P/1 – Primeiro obrigado pela sua presença e pelo tempo, obrigado mesmo. Você me fala o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R – Meu nome é Wanderley Rodak, eu nasci no dia primeiro de abril de 1959 no bairro do Brás.
P/1 – No bairro do Brás.
R – Nasci no Brás.
P/1 – O...Continuar leitura
P/1 – Primeiro obrigado pela sua presença e pelo tempo, obrigado mesmo. Você me fala o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R – Meu nome é Wanderley Rodak, eu nasci no dia primeiro de abril de 1959 no bairro do Brás.
P/1 – No bairro do Brás.
R – Nasci no Brás.
P/1 – Onde no Brás você nasceu?
R – Eu nasci numa rua chamada rua Capitão Faustino de Lima, que é uma rua paralela à rua da Figueira, fica entre a rua da Figueira e a rua Carneiro Leão.
P/1 – Você nasceu no hospital?
R – Eu nasci no hospital, ali na Brigadeiro Luiz Antônio, mas minha família sempre morou no Brás. Então eu nasci no Bixiga mas só no hospital porque me criei no Brás, né?
P/1 – Entendi. Fala pra mim o nome do seu pai, local e data de nascimento dele, se você se lembrar.
R – Sim. Meu pai se chamava João Rodak, ele nasceu em Beirute, no Líbano, no dia 29 de setembro de 1925.
P/1 – Nasceu em Beirute.
R – Em Beirute.
P/1 – E como era lá? Ele falou para você como era o país, como foi a infância dele?
R – Então, o meu pai era uma pessoa bem divertida e ele veio com três anos pra morar aqui no Brás. E ele só nasceu em Beirute porque o meu avô era da República da Moldávia, do principado da Moldávia na verdade, e a minha avó era da Armênia. Então ele só nasceu lá por uma circunstância e veio com três anos morar no Brás, numa rua que só morava napolitano. Então meu pai, se você conversasse com ele, você pensava que estava falando com um italiano porque ele era um napolitano, pouco falava o árabe, falava mais italiano do que o árabe.
P/1 – E como é essa história do seu avô e da sua avó? Foi uma circunstância porque eles andavam muito pelo Oriente Médio?
R – A família da minha avó foi dizimada pelo império turco em Yerevan, na Armênia, e ela ficou sozinha no mundo. Ela estava no campo, era criança, quando ela voltou a casa dela tinha sido incendiada com os pais e os irmãos dentro. Porque eles eram católicos e os turcos, os otomanos, perseguiam os católicos. A minha avó ficou sozinha no mundo. O meu avô era do exército do czar. Quando o comunismo tomou conta da Rússia toda aquela região foi dominada pela União Soviética e ele também ficou sozinho no mundo porque a família dele foi toda dizimada ou perdida. Então, eram os dois sozinhos no mundo que se encontraram na Síria, da Síria foram pro Líbano e do Líbano vieram pro Brasil. Eles tinham intenção de ir pros Estados Unidos, mas não foi possível então eles fizeram a vida aqui, no Brasil.
P/1 – Qual é o nome do seu avô e da sua avó?
R – Meu avô chamava-se Yussef Rodak e a minha avó chamava-se Siranush Vardanyan.
P/1 – Vardanyan?
R – Vardanyan, que é dos doutores. Os Vardanyans são os doutores da Armênia. Eu não cheguei a conhecer a minha avó, meu avô sim, eu cheguei a conhecer. Ele era uma pessoa culta, falava mais do que uma língua, falava francês, o árabe e tinha uma cultura muito grande.
P/1 – Ah, é?
R – É, era uma pessoa culta.
P/1 – E fazia o quê?
R – Alfaiate. A profissão dele aqui porque ele chegou a ficar lá no exército mercenário na África, em Madagascar, e aí ele aprendeu francês, falava-se
francês. Então ele falava o francês fluentemente.
P/1 – Mas que história é essa do seu avô? Conta mais um pouco. Ele foi militar.
R – Ele foi militar porque ele já era militar na Moldávia, então eles defendiam o czar e tinham essa formação militar. E aí ele foi pro exército mercenário, se alistou no exército francês mercenário e de lá eles começaram a andar pelo mundo, né? Egito, ele sempre falava que ia no Egito, no Líbano, no Marrocos, então andava por todos aqueles lugares. E bem jovem, porque ele nasceu em 1900 e chegou aqui no Brasil em 1929, no dia 29 de janeiro de 1929. Então com 29 anos ele já tinha uma história muito comprida pra contar. Ele nunca mais viu pai, nunca mais viu mãe, nunca mais viu irmãos, tudo por conta de guerra, tudo por conta do comunismo, ele nunca mais viu ninguém. Então resolveram fazer uma história nova aqui no Brasil. E eu tinha uma tia também, irmã do meu pai. Então vieram os quatro pra cá, a minha tia e o meu pai que nasceram no Líbano, a minha avó na Armênia e o meu avô na Moldávia. Aí vieram morar no Brás, vieram morar nessa região do Brás bem em frente à igreja de Casaluce, onde só moravam os napolitanos. Que era impossível, pra eles acho que eles tinham pensado que eles tinham ido pra Itália (risos) porque era tudo italiano no Brás, todos eles eram italianos. Tinha os árabes, mas a maioria era tudo italiano, da década de 20, década de 30, eles eram todos italianos. A parte do meu pai é isso aí.
P/1 – E a parte da sua mãe, como é que é?
R – A parte da minha mãe, eles são italianos da alta Itália. Meu avô era de Bergamo, Giovanni Battista Vichi. E a minha avõ era da região do Vêneto, de Rovigo, Maria Trevisani. A minha mãe nasceu em Campinas, eram em nove irmãos e eles vieram pro Brasil pra trabalhar como imigrantes, trabalhar na terra. Vieram para uma chácara dos padres e depois se transferiram pra São Paulo, porque começou a industrialização em São Paulo e eles precisavam de mão de obra. E aí foram lá onde eles estavam e perguntavam: “Vocês querem trabalhar na indústria?”, claro né, não pensaram duas vezes, vieram pra São Paulo e vieram trabalhar na indústria.
P/1 – Mas por que claro?
R – Porque era alguma coisa que podia render um pouco mais de dinheiro. Porque você ficar trabalhando na terra você substituía a mão de obra escrava. Mesmo que você estivesse trabalhando, por exemplo, eles trabalhavam numa chácara que era dos padres, mas eles não podiam comer o que eles plantavam, então eles sofreram muito. Todas aquelas pessoas que vieram pra trabalhar na terra sofriam demais. Então existia uma perspectiva melhor, trabalhar na cidade, numa fábrica, progredir um pouco mais. Então meu avô, os irmãos, os meus tios, primos dos meus tios, eles vieram trabalhar numa fábrica chamada Fábrica Aliança, que fazia colher, garfo, era metalúrgica. Então aí houve um progresso pra eles, trabalhando na fábrica eles tiveram mais progresso.
P/1 – E a Aliança era onde?
R – A Aliança era no bairro do Jaçanã. E eles moravam em Santana. E todos juntos, todos juntos, tios, primos, moravam todos na mesma vila lá em Santana. A minha mãe trabalhava na rua São Caetano numa casa, era doméstica, menina ela já trabalhava numa casa de libaneses, família (Sbek? _0:09:43_), quando conheceu o meu pai, que o meu pai trabalhava também na rua São Caetano, então se encontraram lá, começaram a namorar, aí se casaram em 1950.
P/1 – Voltando um pouquinho, por que os pais da sua mãe saíram da Itália e vieram pro Brasil? Qual foi o motivo? Em que data eles chegaram aqui?
R – Mais ou menos assim, eles iam
e voltavam. O meu bisavô, a primeira vez que ele veio pro Brasil foi em 1894, Giovanni Vichi. Veio, ganhou um pouco de dinheiro aqui, voltou pra Itália. Então muitos tios, irmãos do meu avô nasceram aqui e alguns nasceram lá. Então tem brasileiros e italianos dentro da mesma casa. E aí eu acho que nos anos 30 vieram definitivamente pra cá. Vieram pra trabalhar como imigrantes na terra e lá pelo ano de 1940, mais ou menos, eles vieram pra São Paulo.
P/1 – E tanto a família do seu pai, como a da sua mãe, eles falaram pra você como era mais ou menos aqui, o Brás, São Paulo na época?
R – Ah sim. Minha mãe morou desde que casou e trabalhava aqui também, dizia que era um polo cultural muito grande porque tinha cinemas, tinha teatros, então não precisava ir pra nenhum outro lugar pra comprar alguma coisa porque o Brás sempre tinha tudo. Eles contavam que era uma época de romantismo, que as pessoas saíam nas ruas pra namorar, pra se conhecer, tinha uma atividade cultural muito grande, muitos cinemas existiam no Brás naquela época. Era o Parque Dom Pedro, era um parque que as pessoas vinham passear, era um parque que era o parque top de linha. Então não precisava ir longe, tinha tudo aqui. Eles falavam que no Brás tem tudo, não temos necessidade de ir pra outro lugar porque aqui tem tudo.
P/1 – E seus pais se conheceram, se casaram em 50?
R – Em 50.
P/1 – E eles foram morar onde, você sabe?
R – Nessa rua Capitão Faustino de Lima. A gente morava numa casa que meu avô tinha alfaiataria na frente e eles moravam nos outros cômodos, né? E do lado da casa tinha uma vila de casas, que chamava cortiço mas ninguém gostava de falar que morava no cortiço, morava no quintal, na vila. Mas era uma vila que morava só italiano.
P/1 – Só italiano.
R – Só italiano, não tinha... do lado da nossa casa era italiano, do outro lado era italiano, então a gente estava no meio dos italianos. Se falava só italiano naquele lugar.
P/1 – Ah, é?
R – É.
P/1 – Não falava português.
R – Pouca gente falava português (risos). E a gente aprendia primeiro o italiano pra depois aprender o português.
P/1 – Ah, é?
R – Como a gente ia se comunicar? Tinha que saber, pelo menos alguma palavra você tinha que saber. Naquele tempo também, a relação com os vizinhos era uma relação diferente de hoje, porque os vizinhos eram como se fossem parentes da gente, né? Tomava conta da gente, defendia a gente, sabe? Quando os pais saíam estavam sempre os vizinhos pra tomar conta, ninguém ficava sozinho, sempre tinha os vizinhos que tomavam conta.
P/1 – O pessoal fala que você tinha mais mãe do que qualquer coisa, né?
R – Tinha. E elas tinham autorização até pra bater na gente se fosse necessário, viu?
P/1 – Ah, é? (risos).
R – É. Defendiam a gente, tomavam conta da gente, às vezes os pais precisavam sair e a gente ficava lá na casa dos vizinhos, dormia lá. Era outro tipo de relação, né? Quando era tristeza todo mundo triste, mas quando era festa era uma festa, todo mundo participava da festa. Os primeiros a serem convidados ou não eram os vizinhos que estavam ali. Faziam aquelas festas no Natal principalmente, as festas de fim de ano, faziam uma mesa bem no meio do quintal, participava todo mundo. Quem tinha participava, quem não tinha participava também. Então era sempre uma família. As festas juninas. As festas de São Vito que fazia porque tinha muita gente de Polignano a Mare, ali de Bari, então eles festejavam o São Vito ali também, se fazia naquela vila, festejavam o santo com sardinhada, churrasco. Tudo era motivo de fazer festa, né? Tudo era motivo de festa.
P/1 – Essa vila, qual é o nome da rua dela?
R – Era na rua Capitão Faustino de Lima.
P/1 – Então essa vila estava lá também. Na rua da sua casa.
R – É, do lado de casa.
P/1 – Ah, entendi. E descreve como era a sua casa e como era essa loja do seu avô, essa alfaiateria.
R – O meu avô ele tinha essa alfaiateria, era numa sala. Que as casas eram assim, a formação então era um cômodo, outro cômodo, outro cômodo, outro cômodo, era um corredor que tinha os quartos de um lado e do outro. Por exemplo, pra você ir da sala na cozinha você tinha que passar no meio dos quartos, porque era uma porta, outra porta, era assim que funcionava. A alfaiataria do meu avô era na sala, né? E aí tinha os quartos, morava meu avô, a gente morava num quarto só, até chegar na oficina, que é onde se cortavam os tecidos para fazer os ternos, onde se passavam os ternos. Então, até o último cômodo era a oficina. Depois quando meu avô deixou de ser alfaiate, se aposentou, aí a gente foi ficando com os outros cômodos e a nossa casa acabou ficando todinha, a sala, os quartos, onde era a oficina foi feita a cozinha. E era engraçado que o banheiro era lá embaixo, lá no quintal, na vila. Os tanques de lavar roupa também eram lá na vila. Era uma coisa assim, a formação era uma coisa engraçada, né? Porque pra tomar banho você tinha que descer, vinha enrolado nas toalhas, no meio da vila. Se alguém puxasse a toalha você ficava pelado (risos).
P/1 – Isso acontecia? (risos)
R – Não lembro de acontecer, pode ser que tenha acontecido e eu não tenha visto. Mas era assim que funcionava porque os banheiros eram coletivos, eram dois, três banheiros coletivos.
P/1 – E imagino que pra pegar alguma coisa na oficina até trazer pra frente estava todo mundo sempre indo e voltando, é isso?
R – Sempre indo e voltando. E passava no meio dos quartos até chegar naquela sala.
P/1 – Tinha alguma privacidade?
R – Você acabava tendo, dava jeito de ter a privacidade, você acabava tendo. E eu morei nessa casa até os 27 anos. Então nós moramos bastante tempo nesse lugar, né? A nossa infância e juventude foi toda nesse lugar. Você acabava tendo, privacidade você acabava tendo sim.
P/1 – Entendi. E como é que foi crescer no Brás, nesse ambiente? Como eram as brincadeiras, como você cresceu?
R – Então, a gente não tinha muita informação do que acontecia fora do lugar que a gente morava, né? Você não tinha muita informação. Então a gente criava as brincadeiras. Ou que os pais da gente ensinavam, ou que os irmãos mais velhos da gente ensinavam, mas a gente na verdade criava as brincadeiras. Eu morava em frente à companhia de gás, que é a atual Comgás. Na companhia de gás tinha os engenheiros, às pessoas que tinham algum cargo a companhia cedia umas casas. E essas casas davam para um pátio da companhia de gás, então a gente tinha amizade com as crianças das casas, eram casarões muito grandes. O quintal dava pro pátio da companhia de gás. Então a nossa alegria era andar naquele pátio, subir as escadas e ir até, quando os guardas não estavam de olho a gente subia nos balões. Ia no lugar onde tinha uma serragem, a gente ia brincar, jogava bola e tinha um lugar que tinha uma serragem que parecia que tinha uma terra fofa, uma areia movediça, você ia brincar lá. Quando você saía daquele lugar você saía preto, você saía totalmente preto (risos), não tinha como não, né, quando a bola caía naquele lugar a gente ia voltar todo preto, com certeza. E ia apanhar em casa porque era uma coisa que não saía. Eles usavam pra fazer o gás, não sei o que era. Então a gente inventava as brincadeiras. Via uma árvore, a gente já colocava uma corda, já fazia um balanço, já ficava brigando pra saber quem ia sentar naquele balanço. Uma brincadeira, por exemplo, a gente ia brincar de esconde-esconde, não era coisinhas perto, a gente brincava de esconde-esconde de se esconder na outra rua (risos). Entrava dentro de uma vila pra se esconder, então uma brincadeira de esconde-esconde demorava horas (risos). A gente ficava até tarde na rua brincando, jogando bola era até tarde na rua, até os pais da gente chamar. Meu pai era assim, ele chegava na escada, aí ele assobiava. Se ele assobiasse duas vezes a gente ia apanhar porque não podia desobedecer. Aí a gente entrava, tudo, ia tomar banho gelado, que não tinha banho quente, era só banho gelado. Ia lá, tomava um banho gelado e ia pra cama dormir. Mas era obediência, a gente obedecia os pais. Não era medo, mas era obediência, você tinha que ter obediência. E essa rua que a gente morava era uma rua bem interessante porque tinha uma igrejinha que toda segunda-feira as pessoas iam acender vela pras almas. No muro da igreja assim, que ficava pra minha rua, toda segunda-feira as pessoas iam acender vela pras almas. Então ficava aquelas velas escorrendo. Quando chovia a gente ia pro outro lado da rua porque a gente ia ver as pessoas caírem. Que misturava água com vela, né, as pessoas viravam na esquina, desequilibravam, caíam. Então a nossa distração era aquela, ver os desavisados caírem. A gente era muito divertido, sempre arrumava alguma coisa pra estar brincando, fazer os carrinhos de rolimã, empinar pipa. Eu gostava de fazer as pipas, eu que fazia as pipas pra todo mundo, as minhas e pra todo mundo. Aí falavam: “Ah, mas você vai cobrar” “Mas por que cobrar? Não, é só trazer a folha de seda e o bambu e eu faço”.
P/1 – Você aprendeu com alguém?
R – A gente começa fazendo sozinho. Quando a pipa começa a pegar jeito de subir: “Ah, ele sabe fazer”, então eu que fazia pra todo mundo as pipas. E era engraçado, os meninos e as meninas empinavam as pipas (risos), todo mundo empinava pipa.
P/1 – Como é que era, qual é a graça de empinar pipa?
R – A gente vê o quadrado lá em cima e cada um tinha uma cor. Não tinha esse negócio: “Ah, vou derrubar”, a linha não tinha cortante, nem nada, então era só de quem colocava mais alto a pipa. Era alegria da gente. Parece uma coisa boba, né, você ficar empinando uma pipa. Mas era uma brincadeira sadia, desde que não encostasse nos fios era uma brincadeira sadia.
P/1 – Agora você também jogava bola também, né?
R – Sim.
P/1 – Você jogava na rua, onde é que era?
R – Nós jogávamos na rua e sempre a gente fazia uma rua contra outra.
P/1 – Como era isso?
R – Juntava um pessoal que morava numa rua, ou na imediação, e ia marcar jogo com o pessoal da outra rua.
P/1 – Era competição?
R – Às vezes criava rivalidade de sair briga. Mas no meu caso, eu não lembro de ter brigado por causa de jogo de futebol. A gente não tinha esse pensamento. A gente via às vezes os adultos brigarem por causa de jogo, mas a gente não, acho que a gente foi criado com o espírito mais ameno, de não brigar com ninguém. Jogava um contra o outro, ganhava, perdia, mas ficava, sempre que a gente saía ia tudo comer um pastel na pastelaria. Em todas as ruas que a gente ia tinha amizade.
P/1 – Mas vocês pegavam a bola, faziam a bola, como é que era? Chutava na rua mesmo.
R – A gente comprava a bola, fazia uma caixinha, aí comprava uma bola, ficava sempre na casa de alguém. A gente arrumava uniforme, um vai jogar de azul, o outro vai jogar de branco, o outro vai jogar de verde. Todo mundo aqui queria jogar de verde.
P/1 – Por quê?
R – Por causa do Palmeiras, a maioria era tudo palmeirense e todo mundo queria jogar de verde. Então era assim que a gente fazia. E a amizade, em todos os lugares que a gente ia, a gente tinha amizade. Mas a gente inventava as coisas, né? Você ia fazer um brinquedo, você inventava aquele brinquedo, porque a gente não tinha dinheiro pra comprar brinquedos sofisticados. Então, o que a gente fazia era inventar o carrinho de rolimã, eu ia brincar de um carrinho a gente mesmo ia na marcenaria e pegava aqueles tocos de madeira e fazia os brinquedos. A gente usava muito a cabeça pra fazer as coisas. Jogava dominó, dama, xadrez. Era a nossa alegria, a nossa satisfação era essa.
P/1 – Você era palmeirense nessa época?
R – Ah já, sempre fui. Sempre fui. Meu pai era palmeirense também, roxo, chefe da torcida.
P/1 – Chefe da torcida?
R – Meu pai foi o chefe da torcida do Palestra (risos).
P/1 – Ah, é?
R – É.
P/1 – Que ano que foi isso?
R – Ah, isso foi nos anos 30.
P/1 – Já nos anos 30?
R – É, 30 e pouco, 40. E ele era moleque, ele que ia falar com o Matarazzo, na Caetano Pinto essa rua que morava só os napolitanos, ia pedir os caminhões pro pessoal ir pro jogo. É, ia todo mundo no caminhão, pegava os caminhões e ia tudo, Pacaembu, no Palestra Itália. Ele era líder ali do pessoal. E não era italiano, hein? (risos). Não era italiano, mas era como se fosse.
P/1 – O que ele tinha que pedir pro Matarazzo? Ele estava lá no Brás.
R – A família, né? Os Matarazzo tinham uma metalúrgica nessa rua Caetano Pinto, esses napolitanos que moravam ali naquela região, trabalhavam tudo na metalúrgica. Aqui do lado da zona cerealista também tinha fábrica de tecidos, então todo esse pessoal que morava aqui nessa área da zona cerealista, os italianos daqui trabalhavam, as mulheres principalmente trabalhavam na tecelagem. Era um jeito de empregar as pessoas, as fábricas e do lado umas vilas operárias. Aí ele tinha os caminhões e eles iam pedir os caminhões pra levar o pessoal.
P/1 – Ele era patrão de muita gente, o Matarazzo.
R – Sim, nossa! Ele deu trabalho pra muitas pessoas, viu? Gente que conheceu mesmo o conde Matarazzo diz que ele era um patrão que... porque naquela época não tinha direitos trabalhistas e mesmo assim ele dava, as pessoas trabalhavam quase a vida inteira pra ele. E quando a pessoa não aguentava mais ele ajudava a pessoa, dava uma contribuição, uma indenização, pras pessoas poderem continuar vivendo. Então ele sabia reconhecer o trabalhador, não tinha sindicato, não tinha nada e
mesmo assim ele ajudava muita gente.
P/1 – E seu pai contava essas histórias pra você, contava do Palmeiras, do pessoal do caminhão, como era isso aí?
R – Ah, ele contava. Contava que chegava com o caminhão e aí: “Quem quer ir pro jogo?”, não sei o quê, “Quem vai?”, e lotava. E aqueles caminhões iam lotados de torcida do Palmeiras pro jogo. Ia mulher, todo mundo em cima do caminhão.
P/1 – Como é que era? Tinha muita disputa, era muita rivalidade nessa época já, ou era mais tranquilo?
R – O meu pai dizia que tinha rivalidade. Depois eu mesmo vivenciei isso, tinha a rivalidade. Mas se saía alguma briga era alguma discussão, um tapa, um soco e acabou, não tinha mais nada. E ele assistia o jogo em Santos, por exemplo, aí sim, tinha muita briga. Qualquer torcida que ia pra Santos sempre tinha muita briga lá, a torcida do Santos brigava muito. Mas aqui não, aqui tinha discussão e tal, mas não passava de um empurrão, de uma ofensa, era só isso, não tinha muita coisa muito grave, era só na base da discussão mesmo.
P/1 – E você ia pros jogos do Palmeiras já bem cedo?
R – Eu ia. O primeiro jogo que eu fui assistir foi em 1966.
P/1 – Tinha sete anos então.
R – Tinha sete anos. No Parque Antarctica, Palmeiras e Prudentina.
P/1 – Como é que foi?
R – Acho que foi quatro a zero pro Palmeiras.
P/1 – Você se lembra mais ou menos?
R – Eu lembro. Eu lembro que pra mim era tudo muito grande. Você está naquele estádio, tudo era muito grande, era tudo enorme, eu falava: “Meu Deus”. Você olhava praquilo e nem era tão, né? Mas você olhava, um lugar amplo, cheio de gente, com medo. Fiquei grudado com meu pai, não desgrudava, tinha medo de me perder do meu pai que era uma multidão. De lá pra cá nunca mais deixei de ir, sempre fui. Aí fiz parte da Torcida Uniformizada do Palmeiras. Depois fui presidente, de 80 a 85, daí vem o nome do Matheus, o apelido.
P/1 – Ah, é?
R – Então...
P/1 – Vamos chegar lá.
R – Vou chegar lá. Então comecei a participar, fiquei um bom tempo, até 1994 eu fiquei assistindo, indo em todos os jogos que eu podia.
P/1 – Hoje você não faz mais isso?
R – Hoje já não. Eu acho que tudo na nossa vida tem um começo, meio e fim, né? Não vou dizer que tem um fim, mas você acaba cansando. Eu vou mas não tenho aquele pique de ir em todos os jogos, aquele entusiasmo. Você tem outras coisas pra fazer às vezes, então, não me dedico totalmente pra fazer isso como eu fazia antigamente, né?
P/1 – Mas você ainda vê jogo, vai em estádio, tal?
R – Na medida do possível, mas não é todos os jogos. Vou com menos frequência do que ia.
P/1 – Na época quem eram seus ídolos do futebol? Do Palmeiras, ou do Brasil ou do mundo, pra quem vocês torciam pra caramba, quem vocês queriam ser?
R – A gente tinha um ídolo, o Ademir da Guia pro palmeirense era o maior jogador. A primeira vez que eu cheguei perto do Ademir da Guia, nossa senhora, uma emoção muito grande de ver aquela pessoa que era um craque e tão humilde. A humildade, a bondade dele, acaba você tendo uma pessoa como ídolo. E os jogadores da época de 70, que eu convivi mais indo assistir jogo. O Leão, que era um goleiro fenomenal. O César Maluco, Leivinha, Luís Pereira, o Chevrolet, Alfredo Mostarda. Aquele time da década de 70, da Segunda Academia, era difícil você não ter ele como um ídolo. Agora do mundo vários jogadores, Pelé, Maradona, Platini, foram jogadores que você admirava. O Cruyff, a Holanda toda que na década de 70 foi um carrossel maravilhoso. Era difícil, a gente era torcedor mas a gente era esportista também, sabia que no outro time tinha um jogador que, nossa. No São Paulo teve o Rocha. Jogadores que eram diferenciados, era difícil, você ia jogar, falava: “Nossa, aquele jogador vai dar trabalho porque ele é bom”. Você não tinha ofender ou xingar porque você ia lá também pra ver o adversário jogar.
P/1 – E você tinha figurinha, camisa, bandeira, essas coisas?
R – Tudo, tudo. Álbum de figurinha de futebol, nossa senhora, eu tinha todos, todos, todos. E era assim até quando era bem jovem e tudo e eu tinha, trabalhava tudo e juntava figurinha. Adorava colecionar figurinha de futebol, tinha tudo.
P/1 – Completava álbum.
R - Completava álbum, uma camisa do Palmeiras que saía já comprava porque eu tinha camisa, mas queria ter aquela que era nova. A camisa da torcida. Boné, cachecol. Era a distração, né? A gente gostava daquilo.
P/1 – E além disso, nessa infância você já andava bastante pelo Brás, onde que você andava? O que era legal fazer no Brás nessa época de infância?
R – Tinha muita coisa boa no Brás. Por causa da escola você acabava tendo amizade do grupo escolar, você acabava tendo amizade com outras pessoas que estudavam na escola, na sua classe, que morava em outras ruas. Então era gostoso você andar, conhecer, ver o que estava acontecendo, ir no cinema. Tinha o Cine Piratininga, que a gente ia muito. Então era gostoso. Você saía. Duas vezes por semana eu ia com a minha mãe no Mercadão.
P/1 – Ah é? Fazer o quê lá?
R – A minha mãe ia no Mercado da Cantareira comprar frutas, legumes, o hortifrutigranjeiro. No outro dia ia lá pra comprar peixe, fígado, carne. No Mercadão, já não era no Mercado da Cantareira, no Mercadão. E eu me lembro que no Mercadão era muito engraçado porque as pessoas que iam no Mercadão era a maioria italianos, porque no Mercadão não era um ponto turístico, mas era uma mercado que abastecia essa região aqui, a região central, os bairros centrais. Então a maioria italiana e as pessoas que iam no Mercadão parecia que era tudo italiano também, porque era uma gritaria, era uma gritaria que você saía de lá zonzo. Os que queriam vender, os que queriam comprar. Mas todo mundo falava alto e você ficava até tonto porque fala: “Meu Deus, que gritaria!”. Eu lembro que as lojas do Mercadão eram tudo de mármore, aquelas pedras de mármore, aquelas tábuas de cortar carne eram aquelas toras que eles cortavam as carnes. Aquele sangue escorrendo. Aquele cheiro de peixe, aquele cheiro de mar. E aquela gritaria, mas era uma coisa super divertida, em casa a gente brigava pra saber quem que ia. Como eu era o mais novo de casa a minha mãe sempre me levava. Então ia no hortifrutigranjeiro em um dia e no outro dia a gente ia no Mercadão. Era muito divertido.
P/1 – Você gostava mais do Cantareira ou do Mercadão?
R – Eu gostava mais do Mercadão. Porque o da Cantareira vendia as frutas, tinha um andar de cima que você subia e eu não subia nunca porque ficava tomando conta do carrinho embaixo porque minha mãe ia lá em cima, comprava alguma coisa e eu ficava com o carrinho de feira lá embaixo pra ajudá-la. Mas vendia galinha no Mercadão, tinha um lugar assim que vendia galinha viva.
P/1 – No Cantareira.
R – É, no Cantareira. E a minha mãe sempre comprava galinha naquele lugar. E matava, tinha sempre uma pessoa no quintal que matava a galinha. A gente não comprava galinha limpa, não tinha. Filé, não tinha. Ou você comprava a galinha viva ou você não comprava. Então você vinha com a galinha debaixo do braço. Nossa (risos) era divertido.
P/1 – Se fugisse a galinha...
R – Amarrava o pé da galinha pra ela não fugir. Amarrava ela no jornal e vinha com a galinha debaixo do braço. Era divertido. Depois ficava com aquela galinha lá: “Ah meu Deus, vai matar a galinha. Ai que dó porque vai matar a galinha” (risos). Mas era o que tinha, né? E era engraçado também que eu lembro quando eu era criança, que passava um senhor que vendia galinha, tinha o verdureiro que passava também, tinha o batateiro, vendedor de miúdos, fígado, miolo, bucho. E passava tudo na porta isso. Vendedor de pão.
P/1 – Leite também?
R – Leite. Passava tudo na porta, você tinha tudo ali na porta. Mas a gente ia no mercado também, porque era mais barato e você comprava coisa mais fresca, essa que era a questão, você está comprando uma coisa mais fresca.
P/1 – Eles passavam gritando, cantando?
R – Passavam gritanto, tocando corneta. Era o dia inteiro. À noite passava o cara que vendia algodão doce. O cara que vendia pizza! (risos) num tubo assim, aí ele abria o tubo e tinha a pizza lá, você comprava os brotinhos, vendedor de pizza quentinha. Era uma coisa. O cara que vendia sfogliatella doce. Era o dia inteiro gente gritando na rua. Era divertido, cara. Aquelas carroças com verdura, com fruta. O batateiro, a carroça dele era toda de ferro. Quando ele passava em cima das calçadas quebrava todas as calçadas, saía briga. Olha, não tinha como não deixar de se divertir. Ninguém descansava. Era o dia inteiro movimento.
P/1 – Acontecia coisa todo dia.
R – Todo dia tinha alguma coisa, alguma novidade. Todo dia acontecia uma novidade. E a gente torcia pra que fosse com a gente, né?
P/1 – Por quê?
R – Porque senão todo mundo vinha pra rua, vinha multidão, era isso. As brigas, confusões, a italianada. Até hoje fica na memória esse jeito de falar alto, de gritar, que você pensava que as pessoas estavam brigando. Às vezes eu estava jogando bola na rua, escutava uma gritaria na cozinha lá de casa, não sei o quê. “Ih, estão brigando” “Não esquenta, a minha mãe está falando com as minhas irmãs ou com as minhas tias (risos). Só estão conversando, ninguém está brigando”.
P/1 – Onde era esse mercado da Cantareira? Ele existe ainda?
R – Existe. É bem do lado, na rua da Cantareira mesmo. Tem o Mercadão, a rua da Cantareira, ele fica ali, acho que a entrada é pela rua da Cantareira e a outra rua é Barão de Duprat. Ali, naquela região mesmo.
P/1 – Andando pelo Brás você já tinha contato com o que a gente chama de zona cerealista? Rua Santa Rosa? Como era na época?
R – Então, a gente lembra assim, a zona cerealista era um lugar de venda a atacado, não tinha
a venda no varejo. Então só vinha pra zona cerealista os feirantes que iam comprar saco de farinha, um saco de arroz, saco de cebola, saco de feijão. A gente, não é igual hoje que você vai lá e tem os lugares que vendem ao varejo, era mais os depósitos pra venda no atacado. Zona cerealista até hoje você anda, ali é um cheiro muito estranho, um cheiro muito forte. Aqueles grãos que apodrecem. Então era estranho.
P/1 – Você criança não ia muito lá.
R – Não. A gente não ia na zona cerealista, ia direto lá de onde a gente morava pro Mercadão. A gente tinha muitos amigos da gente que moravam aqui, aí tinha amizade, você vinha, tal. Mas era muito difícil daquele lado que eu morava pra gente vir, pra zona cerealista, não porque era mais para o comércio atacadista, então você não tinha o que ver, não tinha nada.
P/1 – Você nem passava quando via os caminhões ou alguma coisa?
R – Era muito caminhão, aqueles caminhões que ficavam estacionados, você não tinha nem jeito de andar nas calçadas porque as calçadas eram estreitas, caminhões, você não tinha nem como atravessar a rua, os caminhões todos estacionados ali. E depois no final de semana que fechava tudo era uma região erma, não tinha nada.
P/1 – Jogava bola também lá ou não?
R – Tinha o pessoal do São Vito Futebol Clube que jogava, tal, mas nem eles jogavam por aqui também, era muito difícil ver o pessoal jogar bola. A área viva mesmo era do lado de lá, que era a área que eu morava ali, a área mais viva de moradias, de estar brincando na rua.
P/1 – Que é mais pro sul do Brás, descendo, né?
R – Sim, pertinho da estação Dom Pedro ali, entre a estação Dom Pedro e a estação Brás do metrô, ali acho que era um pouco mais movimentado.
P/1 – E por causa do seu avô eu imagino que você tenha mexido muito com tecido, né? Ou não?
R – Ah sim. Porque sempre que tinha uma encomenda, alguma coisa, tinha muita coisa. Em casa eu lembro que tinha muito tecido. Meu avô encomendava muito tecido importado pra fazer aqueles ternos, tudo. E ele era um alfaiate de mão cheia, era um bom alfaiate. Vinha muita gente ali pra trabalhar com ele. Só que assim, meu avô ganhava muito dinheiro, só que ele perdia muito porque ele bebia. Ele tinha o vício da bebida. Então acabava que ganhava, trabalhava bem, mas o que atrapalhava era a bebida.
P/1 – Mas por causa dele vocês frequentavam a parte do Brás que era mais voltada pro comércio de roupas, vestidos, você conhecia aquele lado?
R – A gente conhecia, a gente ia muito na 25 de março.
P/1 – Como é que era?
R – Então, aí era os árabes que tinham naquela época. Meu avô sempre trazia a gente também pra ir visitar os patrícios dele e tal. A gente ia comer esfirra, pão sírio. Ele conhecia todos os meandros de onde se fazia os pães, as esfirras. Meu avô era uma pessoa elegante, apesar de beber ele era uma pessoa elegante. Não bebia quando trabalhava. Então a gente ia muito na 25 de março pra comprar, visitar os patrícios dele. E era um jeito dele poder conversar porque ele falava o árabe, né? Eles eram da região da Bessarabia, então na Moldávia era uma região com a comunidade árabe. Então se falava bem o árabe, falava o russo, falava o francês, com quem ele encontrava ele conversava. Então a gente ia muito na 25 de março. Atravessava o Parque Dom Pedro, brincava um pouco, porque a gente ia pro Parque Dom Pedro pra brincar. E aí a gente ia pra 25.
P/1 – E já tinha o metrô lá, ou ainda era bonde, era ônibus, como é que era lá?
R – Olha, eu cheguei a andar de bonde, mas a gente andava muito a pé. Dificilmente a gente pegava um bonde, só se fosse para um outro bairro, aí a gente pegava bonde, mas a maioria das vezes a gente andava a pé. Ia pra Praça da Sé era a pé, do Brás até o centro da cidade a pé, ia e voltava a pé, ninguém pegava um carro, um bonde, um ônibus. Você entrava no ônibus você ficava com cheiro de óleo diesel, eu lembro, ficava aquele cheiro que entrava dentro aquela fumaça do ônibus. Meu Deus do céu, era uma coisa terrível.
P/1 – E o bonde também?
R – O bonde não. O bonde era mais limpo. A gente ia de bonde até o Parque Antarctica.
P/1 – Tinha bonde pra lá.
R – É. E no Cambuci às vezes tinha que ir alguma coisa e a gente ia de bonde.
P/1 – E era caro o bonde?
R – Não, não era caro. Era o preço da passagem acho que nos dias atuais. Não é saudosismo, mas era bonito o bonde, viu?
P/1 – Você achava?
R – Eu achava bonito. Podia até atrapalhar o trânsito, que nos dias de hoje não comporta, mas era bonito o bonde.
P/1 – Por que era bonito?
R – Eu achava, os bancos, era bonita a forma. São Paulo ficava com cara de uma cidade europeia com o bonde. Se a gente olhar São Paulo que cresceu desordenadamente, ela foi feita pra ser uma cidade europeia. No meio do caminho desistiram e falaram: “Não, vamos fazer uma cidade americana”. Ficou uma cidade sem... é linda a sua arquitetura, é linda a arquitetura de São Paulo mas ela é estranha porque é tudo misturado. Fizeram pra ser uma cidade europeia e depois queriam fazer uma cidade americana. No fim não ficou nem de um jeito e nem do outro.
P/1 – Explica melhor isso pra mim. O que você acha esse negócio de uma cidade europeia e depois americana. Quando foi isso, por que, quem faz isso?
R – Acho que no começo, fim dos 800 e início dos 900 se idealizou uma cidade: “Vamos criar uma cidade europeia no meio dos rios”. Se pudesse até usar os rios como meio de transporte. Depois lá pelos anos 30 resolveram: “Não, vamos mudar, vamos fazer uma cidade americana criando edifícios altos, muito vidro, sem beleza estética”. Porque se você olha os prédios antigos do centro da cidade, a arquitetura, é uma coisa maravilhosa. Era uma cidade europeia, uma cidade italiana, espanhola, portuguesa. Depois começaram a
levantar prédios de vidro, criar avenidas largas, esqueceram os rios, os rios viraram depósito de lixo, jogaram todo lixo pra dentro do rio. E aquilo que serviria pra meio de transporte fluvial se tornou um depósito de lixo. E esqueceram disso tudo, foram fazendo avenidas largas, criaram uma cidade pros carros, quiseram dar força pra indústria automobilística, fizeram a cidade ser uma cidade que tivesse fluxos. Se destruiu tanta coisa bonita através desse pensamento. Dos anos 30 até os anos 70 quanta coisa não foi destruída? Passavam por cima de tudo, edifícios históricos, não queriam nem saber, iam derrubando tudo. Você vê o próprio Brás. O Brás onde morava muita gente, onde existiam muitas casas, a desapropriação do metrô foi uma coisa vergonhosa na época do Paulo Maluf. Vergonhosa porque derrubou quilômetros de um lado e quilômetros do outro. Quanta gente que tinha sua casinha ali voltou a ter que pagar aluguel, porque o que eles pagaram foi uma vergonha pra se destruir tudo aquilo. Então muita coisa foi destruída, muita coisa foi jogada e muitas pessoas tiveram que mudar do Brás. Pessoas que nasceram aqui, pessoas que fizeram sua vida aqui foram obrigadas a sair de onde moravam, simplesmente porque resolveram que iam passar a linha do metrô. É bom? É. Os viadutos que foram construídos, rruquanta coisa que foi destruída. Edifícios históricos. Quando simplesmente você poderia fazer uma avenida que pudesse dar mais fluxo em cima de um rio, que pudesse atravessar um rio. “Não, vamos fazer um viaduto”. Mas quanto se gastou pra fazer isso, né? Quantas coisas foram superfaturadas pra se fazer isso? Ninguém fala nada. Mas nós aqui do Brás, nós sentimos tudo isso. Do fim dos anos 70 pros 80, 90, a população do Brás sumiu, sumiu, simplesmente sumiu. O Brás que era tão vivo, cheio de história, sumiu. Cadê aquelas pessoas? Se não morreram, tiveram que se mudar daqui. Então foi uma cidade que foi totalmente destruída; o bairro do Brás foi destruído.
P/1 – Como era esse bairro em 1890, como era isso?
R – O Brás foi um bairro que foi, quem morava no Brás? Eram chácaras. A cidade de São Paulo simbolizava só o centro da cidade, a Praça da Sé e as ruas adjacentes. Quando se deu a abolição da escravatura tiveram que chamar os imigrantes. “E onde nós vamos colocar esses imigrantes?” “Olha, eles vão ser obrigados a ficar ali, do lado esquerdo do rio Tamanduateí. E eles que não passem pra cá, pro centro”. Só que era tudo brejo, aquele lugar que tinha aquelas chácaras era tudo brejo. O que eles tiveram que fazer? Aterrar o bairro do Brás. Então contam que foram buscar terras nos morros da Mooca, chamaram-se os moradores do Pari, da chácara de Nicolau e de São Miguel Paulista pra vir aterrar o bairro do Brás. E ali se começou a lotear, a criar ruas, isso em 1880, 1890. Criaram ruas, pronto, aí se criaram as casas, logo veio a indústria e com a indústria mais trabalhadores, mais imigrantes. Só que esses imigrantes tinham que morar, né? Então vinham pra morar na casa de um parente, de um amigo, um indicava o outro pra vir morar na casa. Na década de 60 tinha mais italianos aqui do que em Roma. Tinha mais italianos e seus descendentes aqui do que em Roma. Existia gente aqui, lógico, de outras nacionalidades, mas a maioria era de italianos, que construíram isso. Quando as autoridades perceberam que estava se formando um gueto e que logo esse gueto estaria comandando a cidade com seus direitos eleitorais, então eles resolveram: “Os imigrantes podem morar onde eles quiserem, não precisam ficar confinados a morar e trabalhar no bairro do Brás”. Mas o progresso de São Paulo passou todo pelo Brás. O que o Brás começou a arrecadar com o comércio, com a indústria, com tudo aquilo que tinha, passava tudo por aqui, passava tudo por aqui. E até hoje é isso, né? As pessoas vêm de fora pra comprar aqui, pra se estabelecer aqui e comprar aqui. Os imigrantes, os novos imigrantes vêm pra cá também. Um bairro que está perto de tudo e um bairro que tem tudo, tem tudo. Então é importante a gente lembrar essa transformação que houve, quer dizer, era um bairro que tinha tudo, culturalmente inclusive, um bairro que tinha uma cultura de cinemas, teatros, que poderia ser tudo mantido, mas foi esquecido, foi esquecido. Você olha hoje o Brás não tem um hospital, o Brás não tem uma delegacia, fica um bairro dormitório, que as pessoas só vêm pra dormir e vão trabalhar. E onde estão essas pessoas do Brás? Às vezes eu digo assim: “Mas cadê aquela gente do Brás? Que você andava”. Morreram, muitos morreram. E nas associações você vai encontrar essas pessoas, esses italianos, esses filhos de italianos, filhos de imigrantes. Nas igrejas, nas comunidades você vai encontrar essa gente. É que ficou reduzido a isso.
P/1 – Agora fala um pouquinho mais dessa parte cultural do Brás. Tem muito a ver com os italianos, mas também tem outras pessoas, outros imigrantes. Imagino que tenha sido um caldo bem forte aqui nessa época.
R – É que você não tinha muito pra onde ir, na verdade. Então era necessário se criar, você tinha necessidade de criar um lugar onde as pessoas pudessem se divertir, então que criou? Muitos cinemas. Aqui tinha o maior cinema da América do Sul, o Cine Piratininga. Tinha o Cine Universo que nos dias de calor abria o teto e você ficava em um cinema ao ar livre.
P/1 – De noite?
R – À noite. Fica ao ar livre. E se criavam cinemas. O Teatro Colombo que foi incediado criminalmente em 1966, porque as companhias italianas que vinham pra cá não queriam ir para o Teatro Municipal, queriam se apresentar no Brás. Porque aqui estavam os italianos; Teatro Municipal era pra elite, não era uma coisa popular. Aqui era coisa pros operários, que faziam as coisas pra gente operária, pra gente trabalhadora, então tinha o Cine Teatro Colombo. Foi incendiado criminalmente. Então as pessoas sentiam e não precisam ir para lugar nenhum, o Brás era uma cidade.
P/1 – Independente.
R – Independente. Era um lugar independente. A gente não tinha informação de televisão, tinha televisão, mas não tinha essa informação que acontecia nos outros lugares. Então a gente que fazia a nossa história aqui.
P/1 – Fala pra mim como era esse Cine Piratininga. Você ia muito nele, que filmes você assistia lá?
R – Ah, sempre as comédias. Minha mãe era uma pessoa que gostava muito de cultura. Minha mãe gostava muito de levar a gente no cinema, no teatro e no circo. No largo da Concórdia, depois que destruiu o Teatro Colombo sempre tinha um circo e minha mãe sempre levava a gente no circo, sabe, minha mãe gostava de dar cultura pra gente. Ela não era uma pessoa que tinha muito estudo, mas ela gostava de levar a gente nas coisas culturais, de levar a gente pra brincar, levar a gente no Parque Dom Pedro, no cinema, sempre tinha uma comédia, alguma coisa e minha mãe sempre levava a gente pra assistir.
P/1 – Vocês gostavam?
R – Ah, muito, nossa senhora, a gente adorava, viu? Gostava muito. Tomar um café depois lá na Confeitaria Guarani que tinha lá na Rangel Pestana. Então era cultura mesmo, acho que isso vem um pouco do italiano. Italiano gosta disso, música, teatro. A gente gostava muito. E geralmente as coisas eram, ou era muito barato ou era de graça, você não tinha custo quase com isso. A gente era criança, não se pagava muito. Ia muito. Carnaval, nossa! Quantos bailes de carnaval quando eu era criança, as matinês que a gente ia no Palmeiras, no sindicato. Ninguém deixava de se divertir, todo mundo se divertia, com muito pouco se divertia muito.
P/1 – Você se lembra de alguma peça ou algum filme que te marcaram mais na sua infância ou adolescência, que você assistiu lá?
R – Olha, eu lembro que a gente assistiu a todos os filmes do Mazzaropi, a todos os filmes do Mazzaropi. A avant-première do Mazzaropi sempre era no Cine Piratininga. Os filmes do Mazzaropi, passava aqueles filmes de O Gordo e o Magro, era aquelas coisas que a gente ia, você assistia umas duas vezes, ou três no cinema. Aquele cinema enorme, lotado, ia muita gente que sentava até no chão. Era muita gente que ia.
P/1 – Quantas cadeiras, mais ou menos, tinha, você sabe?
R – Não lembro, a capacidade eu não lembro.
P/1 – Mas era grande.
R – Era grande. O Roberto Carlos fazia o show dele sempre ali. O show do ano do Roberto Carlos era feito no Cine Piratininga.
P/1 – Ah, é?
R – Porque ele era o maior lugar de eventos que tinha.
P/1 – E ele fechou?
R – Ele faliu e foi abandonado, até se fazia um estacionamento lá.
P/1 – Foi demolido.
R – Foi demolido. Ficava embaixo de um prédio. Demolido ele não foi porque a estrutura até que está lá, aí tiraram todas as cadeiras, tiraram tudo o que tinha. E era bonito demais, era lindo. E aí fizeram estacionamento ali. Mas era muito chique, era muito bonito. E a gente ia também no cine lá do centro, no Ipiranga, no Marabá. Passava aqueles desenhos, Branca de Neve, Pinóquio, a gente não deixava de ir. Super-Homem, Batman, ia assistir a todos esses filmes aí. Não filmes românticos, mais filmes comédia e desenho que a gente ia.
P/1 – E como eram esses bailes do Palmeiras que você falou? Esse você era mais jovem.
R – A gente era criança e ia na matinê, era no salão de festas do Palmeiras.
P/1 – No Parque Antarctica.
R – No Parque Antárctica. Era um que você descia e era aquele baile, se reunia toda criançada. Mas enchia, ficava lotado. E até música italiana tocava no baile de carnaval, que a maioria era de italiano (risos). Ah, não deixava de ir, não. Minha mãe gostava de levar a gente pra se divertir, pra brincar. E ela sempre falava: “Você aproveita a vida, do melhor modo possível você vai aproveitar a vida. Porque ela é muito passageira, então temos que aproveitar cada minuto. Tem oportunidade de ir num lugar? Vai. Vai, se diverte, não deixa de se divertir, não, aproveita. Aproveita a vida. Ajuda as pessoas”. Isso foi uma coisa que minha mãe sempre ensinou: “Seja sempre voluntário, ajude desinteressadamente. Se tiver alguma coisa que a gente possa fazer, é da nossa raça, é da nossa gente, procura ajudar”. Então desde criança, que eu me entendo como gente, sempre fui voluntário, sempre, nas associações, nas festas italianas, sempre que eu pude ajudar eu sempre ajudei.
P/1 – Como era o carnaval aqui no Brás? Onde que era, como que era, você lembra?
R – No tempo do meu pai diz que tinha corso, né? Eu não lembro, mas ele falava que sempre tinha corso, que vinha lá da Penha os carros antigos com as pessoas em cima e disse que ficava tanta serpentina e confete na avenida Rangel Pestana que os carros quase que não podiam passar, de tanta festa que era. E todo mundo colocava suas cadeiras na avenida pra ver os corsos passarem, era tradição. E todo mundo arrumava um jeito de arrumar uma fantasia. Eu lembro quando eu era criança que a gente ia nos salões, mas sempre tinha que ter uma fantasia, sempre ia fantasiado. Os meninos vestidos de meninas, as meninas vestidas de meninos, era aquela farra no meio da rua.
P/1 – Você me falou uma história de que as pessoas que morreram no Brás, antes de você nascer até, não podiam ser enterradas no Brás. Como era essa história?
R – Ah, isso assim, as pessoas quando morriam eram enterradas do lado das igrejas, não tinha cemitério público, então as pessoas eram enterradas do lado das igrejas. Por que enterravam do lado das igrejas? Porque as pessoas queriam estar no campo santo, quanto mais perto da igreja, mais o campo era santo, então se enterrava em volta das igrejas, quando não dentro da própria igreja. A população não era grande, então até se podia pensar nisso. Em 1850 e pouco a Marquesa de Santos deu um terreno pra ser fazer o cemitério da Consolação. Então ali foi o primeiro cemitério público e era para se enterrar os pobres naquele lugar. Só que era o único cemitério público, então as autoridades, as pessoas que tinham dinheiro ou não eram enterradas na Consolação. Agora você imagina que existia aqui no Brás um mundo de imigrantes, mesmo que não fossem muitos, mas eram pessoas imigrantes. Morriam e não podiam mais ser enterrados nas igrejas e tinha que levar o corpo, depois de 24 horas que a pessoa tinha morrido, de carroça até a Consolação, a pé. A carroça ia na frente e as pessoas a pé até a Consolação. Quanto tempo não daria? Quando chegava lá o corpo já estava em putrefação, já estava em estado de decomposição. E as pessoas cansadas porque ia e depois tinha que voltar a pé. Então dizem que fizeram um protesto que tinha que fazer um cemitério no Brás. E aí foi cedida a área da Quarta Parada, que era Brás, né? Até hoje se chama Cemitério do Brás. Então se criou um cemitério que era basicamente pros imigrantes. No Cemitério da Quarta Parada eram só os imigrantes que eram enterrados lá, que era mais perto daqui. Era um fato que as pessoas falaram: “Se não pudermos enterrar perto daqui, do Brás, nós vamos enterrar na igreja”. Foi uma revolução, o povo botou a boca no trombone, fez valer o seu direito. E aí em 1893 que foi criado o Cemitério da Quarta Parada.
P/1 – Agora os imigrantes aqui tinham ideias muito diversas e até muito, eu imagino, rebeldes, com relação ao governo central. Como era isso? Você viu isso acontecendo, seu pai falava, ou você estudou sobre isso?
R – Meu pai nunca chegou a comentar sobre isso. Mas eu ouvi dizer que tinha um movimento operário aqui no Brás que é totalmente diferente desses movimentos operários de hoje, dos trabalhadores de hoje. Porque era um pessoal que não tinha direitos, na verdade. Trabalhava e ganhava, não trabalhava, não tinha direito mais nenhum. Você não tinha carteira de trabalho, você não tinha direitos trabalhistas nenhum, não tinha CLT, que só veio com Getúlio Vargas. Então era uma forma das pessoas estar gritando: “Estamos trabalhando como escravos”, era uma própria escravidão, eles precisavam descansar. Como você trabalharia sem parar até morrer, sem descansar? Não tinha horário de trabalho, não tinha horário pra entrar, horário pra sair, então sempre tinha uma reivindicação que era justa. Eu vivi no tempo da ditadura, a minha infância e juventude foi na época da ditadura, então a gente na escola falava assim: “Olha, não se envolva com política. Vocês não podem se envolver com política de jeito nenhum. Andem sempre com avental, uniformizados, pra dizer que vocês são estudantes. Vocês não podem se misturar com ninguém”. Os pais da gente trabalhava, você não ouvia tanta situação de roubo, de assassinatos, podia até ter mas você não tinha essa, porque as pessoas para viverem tinham que trabalhar, não caía nada do céu. Mas a gente vivia bem. Depois eu fui servir o Exército, fiquei dois anos no Exército também. Se a pessoa trabalhava não tinha com o quê se preocupar Se você trabalhava você tinha o seu pão, o seu leite, o seu café na mesa, seu arroz com feijão. Então era uma vida que as pessoas trabalhando tinham como sobreviver, ninguém subtraia de você, essa que era a questão. Agora assim, era ruim? Era ruim pra quem se metia, talvez. O pobre nunca se meteu na bagunça, essa que é a questão, pobre nunca se meteu, o pobre quer trabalhar, quer ter o seu direito, lógico e quer criar seus filhos, quer dar o melhor pros seus pais se for possível. Mas quem arruma confusão é sempre a classe média e alta (risos). O pobre quer trabalhar, não quer saber. E era assim, o pensamento era esse. Você nem percebia: “Como assim, governo ditadura? Mas estou estudando, meu pai está trabalhando, todo mundo em casa está bem. O que é isso?”, você não sabia o que era, era uma situação bem engraçada até. Vou te contar um caso bem engraçado. Eu fui um dia num retiro de jovens e aí um pessoal ali da PUC falaram: “Temos que acabar com a burguesia”. Eu olhei pro padre assim e falei: “O que é essa burguesia?” Eu nunca tinha ouvido falar nisso. A gente,
na nossa ignorância. Eu falei: “O que é burguesia? Ah, deve ser o pessoal da fábrica de hamburger” (risos). Comecei a rir, cheguei e falei: “Mas por que você quer acabar? Você é rica, se você é filha de família rica, o que você sente na pele como nós como filho de imigrante? Nós viemos pra falar de Jesus, de religião e você vem falar de guerra, de política?”, o padre levantou um questionamento: “Mas isso é uma realidade que afeta só o pessoal da classe média porque o pobre vive. Sabe que ele precisa trabalhar, se ele não trabalhar ele que vai pagar o pato de tudo, né?”. Mas era isso aí, foi engraçado que até hoje eu me lembro que eu falei, mas o que será a burguesia? Burguesia, a pessoa que trabalha na fábrica de hamburguer (risos).
P/1 – Mas você estava falando disso aí, você foi educado na escola nesse período, né? Mas qual foi a primeira escola que você entrou, onde que foi, como é que foi?
R – Eu estudei no Colégio Romão Puiggari, aqui na Rangel Pestana. Não era uma escola de nível muito forte, mas você tinha o conhecimento, você saía da escola sabendo. Ninguém passava de ano sem saber. Então, apesar dela não ser uma escola de um nível muito forte todo mundo sabia. Ninguém saía da escola sem saber fazer conta, sem saber ler. A partir do momento que você tinha uma aptidão você aprendia as coisas. Depois eu fui estudar o colégio no Colégio São Paulo, ali no Parque Dom Pedro. Ali já era mais difícil, o nível era mais difícil. Pra você passar de ano, então, era uma... você competia com o pessoal oriental, não era fácil, não era fácil. Uma escola mais politzada, uma escola que gabaritava você para você fazer uma faculdade. Era uma escola que ninguém saía de lá sem estar realmente... então se no outro repetia, lá então as pessoas repetiam assim, era ano após ano que a pessoa ficava naquela escola.
P/1 – E você ficou no Romão de que ano até que ano?
R – Eu fiquei lá acho que de 68 até 75, acho.
P/1 – Você fez o quê, o fundamental lá?
R – Eu fiz a escola fundamental, depois você fazia a quinta série e fazia o colegial lá também. Aí só no fim eu vim pro colégio São Paulo porque não tinha o colegial mais.
P/1 – Mas teve alguma situação, ou algum professor, ou algum amigo que te marcou no Romão?
R – Ah, ali eram todos, os professores, a gente se lembra dos professores do primário, você nunca esquece, depois fica muito diluído, aí você tem muitos professores. Mas aquela professora do primeiro, do segundo, até o quarto ano você guarda muito na memória porque ela que é a orientadora, vai formando o nosso caráter, né? Ela que lidou com a gente. Eu sei que teve professoras, as mais bravas, as mais enérgicas, era onde eu estudava, a minha classe era sempre aquela professora, nossa, aquela professora brava. E era. Mas eu agradeço, porque senão eu não aprendia. Eu agradeço os puxões de orelha, a reguadas, as mãos à palmatória, eu agradeço.
P/1 – Você aprontava muito?
R – Aprontava (risos). Eu aprontava porque eu pensava que estava na minha casa, que podia fazer tudo. E na escola não era assim. Eu aprontava muito.
P/1 – Você fazia o quê?
R – Ah, fazia muita travessura, sabe, falava muito, atrapalhava muito, empurrava as pessoas, era uma peste. Empurrava as pessoas na escada, era uma bondade em pessoa.
P/1 – Você se lembra de alguma coisa que aconteceu que te marcou nessa época? Pro bem ou pro mal.
R – Ah, tem uma coisa. Nesse colégio tinha uma diretora que era judia, Anna Maria von Schmidt. Na entrada da escola tinha um crucifixo. Tinhas as escadas e eu lá de cima peguei e joguei um aviãozinho de papel, desceu, desceu, o avião foi parar no braço de Jesus (risos), ficou no braço de Jesus. E eu olhando pra baixo assim e aquela mulher aparece e olha pra cima. Mandou eu descer. Eu falei: “Meu Deus do céu, onde será que caiu esse avião?” (risos). Ela falou assim: “Você é cristão?”, eu falei: “Sim senhora” “Você sabe onde acertou seu avião?” “Não”. Ela falou: “Olha lá o seu avião, no braço de Cristo”. Aí eu fiquei de castigo, ela mandou chamar minha mãe. Minha mãe falou: “Você não pode fazer isso, Matheus. Como é que você vai jogar o aviãozinho? Não porque acertou Jesus...” “Mas essa mulher está falando de Jesus e ela é judia. Se ela pudesse ela jogava um avião de verdade em Jesus”. Minha mãe segurou e acabou dando risada. Eu falei: “Mãe, ela é judia. Ela não acredita em Jesus. Se ela pudesse ela jogava um avião de verdade em cima de Jesus”. Minha mãe segurou a risada e falou: “Coisa de criança”. Mas tinha muitas coisas que aconteciam ali, nossa senhora. E era uma escola de uma arquitetura tão bonita, foi projetada por Ramos de Azevedo. Você olha assim, ainda bem que foi restaurada e continua preservada, que daquelas escolas modelo, que muitas foram feitas assim, na Paulista, aquela Rodrigues Alves, o Caetano de Campos, todas projetadas naquele estilo de São Paulo europeu.
P/1 – Você nasceu com o nome de Wanderley, mas por que chamam você de Matheus?
R – Sei lá, de repente começaram a me chamar de Matheus e ficou.
P/1 – Não teve um motivo assim?
R – Não tem um motivo muito...
P/1 – Foi engano chamarem você de Matheus?
R – Ficou. Aqui no Brás tinha uma coisa muito interessante, uma pessoa chama José, daqui a pouco começam a chamar ele de Tito. “Tito”, fica Tito. Nicola. Que Nicola? Parecia que eram os nomes que as pessoas queriam que a pessoa chamasse. E se você olhar, muitos são assim. O meu pai era João, chamavam ele de Giani. Italiano, tudo bem. Mas meu pai era árabe. Era assim. Ana era Nina, então todo mundo, mudava-se o nome das pessoas.
P/1 – E o seu foi assim também.
R – O meu foi assim também, ficou Matheus. Algumas pessoas me chamam como Wanderley, mas são poucas.
P/1 – Quem?
R – Poucas pessoas. Uma vez eu vou na comunidade, na igreja me chamam de Wanderley, outros... venho na associação, Matheus. No Palmeiras todo mundo me chama de Matheus. É engraçado isso.
P/1 – Teve algum ano que começaram a te chamar de Matheus ou desde sempre?
R – Sempre, sempre chamaram de Matheus.
P/1 – Na sua casa.
R – Em casa todo mundo, Matheus. E ficou. Não é um nome feio, eu acho um nome até bonito, um nome de um evangelista (risos). Então era assim, o nome pegava e não adianta mudar, fique com aquele nome que te deram. Nome de batismo você guarda lá.
P/1 – Você estranha se chamam de Wanderley?
R - Às vezes estranho, viu? Eu trabalhei 30 anos na dublagem pra televisão, então, e lá alguns chamavam de Wanderley, outros de Matheus, outros me chamavam de capitão. Então acaba ficando, não tem como você fugir. Se você brigar fica pior, então deixa, né? Não é pejorativo. Mas que eu achava engraçado: “Engraçado, a pessoa que tem um nome diferente do nome de batismo”. Nicola, Tito, Giani.
P/1 – É que até aí pelo menos tem uma coisa de tradução pro italiano, mas o seu é...
R – O meu é totalmente adverso, né? Não tem nenhuma tradução. E ficou, você acaba até esquecendo que você em nome de batismo, não tem como mudar.
P/1 – Você estava no Romão e você entrou com quantos anos no Colégio São Paulo, você lembra mais ou menos?
R – Eu tinha uns 18 anos.
P/1 – Dezoito anos já?
R – Dezoito anos.
P/1 – E o que mudou da infância pra adolescência? No Brás ou na sua vida assim, você passou a, sei lá, começar a namorar, fazer outras saídas, ir pra outros lugares, como era isso?
R – Saía, Lucas. Eu gostava muito, eu sempre gostei da noite. E nunca dependia de ninguém pra sair, não. Saía, gostava muito de ir no Bixiga, nas ruas, nos bares do Bixiga. Ia viajar muito, onde o Palmeiras ia jogar eu ia, ia nas caravanas. Então a minha infância e a minha juventude foi de sair bastante. Gostava de ir no centro, sempre que eu podia me divertir eu me divertia. Depois comecei a trabalhar com dublagem, ali você vive no mundo artístico, porque a pessoa pra dublar tinha que ser ator ou atriz, tem o registro, TRT. Então o seu mundo acaba sendo o mundo de você conviver com as pessoas do mundo artístico. Então ia assistir a muita peça, estava sempre junto com o pessoal. “Ah, vamos lá pro Biroska”, muita gente ia junto, nós estávamos sempre juntos. E eu sempre fui muito atencioso com as pessoas mais velhas, sempre gostei de ouvir. Então eu convivi com as pessoas das novelas de rádio. Acabei convivendo porque eram os primeiros dubladores, foi o pessoal que veio do rádio, dublar os filmes de televisão era uma coisa nova, então acabei convivendo com esse pessoal que veio do rádio. E esse pessoal foi envelhecendo e eu sempre com amizade com eles, tratando com carinho, como fã, na verdade. Sempre gostava de escutar as histórias, a vida deles e tudo. E assim você percebe que a pessoa vai, o mundo artístico é um pouco ingrato, quando você está lá em cima, você está produzindo, você é respeitado. Você deixou de produzir, você é esquecido. Parece que sempre tem que ter o novo e tem uma regra: “Esquece o passado e faz as coisas novas”. Acho que dava pra fazer as coisas novas sem esquecer o passado, né? Sem esquecer essa gente que abriu caminho. Então onde que eles estavam, esse pessoal mais antigo, eu sempre estava junto com eles, mesmo sendo mais jovem.
P/1 – E você começou a ouvir rádio cedo, gostava de ouvir rádio?
R – Eu gostava, do rádio eu gostava, sim. Até hoje eu gosto. Até hoje eu gosto de ouvir rádio. A primeira coisa quando eu levanto, eu vou tomar banho e já ligo o rádio, que tem um rádio no banheiro. Gosto de escutar as notícias. Eu gosto do rádio, eu gosto mais do rádio do que da televisão.
P/1 – Ah, é? Por que?
R – Porque não sei, parece que o rádio deixa a gente imaginar mais as coisas. A televisão te dá uma coisa muito pronta. Internet e rádio, dificilmente eu fico assistindo programa de televisão, é muito difícil.
P/1 – Quando você saía nessa juventude tinha algum bar que você ia mais, alguma casa noturna que você ia mais? O que era legal na época?
R – Eu gostava muito de ir no Biroska da Lilian Gonçalves, que era um bar, primeiro lá no Bixiga não era um bar tão badalado, né, mas depois quando passou pra Santa Cecília, era um bar que a gente ia. Aí eu já era um pessoa frequente desde o Bixiga, mas eu gostava, era um bar dos artistas, iam muitos artistas, então adorava. Não por causa dos artistas porque eu já estava acostumado conviver no meu dia a dia, na minha rotina era normal conviver com o pessoal. Mas era um ponto de encontro bem legal. Os teatros também, que a gente ia, era gostoso.
P/1 – A gente vai chegar lá porque eu vou perguntar. Você saiu do Romão, você tinha alguma profissão em mente já, ou não?
R – Eu não.
P/1 – Você foi para o Exército, né?
R – Fui pro Exército.
P/1 – Com 16 anos?
R – Dezoito.
P/1 – Mas nessa época você já pensava em alguma profissão? Eu vou ser isso, aquilo?
R – Não, eu nunca tive em mente, por isso que eu nunca quis fazer faculdade, porque eu nunca tive em mente o que eu faria, o que poderia fazer.
P/1 – O seu pai fazia o quê?
R – Meu pai era comerciário, trabalhava numa loja, vendedor.
P/1 – De quê?
R – Vendia roupas, era comércio de roupa. Ele era empregado.
P/1 – Você não pensava em nada, o seu avô alfaiate, seu pai mexendo com roupa, você não pensava nisso?
R – Eu nunca pensei, nunca pensei nisso. É engraçado, né? Eu falei: “Não sei o que eu quero”. Às vezes pensava uma coisa, outra. “Não, não, não combina comigo”.
P/1 – Você tem quantos irmãos?
R – Tenho três. Duas irmãs e um irmão, são mais velhos do que eu.
P/1 – Quem são eles?
R – A Olga Maria, que é a irmã mais velha, depois tem o José Carlos e a Roseli. São mais velhos do que eu.
P/1 – Quanto tempo mais velhos?
R – Eles têm diferença entre eles de dois anos. E eu entre a minha irmã mais nova, quatro anos.
P/1 – Entre você e a mais velha oito anos de idade.
R – Isso, entre eu e a mais velha são oito anos de idade. Mas a gente convive muito bem, os quatro sempre viveram muito bem, um podia ajudar o outro, ajudava, sempre foi assim. Não tivemos grandes problemas de diferença. A gente viveu numa casa que todo mundo era unido, pai, mãe, os filhos. Era família mesmo. Nunca a gente se separava, estava sempre junto.
P/1 – E você estava com 16 anos, terminou o Romão e foi pro Exército?
R – Sim, eu fui servir o Exército. A contragosto, mas acabei ficando.
P/1 – Pegaram.
R – Pegaram. Eu queria sair de qualquer jeito. Eu falava: “Nossa, isso deve ser”, eu sempre gostei da liberdade, pra mim aquilo era uma escravidão. E no fim não é tão ruim, é só você seguir, não pode transgredir, mas você vive. Eu saí de lá sem nenhuma punição, recebi medalha de praça mais distinto, fui homenageado lá como o praça mais distinto, tudo, minha família foi nesse dia, sabe? Eu falei: “Eu estou pra servir o Exército, não estou pra ser servido do Exército”. Era difícil? Era. Mas não era impossível. Então se tem que fazer vamos fazer bem feito que é melhor. E fiquei lá.
P/1 – Mas como é que era? Você foi lá se alistar, aí te convocaram, você foi pra onde, ficar onde, como é que era?
R – Eu fui me alistar e você podia sair livre ou ficar. Aí tinha as seleções e eu ia ficando. Cada vez que tinha uma seleção eu ia ficando. Eu falei: “Putz, não tem mais jeito, tenho que ficar”, aí eu fui servir no Ibirapuera, na Companhia do Comando do Segundo Exército. E estava ali no Comando do Segundo Exército e tinha contato direto com os comandantes do Segundo Exército, General Guilhermano. Depois tinha o General Milton Tavares. E vivi ali na sala deles. Eu me lembro um dia que eu estava lá no nosso quartel, na rua Tutóia, e o General Guilhermano Gomes Monteiro, que é aqueles generais à moda antiga, chegou no nosso quartel e a maioria tinha ido fazer acampamento, então eu fui um dos poucos que estavam lá no quartel. Aí ele chegou e falou: “Pode ficar todo mundo à vontade pois a minha visita é uma visita de rotina, mas é uma visita descontraída”. Aí subiu no nosso alojamento, começou a conversar comigo. “Conheço você, né?” “O senhor me conhece porque estou sempre lá no gabinete do senhor”, eu era office-boy do quartel, “então o senhor me conhece por causa disso”. Aí ele ficou conversando comigo, foi lá no rancho, nós tomamos café. Contou o que era aquele quartel. Foi lá, deu a mão pra gente todo descontraído. Nossa, minha visão começou a mudar, um ser humano como outro qualquer, a gente tem respeito. Mas ele tem um respeito pela gente muito grande também, né? Quis saber da minha vida. Depois veio o General Milton Tavares, logo ele ficou doente, tinha um câncer. E eu
sempre olhava praquele homem assim e eu sempre olhava nos olhos daquele homem e parecia que ele sempre queria dizer alguma coisa. Aí quando ele estava no hospital, acho que na Beneficência Portuguesa que ele estava e eu fui visitá-lo. Eu falei: “Não, eu vou visitar ele, ele está no hospital. Não sei se eu vou poder, eu sou um soldado só. Aí permitiu que eu entrasse pra visitá-lo. Eu comecei a conversar com ele, segurei na mão dele, assim, ele chorou, começou a chorar. E logo depois ele faleceu. Então aquilo marcou bastante a minha vida, eu falei: “Puxa vida, ninguém é tão duro que não tenha uma sensibilidade, né, um gesto de uma pessoa que você menos espera é aquela pessoa que vai lá te visitar, fica uma horinha com você sentada aí. Mesmo que não vá dizer nada, só vai ficar um pouquinho ali”.
P/1 – Vocês não falaram nada entre si.
R – Só dei mensagem pra ele, falei: “Você vai ficar bom”, encorajamento pra ele.
P/1 – E ele chorou?
R – Sim, chorou. Deram nome de rua aí, de viaduto, Milton Tavares. São coisas que marcam a vida da gente, né? Eu falei: “Puxa vida, que bom que eu pude estar alguns momentos antes dele morrer, dele sentir que alguém foi lá sem interesse nenhum”. Eu falei: “Não, eu vou lá visitá-lo”. A gente tem que ser da vida, eu acho que a gente tem que ser, você tem que aprender as lições da sua vida, mas você tem que ser uma pessoa da vida disponível, fazer tudo de coração, tudo o que você fizer, use seu coração. Depois você tenta usar a mente, mas primeira coisa usar o coração, né?
P/1 – Mas como é que era o cotidiano no quartel? Como é que foi o treinamento, quantos anos você ficou lá?
R – Eu fiquei um ano e pouco porque só saí na última baixa, a baixa que eu saí era necessidade de serviço. Então a rotina, a gente se divertia muito.
P/1 – É?
R – Na verdade a gente se divertia muito.
P/1 – Vocês acordavam que horas? Como é que era?
R – A gente vinha pra casa. Só ficamos 40 dias aquartelados no começo, 40 dias sem sair do quartel, mas depois a gente só ficava quando tinha serviço. Eu não pegava serviço porque eu era o office-boy, o estafeta. E quando eu não estava de serviço eu podia andar à paisana, tinha permissão pra andar à paisana. Pra mim foi bem, o Exército não foi ruim, não, foi bom. Muito aprendizado. E a gente acabava se divertindo, tinha o companheirismo, né? Isso que você aprende a ter, companheirismo, você aprende a ter disciplina, que na vida da gente a gente precisa ter disciplina, né? Eu tenho que fazer aquilo, então eu vou fazer, se é a minha obrigação fazer eu vou fazer. Um direito que eu tenho corresponde a um dever que eu tenho, se eu fizer alguma coisa errada eu vou ser punido, então é disciplina, você aprende, é uma coisa que fica pra sua vida. Tem que levantar cedo, tem que estar lá antes da formação. Tem hora pra entrar, hora pra sair. É sim senhor, não senhor. Pronto. Pronto, acabou, você aprende a se disciplinar na vida. Vale, viu? Até hoje vale, com certeza. E a gente está sempre aprendendo, você pode viver o tempo que você quiser e você vai estar sempre aprendendo, sempre.
P/1 – E você ficou até os 19 lá?
R – Fiquei até os 19.
P/1 – Aí você voltou e estava fazendo colégio ao mesmo tempo que o Exército ou você parou?
R – Eu parei o colégio. Eu levantava muito cedo, às cinco horas da manhã, pegava um ônibus, até chegar no Ibirapuera era uma viagem. Aí voltei a trabalhar numa empresa que eu trabalhava aqui na Avenida Ipiranga, uma empresa que vendia ozonizadores de água, purificadores de água. Aí logo fui trabalhar na dublagem, com 20 anos eu fui trabalhar na dublagem.
P/1 – Mas como é que foi isso? Como é que você descobriu que tinha talento pra isso, quem que te falou, como é que foi? Você soube do negócio.
R – Então, eu fui trabalhar na dublagem porque onde eu trabalhava o marido da secretária era eletricista nos estúdios de dublagem, distribuía filme pra televisão e era dubladora também. Aí ela falou: “Olha, tem um serviço assim, você não quer?”, eu queria já sair de lá. Aí eu falei: “Eu vou lá”. Aí saí de férias e fui lá conversar com o escocês, Michael Stoll, do Estúdios Álamo. Ele falou assim: “Vamos fazer assim, você fica trabalhando um mês aqui, se a gente gostar de você, você fica, a gente combina, se a gente achar que você tem que ficar, você fica, senão você volta pro seu serviço lá”. Ah, mas quando eu comecei a trabalhar lá, ganhava três vezes mais, tinha todo benefício e estava no meio do mundo artístico eu falei: “Não, eu vou ficar aqui, lógico”. No começo eu pensei: “Eu vou ficar provisoriamente aqui”. Esse provisoriamente demorou 30 anos (risos). Trinta anos trabalhando no mesmo lugar é uma coisa assim...
P/1 – Rara.
R – É. Eu era uma pessoa de confiança. Trabalhava não dublando, eu trabalhava no Departamento Artístico, ali na Coordenação Artística. Eu chamava as pessoas pra vir trabalhar, então era uma atividade que tinha assim que eu gostava, você não entrava na rotina, você sempre tinha alguma coisa nova, sempre tinha coisa nova pra fazer.
P/1 – Mas como era a sua função lá? Você chamava os dubladores...
R – Chamava os dubladores. Quando eu entrei lá tinha a Brascontinental que era distribuidora de filmes pra televisão. Ela era representante da ITC, de Londres, e da Paramount, dos Estados Unidos. Então todos os filmes da ITC e da Paramount vinha pra Brascontinental e a Brascontinental distribuía pras televisões. Aí, a Brascontinental fechou e a Álamo existia porque a Álamo dublava dos filmes da Brascontinental, era um estúdio só para dublar os filmes da Brascontinental. Com o fechamento da Brascontinental eu passei a trabalhar na Álamo e eu era responsável por convocar o pessoal. Tinha um diretor que assistia ao filme e ele me dava a relação e falava: “Matheus, eu preciso desses dubladores pra trabalhar nessa série ou nesse filme ou nesse desenho ou nesse documentário”. Ele dava a relação pra mim e eu conciliava o horário dos estúdios com o horário dos dubladores. Eu não sei como eu conseguia às vezes porque eram 11 estúdios que tinha que tomar conta. E no fim saía, dava tudo certo. E a minha função sempre foi essa lá, sempre foi essa. Lógico, tinha outras coisas que eu podia fazer pra ajudar, ajudava, né? Mas não sobrava muito tempo pra ajudar em outras coisas porque só o agendamento era já, tomava um tempo danada. E eu saía de lá e logo que eu saí de lá fechou, os estúdios fecharam.
P/1 – De que ano a que ano você trabalhou?
R – Eu fiquei lá de 80 a 2000. Ou mais? Eu fiquei 30 anos lá, até 2010.
P/1 – Na Álamo.
R – Na Álamo.
P/1 – E como é que você sabia se o cara ia ser bom pra dublar aquele personagem?
R – Isso era uma função do diretor de dublagem, reconhecer a voz, saber que aquele personagem era daquele dublador. Então tinha muita dificuldade, saber que aquele dublador era o boneco dele era fácil, era só chamar. Ou então ele chamava alguém que tivesse a voz parecida. Não tinha muita dificuldade, não. Se não sabia, perguntava, a gente falava porque já estava acostumado, né? Você já estava acostumado com a rotina daquilo, não tinha dificuldade, não.
P/1- E o que você achava desse trabalho? Você ouvia a voz das pessoas sempre e a voz do personagem e você via a pessoa em carne em osso, como era isso?
R – Era engraçado, Lucas. Quando começou a ter dublagem faltava vozes, aí o meu patrão perguntou assim pra mim: “Você gosta de teatro?”. Eu falei: “Gosto muito” “Então toda semana você vai pro teatro. Mas você não vai prestar atenção na peça, mas vai fechar os olhos e prestar atenção na voz. Pode ser uma voz de mulher, homem, velho, jovem, criança, negro, não importa, eu quero vozes”. Aí chegava no fim, eu ia no camarim e falava: “Você não gostaria de dublar? Sua voz é bonita”. Na maioria das vezes as pessoas rejeitavam aquilo porque achavam que a dublagem, dentro do mundo artístico, era a escória. “Eu, dublar? Não”. Depois disso o que aconteceu é que as pessoas perceberam que o que dava dinheiro no mundo artístico era a dublagem. Pessoal ganhava por hora. Não era pouco e se a pessoa trabalhava muito ganhava muitíssimo, que a pessoa poderia trabalhar no teatro a vida inteira que não ia conseguir ganhar o que ganhava numa produção, talvez. Aí inverteu o papel: ao invés da gente ir buscar as vozes, as vozes que vinham até a gente. Era uma coisa interessante. E o tempo da dublagem é totalmente diferente do tempo da televisão, do teatro.
P/1 – Ah, é?
R – É totalmente diferente.
P/1 – Por que?
R – Porque você tem que ter o tempo certo, o timing certo. Você viu uma cena uma, duas vezes, você já tem que dublar, você não tem tempo pra ensaiar. O diretor fala assim: “Olha, Lucas, você vai fazer um papel, você vai interpretar aquele personagem que nessa cena você vai estar rindo, na próxima você vai estar chorando. O seu personagem é assim, assim e assim”. É muito pouca informação. Aí aparece na tela ou lá no visor o seu personagem, você tem o texto na frente, decora aquele texto e colocar aquilo na boca daquele personagem. O tempo é totalmente diferente, você tem que ter rapidez de raciocínio, tem que ter inflexão na voz, não é fácil. Então não é todo mundo que consegue dublar, é limitadíssimo isso, não é pra qualquer um, não.
P/1 – Tinha alguns atores que você trabalhava mais com eles, que eram carimbados, já? Quem eram essas pessoas?
R – É, tinha o pessoal, mais o pessoal do teatro, não era esses grandes nomes do teatro, mas eram pessoas que faziam teatro, televisão, mas não eram se você perguntar. Lógico, teve pessoas que trabalharam na televisão e que também trabalharam na dublagem como o Lima Duarte, ainda tem hoje o Walter Breda, talento como dublador e como ator. Marta Volpiani, Cecília Lemes, esse pessoal do Chaves, né? São atores maravilhosos. Muitos nem têm tempo para trabalhar em teatro porque só vivem da dublagem. Nossa, muita gente boa, muita gente que já se foi. Nossa, como teve gente boa dentro da dublagem, gente que chegava lá, lia uma vez e já: “Manda!”. Dava produção, né? Aquilo é produção. Horário dentro de um estúdio é tudo, se a pessoa vai começar a ensaiar, ensaiar, ensaiar, pô, esse já não serve porque não tem essa praticidade. Então, não era fácil, não. E como você dava chance pra alguém, os diretores davam chance pra alguém, tinha que trabalhar muito, trabalhar muito, não se fazia de uma hora pra outra. Engraçado, Lucas, que as crianças parece que tinham mais facilidade pra dublar. E se começa como criança pode ter certeza que vai ser um dublador de talento a vida inteira, com certeza vai ser um dublador de talento a vida inteira. E vai viver e vai ganhar bem, é uma profissão que requer, logicamente, aptidão, mas você não vai perder tempo sentado em banco de faculdade, não precisa. Faça, vá com aquela profissão até o fim, porque sempre vai precisar de vozes de velhos, de jovens, vai precisar sempre. Se ele é jovem ele vai fazer jovem, se ele é criança, vai fazer criança, se ele é velho, ele vai interpretar um personagem velho.
P/1 – Sempre tem papel.
R – Sempre vai ter um papel pra ela. Então muita gente não entrava nos estudos acadêmicos, era uma coisa que valia a pena.
P/1 – Por que você acha que criança era mais fácil?
R – A cabeça da criança que tem aptidão é uma coisa fabulosa. Porque é assim, a criança vai interpretar o quê? Uma criança. Então é ela mesma. “Você fala isso, isso e isso”, ela não precisa nem ler. E olha, muitas crianças sustentavam suas casas, que ganhavam bem, mais do que o pai e a mãe juntos. É. Conheço casos que realmente aquela criança sustentou a família, através do seu trabalho. Só que a lei é limitada também, porque eles têm que ter o tempo de estudo, o tempo de brincar. Porque teve uma época que até foi classificado como trabalho infantil, perigoso isso.
P/1 – Quais eram as dificuldades maiores que você passou no estúdio? De não dar certo, ou, não sei...
R – Olha, podia até acontecer de não dar certo, tal, que a dificuldade de alguém faltar, por exemplo, numa escala, é que desenvolve um dominó, vai dando errado em tudo. Aí você tem que desmanchar uma coisa que você fez pra consertar uma coisa anterior. Nunca dependia de mim isso, a minha parte eu sempre fazia, o trabalho era feito com dedicação e por isso que eu era querido, vamos dizer, uma pessoa querida no meio, até hoje a gente sai pra conversar. Eu não quis mais trabalhar na área. Eu saí, me aposentei, poderia trabalhar em outros estúdios, mas aí eu falei: “Não, chega. Estou cansado já, melhor agora aproveitar mais a vida do que ficar correndo atrás de coisas, né?”.
P/1 – Você ficou dos 20 aos 50?
R – Dos 20 aos 50 anos. Tá bom, né?
P/1 – Você está com quanto hoje?
R – Eu estou com 57. Agora é fazer outras coisas, me dedicar mais ao trabalho voluntário na medida do possível e procurar viver a vida, sem grandes complicações.
P/1 – Entendi. Só voltar um pouquinho pro seu trabalho: você lembra de algum filme que te marcou que você trabalhou na dublagem dele?
R – Eu não dublava.
P/1 – Sim, mas...
R – Trabalhei na elaboração de um filme. Olha, uma minissérie que me marcou pela emoção das pessoas dublando é o Jesus de Nazaré. Esses filmes épicos você percebe, o Moisés, Guerra e Paz, muitos filmes que você percebia que mexia com a emoção de quem estava dublando, de quem estava trabalhando na técnica, de quem estava dirigindo. E a gente se emocionava de ver as pessoas emocionadas, né? Então aquilo era uma coisa que marcava, a gente descia pro estúdio pra assistir o filme, a gente já sabe a história, mas você vê o trabalho que é feito pelo artista e o artista se emocionar é bonito, é bonito quando você vê a emoção das pessoas, né? E esse filme era um filme de rolos, as primeiras dublagens eram filmes de película que vinha. Nossa, esse filme tinha 12 ou 15 rolos, era uma história mesmo muito bonita. Esses filmes épicos, eu sei que são mais, não sei porque, mas emocionavam mais.
P/1 – E tem alguma história que você se lembra que você carrega consigo por causa do trabalho? Boa, engraçada, uma história que você se lembra.
R – Tem muitas histórias, né? A gente tem muitas histórias, muito companheirismo das pessoas e acontecia, durante as situações que você vivia no seu trabalho, no seu dia a dia, com seus amigos, seus colegas, você via muita coisa que acontecia. Mas uma história, tem muitas, mas não me lembro pra te falar agora.
P/1 – Uma que se destaque.
R – Uma coisa que se destaque, não.
P/1 – Não tem problema, se você se lembrar ao longo da entrevista.
R – Com certeza.
P/1 – Você falou que você andava muito nesse meio artístico, você via muita peça. Você gostava de ver que tipo de peça, uma te marcou mais?
R – Eu gostava muito de assistir coisas que me deixassem alegre, nunca coisas que me deixasse deprimido, então, eu procurava sempre as comédias, sempre as comédias de costume, eu gostava mais de assistir. Musical eu assistia mas eu não tinha muita paciência pra assistir, muitas vezes eu ia, já ficava cansado no meio. Mas eu gostava de coisas assim, comédias que eu saía de lá dando risada.
P/1 – Teve alguma que ficou muito tempo em cartaz que você gostou bastante?
R – Ah, com certeza. Teve aquela que ficou bastante tempo em cartaz, a Porca Miséria. Muitas peças que a gente ia assistir que ficavam muito tempo, outras ficavam pouco tempo. É engraçado que um dia um amigo me chamou pra assistir uma peça, trabalhava lá, aí fui com os outros amigos, tal, aí eu estou assistindo a peça, tal e aí falei com a menina que estava assim do lado: “A peça está quase acabando, quando que o Chiquinho vai aparecer?”. A menina começou a dar risada porque ele ficava caracterizado e eu não reconheci (risos). “Quando ele vai aparecer?”, a menina começou a dar risada quase que atrapalhou toda a peça. Depois no fim ele falou: “Mas por que vocês estavam rindo?” “Não, porque o Matheus me perguntou quando é que você iria aparecer e você estava desde a primeira cena na peça e ele não te reconheceu”. Eu falei: “Nossa, mas que distraído”. Não fiz nem um esforço pra saber. Ele estava bem caracterizado, tudo bem, mas podia saber que era o amigo que estava lá, né? Oh meu Deus. Mas eu ia sim, assistia a muitas. Às vezes a pessoa fala de um filme e eu nem lembro do filme porque eram tantos, tantos filmes que dublavam, tanto filmes que tinha na distribuição da Brascontinental, era tanta coisa que eu nem lembro. Eu lembro que tinha o Jornada nas Estrelas, Terra de Gigantes, tudo que era distribuído lá, mas especificamente eu não lembro. Porque eu tinha uma coisa comigo, deletar um pouco, não querer guardar tudo na memória, porque uma hora a memória vai falhar. Então se você fez um trabalho, deleta aquilo, porque a sua cabeça não tem aquela capacidade de guardar tanta coisa de filmes, de peças que assisti. Eu sei que eu assisti, eu sei que trabalhei, em 30 anos não sei quantos filmes foram dublados. Nosso não, porque a gente tinha os filmes e muitas distribuidoras mandavam os filmes pra dublar lá. A Disney, a Warner, a Division, que eram os clientes que mandavam os filmes pra dublar. Mas eu não lembro de filme, não lembro porque é muita coisa e você deleta. Depois que eu me aposentei, então, aí que eu deletei tudo também.
P/1 – Nessa época você se casou, morou?
R – Eu sempre tive juízo, Lucas, sempre tive juízo. Uma coisa que eu tive convicção: é não casar. Nunca quis casar, pelo meu modo de ser. E meu patrão sempre falava uma coisa: “Você gosta de leite, não precisa comprar a vaca”. Então, quer dizer, não precisa levar a vaca pra sua casa, toma o leite. Cada dia você toma um leite diferente, vive a vida. Então meu modo de ser sempre foi esse, se eu casasse eu seria uma pessoa infeliz. Hoje sou uma pessoa feliz, né?
P/1 – Você nunca se casou, nem pensou?
R – Nem pensei, nem pensei. Muito cabeça fresca, eu achava que era melhor me divertir, sair, tal, se tinha que namorar, namorava, mas nunca pensei em casar. Nunca pensei em casar, morar junto. Então minha vida sempre foi uma vida, eu gostei sempre da liberdade. Nada me prende. É engraçado isso, né? Eu gosto da liberdade, meu jeito de ser é esse, de ver minha liberdade, nada me prende.
P/1 – Você sai muito ainda hoje pra beber, pra se divertir?
R – Não tanto, o pessoal vai mais em casa, na associação, de vez em quando que saio, mas não é muito, não, saída não é tão frequente. Eu fiquei mais preguiçoso, Lucas (risos).
P/1 – E você nunca pensou em ter um filho ou uma filha, algo assim?
R – A árvore eu plantei, faltou eu escrever um livro e ter um filho. Mas você vai agregando os filhos. Como eu fui catequista na igreja, em várias igrejas, eu tenho mais ou menos uns 70 afilhados, que já é uma familia, né? É uma família. Estão sempre ligando, indo em casa, sempre saímos juntos, vamos conversar. Tenho meus sobrinhos também. Então não é essa a falta que eu sinto porque tem a família, tem os amigos, tem mais os afilhados que ocupam todo o espaço, acaba ocupando todo o espaço.
P/1 – Você contou pra mim que você foi presidente de uma torcida organizada do Palmeiras.
R – Sim.
P/1 – Então essa paixão virou esse envolvimento uma hora na sua vida.
R – Sim. Porque a gente tinha um pensamento que é diferente desse pessoal hoje que quer sair, matar, agredir, a gente ia lá pra torcer, pra se divertir. Eu gostava e acabei ficando presidente lá.
P/1 – Mas como é que foi, teve uma eleição?
R – Teve, teve uma eleição. Tinha um presidente e meu irmão era o vice-presidente. Aí esse presidente resolveu renunciar e o meu irmão era o vice-presidente e não queria assumir. Eu era o secretário. Aí a turma falou: “Matheus, você fica como presidente?”, eu falei: “Fico”. Pronto, acabei ficando presidente, fazendo uma diretoria. Era gestão de dois anos, aí eu fui eleito mais duas vezes, então fiquei de 80 a 85. Ótimo, mais do que isso é demais. Não é? Eu acho. A pessoa não tem que se apegar a nada. Então fiquei lá durante cinco anos e eu ia lá depois, ajudava a carregar bandeira. Depois que eu fui presidente eu voltei ao cargo mais insignificante, o mais simples pra ajudar.
P/1 – Que é qual?
R – Que é você que vai carregar bandeira, vai ser do Departamento do Patrimônio. Podia ajudar, um conselho que podia dar, tal. E até hoje o pessoal tem respeito e uns, inadvertidamente falam assim: “Você foi o maior presidente que nós tivemos”. Porque eu só fiquei cinco anos, né? (risos) Não dá tempo de você ser... dá tempo de ver as coisas boas que você tem, não dá tempo de você fazer coisa errada. Então você fica mais tempo, mais erro você vai cometer. E a alternância do poder é salutar, né? Ninguém pode ficar muito tempo no lugar, não tem por que. O outro também é capaz de fazer coisas boas.
P/1 – Mas qual torcida você foi presidente?
R – Era a TUP, Torcida Uniformizada do Palmeiras, que era a mais antiga. E essa TUP praticamente nasceu no Brás, em casa. Porque tinha um pessoal, como eu te falo, que a gente era um pessoal pobre que ia assistir o jogo e tinha um pessoal do Colégio Dante Alighieri, só almofadinhas.
P/1 – Mas palmeirense também.
R – Palmeirense também. Então o que acontecia? Eles iam no jogo, mas nós tínhamos que levar as bandeiras e os instrumentos, que ficavam na casa da gente. E como a gente ia levar isso? Sempre passava um que, coitado, morava lá na Zona Leste, tal, passava com seu Fusca e a gente ia levando com os braços pra fora, ia levando os bambus, os instrumentos. E quando chegava esse pessoal do colégio Dante Alighieri, eles iam pra arquibancada dizendo que a torcida era deles, eles que tinham fundado a torcida. Ma che tinham fundado a torcida?! Nós é que tínhamos fundado a torcida (risos). Eles só iam. Aí criou essa divisão: “Vamos ficar junto com o Matheus, vamos votar no Matheus porque ele é gente nossa. Ele é uma pessoa da gente, não é igual aqueles almofadinhas, que só chegam na hora pra dizer que são da torcida mas não fazem nada”. E aí as coisas ficavam em casa, ficavam guardadas lá no nosso quintal. Tinha jogo e a gente se virava, cada um o pai dava dez cruzeiros na época, a gente pagava um táxi ou alguém vinha lá da Zona Leste e a gente levava as coisas. E aí fizemos uma torcida grande, bonita, fizemos uma torcida que ia pra torcer e que ia pra fazer espetáculo na arquibancada, essa foi sempre a minha intenção, o visual, vamos fazer um visual disso aí, com fumaça, tinha que inventar alguma coisa, alguma coisa nova, concursos de bandeiras e tal. Pronto, fizemos uma torcida bonita, que não pensava em brigar, pensava em torcer só.
P/1 – Você entrou pra diretoria você tinha 20 e poucos anos?
R – Sim. Foi nos anos 80. De 80 a 85. Depois eu fiquei até 94, tal, mas depois também não, chega. Eu acho que tudo na nossa vida tem um tempo, né? E assim foi no meu trabalho, quando eu fui catequista na igreja. Então agora chega. Na torcida eu também falei: “Agora chega”. Nada é pra sempre, eu não gosto disso, não combina com o meu jeito de ser, sabe? Você ficou a vida inteira naquele lugar. Não.
P/1 – Mas como era na TUP? Quais são as outras torcidas do Palmeiras e qual é a relação entre elas?
R – Na época que eu fui presidente tinha a Mancha Verde, o Grêmio Alviverde, o Inferno Verde, a Império Verde.
P/1 – E as maiores eram quais?
R – TUP era a maior e depois a Mancha. Depois se inverteu, a Mancha ficou maior porque ela significava a briga, violência, então a Mancha se tornou maior, a TUP menor. Mas no tempo que eu estava a TUP era a maior. O meu relacionamento com eles sempre foi de agregação, ele não é meu inimigo. As torcidas dos outros clubes não eram inimigas pra mim, eram adversários, não eram inimigos, quanto mais o próprio clube, né? Depois eu fiquei como diretor do Palmeiras também, no Departamento do Interior, fui ajudar. Aí quando eu vi muita coisa que não condizia com a minha personalidade eu falei: “Não, eu não quero mais”.
P/1 – Não quero mais nada.
R – Não. Não quero mais nada porque as minhas mãos são limpas, não posso sujar minha mão, sabe?
P/1 – Foi mais o contato com o time do que com a torcida.
R – Aí quando eu fui diretor tinha mais contato com o clube do que com a torcida. Mas nunca deixei de estar junto com eles.
P/1 – E quais foram os jogos, campeonatos marcantes pra você quando você era presidente? Entre 80 e 85 o que aconteceu com o Palmeiras?
R – Vou te falar, porque essa época que eu fiquei como presidente o Palmeiras estava tão ruim das pernas que foi ameaçado duas vezes de rebaixamento no Campeonato Paulista. Olha, foi uma época difícil, não foi uma época fácil, não. Poucos momentos de fase boa, muitos poucos momentos de fase boa, não teve muita coisa pra se falar de fase boa. Fase boa da torcida, que era uma torcida bonita, organizada, mas o que o clube não correspondia, não correspondia. Então foi boa por causa da torcida, que era boa, bonita, mas o clube deixava a desejar, né? É, o Palmeiras não andou bem das pernas naquela época, não.
P/1 – Mas tem alguma história que você guarda consigo desse tempo de torcida, de presidente da torcida?
R – Olha, teve um jogo que nós fizemos no interior do Paraná, uma decisão acho que em Londrina, o time estava tão ruim que não tinha nem diretor pra ir. Aí quando chegou lá o técnico mandou que eu ficasse como chefe da delegação porque o Palmeiras estava abandonado, não tinha ninguém. Nós fomos campeões, né?
P/1 – Que campeonato é esse?
R – Foi um torneio que teve em Londrina, Torneio do Café. Mas eram coisas absurdas que aconteciam, coisas absurdas. Um ano que o Palmeiras estava tão ruim também que ia ser rebaixado, fez um jogo em Taubaté que se ele perdesse aquele jogo ele estava rebaixado. Aí nós fomos lá, fizemos uma preleção com os jogadores, olha só, o presidente da torcida ter que fazer uma preleção pro jogador. Olha, vou te falar, era uma coisa que a gente comemorava porque não acontecia o pior, não porque acontecia o melhor. Mas era uma coisa difícil, de gente incompetente tomando conta de coisas importantes. Se você colocar gente incompetente tomando conta de coisas que são públicas, então vira as coisas que acontecem, uma bagunça. A coisa pública tem que ser tratada com clareza, com dedicação, não é seu. Se não é seu é pior ainda, você tem que tratar as coisas como se fossem sua, mas sabendo que não é sua, é do outro. Honestidade, né? Tudo é a honestidade. Então eu via que muitas vezes eu me metia em coisas que não eram muito... eu saía fora, não fico, não, a gente não é obrigado (risos).
P/1 – Agora em 2010 você se aposentou, foi isso?
R – Em 2010 eu me aposentei.
P/1 – E continuou morando aqui no Brás.
R – Continuei morando aqui. Pra gente sair do Brás é difícil, viu? Os meus irmãos ainda gostam mais do Brás do que eu. A gente não se afasta não. Tudo que fala que é ruim, que é não sei o quê, mas a gente gosta daqui. A gente gosta daqui, sei lá, ou é estar acomodado aqui, mas aqui é um lugar bom, você vai pra todos os lugares, né? Você está sempre perto de tudo. A gente gosta daqui do Brás, já são 57 anos. E até quando morrer eu quero que as minhas cinzas sejam colocadas lá no Cemitério do Brás, pra não ter que sair daqui (risos).
P/1 – E você conheceu a Associação São Vito, a Festa de São Vito quando?
R – Em 80. Eu comecei a trabalhar aqui na Festa de São Vito em 1980. A gente tinha um grupo de jovens na igreja do Brás, já tinha a festa aqui, o terreno, tal, e fizeram a festa em 79, é... em 80 chamaram esse grupo de jovens pra vir ajudar aqui. Aí a gente falou: “A gente vai”. Tinha 80 e poucos jovens lá na comunidade do Brás, na Igreja do Brás, aí nós viemos pra cá pra ajudar. Mas tinha já uma afinidade porque a gente conhecia todo mundo, de criança a gente conhecia todo mundo, eram os pais dos amigos da gente que trabalhavam aqui. E aí eu nunca mais saí. Comecei a trabalhar, ajudar a servir. Depois fiquei trabalhando no forno fazendo a ficazza e já são 36 anos que eu ajudo a fazer a ficazza. E estou ajudando sempre como voluntário, como diretor da associação. Mas cargo pra mim não significa nada, não, porque a minha intenção é ajudar. Não faço questão de cargo nenhum, a maioria desse tempo eu fiquei como voluntário mesmo.
P/1 – E como é que foi a sua primeira Festa de São Vito?
R – Foi em 80.
P/1 – Era aqui?
R – Aqui nesse terreno, só que as condições das barracas, palco, tudo era outra, né? Então aí veio junto com esses jovens toda a minha família veio trabalhar, minha mãe, meus irmãos. E a gente gostava porque é o nosso ambiente, né? A gente está no ambiente dos italianos aqui, da nossa gente. Então a gente sente o prazer de estar ainda hoje por causa disso, porque é um pedacinho da nossa história que está aqui, uma coisa que você se dedicou. A gente não tem muita pretensão, mas a de que as coisas evoluam, possam evoluir. Essa é que é a nossa intenção, de ver as coisas crescerem, evoluírem. E tem evoluído, de 80 pra cá muita coisa foi feita. Acho que muita coisa ainda pode ser feita, muita coisa. A partir do momento que o jovem se integra muita coisa é feita, se ficar só na mão dos mais antigos acho que fica um pouco mais difícil porque o pessoal está um pouco cansado. Se nós tivermos a juventude com todo o potencial a gente consegue levar em frente esse trabalho aí.
P/1 – E você tem alguma história com a Festa de São Vito que te marcou na organização, no dia da festa, ou na associação em geral?
R – Olha, a gente tem presenciado muitas coisas, né? Cada dia é uma novidade, coisas boas e coisas não tão boas. Mas muita coisa boa que aconteceu, o que favorece a festa de São Vito? Ela favorece porque ela une as pessoas. E o italiano é movido pela paixão, então se a paixão não é na medida certa ela fica extrapolada,
né? Se você não amar na medida certa fica loucura, isso não faz bem. Mas outra coisa que favorece é a devoção, a devoção a São Vito, que muita gente não conhecia São Vito e através da festa ficou conhecendo. Então você presenciar cenas de milagres que aconteceram. Eu sou um pouco São Tomé, ver para crer, tenho fé mas eu preciso ver, senão eu não acredito. Mas eu tenho visto que até verdadeiros milagres têm acontecido.
P/1 – Sério?
R – Sim. Verdadeiros milagres que estão acontecendo.
P/1 – Tipo o quê?
R – Olha, nós tivemos aqui no ano passado uma das mamas, quando começou a festa ela foi internada na UTI com problemas já de idade que ela tem. E sempre que começamos a festa, todos os dias, a gente faz uma oração. E nesse dia eu pedi pra São Vito: “São Vito, vá naquele lugar e visita aquela pessoa que ela está precisando. Ela tanto te ajudou aqui, precisa da sua ajuda imediatamente”. Ela estava já morta, os médicos mandaram chamar os filhos e falaram: “Olha, não tem mais o que fazer”. E essa mulher se recuperou. O padre da comunidade foi até ela visitar, porque ela estava mal. Só que na cabeceira dela tinha um santinho de São Vito. Ninguém sabe como apareceu aquele santinho de São Vito na cabeceira da cama dela na UTI. Eu sei que essa mulher se recuperou. E o que foi considerado? Um milagre. Foi um milagre de São Vito. Então a bondade de Deus ali. E ela chegou pra trabalhar no fim da festa. Não só recuperou como veio trabalhar no fim da festa! Nos três finais de semana seguintes, a mulher que estava entre a vida e a morte. Então são coisas assim que favorecem a fé, né? Então tem isso aqui na festa de São Vito, tem isso. A paixão que é grande, que às vezes fica exarcebada pelos italianos que vêm aqui, e essa fé também que acontece. E aqui o que aconteceu? Ficou sendo o lugar dos italianos se reunirem. Porque você vai nas outras festas, não tem mais essa conversa, não são mais os italianos que tomam conta da festa, não tem mais italiano nas outras festas italianas, acabou. A única festa que tem os italianos e seus descendentes é a festa de São Vito. O que favoreceu? O lugar fechado, você está no lugar fechado que as pessoas vêm pra se encontrar. Ninguém vai pra se encontrar na rua, as outras festas são na rua,
misturou tudo. Aqui não, aqui continua aquele lugar que as pessoas vêm pra falar da sua mãe, pra trazer o seu pai, pra lembrar dos seus avós, o que restou da comunidade italiana está aqui.
P/1 – O Brás?
R – A São Vito, o Brás, isso, foi o que restou. Onde estão mais os italianos? Ou estão na Quarta Parada ou estão aqui (risos), não tem outro lugar.
P/1 – E você já foi pra Polignano?
R – Não. Mas ainda é o meu projeto de viagem, Polignano a Mare. Tenho um projeto de viagem para conhecer pessoalmente Polignano a Mare. Eu acho que já conheço Polignano de tanto que falam, de tanto que vi fotos, de tanto que assisti filmes, já conheço, mas eu vou lá ver pessoalmente. Eu quero ir lá pessoalmente visitar a cidade de Polignano a Mare. Tenho os contatos lá em Polignano, na região da Puglia, então a nossa festa é conhecida em toda a Itália.
P/1 – Ah, é, na Itália?
R – É, a nossa festa é conhecida. Porque a festa de São Vito lá em Polignano é três dias, aqui é dois meses. Dois meses é muita coisa. Eles fazem até um link no dia de São Vito com o pessoal aqui e nós participamos da missa lá aqui, fazia uma videoconferência e nós participamos aqui, todo ano eles chamam a gente pra participar da missa de São Vito lá (risos). Então, estamos quase que lá, né?
P/1 – Você contou também fora daqui dessa entrevista que você estava na igreja do Brás pesquisando alguma coisa, a história da igreja do Brás. Como está isso aí?
R – Eu me dediquei um pouco pra pesquisa da história da igreja do Brás. Porque o que aconteceu lá? Uma desmemorização. O pessoal foi morrendo e ninguém mais falou sobre a história, então ninguém escreveu. Ficou no esquecimento, acabou. Então o que eu estou fazendo é uma pesquisa. Não sou historiador, mas eu estou fazendo uma pesquisa que já está bem adiantada sobre o valor histórico e o valor artístico daquela igreja, uma igreja que foi criada por decreto de Dom João VI, tanto a igreja como a freguesia do Brás, isso em 1818. Mas já em 1730 já se mencionou essa devoção do Bom Jesus do Brás, que era o Bom Jesus de Matosinhos, o Bom Jesus Crucificado. Você vê a influência italiana. Mais ou menos em 1872, 74 se mudou a imagem, o Bom Jesus sofredor, aquele que tem a capa vermelha, mãos amarradas, coroadas de espinho. E isso, influência dos italianos. A do Bom Jesus de Matosinhos influência dos portugueses, essa de 1874 pra cá, influência italiana. Mandaram vir uma imagem de Barcelona, porque a Espanha sempre teve os grandes mestres na escultura de imagens em madeira, as imagens policromadas, então a influência italiana já, da imigração, de derrubar uma igreja velha feita com taipa, construiu uma grande igreja em estilo monumental, parecida com a Catedral de Milão. E todos os artistas que pintaram os afrescos, que fizeram as esculturas, são italianos, vieram da Itália pra fazer aquele trabalho. Ou eles encomendavam na Itália e traziam o trabalho pronto.
P/1 – A igreja é muito italiana então.
R – Muitos italianos. E não poupavam nada, não poupavam o dinheiro. Deixavam de comer, de dar o dinheiro pros filhos comerem pra mandar vir o mármore de Carrara pra fazer uma peça, pra fazer uma imagem. Então é influência. Por que? Era o ponto de encontro, a igreja era o ponto de encontro das pessoas. Podiam ir no teatro, cinema, sei lá, mas a fé que unia as pessoas, era o ponto de encontro. Não existia só a igreja, existiam as associações. Então dentro da igreja existiam várias associações, era ali onde que as pessoas viviam socialmente, estavam reunidas. O povo unido faz muita coisa. Se as pessoas se reunem faz muita coisa, as ideias afloram e você consegue transmitir sua ideia. Então o povo reunido faz muita coisa, o povo unido muda tudo, pra melhor se Deus quiser, sempre. E foi o que aconteceu, né? De uma igrejinha de nada começaram a criar as associações e tal do trabalho e fez uma igreja que se tornou a quarta igreja mais antiga de São Paulo. São Vito era capela, Casaluce era capela, tinha uma igreja Santa Cruz que era capela. E tudo era centralizado naquela igreja, igreja matriz. Mas é um trabalho que ainda tem algumas coisas pra ver, fazer uma pesquisas ainda no arquivo da cúria, mas a maioria das coisas, graças à internet (risos), graças a eu ter ouvido e escrito, eu ouvi muita coisa daquele pessoal antigo e escrevia, as anotações, a história não se perdeu. Até fotografias, uma vez um padre jogou fora o livro do tombo, um padre alemão velho: “Esse não serve pra nada”, jogou fora. Por um acaso eu estava passando do lado da igreja e falei: “Nossa, quanto saco”, era tudo saco de estopa. Eu falei: “Meu Deus, o que é isso daqui?”, fui lá e vi que era uma monte de álbum de fotografia, livros. Eu falei: “Nossa, os livros da igreja, jogaram fora!”. Eu não bobeei, estava com um amigo, falei: “Me ajuda aqui”, peguei aqueles sacos, levei numa associaçào que tinha ali do lado, dos Congregados Marianos. Eu salvei a história da igreja porque ia pro lixo. Então agora é meu direito fazer a pesquisa e entregar essa pesquisa pra que seja guardada. Devidamente registrada lá, porque não tenho interesse nenhum financeiro naquilo, a memória não pode jogar fora, você tem que preservá-la. Quanta coisa bonita, quanta gente que deu sua vida, quanta coisa bonita pra ensinar aos outros.
P/1 – E isso é um dos seus projetos pro futuro.
R – É projeto, sim. Com certeza. Pesquisar. Não sou historiador. Aí você faz um confronto com a história e você fala: “Não, isso aconteceu. Isso está escrito”, você não pode é inventar. Você pode sugestionar, vai falar: “Ah, se aconteceu isso é porque naquela época não se fazia aquilo”, é uma sugestão. Mas inventar não dá, você tem que se basear naquilo que foi escrito, né? Naquilo que deixaram.
P/1 – Agora você tem uma ascendência muito misturada, mas você escolheu a Itália, né?
R – É. Porque na verdade, a parte da minha mãe, tudo italiano. Meu pai veio morar com três anos numa rua onde só morava napolitanos. E a nossa afinidade sempre foi mais pro lado materno. Apesar que tinha, meu avô cuidava da gente, tudo, mas acabou sendo mais pro lado da mãe. O meu pai não tinha o contraponto de dizer: “Não, vamos ficar mais pro lado árabe”, então a Itália acabou ficando dentro da gente. Joga Brasil e Itália aqui é um sofrimento, né? Não consigo torcer contra a Itália. Se for contra outro país a gente vai torcer sempre pra Itália, se for contra o Brasil a gente vai ficar dividido. Você quer ver que na Copa de 70 Brasil e Itália decidiram o campeonato no México. Quando acabou o jogo, nós começamos a chorar (risos), o Brasil tinha ganhado de quatro a um e nós começamos a chorar. Todo mundo festejando na rua, sabe? E a gente chorando, começamos a chorar, que a Itália perdeu. Ainda umas pessoas que não eram italianos, tudo, vieram com aquela brincadeira com uma mesa com uma travessa de macarrão comer macarronada debaixo da nossa janela (risos) pra gozar da cara da gente. Ah, começamos a chorar, aí levamos tapa na cara: “Vamos, vamos, nós somos brasileiros também, vamos comemorar!”. Aí fomos pro meio da avenida comemorar com uma mesa, com macarrão, sabe? Mas no primeiro instante era tristeza porque a Itália tinha perdido (risos). Olha só. A gente aprendeu a gostar das coisas da Itália. Não tem como a gente fugir dessa emoção da italianidade que tem dentro da gente. E sem ir lá, sem conhecer, sem nada. Mas acho que é uma história tão bonita, a dos imigrantes italianos aqui, que não dá pra deixar de falar. Você sabe quando fizeram aquela novela Terra Nostra, eles vieram aqui procurar gente pra fazer figuração na novela. E nós fomos, eu fui fazer a figuração dos imigrantes. Mas foi tanta emoção que naquela figuração eu sentia o meu avô (emocionado). Foi muita emoção porque vestido com aquele trajes, tudo, a gente num alojamento, eu pude sentir o que eles passaram, né? A humilhação. Foi muita emoção. Foram dois dias de filmagem que a gente fez da novela que a gente pôde sentir o que aquela gente passou, do jeito que eles eram tratados, né? E o sofrimento de não saber o que vai acontecer, pra onde eu vou. Mas foi bonito fazer aquela figuração. Depois fomos fazer também a outra novela, Esperança, que também falava dos italianos. Aí fomos fazer uma figuração de um soldado da guerra de 32, um comandante da guerra de 32. Isso é coisa bonita, sabe? De saber que um povo colaborou, que ajudou a fazer a história de um país. É isso. Eu me emociono de falar isso, eu me emociono de contar isso porque a gente conviver com aquela gente simples, que a minha família sempre foi simples mas nunca deixou de fazer as coisas que deviam ser feitas e nunca deixou de viver com alegria. Ninguém morreu triste na minha casa, sempre morremos felizes, com a missão cumprida. É isso.
P/1 – E quais são seus sonhos pro futuro?
R – Eu não projeto muito o futuro, Lucas, não projeto muito as coisas pro futuro, eu vou vivendo cada dia por vez. Deixou de ter sonhos? Não, quero ver muita coisa ainda, quero ver. Mas eu não projeto muito o futuro porque ele é muito incerto. E eu tenho uma coisa, toda vez que eu projeto uma coisa pra fazer não dá certo, as coisas comigo têm que acontecer naquela hora e muito bem, se acontecer, aconteceu, se não acontecer, paciência. Mas que eu vou projetar o futuro não consigo.
P/1 – Mesmo assim, cem anos de São Vito, o projeto seu com a igreja...
R – É, isso são coisas que vão sendo feitas no dia a dia, né? Você não pode deixar de ter um norte. Os cem anos da Festa de São Vito. Também. Só que a gente ainda não está pensando nisso, porque a gente começa a pensar, você começa a ter algumas coisas assim mas não dá certo, nós temos muitos assuntos urgentes pra resolver agora. Se nós não conseguirmos resolver os assuntos urgentes agora não vai ter festa. Se a gente não conseguir resolver o que tem que ser resolvido e tentar fazer uma agregação de pessoas e de ajuda pra essas pessoas mais velhas, que já estão indo, a gente não consegue. Então tem que pensar o hoje. Acho que tudo na nossa vida nós temos que pensar o hoje, o agora. Amanhã, tem coisas que não dependem da gente, né? Você vive uma época de incertezas que você não sabe o que vai acontecer de dificuldades. Mas temos que resolver o assunto, os problemas hoje, agora, não temos muito tempo pra pensar lá na frente. Daqui dois anos a gente vai pensar nos cem anos, se a gente estiver aqui (risos).
P/1 – E pro Brás, o que você acha que vai ser o futuro daqui, dessa região, o que você vê?
R – Aqui, o Brás vai voltar a ser um bairro residencial. Pelo que a gente está vendo, as torres que estão sendo levantadas, os projetos imobiliários, ele vai voltar a ser um bairro residencial. Ele sempre foi um bairro residencial, mas o comércio e a indústria passaram por cima disso, né? Então hoje, onde eram aqueles grandes galpões, os grandes armazéns ou um monte de casa velha estão sendo derrubados pra se fazer as torres. Hoje mora muito mais gente no Brás do que dez anos, 20 anos atrás. Eu falei para você que a sua excelência, o Paulo Maluf, mandou derrubar tudo, um quilômetro de cada lado pra fazer a linha do metrô. Se não fosse Jânio Quadros a levantar os prédios tinha virado uma favela em pleno centro da cidade. Porque era tudo lugar descampado, derrubaram casas e mais casas, vilas e mais vilas, foram derrubando. E se não fosse aquele homem lá, Jânio Quadros, o Brás tinha sucumbido. Agora hoje de novo, com essa mentalidade de criar as residências, os apartamentos, eu acho que o Brás tem um futuro para que seja daqui a alguns anos um bairro residencial. Lógico, o comércio vai ter sempre, a indústria acho que não, não vai ser mais um bairro industrial, mas o comércio vai ter sempre, o comércio vai estar sempre aí. E as residências. E é ótimo porque as pessoas mais perto do centro, valoriza o bairro. Agora precisa melhorar muito o entorno, né? Precisa melhorar muito a limpeza, segurança, não tem. Você olha e é uma sujeira. Culpa das autoridades? Não, culpa das pessoas que jogam o lixo na rua, educação que as pessoas não têm. Uma sujeira que dá até vergonha, dá vergonha de você ver. Infelizmente é assim, em todo lugar que você vai.
P/1 – Mas você acha que vai melhorar.
R – Eu acho que vai melhorar, eu acho que sim. Espero ver isso, espero ver um bairro realmente com as pessoas, não vou dizer como antigamente, não. Como antigamente não porque nós vivíamos mais na rua do que dentro de casa, hoje não dá mais, né? Você não vai ver mais isso, essa amizade. O que favorece esses condomínios é que as pessoas cada um ficar no seu cantinho e você nunca vê-los, tudo o que vai fazer vai fazer de carro, então quase não tem a sua vida dentro do bairro. Mas eu acredito que vá melhorar, eu acredito. E a tendência é pra isso.
P/1 – Como é que foi falar um pouquinho da sua história comigo?
R – Olha, foi realmente um bate-papo gostoso de se falar, de se conversar. De poder voltar um pouquinho no tempo, de situar-se no presente, de podermos refletir algumas coisas, então olha, realmente, estou feliz de ter estado com você aqui e poder partilhar um pouquinho da nossa vida simples. Espero que seja um pouquinho de alento pras gerações futuras (risos), leve um pouquinho de esperança e amor que as pessoas precisam.
P/1 – Obrigado, Matheus.
R – Eu que agradeço, fico feliz, viu? E a casa nossa aqui está sempre aberta, não se esqueça que a casa aqui pertence a todos nós. Tá bom?
P/1 – Obrigado, viu Matheus?
R – Valeu então.Recolher