Meu nome é Renata, nasci em janeiro de 1973, no Pará. Os meus pais não tiveram base de escolaridade, meu pai já é falecido, ele era motorista e minha mãe era do lar. Eu sou de uma família de nove irmãos. O interessante é que de todos os nove irmãos, eu fui a primeira que teve nível superi...Continuar leitura
Meu nome é Renata, nasci em janeiro de 1973, no Pará. Os meus pais não tiveram base de escolaridade, meu pai já é falecido, ele era motorista e minha mãe era do lar. Eu sou de uma família de nove irmãos. O interessante é que de todos os nove irmãos, eu fui a primeira que teve nível superior completo, aí depois que eu entrei na faculdade, os meus outros irmãos também procuraram fazer faculdade.
Sou assistente social. Eu não tinha conhecimento da minha profissão quando entrei no curso. Não escolhi porque era isso que eu queria, mas a partir do momento que eu entrei, eu me identifiquei cem por cento com o curso.
Eu acho interessante que muitos colegas diziam assim na época: “Eu não quero essa profissão porque lida muito com pobreza, só fala em pobreza”, e eu me apaixonava cada vez mais por aquilo que a gente estudava, e depois da formação, foi melhor ainda, porque a gente se depara com uma realidade completamente diferente daquilo que a gente vê em sala de aula.
O que me fez gostar cada vez mais foi essa questão de saber que eu ia trabalhar com pessoas. Pessoas que normalmente estão em situações de risco, e isso me atraía, poder intervir naquela realidade. Isso que me atraía muito e atrai até hoje.
Eu tive a oportunidade de trabalhar em serviço social numa determinada empresa, e foi extremamente frustrante pra mim, porque a gente idealiza uma coisa e chega lá, a gente acaba não fazendo aquilo, porque não pode fazer na verdade. E aí eu já tinha tido uma experiência num abrigo. Eu me identifiquei com o trabalho, eu achei muito gratificante. Eu cheguei a trabalhar dois anos na empresa, saí e fui pro abrigo.
Quando cheguei no abrigo, eu não tinha a clareza de muitas coisas que a gente tem depois com o decorrer do tempo. Essa clareza vai tornando cada vez mais apaixonante aquilo que a gente faz, porque a gente começa a intervir na realidade das pessoas.
Meu primeiro atendimento num abrigo foi com uma menina, na época ela ainda estava entrando na adolescência, essa menina inclusive fez parte do projeto ViraVida. Ela estava na rede de prostituição e foi entregue para o abrigo pela diretora de uma escola, ela não estudava na escola, mas a diretora viu essa adolescente que estava na rede de prostituição e os traficantes estavam querendo matá-la, por conta de drogas. Eu lembro que ela ficou bastante arredia, não queria falar, ela tinha medo de conversar comigo, ela depois até falou assim: “Tia, eu tinha tanto medo de olhar pra senhora, eu pensei que a senhora fosse me levar presa daqui, pensei que a senhora não fosse deixar eu ficar aqui”. E hoje essa adolescente tem uma afinidade tão grande comigo, até hoje ela está no abrigo porque ela não tem uma família, nem pai, nem mãe, nem irmãos. Os pais dela foram assassinados e ela veio de uma outra cidade pra Belém. Ela tem uma afinidade muito grande comigo, bastante mesmo, um carisma, apesar de que aqui e acolá ela ter as recaídas dela, mas quando eu chamo sua atenção, ela sempre me ouve.
O papel da assistente social, nesse trabalho, é extremamente fundamental. Porque o assistente social consegue ver uma realidade que muita gente não consegue. Ele consegue se colocar no lugar do outro e nem todo mundo tem essa capacidade.
Trabalhar no abrigo é uma doação. A gente tem que se doar. E essa doação não é só de tempo, é de coração também. É uma doação em que tu te envolves, que tu passas a ser pra muitos até mesmo a família deles... O nosso abrigo, eu digo nosso (risos), porque eu me sinto como se fizesse parte, eu já estou nesse abrigo há quatro anos e é um abrigo que se diferencia das características dos demais. Essa dona do abrigo é como se fosse uma mãe para aquelas crianças e aqueles adolescentes que estão lá, eles são um referencial pra muitos deles. Muitos até por não terem mais nenhum vínculo com família chegam a chamá-la de mãe em algumas ocasiões. A gente não se sente um profissional que está longe, que faz o seu serviço e volta pra casa como se você batesse um cartão todo dia, não é assim. Tem um envolvimento, um envolvimento emocional, envolvimento de preocupação. “O que vai acontecer com eles, será que ela vai estar bem, se ele vai voltar pra família, se não.” E muitos verbalizam que não tem essa vontade de voltar pra família. Eles encontram nesse espaço de acolhimento mais carinho do que dentro da própria família e isso envolve cada um daqueles que estão dispostos a trabalhar lá.
Nós temos vários parceiros, empresários, profissionais liberais como médicos, advogados, têm muitas pessoas que trabalham em colaboração nesse abrigo. Como é um abrigo que vive de doações, então, nós temos parceiros que é para pagar profissionais, nós temos o parceiro de pagar cada despesa dentro do abrigo. Então, tem a grande parcela de contribuição com esses profissionais de fora que vem às vezes, principalmente de final de semana, para desenvolver trabalhos lá dentro: dentistas, médicos, igrejas também. Esse abrigo é um local ecumênico. Várias igrejas podem entrar e fazer o seu trabalho lá, quem quiser participar, participa, é um trabalho bem diferenciado.
Muitos jovens procuraram o abrigo por conta própria, outros são encaminhados via Conselho Tutelar, então mesmo pelo Juizado da Infância e Juventude. Não há um lugar específico de onde eles vêm. Esse abrigo trabalha com a região metropolitana toda. Inclusive, hoje nós temos lá quatro irmãos que são da Guiana Francesa que vieram para cá, para o Brasil, os pais faleceram e eles estão lá aguardando para verificar a possibilidade, nós estamos tentando entrar em contato com a mãe.
Primeiro, quando o jovem chega, é feito esse acolhimento e informamos pra Justiça, dependendo da idade dele, até os dezoito anos, informamos que ele está lá, aí enviamos um relatório dessa situação. Feito isso, a gente expõe as regras para ele e o inserimos em programas, como é no caso do Projeto ViraVida. Foram quatro inseridos no projeto, e aí os outros que não tem o perfil, encaminhamos também para outros parceiros, para inserir no mercado de trabalho.
Antes de mais nada, eles têm que respeitar a diretora e dona, não pode ficar entrando e saindo a hora que quiser, tem horário para sair, tem os dias de atividade, lá dentro do espaço tem as atividades, todos estão inseridos na escola. Então, tem os horários pra tudo, horário para dormir. É adolescente: “Ah mas eu quero sair, ir numa festa”. “Não, não vai.” Porque muitos que vêm têm esse perfil, estão acostumados, principalmente adolescente, quer curtir, quer ir para as aparelhagens, as festas que tem muito aqui no Pará, e isso não pode. Como é um abrigo diferenciado, tem as atividades dentro do lar, arrumar a sua cama, cuidar da sua higiene pessoal, do seu espaço onde você está, cuidar do seu espaço. É como se fosse realmente uma grande família.
Alguns precisam sair porque a gente encontra uma família, encontra alguém que acolhe, um família extensa, outros não. Outros estão lá, eles não têm um período: “Olha você pode ficar tantos meses”. Hoje, legalmente, são seis meses para ficar, de seis até dois anos para ficar dentro de um abrigo, só que é aquela história, a dona do abrigo, ela tem um coração enorme, então o que ela fez hoje? Hoje, ela alugou uma outra casa e esses adolescentes que se tornam maiores, que não têm uma família, não tem uma perspectiva de vida para sair dali, para ir com alguém, eles ficam nessa casa. E muitos já têm sua própria tem. Alguns já conseguiram comprar casa e viver sua vida, casaram e viveram a sua vida.
O perfil dos jovens engloba abuso sexual, rede de prostituição, ex-usuários de drogas, outros simplesmente é abandono mesmo. Abandono familiar, mãe e pai, sumiram, desapareceram e o Conselho Tutelar trouxe para o abrigo.
Esse bairro é um pouco perigoso, inclusive a rua onde o abrigo fica é bem perigosa. Tem muitos traficantes nas adjacências. Já fomos até ameaçados, porque é um espaço onde droga não entra. O traficante quer introduzir a droga dele em qualquer lugar... E o adolescente é um prato perfeito pra eles. Lá a gente recebeu ameaça por conta de não entrar, a gente tem todo esse cuidado de não ter esse acesso de drogas lá dentro.
O abrigo já existe há uns oito anos, mas com essa diretora já existe há vinte e três anos. Só que antes ela fazia esse trabalho sem vínculo com a Justiça, ela fazia por amor mesmo, há vinte e três anos ela fazia esse trabalho em um outro espaço, em outro bairro, e aí tem oito anos, basicamente, que ela faz esse trabalho como um abrigo, legalizado, via Justiça.
O projeto ViraVida, foi uma psicóloga voluntária lá do abrigo que nos indicou. Ela falou que eles tinham um projeto com o SESI e que eu viesse aqui saber como seria. Quando eu vim pela primeira vez, eu imaginei que a gente pudesse inserir qualquer um, qualquer um dos que nós tivéssemos lá. Aí depois com os esclarecimentos a gente percebeu que não era dessa forma e que existia um perfil para entrar no ViraVida.
Como nós tínhamos jovens que estavam com esse perfil, na rede de prostituição e vulnerabilidade social, encaminhamos pra cá. É feita a triagem aqui no ViraVida. Aí nós mandamos, na época, se não me engano foram seis, e aí, apenas quatro ficaram. Porque eles têm que ter uma determinada escolaridade. E o nosso grande problema no abrigo é essa questão de escolaridade. Como eles estavam sem vínculos, a escolaridade deles era baixíssima.
A perspectiva de estar inserido no mercado de trabalho foi uma motivação muito grande. Não só para nós, mas como pra eles. Quando os quatro foram aprovados e começaram a frequentar o ViraVida, não só eu, mas como toda a nossa equipe profissional nos sentimos um tanto realizados, porque é algo que a gente luta, a gente sabe que hoje o mercado de trabalho tem uma exigência. A gente vê: como é que a gente vai fazer isso? Quem é que vai abrir as portas pra um menino que veio com um perfil como esse se não tiver uma parceria? E o ViraVida dá essa oportunidade, porque ele prepara por completo, até mesmo na questão educacional, te ensina o comportamento, ensina tudo.
Adolescente que não tinha nenhuma perspectiva, hoje pensa em ser um psicólogo, e ainda diz assim: “Eu quero ser um psicólogo para trabalhar aqui”. Então assim, isso é o máximo para nós. Isso só somou, ratificou aquilo que eu queria pra minha vida como profissão, porque eu posso ver resultados.
O ViraVida também nos capacitou para trabalhar com eles, não só os que estão no projeto, mas também os que temos no abrigo. Então, pra mim significou um crescimento profissional também, porque a gente pode trabalhar dentro do abrigo muitas coisas que nós aprendemos com o ViraVida, terapia comunitária. Foi muito importante essa parceria.
Quando nós tivemos essa capacitação através do ViraVida, a gente conseguiu ver algo que pra nós era obscuro, a gente muitas vezes dizia: “Mas por que esse menino é assim? Por que é que não muda?”, e aí quando nós fizemos essa capacitação, a gente conseguiu ter essa questão de se colocar realmente no lugar dele, e isso foi um crescimento pra nós, porque se colocar no lugar do outro, isso aí é muito importante. Porque no momento que eu me coloco no lugar do outro, eu sinto a dor dele, eu sinto o que ele tá sentindo. Quando a gente se coloca no lugar do outro, esse sofrimento te traz angústia, mas que te faz querer mudar, não uma angústia que te traz para baixo, uma angústia que te faz sentir menor, não, mas que tu vais lutar pra mudar. E é isso que faz com que nós venhamos a buscar uma mudança pra eles.
O meu grande sonho profissional é um dia que não exista mais a exploração. Exploração em nenhum aspecto, dessas crianças e adolescentes.
Eu espero que o ViraVida não pare por aqui, que ele continue, esse projeto não deveria ser um projeto, deveria ser uma política pública, infelizmente não é, mas eu espero que o projeto continue por muito tempo, porque realmente ele tem virado a vida de muitos jovens.Recolher