uma outra questão, que é a produção… vamos dizer, o poder público imprime um conceito ali com o qual a gente está trabalhando, por exemplo: tem um lema da atual Prefeitura que é "de artista e louco, todos nós temos um pouco", é um slogan, e a presença ali do Juqueri justifica esse… E todo mundo meio que curte para caramba a ideia. Super legal. Nós vamos por esse viés, enfim, da quebra do preconceito em relação a anormalidade. Quem é normal e quem não é, não é mesmo? Bom, na minha história eu não sou a pessoa mais apropriada para dizer quem é normal e quem não. Essa é a reflexão que estamos fazendo lá, enfim. A gente enquanto educativo; a curadoria vai pela onda da produção artística, master blaster.
P/2 - Sim. Cecília, você falou: “eu me envolvi com manicômio”, já estou repetindo a pergunta. Tem alguma história nesses lugares ou nesses espaços que foi bastante marcante para você?
R - Ai, eu me divirto muito...
P/2 - ...ou uma história em cada lugar, mas que você viveu? Não que você ouviu.
R - Não, que eu vivi… Ah, não, não… Olha, duas coisas impactantes: quando eu vi o vídeo - é o que eu guardo de memória, porque eu me divirto muito com esses acervos, mesmo. Tudo é muito...
P/2 - O que é se divertir? Então fala isso.
R - Ah, me estimula, nossa. Que doideira. Que legal. Que incrível. Que uau. Uma coisa que é marcante para eu falar “gente, o que que é isso?”, é o vídeo da Maureen sobre a lavagem da escadaria do Carandiru no processo que os presos fazem, que é um ritual de água, que é religiosa mesmo, a coisa. Só que eles têm uma organização ali que é mais do que… enfim, é tribal, também, porque a gente vê o batuque, etc e tal, mas ninguém erra o passo, é uma organização impressionantemente fabulosa. Claro, obviamente, que quando a Maureen viu isso, falou: “oi? Que que é isso?”, é um ritual, de verdade, em que todo mundo sabe ali exatamente a sua posição, o seu procedimento. Tem o batuque, tem a água, tem a limpeza, e tudo eles fazem para um momento que é receber - a finalidade é linda, né? - o seu familiar. Então, eles são extremamente asseados, têm uma vaidade incrível, quer dizer, receber a família, o momento da visita, é uma coisa… ele tem que estar perfeito; tudo tem que estar perfeito. Nada pode falhar e é muito lindo ali dentro do convívio. Isso me impactou muito, o fato, o porquê foi bem interessante, mas o ritual, fiquei: “gente, que que é isso aqui que eu estou vendo?”. Isso foi muito incrível. Um outro fato também relacionado ao Memória Carandiru, foi o fato da gente ter ido para o Museu da Casa Brasileira, todo mundo super feliz e contente. Nós já tínhamos aqui muito diálogo a esse respeito educativo com a Maureen, de que maneira a gente aborda… O que a gente quer saber do ex-morador não é relativo ao crime dele, porque nós temos esse recorte antropológico que é aonde a gente se baseia. E aí, nós nunca tínhamos percebido um processo de contaminação. Lá no Museu da Casa Brasileira, está todo mundo super feliz e contente, etc e tal, educativo está lá, vibrando "Maureen" toda hora, todo mundo super… Aí chega - como aqui chega toda hora também - um ex-morador no Museu da Casa Brasileira, e fala: “olha, eu sou um ex-morador, queria deixar algum objeto, enfim", e todo mundo: “uau, não. Vamos conversar, vem aqui, você é muito importante para a gente. Vamos dialogar” e fica lá uma tarde toda com esse personagem dessa história e em um determinado momento "oi, nossa, brother, amigo, querido, super fofo", uma das meninas pergunta: “ah, mas e como você foi parar lá? Que crime você cometeu?” Tipo, que pizza você gosta mais? E ele responde: “ah, eu matei minha mulher, porque estava me traindo, enfim”. Um feminicídio. Imagina isso o que é para qualquer um de nós. Então, aí a moral vem de uma maneira brutal e aquilo que era seu objeto de estudo passa a ser o seu “nossa, você quer matar o cara, aquela coisa”. Enfim, é um conflito natural humano e destruiu completamente o projeto. Muito louco. Aí que eu percebi o que é contaminação de objeto, porque eu nunca trabalhei muito com química ou biologia, não é mesmo? Eu nunca tinha visto um objeto sendo contaminado. A gente perdeu completamente tudo; nós não estávamos, nem eu, nem o Marquinhos - era o Marquinhos que estava aqui no lugar onde hoje é da Nádia.
P/2 - Falando dessa contaminação, para detalhar um pouquinho mais: a pergunta que levou a isso...
R - É uma pergunta inadequada, mas ninguém tinha preparado nada. Para nós, era meio intuitivo, mas ninguém nunca tinha parado para pensar. Aí a gente falou: “É ciência, nós temos que ficar muito atentos, porque se não, tudo dá errado”. Agora, por exemplo, um lado bom: isso foi uma situação que realmente faz a gente parar para pensar em tudo que nós fazemos, que nós temos que prestar muita atenção. Nem sempre dá certo as coisas. Isso foi um retrocesso ali no processo, mas por outro lado apareceu lá uma advogada, adorada. Ela era Defensora Pública - adorada pelos moradores. Ela trata eles como presos, é paga pelo estado, mas eles são clientes dela e tal, ela tinha um diálogo absurdo, e a gente viu que a figura da advogada e da Rita Cadillac serviam como pontes para eles. E uma coisa que a Maureen discutiu lá no SESC com um grupo muito pequeno, foi quase uma revelação para ela. Falou assim: “nossa, não tinha pensado”. Foi uma revelação, e a gente também sentia isso, tanto no depoimento da Rita, quanto no depoimento dessa senhora, que é a doutora Regina, aposentada já há muito tempo; é que essas três mulheres, são veículos de voz. A Maureen, era importante para eles muito mais do que eles para ela, sem dúvida. Ela era o veículo de… "é uma maneira que vão escutar a minha voz", porque ela conta, nos depoimentos dela que levou um tempo para eles respeitarem o grupo, para a gente poder ser aceito, não é qualquer pessoa. A gente teve que articular, mas ela falou: “olha, em seis meses… tem gente que demora anos”. Tinha alguns indícios que nessa revelação dela, a gente, nossa, revelou o mundo. Eles entenderam que "poxa, essa mulher pode ajudar muito a gente a ser ouvido"; essas três mulheres, de verdade. A Rita Cadillac, a doutora Regina e a Maureen. Cada uma ali no seu ofício, fazia com que eles tivessem voz.
P/2 - Visibilidade, no caso da Rita Cadillac, por exemplo?
R - É, ela ouvia, ela mesma em vários depoimentos dela fala assim: “ah, eles me viam como uma terapeuta, uma mãe. Era comigo que eles se abriam e confessavam”. Eles davam voz a uma pessoa que pode escutá-los e pelo fato dela ser famosa, eles entendem que ela vai levar para o mundo lá fora a vivência deles aqui. Pode não ter sido intencional, e acredito que não, mas é quase uma necessidade que acaba se...
P/2 - Você quer perguntar? Você quer perguntar alguma coisa? É porque é um assunto que é muito rico nesse sentido de como é que você se relaciona. Quando você fala de contaminar um objeto, como você se relaciona. Como você contou para a gente duas histórias, tem mais alguma?
R - Eu não sou um morador, não tenho a mesma vivência do preso. Eu não vou chegar para ele, ele não é meu brother, ele não é, enfim, nem o Dexter que hoje é um artista assumidamente. E uma coisa que a Sofia também fala hoje, e ela vai poder… é assim: tem um distanciamento. Naquele momento, eu fazia parte de um projeto, então era o meu grupo de relação. Ali tem um outro envolvimento emocional do processo, vocês vão ver isso claramente. O André vem como jornalista e se envolve, a Maureen não, ela mantém um distanciamento, mas ela tem… ela vai pegando, constrói todo um arcabouço e coleta objetos e tal que hoje é a Memória do Carandiru do ponto de vista deles. Ela coleta deles, do ponto de vista antropológico e deixa disponível esse acervo para que nós possamos pesquisar. Então, ela sabe, metodologicamente, o que ela está fazendo, e nós trabalhamos dessa forma, nós não… É ciência, então a gente está distante, é um objeto de estudo, é um contexto bastante circunscrito com qual a gente trabalha em tempo e em pessoas, porque ela trabalha só no pavilhão cinco, tudo o que ela coleta é do pavilhão cinco, a gente está no pavilhão quatro, que tem uma outra memória, que é a memória do Drauzio Varella, porque aquela era a enfermaria, então a gente transita com outras pessoas importantes. O Drauzio, por exemplo, ele não tem… ele trabalha como médico aqui. Claro que o envolvimento profissional acaba, putz. Eu fico encantada com aquela manifestação que é quase ritualística, mas eu não tenho uma relação direta com aquilo. Talvez se eu tivesse tido um parente preso, se tivesse sido presa, eu teria um outro envolvimento.
P/2 - Isso. Fala que relação… é de trabalho? é do que a relação? Conceito memória.
R - De pesquisadora, sem dúvida nenhuma. Tem uma memória de ter morado aqui o tempo todo, então é uma vivência que eu tenho. Esse lugar não é desconectado da minha vida. Eu tomava metrô e durante a década de 80 inteira eu assistia a rebeliões, até o momento em que há uma rebelião que faz com que 111 pessoas sejam mortas. Isso é significativo, por causa da minha formação, então a que eu atribuo isso? À incompetência do Estado; é uma falta de política pública. É com isso que eu reflito junto aos alunos, por exemplo: um massacre não nasceu assim, ele não é uma ação isolada, ele é uma ausência de política pública de uma década e até hoje ele não está resolvido. E hoje, esse espaço ausente do Estado é ocupado pelas facções criminosas e há uma série de reflexões.
P/2 - Vocês fazem essa discussão aqui no curso?
R - Não; até certo ponto. Qual é a relação… Sim e não. A gente não atualizou essa discussão para o sistema, não nos importa a política pública carcerária, não é essa a história que nós contamos. Nós contamos da memória dessas pessoas aqui dentro. Sim, eles fazem reflexões, as mais diversas possíveis. A gente já teve um aluno aqui, inclusive hoje é formado em Direito - que fez o curso técnico antes disso, o Danilo - que reflete exatamente sobre isso: qual é a política pública para a área da segurança e da penitenciária durante a década de 80, para que aconteça em 92 esse… então, ele reflete profundamente sobre isso. Têm outros, por exemplo, que são projetos arquitetônicos; qual é o impacto da retirada dessa referência que é o presídio do Carandiru e a entrada de uma outra referência, que é um parque, com duas escolas, com biblioteca… que que é isso aqui na região. São várias reflexões.
P/2 - O curso faz essas reflexões?
R - Eles fazem, e a gente orienta. Nunca é uma coisa determinada, "olha, você vai fazer uma pesquisa sobre o bairro do Carandiru". Eles veem e eles... Às vezes, a gente até orienta, por exemplo, agora a gente vai apresentar algumas propostas, porque isso acontece também muito no curso. São museus, ou iniciativas, ou processos museológicos que nos procuram e falam: “olha, será que não dava para os alunos virem aqui e participarem?”. É bom para os alunos, a gente reconhece isso, e ótimo para essas instituições. Às vezes, são incipientes, às vezes é o Museu da Casa Brasileira, o Museu da Imigração. Toda hora a gente tem gente grande e gente pequena. Do ponto de vista de poder, mesmo.
P/2 - Cecília, você como coordenadora… Você hoje é coordenadora...
R - Sou.
P/2 - Você propõe - completando um pouco isso que você está falando -, você propõe que no curso de Museologia tenha sempre um trabalho relativo ao centro Memória Carandiru?
R - Não. Às vezes, a gente quer; às vezes, a gente tem uma necessidade específica e fala: “Oh, vamos ver se eles abraçam a ideia”, então se não abraçar, aí a gente tem que dar conta de outra forma. Por exemplo: a publicação. Nós fomos com essa ideia de várias reflexões sobre a história desse espaço que era um projeto que a Márcia Loduca, que é a diretora, trouxe para a ETEC: "Olha, a gente tem que fazer para o Memória Institucional, é um projeto do Centro Paula Souza sobre a memória do lugar das escolas". Várias escolas entraram. A gente entrou, então convidamos os alunos. Naquele semestre - ficou um ano e meio - eles produziram cinco ou seis projetos complementares sobre a história do presídio, do parque, dos cursos. Do bairro, enfim, já falei. Várias histórias que se complementam para construirmos uma pesquisa. Essa pesquisa ficou muito rica, só que descabeçada, porque são cinco projetos, e a gente imaginou no semestre seguinte fazer um livro. "Vamos fazer um livro? Vamos fazer um livro." Então, estamos trabalhando nessa perspectiva. Se a gente leva, como a gente já levou duas vezes, "Vamos fazer um livro?" Eles não gostaram. Duas vezes a gente já levou.
P/2 - E aí vocês respeitam?
R - Aí a gente tem que fazer. Os professores têm que fazer, porque identificamos que é importante, tal. E aí a gente faz no tempo que...
P/2 - ...mas vocês não impõem, né?
R - Não, não pode. Ish, se impuser...
P/2 - Cecília, nós temos duas perguntas agora e pronto. Temos de fechar, vai dar oito horas.
R - Está bom. Nossa, senhora.
P/2 - O que eu ia dizer? Em relação ao centro Memória, qual o desafio para você? Qual sua relação de vida com esse centro? O que você quer destacar?
R - O desafio é administrativo. Eu nunca tenho - isso é muito importante na minha biografia -, um envolvimento completo com nada que eu produzo. Eu acho que eu tenho uma passagem em tudo que eu fiz na vida: começo, meio e fim. Nada para mim é assim: "Ah, é meu projeto de vida, eu vou levar isso comigo até o fim do tempo", porque com isso você acaba se sentindo proprietário da coisa, e eu não tenho essa perspectiva. Eu nunca fiquei tanto tempo em um projeto. A escola é a única justificativa que eu consigo atribuir a estar há dez anos no mesmo lugar. Então eu olho… A Márcia está há 24 anos aqui e tal, e ela fala: “ah, parceira, você veio aqui comigo”; eu falo assim: “Márcia, se eu olhar para trás e falar eu estou há dez anos em um lugar, não é a realidade, porque assim, eu me sinto aqui muito pontual. Me importa daqui os projetos que a gente desenvolve”. Então, eu não sou uma funcionária do Centro Paula Souza que vai se aposentar como professora de… não. O projeto aqui, qual é o meu interesse? É formar profissionais da área de Museologia enquanto eu estiver podendo contribuir com isso. A gente ainda está nessa dinâmica? Está. Têm projetos que me interessam? Têm. Tem classe que enche para caramba e que eu não quero dar aula? Tem. Nesse momento eu sempre reflito: é momento de parar ou não? Aí vem um outro projeto que eu acabo abraçando e aí, enfim. Tem que ter mais prós do que contras para eu estar, mas eu sei que no momento em que eu achar que não é mais... que, pelo amor de Deus, outras pessoas têm que estar, eu… Com tranquilidade, não tem esse apego todo, não. Tem paixão.
P/2 - E com o centro Memória?
R - Isso é assim: igual. Tem um processo nisso, eu tenho muito de admiração pela Maureen nesse trajeto. Muitas vezes eu me pego falando “nossa, mas a Maureen tem que ver isso”, então eu corro contra o tempo. Ela tem que… então assim, eu estou no time dela. Me interessa completamente essa história, como eu disse, de novo: é uma coincidência; me interessa muito essa história, mas a Maureen é o elemento fundamental e que eu procuro preservar em toda essa dinâmica. E isso não acontece em quase nenhum outro projeto. É, eu acho que é única a presença da Maureen no projeto do Memória Carandiru, e ser uma pessoa que eu preciso assim, eu me sinto responsável por ajudá-la nessa empreitada, porque para mim, ela é realmente uma heroína… Toda construção dela.
P/2 - A minha pergunta é para tua vida. O centro Memória é… a intenção por enquanto é essa?
R - É um projeto que, hoje, por exemplo, eu já vejo muito próximo do fim da minha atuação com esse espaço. Se a gente conseguiu uma infraestrutura administrativa para ele, eu venho visitá-lo nas exposições, entendeu? Não tenho que ter nenhum tipo de protagonismo. Quando eu acabar essa missão, que é realmente deixar esse espaço de acesso público com uma equipe capacitada, eu estou longe. Agora, tem a Maureen, que tudo que ela precisar de mim, ela sempre terá; esse envolvimento, mas é pessoa, eu, Maureen. É meio única essa relação que a partir de um projeto, eu acabo abraçando uma pessoa que é um combo. Ela é um combinho. Tem idade, tem toda a história dela que você vai ver… todo mundo se apaixona pela Maureen, não sou só eu, também.
P/2 - Então ela e o centro têm essa...
R - Centro Paula Souza ou o Espaço Memória?
P/2 - Não, o centro… Desculpa, o Espaço Memória...
R - Ah, não, o projeto é dela. Claro, claro que tem relação, mas eu não estou com ela só pelo centro e nem estou no centro eternamente. Maureen, estará faltando e eu estarei aqui no lugar da Maureen - não. Não tenho essa ambição.
P/2 - E o que falta para você entender que fechou o ciclo para você?
R - Do Espaço Memória Carandiru é essa questão administrativa. É muito clara. Eu quero mesmo, em muito pouco tempo, deixar isso estruturado, porque têm prazos, também. A sociedade tem que, hoje a gente está com uma visibilidade boa, a Nádia é uma pessoa que coloca, que imprime, ela está com projetos muito mais avançados do que eu poderia ajudá-la, inclusive. Eu estou só mediando essa história. Claro que eu quero xingar muita gente que ainda não tem essa infraestrutura necessária; a gente precisa de uma equipe técnica para manter isso aberto. Não sou eu, não é a Pri, e pode não ser a Nádia se ela alçar outros voos - ela é muito jovem - mas temos que ter uma equipe para que esse espaço ande por si mesmo. Eu só me entendo como mediadora. Isso funcionando, o curso de Museologia, eu estando aqui ou não, pode, e deve, se utilizar desse espaço por espaço museológico dentro de uma escola que tem um curso técnico de Museologia. Se não tivesse esse espaço, nós teríamos outros museus para trabalhar, mas tem esse espaço, então o curso está perto. Mas não é um projeto "oh, vou me aposentar e morrer aqui no Carandiru", "Meu sangue, minhas cinzas serão jogadas", eu não tenho isso com nada.
P/2 - Só falando para fechar e depois a gente faz a última pergunta. Em relação aos manicômios, tem alguma história que foi impactante?
R - Ainda não.
P/2 - E o que te encanta, o que te fascina, o que que faz você pulsar?
R - A produção deles é do ponto de vista artístico. É difícil você conseguir compreender como uma pessoa, principalmente nas condições dos manicômios brasileiros, produz aquela qualidade artística mesmo, é o que realmente impressiona… Lá com a Nise, a gente tem - ai, esqueci o nome do crítico de arte que não é o Adriano Pedrosa, é o… Já, já eu lembro.
P/2 - Mas para você teve então...
R - … Mário Pedrosa, desculpa.
P/2 - Para você teve algumas obras, então, falando em obra ou história relativa a obra que continua presente para você?
R - É uma quantidade de obras muito grande. Quando a gente visualiza, eu, como museóloga, tenho uma coleção muito grande e nessa coleção nós vemos uma qualidade incrível, o suporte que é uma coisa interessante, talvez seja esse o ponto que eu mais pire nessa história. O suporte, por exemplo: eles pegam caixinha de chiclete; vamos pensar Arthur Bispo do Rosário, só que qualquer um deles utiliza do que tem disponível ali para fazer a sua produção. Então, têm uns que colam um monte de papel de bala ou caixinha de chiclete; tem um que é autor, que em diversas obras, o verso são caixinhas de Chiclete Adams colocadas umas às outras, e ele pinta em cima quando cola tudo umas nas outras, para ficar durinho, ele pinta do outro lado. Ele ou ela, eu nem sei se é autor ou autora. Muitos são anônimos pela própria questão do cárcere, também. Eles viram anônimos. O Osório César dava nome, por exemplo, J, P, que é ou a primeira letra do nome ou do sobrenome, então você nunca vai achar o cara. Vê que "P" pode ser Pedro, Paulo ou Pacheco, Pereira, enfim. Isso é o mais difícil, porque a gente quer realmente recuperar… eu quero. Nem sei como está o processo curatorial, porque a gente dialoga… eu sou a museóloga, mas o curador é um pesquisador...
P/2 - Como museóloga, para fechar, você tem ouvido algumas histórias de moradores do Juqueri?
R - Sim.
P/2 - E aí como que isso é importante?
R - Moradores de Franco da Rocha.
P/2 - Ah, okay.
R - Não temos nenhum, vamos chamar de louco, porque muitos falam: “é arte de louco”. Sobre essas denominações, conceitos, eu não consigo falar. Tem gente muito especializada que fala, eu me sinto uma… eu só absorvo.
P/2 - Mas você tem ouvido moradores, não do Juqueri.
R - Moradores de Franco da Rocha. Não. O cliente do Juqueri, aí eu me aproprio um pouco da Nise. São outras pessoas que estão fazendo isso, que são os curadores que dialogam entre a obra e o autor, porque não há… ao contrário lá do Nise da Silveira, os clientes continuam produzindo lá. Então, os clientes, vamos chamar assim, lá da Nise continuam produzindo.
P/2 - Aqui não?
R - Não, acabou na década de 70, em 80 já teve um museu, muita coisa foi perdida. Nós, na verdade, estamos com o que sobrou do acervo. É muito legal, é muito rico, as expressões são múltiplas e eu falei: “como lembra ser imagem do inconsciente de acordo com o Jung, e o curador fala: “que bobagem, é arte e acabou”. A Nise tinha um equívoco...
P/2 - A pegada é arte?
R - É arte. Tem uma expressão que a Nise usava naquelas coisas circulares das mandalas, que ela acha que é arquétipo isso, que está presente em toda e qualquer mente humana, não precisa ter tido nenhuma reminiscência. Têm escultores negros que fazem, a expressão da obra deles, e é muito arquétipo da sua ancestralidade. Eu piro, como é que pode ser? O cara nunca teve acesso, mas vai saber se nunca teve acesso, vai saber se ele não viu. O cara viveu a vida dele, como é que você diz que o cara nunca teve acesso à ancestralidade? Vai ver ele tem a intenção e você está viajando. De fato, eu não vou entrar nessa vibe.
P/2 - Você fez artes plásticas também?
R - Não, eu fiz especialização em artes plásticas, com arte contemporânea, fiz vários trabalhos nesse sentido.
P/2 - Nós vamos estar fechando...
R - Não sei desenhar uma casinha, você não identifica a minha casinha, é totalmente abstrata.
P/2 - Cecília, nós vamos estar fechando por hoje. Nós ficaríamos muito mais horas aqui, eu pelo menos. Eu não perguntei alguma coisa que você gostaria de deixar registrado?
R - A essa hora eu não sei mais, eu acho que não...
P/2 - Da sua história.
R - Se você quiser, você pergunta, mas não sei. O que eu não falei?
P/2 - Que você pensou em contar a história.
R - Meu filho. Eu não falei do meu filho.
P/2 - Você casou?
R - Não, nunca casei.
P/2 - Você mora com uma pessoa?
R - Não, já morei. Cada um tem uma casa. Recentemente, eu perdi minha mãe e eu estou em um processo de revisão de onde morar, com quem morar, para onde levar cachorro, reformar o banheiro ou mudar de casa. Eu tenho um irmão que mora há 15 anos fora do Brasil, já morou na China, agora está na Rússia e eu tenho um filho de 21 anos, que é uma paixão, é o cara que eu mais tenho orgulho no mundo. Ele está terminando Rádio tv, é um cara super envolvido com questões sensíveis, eu acho que foi uma dádiva ter tido ele como filho. Eu tive sem a menor pretensão de ser mãe, porque achava que eu mal dava conta da minha existência, dar conta de outro... nunca tive nem animal de estimação para justamente não ter que lidar com a ausência de gente. Eu deixei o cara cinco dias sem beber água, sempre foi uma preocupação minha, porque meu envolvimento é muito grande com um monte de coisa ao mesmo tempo, sempre me senti irresponsável para ser mãe e acho que foi um irresponsabilidade ter tido filho, mas deu certo, ele está bem, está nutridinho, está bonito.
P/2 - Como ele se chama?
R - Arthur. Ele é uma figura.
P/2 - Você chegou a morar com alguém, ser companheira?
R - A minha história com o Sérgio, que é o pai do Arthur é muito assim, nós ficávamos junto um tempo e cada um ia morar em um planeta. Quando eu fiquei grávida, estava no interior, em Piracicaba. Eu voltei para São Paulo, porque fiquei grávida. Fiz o inverso porque eu queria ficar perto da minha mãe. Na verdade, hoje eu me arrependo, porque a vida no interior é o meu objetivo, eu quero voltar para lá, mas o Arthur é urbano, ele é de cimento e concreto e eu já sou de terra, aquela coisa da lama ainda está na pele, adoro mexer com terra, adoro ficar suja de terra. Eu substituo a terra pela sujeira dos objetos, eu gosto da sujeirinha, brincadeira, mas o interior me agrada muito.
P/2 - Você veio para São Paulo para ficar e aí ele nasceu aqui?
R - Sim, e ele ficou, foi ficando. Nós ficamos juntos - eu e o Sérgio - um tempinho, depois disso meu irmão foi viajar e eu voltei para a casa da minha mãe. Depois, nós fomos para um apartamento e ele para outro apartamento, as coisas vão rolando, mas ele é o meu companheiro da vida, é interessante isso...
P/2 - Até hoje?
R - Até hoje, nós não passamos três horas sem nos falar, nem um dia...
P/2 - Vocês namoram ainda?
R - Não sei se é namorar, nós somos irmãos, uma longa carreira que nós temos de parceria, ele é meu sócio, inclusive, nessa questão administrativa. O Arthur transita super bem nessa história, ele mora comigo... eu não sei se ele ainda está morando comigo, faz tempo que eu não vejo ele, acho que ele está morando com o pai ou sozinho.
P/2 - É naquela casa que vocês desciam que vocês moram ainda?
R - Não, imagina, agora tem um prédio lá, ficou só a igreja, mas eu trabalhei coincidentemente também, a Priscila trabalhou comigo na memória dos salesianos no Brasil e eu vi umas fotos da colônia como era, quando o meu avô veio para cá, foi legal. Uma das casas fica lá pertinho, dois quarteirões de onde hoje é um prédio que era a casa da minha avó. Meu primo mora em frente, ele criou raízes ali, nunca saiu dali. Se a casa é comprada para construir o prédio, ele compra a do lado, é muito louco, o Paulo é o zelador da rua, chama Rua Igapira, que é a nossa infância... não tem mais humor, nós vemos o estacionamento construído… agora já é outra vida.
P/2 - Muito bem. Agora vocês estão, você e o seu filho?
R - Nós estamos. Ele está procurando o caminho dele, é muito difícil, eu reconheço que hoje em dia.. Para mim, foi bem mais fácil na idade dele, as coisas profissionais, os caminhos, até viagens eram muito mais simples, hoje é tudo muito voraz, muita concorrência, muito impedimento, muita gente no mundo.
P/2 - Cecília, querida, nós vamos terminar com a pergunta de sempre: o que você achou desse momento, de como você foi perguntada? O que você achou de contar a história dessa forma?
R - Eu acho super legal sempre lembrar tudo, são novas reflexões e nunca é igual. Em vários momentos eu tive que falar da minha vida, com menos perguntas é verdade, mas é legal porque você acaba explorando alguma coisa que você não estava pensando em falar. É sempre uma nova história, eu acho que daqui a dois meses se nós voltarmos a falar, vai ser uma outra vida que eu vou te contar. Eu tenho essa impressão de que o relato é o relato daquele momento. Hoje por exemplo, eu vim com expectativa de falar muito mais das questões políticas mesmo, porque eu estou me sentindo nessa reflexão, "o que aconteceu com esse país? Onde é que eu morava nos últimos 30 anos?" Esse teor foi mais importante. Talvez, se eu estivesse falando sobre a minha mãe, próximo a morte dela, eu daria um outro depoimento, mas isso também é uma reflexão que eu faço, porque nós trabalhamos também com essas coletas e sabemos que naquele momento, naquele dia, aquela pessoa está falando sobre aquilo, porque ela está afim de falar sobre aquilo. Isso é muito respeitoso da pessoa com quem nós estamos coletando os depoimentos, é muito legal. Você fez eu elaborar sobre outras coisas que eu não estava pensando em falar, por exemplo, das minhas descidas de morro, têm fotos do morro.
P/2 - Eu gostei das festas punks.
R - As festas eram demais, mas não eram festas punks, eram festas universitárias que os punks estavam presentes, eram festas da PUC...
P/2 - Bom corrigir.
R - … não, festa punk era bem diferente. A proximidade com essa vivência de rua, eu não gosto de chamar de gangue, porque eles tinham uma outra perspectiva com a cidade, tanto que eu me trato como eles, me coloco um pouco diferente. Embora convivesse com a maior parte, eu tinha uma outra vivência, era uma universitária, classe média, com comida, trabalhava mas tinha um respaldo da família, eu não era operária. Nessa época de movimento eu tinha muitos amigos de movimentos sindicais. O sindicato dos gráficos tinha muito punk, sindicato do metroviários, e todos ativos, embora anarquistas trabalhavam com sindicato, mas não era festa punk.
P/2 - Está vendo só.
R - Os punks da periferia do Gilberto Gil parecem uma ilustração apenas do que era real. Era muito dramático também, porque a grande maioria morreu de Aids na década de 80, eu conto rapidamente uns trinta, quarenta amigos. Eu era monogâmica, já tinha uma relação que era desde os 16 anos, um namorado só. Eu tive poucos namorados. Muitas paixões, mas poucos namorados, até hoje eu tenho paixão.
P/2 - Você disse que o Sérgio era seu namorado desde os 16 anos?
R - Dezessete.
P/2 - Mas teve outras paixões?
R - Sim, mas não é ser vivo. Se está vivo, está longe, é inacessível.
P/2 - Você falou que quando conheceu o Sérgio você tinha 16 anos?
R - Dezessete.
P/2 - Como foi?
R - Nós estávamos já no movimento e eu fiz dezoito 3 dias depois que eu conheci o Sérgio, foi dia 8 de fevereiro. No carnaval, dias antes, eu tinha ido para uma festa com uma amiga em comum e eu lembro bem, nós estávamos tomando um whisky, ele pediu um gole e eu fiquei apaixonada por ele. Essa minha amiga namorava um cara do grupo do Sérgio, um grupo da zona Sul que vinha poucas vezes para Santana, punks todos. Era uma festa, nós estávamos bebendo, ele pediu um gole e a Mari que era a minha amiga, namorava um amigo dele. Não rolava mais de eu sair com esse grupo, porque eu tinha o meu grupo de Perdizes, trabalhava, estudava, aquela coisa toda, tinha os movimentos, enfim. Eu fui para Trindade nesse verão seguinte, são uns seis, sete meses, é bastante isso, eu fui e a Mari ia com o Sasa. Eu fui antes, estava namorando com alguém que eu não lembro quem. Eu e duas amigas estávamos fazendo comida e chegou uma, nós chamamos de banca, chega uma pessoa toda enlameada, porque tinha chovido para caramba...
P/2 - O que é banca?
R - Banca é um grupo de punks, é a expressão deles. Chegaram todos sujos, porque o trajeto para Trindade era uns sete quilômetros de andar a pé com lama até o joelho, aliás, tinha gente que atolava para sempre lá. Chegou esse grupo todo enlameado e eu estava fazendo comida com duas amigas nessa casa que estávamos, e chega uma pessoa para falar comigo, eu estava descascando mandioca, não me esqueço, ele falou: você é a menina do whisky? Eu falei: você por aqui. E nós ficamos juntos e namoramos bastante tempo. Depois de muitos anos, cada um tem a sua vida, ele fez jornalismo e depois se formou em biblioteconomia, não terminou jornalismo. É um cara que escreve muito bem, inclusive.
P/2 - O que você se apaixonou nele? O que fez você se apaixonar à primeira vista?
R - Ele era lindo, ele é lindo até hoje, está mais gordinho agora. Mas foi porque ele era bonito, muito belo, se destacava bastante e foi a minha única paixão na vida se for ver, quantos anos faz isso? Trinta e dois anos. Eu não posso falar isso para ele, ele vai embora do país, mas eu acho que ele teve outras paixões, nós não entramos muito nessa história.
P/2 - Importante que para você foi, Cecília.
R - Foi, honestamente.
P/2 - Muito bem, fechamos com uma história de amor, muito legal.
R - Muito legal e que tem esse fruto que é muito interessante também, o Arthur. Agora nós temos o cachorro da minha mãe, que é da família e nós temos que dividir as ações.
P/2 - Cecília, parabéns pela tua história...
R - Obrigada.
P/2 - ...riquíssima, como eu te falei, eu continuaria aqui ouvindo, perguntando isso e aquilo. Obrigada.
R - Não, obrigada você, de ter podido falar de mim tanto assim, é raro nós falarmos de nós.
[03:18:06]
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