Entrevistadoras Paula Ribeiro / Jéssica Hipólito
26/07/2021
Realização: Museu da Pessoa
Projeto: Mulheres da Maré Dignidade Resiliência e Arte
Entrevista número MDRA_HV001
00:01:50
P/1 - Bom, Rafaela por favor, peço que nos conceda o nome completo, sua data de nascimento e o local de nascimento, por favor!
R - Rafaela Otaviano Feitosa, nascida em 15 de maio de 1980, nascida no Rio de Janeiro, Comunidade Parque União.
00:02:16
P/1 - Sobre seus pais, nome completo e cidade de origem, se você souber!
R - Minha mãe, Maria Otaviano de Carvalho, Ipu, Ceará, Francisco Saraiva Feitosa, Ceará, eu não sei o povoado exato, mas próximo também da minha mãe.
00:02:42
P/1 - Você sabe a data de nascimento dos seus pais?
R - Não, não sei. Eu sei só se vasculhar nos documentos.
00:02:49
P/1 - Sua mãe tem quantos anos?
R - Se ela estivesse viva, teria entre 66 e 67 anos.
00:03:00
P/1 - Sobre seus avós. Você conheceu os avós, sabe o nome dos avós, maternos e paternos, Rafaela?
R - Meus avós maternos, Matilde Otaviano de Carvalho e Francisco Otaviano Neto. Meus avós paternos, Isabel e Onésio Saraiva Feitosa.
00:03:43
P/1 - Você conhece um pouco sobre a história dos seus avós? De onde eles vêm, qual é a profissão, se alguém veio para o Rio de Janeiro. Conta um pouco pra gente, essa história que é conhecida sobre os seus avós.
R - Bom, meus avós paternos, eu não tinha contato nenhum. Os maternos, meu avô faleceu quando eu era ainda muito criança, e minha avó eu vim conhecer aos dezessete anos. E já aqui no Rio, foi quando ela ficou doente na sua cidade, precisou cuidar da saúde e minha tia trouxe ela pra cuidar aqui, foi quando a gente se conheceu.
00:04:25
P/1 - Em termos de origem, como você se reconhece enquanto cor e etnia? Você comentou que vem de família de origem indígena. Conte um pouco dessa história.
R - Minha mãe teve duas filhas, minha irmã saiu clara e eu saí com um pouco mais de cor, puxando a família do meu pai, na verdade a mãe do meu pai, ela era índia mesmo de aldeia. Ela saiu da aldeia para casar com meu avô, e aí eu puxei esse lado, a cor e os traços dela.
00:05:10
P/1 - Você conhece essa trajetória da família para o Rio de Janeiro? Quem foi da família, o primeiro a vir para o Rio? Você sabe o motivo de ter vindo? E a época em que vieram?
R - A época exata eu não sei, meu pai desde muito garoto já viaja muito, trabalha em São Paulo e depois voltava, era tipo turista na própria cidade. Minha mãe, quando ficou maior de idade, resolveu trabalhar em cidade grande, aí veio pro Rio, aqui reencontrou meu pai e se juntaram.
00:05:54
P/1 - Mas eles já se conheciam?
R - Se conheciam lá. E lá por ele ser tipo turista, muito moderno, os avós e os pais da minha mãe não simpatizavam muito com o perfil dele.
00:06:09
P/1 - O que era ser muito moderno naquela época?
R - Era roqueiro, cabeludo, se vestia muito pra frente naquele tempo, as pessoas que eram da região, meio que distanciava.
00:06:39
P/1 - Mas a origem da sua família, é de área rural? Eles eram agricultores? Eles moravam na cidade? Vendiam algum tipo de produto, faziam comércio? Você conhece um pouco dessa origem?
R - Eles eram donos de muitas terras lá, tanto que o lugar ganhou o nome da própria família. E só o meu avô, pai da minha mãe, veio para o Rio trabalhar, ele era relojoeiro. Naquela época se ganhava muito bem, ele vinha e passava um tempo, trabalhava bastante, mandava dinheiro, vinha trabalhava três meses, voltava com dinheiro pra casa e assim por diante. Enquanto isso, tinham plantação, porém era para o próprio consumo, não era pra venda.
00:07:32
P/1 - Você pode contar pra gente, como é o nome da cidade, a partir do sobrenome da família de vocês? E onde ela está situada no mapa?
R - O nome da cidadezinha, que na verdade era um povoado, que hoje é chamado de bairro, talvez, mas era um povoado que as terras, em sua grande maioria, eram da família da minha mãe, que deu o nome de Otavilândia, que fica no interior do Ceará, onde o Município é Ipu, mas é depois de Ipueiras, pra dentro, bem interior mesmo. Esse nome, Otavilândia, hoje as pessoas já conhecem, as pessoas que são de lá e viajam de um lado para o outro, já conhecem bem, outras nem tanto, até é citado a Bica do Ipu. Quando minha irmã foi lá, estava seca, mas é muito conhecida.
00:09:41
P/1 - Você conhece ou já visitou?
R - Não, eu nunca fui lá!
00:09:44
P/1 - Sua mãe voltou pra lá, depois que ela veio para o Rio?
R - Não, depois que ela veio para o Rio, nunca mais.
00:09:49
P/1 - O que a sua mãe conta? Ela conta sobre a origem dela? Ela é uma pessoa que gosta de falar sobre o passado? Comenta com vocês, um pouco da origem, da vida, do viver, do que se comia, do que se plantava… ?
R - Ela contava, ela é falecida. Ela contava muito sobre as artes que ela fazia, que ela escondia roupas atrás da casa pra ir para o forró, ela ainda garota, destelhou a casa pra sair escondida, as colegas já esperando no caminho. Quando o pessoal religioso bater na porta, ela se escondia no mato e jogava pedras.
00:10:37
P/1 - Por quê?
R - Porque ela nunca gostou, a avó dela era espírita, não sei exatamente, ela nunca gostou dessa ladainha, ela sempre falava isso; E aí ela achava muito chato, então ela se juntava com as amigas e fazia isso.
00:11:09
P/1 - Ela contava, e cantava alguma cantiga pra você? Ela te ensinou alguma receita? Como era um pouco a sua mãe? Quais lembranças da sua mãe, dentro de casa?
R - Ela sempre focava na alimentação mais saudável possível, por questão de saúde, música de lá da cidade dela eu não conheci nada, ela tinha umas cantigas, mas eu não me recordo, mas eu vim aprender música com as músicas daqui, que eu ainda escuto o que ela gostava.
00:11:54
P/1 - E você poderia contar pra gente, essa chegada da família aqui na região da Maré? Você conhece essa chegada? Quem chegou primeiro? Foi morar onde? Como vieram?
R - Quem chegou aqui foi meu pai, aqui no Parque União.
P/1 - Nos anos sessenta, setenta?
R - É, acho que por volta de setenta. Que aí um primo dele, tinha um bar na Rubens Vaz, e a minha tia, que é prima, mas eu tenho como tia. E aí essa prima dela, já morava no Parque União, que foi quando ele se juntou com a minha mãe e trouxe minha mãe pra cá. A minha mãe morava em Copacabana, morava em vagas de aluguéis lá, trabalhava por lá e morava por lá com os irmãos.
00:13:00
P/1 - Mas eles comentavam sobre essa vinda? Como vieram? Como foi a viagem?
R - Foi pra trabalhar. No Nordeste não tem esse trabalho que todo mundo almeja, ganhar dinheiro, passear na cidade grande. Lá não é tão assim, é o forró no final de semana, uma festa no quintal de casa, e aí essa coisa da grande cidade instiga muito.
00:13:32
P/1 - E a história da sua mãe em vir pra cá, morar em vaga. Ela comentava sobre isso, esse começo de vida na cidade do Rio de Janeiro?
R - Meus tios, os irmãos dela, já trabalhavam aqui em obras, aí moravam nas vagas e foi quando ela veio; ah, quero ir também. Essa coisa dos filhos saírem de casa, aí veio para costurar, final de semana o forró de sempre, feira de São Cristóvão. E era isso!
00:14:12
P/1 - Você comentou que seus tios viam pra uma obra. Alguma obra pontual na cidade? O Rio de Janeiro recebeu muitos homens vindo do Nordeste para algumas obras.
R - Eles trabalhavam em obras grandes, eles eram armadores, que armavam ferragens, eles trabalhavam dessa forma.
00:14:42
P/1 - O Rio foi capital até 1960 .
R - É… Grandes prédios, Barra da Tijuca, centro da cidade, o meu tio mais velho trabalhou para uma empresa que faliu ao longo do tempo, Engenharia Fortes era o nome, hoje não existe mais.
00:15:04
P/1 - Tinha no Rio uma grande empresa chamada, chamada Fortes Engenharia, João Fortes Engenharia, alguma coisa assim.
R - Era isso aí.
P/1 - Eles eram construtores.
R - Até então, quando ele adoeceu, era a assinatura que ele tinha na carteira.
00:15:20
P/1 - E sobre esse forró, na Feira de São Cristóvão, a sua mãe contava alguma coisa?
R - Era a diversão de sempre, né! Porque antigamente era a céu aberto, não era como é hoje. E aí, tinha até parente que tinha barraca e tudo, porque na verdade era comida, como se fosse a feira da Teixeira, vendia frutas, carne, comida, roupas, sandália, e tinha o forró. E era assim, era o normal, toda a semana aos sábados
00:15:59
P/1 - Quer dizer, um lugar aqui no Rio, eles conseguiam se aproximar um pouco dessa cultura do Nordeste, a música, a comida. Então vamos falar um pouco sobre a sua infância, a sua casa. Você nasceu exatamente onde? Onde era o endereço, falar um pouco da sua casa, você pode rememorar?
R - Bom, era uma quitinete no Parque União, na rua Roberto Silveira, bem no finalzinho, na época as últimas ruas ainda eram de terra, terra batida, nasci no hospital de Bonsucesso, sou a segunda filha.
00:16:49
P/1 - Como chama a sua irmã?
R - Claúdia
P/1 - Nome todo dela, data de nascimento?
R - Cláudia Otaviano Feitosa, 15 de maio de 1979.
00:17:03
P/1 - Ela é a sua única irmã?
R - Única irmã de sangue, que a gente adotou ao longo da vida, outros irmãos.
P/1 - Então nos conte um pouquinho…]
R - A gente tem o Vladimir Fernandes, que é natural do Pará, que por coincidência da vida ele veio morar no Parque União, com a namorada, e essa namorada era amiga da minha irmã. Só que essa namorada foi embora e ele ficou, ali ele disse: ah, não vou ficar sozinho, vamos morar todo mundo junto. Aí, por respeito, um cuidando do outro, nos tornamos irmãos e isso já tem doze ou treze anos.
00:17:44
P/1 - Ele tinha quantos anos?
R - Ele já veio adulto né! Ele é militar, volta e meia ele troca de estado, e ele veio parar no Rio de Janeiro, conheceu essa menina e ficou por aqui. Porventura ele foi transferido para o Rio, como ficou próximo pra ele, ele ficou morando com a gente.
00:18:11
P/1 - Quando você fala, a gente é quem? A sua mãe, sua irmã?
R - Minha irmã, ele veio morar com a minha irmã, na verdade. E como a gente sempre morou um do lado do outro, praticamente, a gente procurou se aproximar, um cuidar do outro. Que é, vamos na feira junto, vamos fazer mercado junto, vamos comprar roupa junto, vamos passear junto. Sempre foi tudo muito junto, sempre muito unido, e aí minha mãe ao final da vida dela, a gente morou na mesma rua, questão de números. Quando eu saía na minha porta, eu já via a porta dela e a porta da minha irmã aqui, e meu irmão morava em cima. E sempre foi assim, muito próximo.
00:18:59
P/1 - E talvez esse sentimento de proximidade da família, fez vocês acolherem o Vladimir. Porque, o que move vocês a acolher uma pessoa que não conhecem, quer dizer, pra cuidar? Pra ajudar? O que moveu essas três mulheres, no fundo né?
R - Pois é, porque eram só mulheres, aí chega um menino que não tenha a ver com a história. Não foi criado em favela, porque a favela é muito acolhedora, e aí ele foi criado de uma maneira totalmente diferente, filho de militar, aquela coisa… E a gente assim mais maleável, deixamos ele mais confortável. Ele foi ficando, foi ficando, hoje a gente já conhece uma tia dele, que volta e meia ela chama a gente pra passar o final de semana lá.
00:20:00
P/1 - E vocês acolherem outros jovens, ou não?
R - Ah, teve sim. Teve um outro amigo também, da minha irmã, que veio morar com a namorada, e acabou ficando, ele passou um tempo mas acabou voltando pra cidade dele. Passou um bom tempo, dividia as contas, pagava o aluguel, fazia os supermercados, tudo junto. Almoçava, jantava, dormia, e a gente dormia tudo muito juntinho, aí quando um acordava, acordava todo mundo, porque tinha que abrir a porta e sair todo mundo pra um passar, e era assim.
00:20:37
P/1 - Conta então pra gente, essa memória dessa casa da sua infância, você consegue descrever? Como é que era a disposição, como é que era o espaço da cozinha, quem eram os vizinhos? Um aspecto que eu gostaria que você mencionasse, era sobre religiosidade, da sua mãe aqui no Rio.
R - Minha mãe sempre foi católica, e no caso logo depois de eu nascer, um tempo depois meu pai faleceu. E aí como era ele quem trabalhava e o sustento vinha do trabalho dele, aí minha mãe foi pra Magé, que é o interior do Rio, passou mais um tempo lá até ela se reestruturar e voltar a trabalhar pra cuidar da gente, e voltamos pro mesmo lugar. Aí depois ele alugou um lugar, que antigamente era só quarto, pia e banheiro eram do lado de fora. Aí ela por muito cuidado, ela alugava dois quartos, um pra fazer só de cozinha, pra gente não se aproximar de fogão e nem facas, essas coisas, e o outro só para dormir. E aí dessa casa, ela ficou meio traumatizada, porque eu caí do terceiro andar, por duas vezes. Aí ela se mudou de lá, aí fomos morar na rua da Paz, onde a gente passou quase vinte anos. Lá já era quarto com cozinha, o banheiro era do lado de fora, mas era só pra gente também e ali foi a maior parte que a gente passou, tinha a dona que morava embaixo, Dona Luiza, ela tratava a gente como as netas dela, porque fomos as primeiras crianças a chegar lá pra morar. E de início não aceitava criança, e alguns lugares ainda não aceitam.
00:22:50
P/1 - Por que você acha que não aceitam crianças?
R - Porque acho que crianças fazem barulho, quebram a casa, criança é pirracenta. E aí quando minha chegou lá pra alugar, tinha um banquinho do lado de fora, e era um casal de velhinhos, aí: ah, não aceitamos crianças. Mas minha mãe arrumava a gente, muito bonitinhas, lacinho no cabelo, aí a senhora falava assim; não nego, são tão bonitinhas, deixa. A gente passava o dia na escola, chegava da escola era comida e cama, pra no dia seguinte de novo. A gente só ficava sábado e domingo em casa, vendo televisão, só. E aí a dona Luiza tratou a gente como netas, a vida inteira.
00:23:40
P/1 - Você consegue descrever o ambiente da casa? Era pequena, mas lembra de alguma louça, algum quadro na parede, uma fotografia, de alguma coisa que a sua mãe havia trazido com ela do Ceará? Você sabe, sobre isso?
R - Não, ela não carregava nenhuma recordação assim, item, nada. Ela tinha as plantas dela no quintal, que era a paixão dela. Todo dia ela conversava com as plantas, final de semana ela trocava a terra, aí conversava um pouco mais, como fazia todo dia, que era a paixão dela.
00:24:30
P/1 - Você falou que a sua mãe vestia vocês, enfeitava. Como é que vocês se vestiam? Você pode nos descrever?
R - Ela mesma fazia nossas roupas, ela era costureira, então ela fazia aqueles vestidos que hoje em dia nem se vestem as crianças assim, aqueles vestidinhos de golinha, manga fofinha, os lacinhos no cabelo, sapato. Ela fazia crediário pra nós termos sapato bom, porque hoje em dia você tem até armário de sapato, mas antigamente não. Era crediário pra quem não tinha condições de comprar a vista.
00:25:11
P/1 - Você lembra onde ela comprava? Se ela precisava sair da região da Maré pra comprar coisas pra vocês, ou comprava tecido, ela costurava à mão, costura a máquina? Como que era Rafaela?
R - Grande parte ela criou a gente com uma máquina caseira, eu acho que foi meu pai quem deu para ela, pra comprar os sapatos ela ia alí em Bonsucesso, no centro de Bonsucesso, onde tinha uma grande rede de lojas, a Elite Calçados, ela comprava lá. Aliás, a minha madrinha que tirava no crediário pra ela.
00:25:54
P/1 - E ela? Como ela se vestia?
R - Ela se vestia muito bem. Ela mesma fazia as roupas dela, muito bem alinhado, o que ela via de bonito assim na loja, eu posso fazer isso, então ela fazia pra ela mesma. Ela se vestia muito bem.
P/1 - Descreva. Usava mais vestido, usava saia…
R - Ah, ela fazia umas saias plissadas, muito marcadas, alguns chamam de coletes mas na área da moda, era spencer que chamava, um tipo de colete só que mais comprido, blazer, camisa social pregueada, bermuda social com a bainha virada, essa era a forma que ela se vestia.
00:26:48
P/1 - Aviamentos ela comprava por aqui também, ou precisava ir a Bonsucesso, ao centro comprar?
R - As vezes ela comprava aqui, no armarinho do Senhor Fernando, no Parque União, quando era coisa de última hora. mas ela comprava mais no centro da cidade.
00:27:09
P/1 - Sabe aonde? Como é que era a ida até o centro da cidade? Ela ia sozinha, levava vocês, como é que era?
R - Não, às vezes era na saída do trabalho, ela aproveitava o caminho e aí passava por lá. Mas ela sempre procurava , ou ela ia no sábado mesmo, porque na maioria das vezes, ela procurava trabalho próximo de casa, que não precisasse pegar ônibus para estar sempre próximo das filhas.
00:27:36
P/1 - Ela trabalhava aonde? Quando ela trabalhava fora daqui da região?
R - Ela trabalhava ali na Teixeira Ribeiro, tinha uma fábrica que ela trabalhava tanto que o moço falou: “Maria eu não tenho como assinar sua carteira”, já tinha três assinaturas, porque ela trabalhava e aí pedia um tempo pra cuidar das filhas. “Não, eu tenho que dar atenção às minhas filhas”, aí ela pedia as contas, aí depois ela: “Senhor Vandir, eu estou precisando de trabalho”, aí ela voltava, ou ele dizia: “Não Maria, eu tenho trabalho pra você fazer em casa, não tem mais como assinar a sua carteira”. Aí ela pegava o serviço e fazia em casa.
P/1 - Qual serviço, Rafaela?
R - Era roupa feminina, roupa de seda, era vestido, era assim…
00:28:26
P/1 - É, nos anos oitenta, era o período da confecção da roupa pronta. Ela fazia em casa pra essa fábrica?
R - É.
P/1 - Eles davam molde, ela costurava?
R - Já vinha cortado, separado e tudo bonitinho. Ela só montava a peça e entregava pronta.
00:28:45
P/1 - E você tem essa memória da mãe costurando em casa? Ela ouvia rádio, ela ouvia música? Como é que era?
R - Ela tinha um radinho. Ela ligava o rádio, sentava lá na máquina, inclusive eu queria aprender e ela não queria deixar. Ela dizia que era um trabalho muito sofrido, e realmente, ela ficava por horas e horas né! Sentada e afetando a coluna, ela não queria de jeito nenhum, dizia que eu tinha que estudar, que eu ia ser outra coisa, mas que não deveria ser costureira. Aí quando ela levantava da máquina, o tempo que ela ia ao banheiro, tipo faltava só uma lateral para costurar, meus pés mal conseguiam alcançar o pedal, eu sentava lá, minha irmã olhava, e como ela prendia a costura eu ia e costurava reto. Quando ela voltava, ela estranhava, aí minha irmã não falava nada, até o dia em que ela viu e disse: ah, vou te ensinar direito. Aí ela me ensinava, é assim: eu vou fazer a comida e você vai fazer só isso aqui. Aí eu fui aos poucos, até o dia em que ela saia pra trabalhar fora e eu cismava de sentar e fazer uma coisa inteira, uma peça inteira.
00:30:19
P/1 - Está aí a origem da Rafaela modista atual. E você lembra por acaso a primeira roupa que você fez, completa?
R - Então, roupa eu não tenho muito essa coisa, porque ela desiludiu de vender roupa, ganhar fazendo roupa para si própria, sem precisar das fábricas e tal. porque até então, surgiram muitas lojas com roupas barata, e as pessoas acham mais prático ir lá e comprar pronto, do que mandar fazer, porque o custo é mais alto. E volta e meia eu lembro sim, que foi que a cunhada da minha irmã, ela era ainda muito criança, ela não tinha o vestido de caipira pra ir para a escola, e antigamente ainda se valorizava as roupas de chita, agora está voltando, mas na época não. Aí eu emendei um monte de retalhos, franzi, fiz cinturinha, eu peguei uma sobra de renda e coloquei na bainha do vestido, eu pedi ajuda a minha mãe pra fazer aquela manga fofinha, coloquei uma fita para amarrar a cintura, a golinha toda bonita. Foi a primeira roupa que eu fiz. Eu tinha uns treze anos.
00:32:00
P/1 - Você está falando dos anos noventa, né?!
R - Sim, isso.
00:32:05
P/1 - Eu queria conversar com você, sobre o período da época da escola, mas antes disso se você puder contar mais um pouco, como era a sua vizinhança na infância no Parque União. Além dos senhorios, como é que era, quem eram os vizinhos? Como era a rua? Como era o fornecimento de água e de luz? Tinha vendedores ambulantes aqui na região? Você lembra disso na sua infância?
R - Os vizinhos foram os melhores, os melhores que inclusive são amigos até hoje. Tinha a vizinha Socorro, que era porta com porta, ela trabalhava e chegava no período da tarde, chegava tomava café e oferecia pra gente, uma broa ou qualquer coisa ela oferecia pra gente, quando a gente estava em casa, ela sempre foi muito amiga da minha mãe também. Tinha os outros vizinhos do outro lado da rua, esse era no nosso quintal, porque lá era um prédio de sete casas alugadas, aí tinha os vizinhos da frente que era outra Socorro também, ela tinha uma faixa de cinco ou seis filhos, e aí a minha mãe ficou amiga dela. E aí, toda noite, época de calor elas sentavam na calçada para conversar e as crianças pra brincar, sempre. E a gente cresceu assim, brincando com a vizinhança, de vez em quando a gente brigava uns com os outros, mas era coisa de criança.
00:33:41
P/1 - Alguma brincadeira específica?
R - É, pic pega, mas eu sempre a mais nova, eu sempre fui café com leite. Os vendedores, tinham o peixeiro, que passava sempre de manhã, ele gritava: oh o peixe. Ele ainda é vivo, é o que eu mais lembro, é ele. Aí às vezes passava um pessoal vendendo aipim no carrinho de mão, alguns ainda aparecem nos dias de hoje, mas é mais raro, mas aí volta e meia, é o que eu lembro.
00:34:36
P/1 - De comida, o que a sua mãe cozinhava?
R - Era o tradicional, arroz, feijão, costela, galinha, frango ensopado.
P/1 - Você cozinha?
R - Bastante (risos).
P/1 - Aprendeu com ela, alguma coisa?
R - Tudo eu queria sempre eu mesmo fazer, ela saia pra trabalhar e o fogão ela não deixava mexer, mas aí com o tempo ela foi deixando. Mas eu me meto em tudo.
00:35:19
P/1 - Vocês ficavam sozinhas em casa? As duas irmãs.
R - Na época das férias, sim.
00:35:25
P/1 - Mas e escola, como é que vocês iam? Que escola você estudou? Como era o transporte?
R - Bom, ainda pequena no início da escola, ela pagava uma escola e ficava muito puxado pra ela, que era particular e ela pagava, antigamente era meio período, mas ela pagava um período inteiro. Aí a moça da escola era bacana, entre um período ou outro, minha mãe deixava a marmita para cada uma, aí ela dizia que não precisava esquentar, ela colocava numa térmica que aguentava até a hora do almoço. Aí ela deixava uma esteira pra gente descansar, entre esse intervalo entre um período e outro, coisa de uma hora, minha mãe pegava a gente no final do dia. Então digamos que se fosse meio salário mínimo, cada mensalidade, ela pagava tipo quatro mensalidades. Então ela trabalhava muito.
00:36:49
P/1 - Rafaela, você estava contando um pouco sobre o jardim de infância, Não é isso?
Sim, era.
P/1 - Onde era? Quem era a senhora cuidadora?
Bom, o nome da senhora eu não lembro, mas era na rua da paz, a escola eu não sei se era jardim de infância, mas era Turma da Mônica. Hoje no local é uma padaria, mas foi escola por longos anos e a gente ficou lá por um tempo, até a minha mãe conseguir vaga no Brizolão, que foi quando ela conseguiu economizar um pouco mais.
00:37:33
P/1 - Você se lembra de outras crianças deste jardim de infância?
R - Não, não me lembro!
00:37:39
P/1 - Sua mãe tinha uma luta, né?! Você comentou que o seu faleceu, seu pai está enterrado no Rio?
R - No cemitério do Irajá, é o que eu sei.
00:37:50
P/1 - Ele faleceu em que ano? Você se lembra?
R - Eu não tinha nem 2 anos de idade.
00:37:59
P/1 - Você não tem memória do seu pai?
R - A memória que eu tenho, é que a minha fala travou, eu estava no início da fala. Minha mãe dizia que quando tocava a música do Jornal Nacional, era o momento em que ele chegava, aí eu já ia a caminho do portão com os chinelos dele. Aí depois que ele não veio mais, eu continuei indo, e isso a criança não entende. Isso interferiu na minha fala, comecei a ficar doente, foi quando a minha mãe decidiu sair daquele lugar, porque tinha as memórias dele. Aí foi quando a gente foi passar um tempo com a família, lá em Magé, que é tia da minha mãe, ela que acolheu a gente e ficamos lá por um tempo. Lá a gente foi criado soltas, no mato, brincando com os primos, lá a gente pode ficar um pouco mais a vontade e esquecer um pouco disso.
00:39:15
P/1 - Seu pai faleceu do que?
R - Ele foi assassinado, na rua mesmo em que morava. Uma briga de bar, e naqueles anos qualquer valentão tinha um três oitão, aí a arma dele travou e do outro rapaz funcionou
00:39:47
P/1 - Vamos voltar pra sua mãe, que firme educou duas meninas, trabalhava, e eu acho muito interessante a história da Dona Maria, uma mulher forte que mesmo trabalhando fora e cuidando de vocês, Essa decisão de sair daqui…
R - Nesta época, foi no Irajá que isso tudo aconteceu!
P/1 - Ah tá.
R - Não foi aqui. Ela depois retornou pra cá, porque essa prima do meu pai, que a gente tem como tia, a gente não teve muita aproximação com a família dele e nem da minha mãe também, e aí no caso essa prima que a gente tem como tia, ela também acolheu; não Maria, eu vou arrumar um lugar aqui, pra vocês. E aí ela que saiu a procura, também de um lugar, quando minha mãe voltou a trabalhar. Aí pra morar perto, ela disse que cuidava de nós quando minha mãe precisasse.
00:40:50
P/1 - Sua mãe casou novamente?
R - Não. Ela determinou que homem nenhum iria vir a mandar nas filhas dela. Assim como homem nenhum, dizer o que ela teria que fazer ou não.
P/1 - E foi assim?
R - Sim. Era assim, quando ela saia, namorava, mas dizia: não, fica lá, aqui sou eu e minhas filhas.
00:41:18
P/1 - Vamos lembrar do período do Brizolão, como a gente chama e para deixar registrado, as famosas escolas CIEP. Qual foi o CIEP que você estudou e como é essa sua lembrança? Entrou em qual época, em que série, como vocês iam, tinha uniforme, como era o material escolar, naquela época, como era o ambiente da escola. Quais são suas lembranças lá, na época?
R - Eu tenho as melhores lembranças, foi a melhor escola da minha vida. Eu e minha irmã entramos na mesma época, mesmo ano, eu ainda não tinha completado a idade, pois só entrava com sete anos, e eu ia completar sete anos em oitenta e sete, mas só em maio. Mas aí a minha mãe dizia: mas ela sabe fazer alguma coisa, ela estava na escolinha, ela aprendeu lá. Vou então passar alguma coisa pra ela escrever, e eu sabia o nome todo, sabia fazer a e i o u. Até então eu entrei mais adiantada que outras crianças, mas eu ainda tinha essa coisa de não interagir muito, por ter tido esse trauma e esse atraso, a minha mãe me chamava de neném e tinha muito esse cuidado comigo, então eu era meio que difícil, aí as minhas primeiras professoras me davam comida na boca. Na hora do refeitório, me colocavam próximo, eu era a menor, sempre a menor, e aí me davam comida na boca, aos poucos fui pegando amizade com outras crianças e aí foi ficando melhor, mas foi a melhor escola que eu estudei na minha vida.
00:43:07
P/1 - Como era o nome?
R - Yuri Gagarin
00:43:11
P/1’ - Como era o ambiente? Quem eram os seus colegas? Como vocês iam? Tinha uniforme?
R - Minha mãe que fez, na época não tinha um uniforme, ou se tinha, davam para as crianças mais necessitadas, mas os nossos foi minha mãe mesmo quem fez. Os sapatos eram comprados no crediário, que era pra durar o ano inteiro.
00:43:39
P/1 - Essa coisa do sapato, o sapato era pra durar?!
R - Pra durar.
P/1 - Vocês tinham um sapato?
R - Um sapato para o ano inteiro.
P/1 - E era sapatinho social?
R - Era aquele sapato mesmo escolar, eu não sei se era couro, mas é um material bem resistente, sapato do mesmo estilo daqueles de bonequinhas, e era pra durar o ano todo e durava.
00:44:07
P/1 - E material escolar, você se lembra?
R - Era a minha mãe quem comprava.
P/1 - Mas você se lembra do seu material? Tinha um caderno, não era como os de hoje, mas tinha um caderno pra cada matéria, um caderno grande?
R - Não, antigamente nas primeiras turmas, CA, eram folhas da escola mesmo que a gente preenchia. Nas primeiras séries, eu não usei caderno, acho que usei da primeira série em diante, mas na maioria das vezes eram folhas que a gente preenchia os deveres.
00:44:48
P/1 - O que você gostava mais de matéria de escola? Você foi alfabetizada nesta escola?
R - Foi um complemento, a iniciação foi na escolinha. Na época eu nunca gostei muito de escola, do ver eu não gostava, eu gostava do contato. Mas estudar eu nunca gostei, eu gostava do ambiente. Eu gosto mais de escrever, português a matéria.
00:45:24
P/1 - E quais eram as outras atividades na escola? Como é que era o dia a dia, tinha matéria de manhã, tinha atividade à tarde, tinha transporte, tinha música? Como é que era?
R - Na parte da manhã era português e matemática, à tarde era ciências e geografia, e em algumas épocas tinha oficinas, numa dessas oficinas eu aprendi bordado. Minha mãe nunca me ensinou isso, mas ela falou que eu resgatei, porque eram as coisas que as tias dela lá interior do Ceará faziam. E ela nunca comentou isso comigo, nunca me ensinou, nunca dizia que eu tinha que fazer porque as tias dela faziam, ela não queria reproduzir isso, ela queria que a gente vivesse o que estava no nosso local, que a gente tinha que aprender as coisas daqui, não dos antepassados dela. Ela deu essa carta branca pra gente, ela não obrigava ter que fazer as coisas que a mãe dela e minhas tias e avós faziam, ela nunca quis. Porque muitas famílias querem que os filhos sigam a linhagem da família, ela nunca determinou que a gente tinha que fazer, ela só queria o que a gente não fizesse, que era o caso de eu não ser costureira. Mas então segue aí, essa escola segue.
00:47:04
P/1 - Algum outro aspecto da vida que ela não queria que vocês fizessem? Ou se envolvessem?
R - Era só isso mesmo, ela sempre apoiou todas as nossas escolhas e sempre se orgulhou muito.
00:47:24
P/1 - Como era a sua juventude, nesse período da escola? Quem eram seus amigos? Você gostava da vida social, do ambiente da escola. Quem eram seus colegas? Alguma professora te marcou mais? Como era um pouco dessa lembrança desse período?
R - Tem muitas professoras, ainda mais quando estuda período integral, são muitas professoras, aliás, não é nem muita porque são só duas professoras, durante o dia, cada uma delas dava uma matéria, aí tinha professora de educação física, as inspetoras que ficavam nos corredores, as tias da merenda, não me lembro o nome. Mas tinha segurança que foi bem marcante, porque a minha mãe às vezes, tinha que fazer hora extra no trabalho, e aí eu minha irmã e meu primo, nós ficávamos uma hora a mais, ele muito paciente, ficava a gente lá no portão esperando a minha mãe e a prima dela chegarem.
00:48:47
P/1 - E essa era uma realidade dessa família?
R - É.
P/1 - Que a mãe trabalhava até tarde e que demorava pra buscar.
R - Sim
00:48:54
P/1 - Isso te marcou de alguma forma? As outras crianças, muitas das mães demoravam?
R - As crianças na hora da saída diziam: ah, você vai ficar? A gente já passava das sete da manhã até às cinco da tarde, ficar mais uma hora era muito cansativo, mas a gente nem chorava, o ruim era se fosse só um, mas eram os três, então ficava ali de boa.
00:49:22
P/1 - E você ficou nessa escola de que idade, até que idade?
R - Bom, eu estudei cinco anos lá, eu entrei eu tinha seis anos, próximo de completar sete, fiquei até os onze anos, saindo de lá eu fui pro ginásio.
00:49:45
P/1 - E nessa escola sua mãe ia, tinha atividades extras, tinha alguma apresentação, sua mãe podia ir? Como era isso na época na escola?
R - Minha mãe trabalhava muito, tinha festa junina e ela ia, eles colocavam aos sábados, porque justamente os pais que trabalhavam durante a semana, não podiam ir no meio de semana. Às vezes tinha teatro, campeonato de futebol, só o feminino e depois só o masculino, cinema, tinha sala de leitura, tinha os passeios, que quando nós fomos ao pão de açúcar. Quando a gente foi ao Hotel Nacional da Glória, não sei se ainda existe, do falecido Daniel Azulay, que apresentava a turma dele, eu lembro disso. A Quinta da Boa Vista a gente já conhecia, então não era novidade, embora nós éramos criadas só pela nossa mãe, ela fazia esses passeios com a gente, além da escola, aí quando eu chegava lá, eu dizia: “Ah, de novo, eu já conheço”.
00:51:29
P/1 - Mas vocês saiam daqui e iam fazer passeios fora? Na Quinta da Boa Vista? Com a sua mãe, que tipo de passeio?
R - É, a minha mãe levava a gente pra Quinta, levava a gente pra praia, leva a gente pra um monte de lugares, Angra dos Reis, Paquetá, a gente muito pequena e ela fazia esses passeios, fazia um sacrifício no início do mês, ali ela recebia, porque com a morte do meu pai, ela teve direito a uma pensão, porque ele trabalhava registrado e aí começo de mês ela ficava rica, salário dela e a pensão, rica, aí ela passeava com a gente, arrumava a gente muito bonitinhas e ia passear com a gente .
00:52:13
P/1 - Como era uma roupinha de praia? Como era um maiô ou um biquíni, que vocês usavam?
R - Era comum, como os de hoje,
P/1 - Comprados prontos?
R - As vezes ela fazia, quando aumentava um pouquinho o tamanho, perdia o tamanho. Eu não perdia muito não, porque eu sempre fui muito magrinha, já a minha irmã sempre foi mais fortinha. A minha irmã o pé crescia muito rápido, o corpo se desenvolvia muito rápido, que ela sempre foi mais gordinha. E aí os passeios da escola, eram bem mais culturais, era cinema.
00:52:55
P/1 - Algum que tenha te marcado? Você lembra de algum filme?
R - O cinema foi quando a gente foi ao Hotel da Gloria, pra conhecer o Daniel Azulay, aí teve uma outra vez mas eu não lembro, foi mais uma vez, porque era difícil a escola conseguir um passeio, muito difícil. O Pão de Açúcar, nossa, eu observava, muito criança eu já observadora e aí eu observava muito a reação dos colegas naquele lugar. aí me lembro de um coleguinha, ele ficou tão maravilhada e aí tinha um estrangeiro falando outra língua, aí parecia que ele estava vendo Deus. E o rapaz tentando conversar com ele e ele só sorria e os olhos brilhando.
00:53:59
P/1 - E você, o que se lembra do Pão de Açúcar?
R - Não mudou muita coisa, aquelas lojas, o morro né, não mudou muita coisa, é o que eu lembro, está a mesma coisa. Assim, a sensação é a mesma, de chegar lá e olhar de cima o Rio de Janeiro, mas não mudou muita coisa.
00:54:29
P/1 - Antes da gente fazer uma parada, eu queria lhe fazer uma pergunta. A gente pode falar um pouco mais do seu pai?
R - Podemos
00: 54:36
P/1 - Ele faleceu, você tinha 2 anos?
R - Um ano e sete meses.
00:54:43
P/1 - O que você lembra um pouco dele? Como ele era visto aqui na comunidade? Ele tinha colegas, ele era uma pessoa de muito trabalho ? Como é que era?
R - Lembrar, eu não lembro. Mas o que a minha mãe conta dele, ele era muito perfeccionista, ele era pintor, às vezes ele era mestre de obra que comandava o pessoal, e quando ele chegava no bar ele era muito conhecido, que ele sempre foi muito popular, pagava cerveja pra todo mundo, E aí se ele conhecesse alguém que tivesse um instrumento musical, um cavaquinho, um violão, ele ia pegar a pessoa em casa e ele pagava pra pessoa cantar, até a cerveja do bar acabar, não era a dele, era a do bar. E todo dinheiro que ele tinha, acabava ali, e era assim…
00:55:47
P/1 - E como que a turma aqui conhecia ele, ele era chamado pelo nome ou tinha algum apelido ?
R - Ah, ele tinha um apelido, Dado. Era o Dado ou Dadinho, era assim que ele era chamado. Hoje eu não conheço, aliás eu não cheguei a conhecer ninguém, os colegas de bar, mas um tempo atrás eu trabalhando porventura, numa loja aqui dentro da comunidade, e aí minha tia, que essa prima do meu pai, ia passando e eu acenei pra ela e o moço que estava atendendo: “Ah, você conhece a dona Vilani, gente muito boa, gente muito boa”. É minha tia! Ele disse; “Mas você é filha de quem?”, eu disse assim: “Então meu pai já morreu era primo dela”. Aí ele falou assim: mas quem? “Era o Dado”. “Ahhhh bebi muita cerveja com ele”. (risos) Era meu pai, aquela figura era o meu pai. “Nossa, se bem que você se parece muito com ele”. É né?!, eu puxei a ele, mas ela não. Porque a gente trabalhava juntas, eu e a minha irmã nessa loja, aí ele: “Ah, então eu estou em casa, né?!”.
P/1 - É, então tem esse orgulho né?
R - É, ele sempre foi muito amigo de todo mundo.
P/1 - Aqui, onde você está dizendo, Parque União, lugar que vocês moravam.
R - O lugar que ele mais conviveu, que foi o Rubens Vaz e o Parque União, mas bem mais pra baixo, na parte da Maré mesmo, a Maré a gente chamava de parte de baixo, porque hoje a maré é tudo, mas a Maré chamava as ruas de baixo.
00:57:29
P/1 - Vocês diziam que moravam onde, na Maré ou no Parque União ou na Rubens Vaz. Como vocês se referiam?
R - Parque União.
00:57:40
P/1 - Quer dizer, seu pai era um personagem?
R - Sim, ele foi, por pouco tempo, mas foi. Ele faleceu muito cedo!
00:57:47
P/1 - E esse episódio de violência? Como foi, algum motivo específico? Você sabe ou pode contar?
R - Quando ele conseguiu um dinheiro, ele comprou lá no Irajá. Lá por ele ter essa de ser bem popular, de certa forma desperta a inveja de outras pessoas, ele sempre ganhou muito bem, se chegasse alguém que não estivesse com um copo no bar, ele já ficava: não pega um copo aí, você não vai ficar sem beber e de bico seco, coloca uma pra ele, coloca pra fulano também. Sempre foi muito assim, e ele tinha essa coisa de jogo, jogo de cartas valendo, minha conta que ele jogava valendo carteira de cigarro, caixa de cerveja, e na maioria das vezes ele ganhava dessa pessoa, que minha mãe não tem essa certeza, aliás ninguém tem. Naquele tempo não se registrava queixa, minha mãe simplesmente saiu de lá. E aí essa pessoa ficou chateada, porque sempre perdia dele, isso gerou uma discussão e uma briga, foram disputar no treis oitão, deu no que deu.
00:59:36
P/1 - Seu pai tinha a arma?
R - Tinha.
00:59:41
P/1 - Em casa você se lembra, quando criança?
R - É, ficava guardada e ele usou nessa ocasião, foi usar nessa ocasião.
00:59:57
P/1 - E sua mãe rememora, costumava comentar sobre esse dia?
R - Ela não estava em casa, a gente tinha ido pra Magé, onde era os passeios que a gente fazia, ela levava a gente de final de semana. A gente tinha ido pra Magé e aconteceu isso. Que ela falou: “Ah hoje ele vai beber o dia todo, eu vou sair”. Aí ele dava dinheiro pra ela e a gente ia passear.
01:00:23
P/1 - Como ele te chamava? Rafaela, Rafa, você se lembra?
R - Não tinha nome assim, quem me deu apelido foi minha mãe.
01:00:38
P/1 - E esses nomes, foram escolhidos pela mãe ou pelo pai? Rafaela e Claudia.
R - A Claudia foi ela que escolheu, porque elas foram ver pelo horóscopo, pelo santo do dia, aquela coisa toda. Ia ser Maria Claudia, mas ele disse: você já é Maria, tira essa Maria e deixa só Claudia, aí entraram num acordo. Então agora eu que vou escolher, ele disse, ela também não fez pré-natal de mim, não sabia nem que estava grávida, aí ele disse que se viesse menina ele iria escolher, aliás, o outro nome eu que vou escolher, e se for homem vai ser Rafael. E aí eu contrariei, aí ele disse: não seja por isso, vai ser Rafaela, não perdeu o nome.
01:02:00
P/1 - Continuando, vou resgatar a história do bordado que você aprendeu no CIEP. Eu queria que você comentasse um pouco, como você acha que a partir daquele momento você iniciou, você já tinha isso desde criança, uma vontade de costurar e de usar máquina da sua mãe, mas como a partir daí, ainda no período de escola, iniciou essas ações de costurar e de interesse. Como foi isso? Se isso, um pouco mais velha, se tornou uma atividade profissional? Você se inseriu em algum projeto social que potencializou isso? Essa sua habilidade de costurar.
R - Na escola eu tive oficinas, não teve nenhum menino que se interessou, tinha oficinas só para meninos e as meninas também podiam entrar, mas era mais o gosto dos meninos, eu nem me lembro se tinha outra oficina, mas eu ouvi bordado então vamos fazer bordado. E pra mim foi muito rápido, eu peguei muito rápido, e quando a gente terminava leva pra casa. Minha mãe quando viu, disse que eu parecia com as tias dela, está no sangue, não tem jeito, é o que você sabe fazer. E foi muito rápido que eu peguei alguns pontos de bordado e algumas coisas de crochê, embora que isso eu não dei continuidade, ali só foi a descoberta que eu tinha essa habilidade de trabalho manual e voltado para a costura, porque a bainha eu tinha que fazer na máquina, a bainha do pano para fazer os acabamentos, porque é o crochê e no meio do pano fazer o bordado.
01:04:10
P/1 - E tem nomes, esses pontos do bordado?
R - Era ponto atrás, ponto cruz, e o crochê era bicos, correntinha, ponto alto, o bem básico mesmo.
01:04:29
P/1 - Quando você saiu do CIEP você foi para qual escola?
R - Carlos Chagas, que é logo em uma rua ao lado, no final da rua, e eu não gostei muito dessa escola, mas fiquei lá três anos.
01:04:45
P/1 - Por que Rafaela, você não gostou?
R - Não sei, o lugar, não gostei. Não sei se porque eu vivi tanto tempo com os mesmos amigos, porque a gente passava de ano e passava todo mundo junto, e por eu ter convivido muito anos com os mesmos amigos, acho que nenhum me acompanhou nessa outra escola porque na época tinha como escolher, qual escola ir. E aí minha mãe colocou, por ser ali do lado e fica próximo.
01:05:20
P/1 - É ali, aonde?
R - O Yuri Gagarin fica na Avenida dos Campeões e o Carlos Chagas é numa rua ao lado, que se chama Cohab e aí é no final dessa rua. Minha irmã foi para o Rui Barbosa, no centro de Bonsucesso, como minha mãe não conseguiu me colocar lá, me deixou ali mesmo. Porque tinha indicação, aí eu fui para essa outra, não sei se porque eu fiquei distante da minha irmã, mas ainda assim eu fiquei lá por três anos.
01:06:06
P/1 - E depois?
R - Aí depois eu falei pra minha mãe que eu não ia estudar mais naquela escola, mesmo se ela não me tirasse, que eu iria sair sozinha. Mas não tinha como eu escolher, eu falei, a senhora não vai me tirar, eu vou matar aula, já deixei avisado, vai brigar?!, não vai. Aí ela dizia pra eu ficar em casa, e quando terminou o ano, como eu já havia perdido o ano mesmo, no ano seguinte ela colocou nós duas na mesma escola e aí eu voltei bonitinho para a escola.
P/1 - Em qual?
R – Napion [ Escola Municipal Tenente General Napion] , que fica na saída da Ilha.
01:06:51
P/1 - E você já era uma moça, na juventude, uma jovem. Comente um pouco como era isso, quanto menina. Saia, festas, envolvimentos amorosos? Como foram seus dezesseis e dezessete anos?
R - Aos dezesseis eu já era mãe.
P/1 - Nossa!
R - Mas eu nunca fui muito namoradeira, sempre fui muito tranquila com relação à relacionamento, envolvimento, mas em festas a minha irmã era mais velha que eu um ano, eu tinha que ir onde ela ia, mas eram coisas bem próximas de casa, A minha irmã também casou muito cedo, o primeiro namorado, ela engravidou e casou, aí eu ainda fiquei em casa e as festinhas eram próximo de casa, eu ia com as colegas da rua, minha mãe sempre de olho, e aí numa escapa ganhou liberdade e pronto,
01:07:53
P/1 - Quais festas eram? Era em casa, era baile? Que música ouviam?
R - Em casa eu sempre ouvia mpb, rock nacional, era o que a minha mãe ouvia também, mas eu sempre gostei e não apenas por ela ouvir, já na rua ouvia o que estava tocando, na maioria das vezes era funk, era mpb, o nosso cotidiano era isso, rap eu não me lembro muito bem, mas era bem diferente dos de hoje.
P/1 - Você se lembra algum, pra cantar pra gente?
R - Não, não lembro.
01:08:43
P/1 - Como foi esse namoro e o filho? Jovem, ainda aos dezesseis, teve namoro?
R - Teve um namoro, eu nem queria namorar com ele, minha amiga que falou que ela iria namorar o amigo dele e eu ia namorar com ele, eu falei que não queria, que ele era muito feio, não quero não, aí fiquei na minha. Aí foi num baile, a gente também ia muito rápido, porque dependendo da hora a gente ia muito rápido, dava uma escapada, ia lá curtir o baile e voltava pra casa, era assim, pra nossas mães não sentirem nossa falta. E foi numa rapidez assim, de ir no baile, só olhar o baile, ele se aproximou de mim e trocamos um “oi”, e essa foi a primeira aproximação. Aí depois, dias seguintes ele veio a passar mais vezes na rua, ele sentava lá na porta de casa, se minha mãe estivesse com a vizinha ele não parava, aí a gente foi ficando, a gente foi se vendo assim. Ele chegou um dia e pediu pra minha mãe deixar eu ir ao baile com ele, ela disse que ia dar a hora pra voltar, ele disse que traria na hora que eu ela determinasse, e foi nessas permissões que ela dava que dávamos uns beijos, até que aconteceu. Acho que com oito meses de namoro, eu engravidei.
01:10:45
P/1 - Foi sua primeira relação, sua primeira experiência sexual?
R - Sim, foi! E ele mesmo teve a atitude de chegar pra minha mãe, aliás eu percebi que estava com a menstruação atrasada e comentei com ele, e aí ele: “Não, a gente tem que contar pra sua mãe, você vai esconder?, vai aparecer né!” E eu disse que não tinha coragem, e ele disse; eu falo. Ele é o filho mais velho da mãe dele, foi criado também sem pai, ele foi criado pelo padrasto, e ele teve essa atitude de falar, ele disse que só não poderia casar porque ele quem cuidava dos irmãos, a mãe dele trabalhava fora, mas ele dizia; o que precisar eu estou aqui, eu vou assumir. Aí depois de um tempo, assim foi indo, eu trabalhava fora, sempre trabalhei fora.
01:11:57
P/1 - Você fazia o que Rafaela? Qual foi o seu primeiro trabalho?
R - Meu primeiro trabalho, eu era babá, eu olhava as crianças pra mãe trabalhar fora. Servia o almoço no horário, esperava ela chegar da escola com um e o outro tinha que estar pronto para ir para a outra escola. Eu dava o almoço, lavava louça, fazia a manutenção da casa, a limpeza, e cuidava das crianças nos horários exatos.
P/1 - Aqui?
R - Aqui na Maré também.
01:12:28
P/1 - E grávida? Você trabalhou grávida?
R - Não. Eu ajudava a minha mãe com a costura, separar roupa, tirar linha, dobrar, empacotar. Ela pegava o serviço na fábrica e fazia em casa, eu ajudava ela nos acabamentos.
01:12:50
P/1 - Como foi sua gravidez?
R - Foi tranquilo, não tive dor de cabeça, dores, inchaço, essas coisas, eu não tive nada. Nada mesmo.
01:13:05
P/1 - Mas você era uma menina de dezesseis anos, né?
R - Quinze, porque quando eu completei dezesseis, com dois meses depois meu primeiro filho nasceu.
01:13:15
P/1 - Como era viver? Você era uma jovem, com quinze anos, grávida. Isso era conflitante com seus desejos como menina? Você tinha perspectiva profissional? Você completou os estudos?
R - Na época não. Eu que quis sair da escola, aí eu falei pra minha mãe que aquele ano eu iria sair e voltar no próximo ano, minha mãe mesmo disse: “Ano que vem você volta”. Eu por ser muito nova, eu estudava a noite, aí eu não quis estudar grávida.
P/1 - Por que isso?
R - Porque até então, eu sei que dos colegas não iria ter comentários, mas sempre vai ter um professor que vai criticar: “Ué, ou você quer estudar ou você quer casar”. Não sei se ainda hoje, mas eu não queria passar por isso, esse julgamento, porque se a minha mãe me deu apoio nisso, eu não queria dar a oportunidade de outra pessoa me julgar, eu não tive pai pra me julgar, não vai ser outra pessoa.
01:15:00
P/1 - Qual o nome do seu filho? Qual data ele nasceu?
R - Carlos Eduardo Feitosa da Silva, nasceu em 15 de julho de 1996.
01:15:13
P/1 - E esse parto, foi tudo bem?
R - Foi normal. Ele nasceu no Hospital de Bonsucesso também.
01:15:22
P/1 - Você lembra um pouco dessa emoção?
R - Ah, eu estava assistindo televisão a noite, junto com ele, era meu namorado, e aí virei de lado pra assistir tv e achei desconfortável, aí virei para o outro lado e continuo desconfortável, aí deu vontade de ir ao banheiro e ele já ficou meio assim. Porque ele, como filho mais velho, acompanhou as gravidez da mãe, digamos que ele já tinha essa experiência. Aí eu fui ao banheiro e achava que ia fazer xixi e não fazia, aí voltei, aí fui de novo e quando eu fui me limpar era sangue, foi quando eu comecei a sentir as pontadas como cólica. Ele pediu pra eu pegar meus documentos que íamos ao hospital, minha mãe estava dormindo, e era um cômodo apenas, era a minha cama e da minha mãe, quando eu estava procurando o documento a minha mãe acordou. Aí ela; o que está acontecendo? Ah, a gente vai ao hospital. Eu vou também! A gente foi, eu fui caminhando, na época não tinha uber e táxi não entrava em favela, ainda mais a noite, isso já era quase uma hora da manhã, eu caminhei até o outro lado, ele ia na frente e minha mãe ia abraçada comigo. Pegamos um táxi do outro lado, onde tinha um ponto, fomos pro Hospital de Bonsucesso, o trabalho de parto foi um pouco demorado, ele só nasceu pela manhã, às oito e vinte da manhã, foi um parto normal. O médico disse que eu tinha a capacidade de ter ele normal, e assim foi.
01:20:36
P/1 - Seu companheiro tinha quantos anos, nessa época?
R - Ele tinha dezenove.
01:20:42
P/1 - E a escolha do nome, Carlos Eduardo?
R - Eu escolhi. Na época, eu assistia uma novela na antiga tv manchete, que estava reprisando a Kananga do Japão, aí quando estava passando os nomes dos autores, geralmente são três nomes , mas quando era o nome desse ator, era só o dele, Carlos Eduardo Dolabella, eu achava interessante, e gente não sabia se era menino ou menina, eu disse; não podia colocar o Dolabella mas Carlos Eduardo eu posso. Aí ficou Carlos Eduardo Feitosa, que é meu segundo sobrenome, e da Silva, que é do pai.
01:22:48
P/1 - Eu imagino você com dezesseis anos e um bebê, tem muita história pra contar. Como foi esse começo de vida com uma criança? Quais eram os seus interesses? Você tinha perspectiva de trabalho? De alguma forma tinha projetos sociais aqui na Maré que você se interessava? Você se vinculou a algum projeto? Como foram os primeiros anos do Carlos Eduardo, você pode trabalhar? Você trabalhava fora, trabalhava em casa, como é que era?
R - Na época eu não trabalhava, minha mãe mesmo dizia, fica em casa, cuida, primeiro ano é muito importante, tem a época de começar a andar, os dentes, as primeiras palavras, todo aquele desenvolvimento do primeiro ano é muito importante. Minha mãe trabalhava fora, para não interferir muito na criação, o meu envolvimento com o bebê, ela me auxiliou muito, me apoiou muito. Eu aprendi praticamente sozinha, minha irmã já tinha os dois filhos em casa e eu também participei, eu ganhei um pouco de experiência, mas naquele momento eu eu e eu, eu e ele, mas foi bem bacana. E minha mãe, quando chegava do trabalho, já estava tudo feito, algumas coisas da casa já adiantado, ela mesmo gostava de fazer a comida, pra eu não deixar de cuidar dele e ficar fazendo as coisas da casa. Minha mãe dizia: “só faz se ele estiver dormindo, não deixe de cuidar dele pra fazer as tarefas da casa”, minha mãe sempre foi bacana.
01:24:41
P/1 - Seu companheiro morava com vocês?
R - Não. Ele morava com a mãe e o padrasto, e cuidava dos irmãos,
01:24:49
P/1 - Depois desse ano inicial dele, você começou a se inserir profissionalmente? Trabalhava? Como você se sustentava?
R - Minha mãe que dava o que eu precisava pra mim, eu não pedia nada á ele, embora ele sempre dizia que se eu precisasse era pra pedir, mas como eu fui criada por uma mulher que não pedia nada a ninguém, minha mãe também esperava que eu também não pedisse, ela mesmo que providenciava. Ela dizia: “Não deixa que ele te dê, porque até então era início de relação, tem essa coisa do homem dizer, ‘você tem porque eu te dei’”, então a gente ainda não sabia como era essa convivência de dar e de ter, e minha mãe não deixava ele dar nada pra mim, dá pro seu filho que é a sua obrigação, mas ele fazia por gosto. Aí depois, quando ele estava com um ano e pouco, quase dois anos, aí que eu fui trabalhar fora, consegui uma creche pra ele, ficava o dia todo e ele era muito bem cuidado, não era comunitário, mas era uma casa de doação, então a gente não pagava.
P/1 - Aonde que era?
R - Ali em Bonsucesso, na rua Vieira Ferreira, Creche da Tia Nair. Entrava às sete da manhã e saía às cinco da tarde, não tinha um horário determinado, a partir das cinco, era de acordo com o horário que a mãe trabalhava. A gente tinha que apresentar um documento com o horário do trabalho, assinatura do empregador, para provar que a gente trabalhava fora e precisava dessa creche, e era só pra mãe solteira, como eu não era casada então eu tinha o direito.
01:27:03
P/1 - E você trabalhava onde?
R - Eu trabalhava em uma das fábricas em que minha mãe sempre trabalhou. Foi a primeira fábrica que me aceitou, lá eu entrei como arrematadeira, era só pra tirar pontas de linha, até então como eu não tinha nenhum registro de que eu sabia costurar, então não entrei como costureira.
01:27:32
P/1 - Como você foi desenvolvendo essa habilidade de costureira?
R - Eu já via a minha mãe, eu já fazia em casa, eu observava muito o jeito que ela fazia, como ela fazia, o que não poderia deixar de fazer. E quando eu chegava na fábrica, eu sempre observava a forma que ela fazia em casa e como era feito na fábrica.
01:28:01
P/1 - A fábrica era só mulheres, as costureiras?
R - Nesta primeira fábrica, eram só mulheres.
01:28:08
P/1 - Qual era o nome da fábrica?
R - Irgin, era na rua Teixeira Ribeiro. Ali ela trabalhou desde quando éramos pequenas, aí quando era época de férias, porque ficávamos muito sozinhas, ela dizia: não, eu vou olhar minhas filhas, não vou deixá-las sozinhas, porque sempre acontece coisa com criança sozinha em casa. E acontecia..
01:28:39
P/1 - E como era trabalhar na fábrica? Você amamentou, pode amamentar?
R - Eu amamentei ele muito pouco, muito pouco, ele mesmo não quis mais e depois ficou tomando mamadeira. Na época da creche ele já tinha quase 2 anos, ele já comia de colher, tomava o leite ou chocolate no copo, já tinha saído das fraldas, ele mesmo, muito independente, minha mãe auxiliando, era minha mãe que ensinava a gente, mas ele pegou muito rápido e saiu das fraldas.
01:29:24
P/1 - E depois dessa fábrica, você foi pra outro lugar trabalhar?
R - Fui pra outra fábrica, lá já era uma fábrica em frente ao hospital de Bonsucesso, lá eu trabalhava muito, muito mesmo, o serviço era mais puxado porque era bolsa de viagem, um serviço mais grosso, lá eu já entrei como costureira mesmo, aliás costureira não, auxiliar de costura. Como eu não tinha nenhum registro de costura, então lá entrei como auxiliar, que ganha um salário um pouco abaixo que o profissional, lá eu fiquei uns oito meses. Quando eu saí de lá, fiquei um tempo sem trabalho, eu ainda morava com a minha mãe, depois que eu entrei numa camisaria e aí lá eu entrei como costureira mesmo. Maior felicidade, porque tinha que ter o registro, não adianta saber só em casa, porque precisa comprovar e lá eu fiquei por uns cinco anos.
01:30:43
P/1 - Que camisa você fazia, quais tecidos? Camisa de Homem?
R - Camisa social, e aí chegou um ponto que eu fazia a peça que era escolhida para fazer os comerciais, fazer as fotos. Quando íamos ao shopping, eu dizia, está vendo aquela camisa daquela foto que o Luigi Baricelli está usando, foi eu que fiz.
P/1 - Que sentimento bom, né?!
R - Pois é, embora que, nem o que o fotógrafo ganhava pra fazer a foto, era o que eu ganhava.
01:31:25
P/1 - Era um puxado e mal remunerado, na fábrica?
R - Costureira nunca ganhou muito bem, mas é sempre um trabalho muito explorado na fábrica, demais mesmo, o que vale mais pra gente é quando a peça está pronta, isso é o que vale. Porque dinheiro nenhum paga, a peça pronta, vestir uma pessoa.
01:31:58
P/1 - Mas qual é o sentimento de vestir uma pessoa?
R - Ah, vestir uma pessoa, ver que aquela pessoa está confortável, dentro daquela roupa. Aquele tecido leve, que não está incomodando, é isso.
01:31:18
P/1 - E depois dessa fábrica?
R - Quando eu saí dessa fábrica, quando eu recebi as contas, que não é todo o dinheiro do mundo, na época eu tinha minha casa própria.
P/1 - Aonde Rafaela?
R - Em Ramos, eu já estava casada, morava junto com meu companheiro, construímos juntos essa casa. E então quando eu saí dessa fábrica eu determinei, ah vou trabalhar em casa. Eu comprei uma máquina nova, na loja, uma máquina industrial, eu já tinha uma de segunda mão, mas comprei uma nova, motor zero, tudo novo, os homens levaram em casa o gabinete, tudo bonitinho, e aí eu decidi que ia trabalhar em casa.
01:33:14
P/1 - Você está falando de que ano, Rafaela?
R - Eu tinha uns vinte e dois, e eu só fazia consertos de roupa, ainda não tinha determinado o que eu ia fazer de fato. Foi quando uma moça passou na minha porta, eu havia colocado um papel que dizia fazer consertos, e me perguntou o que eu fazia, eu disse que fazia consertos e ela então disse que a patroa dela estava precisando, ela disse que a patroa tinha um atelier e estava precisando muito de uma costureira. Ela pediu meu número de telefone e a patroa perguntou se ela me conhecia, ela disse que sim que eu trabalhava muito bem, eu nunca havia visto a mulher.
P/1 - Te deu um voto de confiança?!
R - Sim, aí ela ligou, nesse dia eu não estava em casa, quem estava era a minha mãe cuidando do meu filho. Quando eu cheguei ela disse: ó neném, está aqui anotado, a moça ligou e passou o endereço pra você ir. Era no Catete, eu nem conhecia direito, não sabia, na época meu esposo tinha moto, ele me deixou no largo do machado e eu me achei e quando eu cheguei lá, a própria patroa que abriu a porta, olhou pra mim e mandou eu sentar que a modelista iria passar o serviço. Desse ocorrido eu não sabia, um ano depois ela veio me contar do impacto que ela teve, que quando ela me recebeu, me passou pra modelista e foi pra outra sala, conversar com as outras meninas do corte: “A Sônia está maluca, ela me indicou uma garota, essa garota não vai saber fazer nada”. Aí eu fiz a peça, demorei umas duas horas, a peça era bem trabalhosa, nunca tinha feito bolsa na minha vida daquele jeito, eu sabia fazer ecobag que é coisa simples para qualquer costureira ou iniciante, ainda mais pra quem é costureira de roupa, fazer bolsa é outra mão né?!, outro caminho. E aí depois de um ano ela veio me contar, que ficou de cara quando abriu a porta e não acreditou, quando passou esse ano eu já estava fazendo as peças que iam para desfile da Fashion Week e eram peças de grandes marcas, até internacionalmente.
01:38:32
P/1 - Você se lembra de alguma bolsa que você confeccionou lá?
R - Lembro de uma que foi Gisele Bündchen quem usou no Fashion Week. Não me lembro o ano também, mas acho que foi após um ano de eu trabalhar lá pra ela, ela já sentiu confiança no meu trabalho. Ela falou: - é não temos mais modelista, você pode fazer Rafa? Eu: - é, podemos tentar. Eu sempre falo, podemos tentar, e aí a surpresa no final.
01:39:02
P/1 - Como que era essa bolsa?
R - Era de nylon, peça sport, que dá pra usar pra praia e usar no dia a dia, geralmente num modelo mais prático pra usar em qualquer ocasião.
01:39:23
P/1 - Agora eu queria que você comentasse um pouco, como surgiu a ideia de fazer essas bolsas aqui? As suas pochetes, a sua marca, como surgiu a marca By Rapha?
R - Depois de trabalhar pra ela por uns dez anos, aprender essa habilidade de transformar diversos tipo de tecido ou não sentido, sintéticos, eu comecei a ter um problema de saúde de tanto trabalhar, porque quanto mais a gente faz mais ganha, mas a saúde vai sendo prejudicada, eu também dei uma pausa, foi quando eu acordei pra vida, não quero acabar com a minha saúde dando vida pra outras pessoas dessa forma. Eu fui trabalhar com outras coisas, dar um tempo, quando eu decidi retornar, aí eu já pensei em fazer minhas próprias peças. Eu comecei a fazer sacolas, bolsas práticas para o dia a dia, necessaire, estojos.
P/1 - Fazia em casa?
R - Fazia em casa, a irmã me ajudou fazendo fotos, aquela câmera antiga, aquela digital. Aí criou uma página pra mim no Facebook, aí me ajudou no primeiro nome, By Rapha, que é ‘Feito por Rafa’, que vai lido em qualquer linguagem. Ela me ajudou muito no início, sempre me apoiou em tudo. E volta e meia eu trabalhava para os outros, mas o que eu via na rua eu dizia, eu posso transformar aquilo, não vou fazer igual porque não pode, mas eu posso melhorar. Eu sempre pensava dessa forma. A pochete que voltou à moda, eu não vejo como moda, vejo como uma peça prática. Uma irmã de consideração chegou com uma lá em casa, que não tinha forro, não tinha bolso, ela falou: “Rafa eu comprei isso aqui, porque é prático pra usar, olhei por dentro, comprei porque eu estava precisando, pra gente que não usa bolsa, mas você pode melhorar”. Aí eu olhei, não quero fazer isso não, mas ela insistiu, eu olhei, na hora eu tirei o molde num jornal, risquei, medi o comprimento da alça, no dia seguinte mandei a foto pra ela, fiz, e fiz do jeito que ela imaginou. Que teria um forro, que teria uma estrutura, que teria um bolso extra, aí ela falou: “Caraca, você é demais”. E eu fui fazendo assim, aos pouquinhos, com um tecido que eu tinha eu fui fazendo, aí fui pegando gosto. E cada vez que eu saía pra comprar material diferente, minha irmã, que não é desse estilo, ela sempre dava esses toques: Sabe aquele negócio que você faz, isso aqui vai dar certo”. E eu: “É mesmo né?!”, e fazia.
01:43:10
P/1 - O que era o material diferente?
R - Uma cor diferente, ou às vezes só vendia a partir de um metro e era mais caro, e ela dizia pra eu comprar: eu te ajudo, se não der certo, você faz algo pra mim. E eu fazia e dava certo, sempre dava certo.
01:43:35
P/1 - E como você vendia isso, pra vizinhança? Era pra homem, pra mulher? Você pensava em produto só pra mulher?
R - Quem mais compra é mulher, quem tem essa coisa de comprar é mulher, mas eu nunca pensei em fazer para uma única pessoa, uma mulher ou um homem tenha que usar, porque quando pensa num rosa, ué só tem pra mulher?!, não, tem pra todo mundo, você pode usar também. E quando eu penso em fazer uma peça, não é que uma mulher, um homem, uma criança ou um idoso, seja qualquer pessoa. Deu em você, é isso, porque um acessório é um acessório, ele está completando o look da pessoa e não tenha essa determinação que seja para o dia ou para a noite, é pra qualquer hora, é pra necessidade.
01:44:34
P/1 - E quem comprava as suas peças?
R - De início era uma conhecida, que era vizinha da minha mãe, muito minha fã. Ela me conheceu através da minha mãe, porque quando ela começou a precisar de conserto, a minha mãe já não queria mais costurar, a saúde dela já não estava bacana; ah, pede lá a neném, a neném te atende direitinho, e ela ia lá, porventura, essa vizinha é a sogra do meu filho.
01:45:15
P/1 - E ela comprava.
R - Comprava porta moedas, necessair, fantasia. Primeira fantasia que eu fiz, da mulher maravilha, pra filha mais nova dela, que durou uma eternidade, pra neta dela usar, a primeira neta dela que ela teve.
01:45:36
P/1 - E outros produtos que você fazia, estou vendo que você está com uma camiseta Made in Maré, isso é uma marca sua também, como foi a ideia dessa marca? Como surgiu a ideia de fazer? Isso é um silk?
R - Eu já tinha a minha logo By Rapha que um amigo meu fez pra mim, que porventura é muito bonita, um certo dia, eu estava sentada no ponto final de um ônibus, e aí vi um container escrito ‘Made in França’, aquilo me despertou, porque as roupas vêm “Made in China” e outros, eu falei, tem que ter uma Made in Maré, porque a minha Maré não tem que ser só ouvida pela que a televisão fala, pelo que a mídia fala, da violência, ela precisa ser enxergada por produtos que são produzidos dentro da Maré, porque tem pessoas que produzem dentro da Maré, ela tem que ser vista dessa forma, ela tem que ser falada desse jeito, não só pela violência. Foi quando eu criei essa logo, essa logo determina os produtos feitos na Maré, por uma pessoa que é da Maré, que foi criada na Maré, que quer que a Maré seja conhecida desta forma. Que tem pessoas que produzem, que são normais, que não é só violência que reina aqui.
01:47:16
P/1 - E os estilos? Desde 2018, as estrelas têm algum significado?
R - Foi a ajuda de um amigo, ele começou a me perguntar: desde quando você usa esse nome?.
P/1 - Porque o By Rapha está pequenininho alí, né?
R - Porque foi a partir do By Rapha que surgiu o Made in Maré, porque já existia o By Rapha desde muito tempo, e foi a partir de 2018 que o By Rapha vem da Maré. Essas estrelas ele quis colocar, porque digamos, três divindades.
P/1 - Quais são as divindades?
R - Não tem determinada.
01:48:14
P/1 - Quando você fala, minha Maré? Fala um pouco sobre isso, você se sente parte, você cresceu aqui, seu filho. Como é esse sentimento de te pertencer aqui?
R - Eu sou nascida, criada, quando construiu a linha vermelha eu fui na inauguração, quando asfaltaram as últimas ruas do Parque União, eu presenciei isso, as moradias novas que tem, a extensão do Parque União, onde eu moro hoje, eu vi o início daquele pedaço lá, e coisas surgindo. Essas outras ações, que falam o inverso dessa violência, essa Maré que eu compreendo como minha, não que a violência faça parte, porque tem em todo lugar, mas eu não enxergo que essa violência é a minha Maré, que não está aqui. A violência entra aqui.
01:49:37
P/1 - E de que forma isso reflete nessa produção, nessa pochete, nesse silk? A sua camiseta é vendida aqui, é vendida lá fora? Meninos compram, meninas compram? Diferentes cores, como é usado o By Rapha aqui?
R - Eu tenho até muito orgulho, porque amigos que nem me conhecem pessoalmente, se tornam amigos porque viram, alguém postou, alguém marcou, e aí eles olham nas redes sociais, e começam a falar comigo, se tornam amigos até mesmo antes de comprar um produto meu. Ah, eu quero presentear uma amiga, mas eu quero um produto feito por uma mulher favelada, e quando a menina recebeu fez uma foto e mandou pra mim: está lindo, está lindo mesmo, adorei. E isso pra mim tem muito significado, nem é o dinheiro que eu recebo, é a pessoa usar, e ter orgulho de levar esse nome adiante, Maré, isso pra mim não tem preço.
01:50:52
P/1 - Porque?
R - Porque não tem nome, não sei dizer, mas é muito orgulho. Porque justamente a pessoa não se baseia nessa violência que a televisão fala, que a televisão retrata, não é isso.
01:51:15
P/1 - E os vizinhos compram, você vende em lojas daqui, você vende pela internet. Como funciona essa venda?
R - Eu vendia muito mais nos eventos, aí veio a pandemia, mas quando o pessoal vê lá no Instagram, no Facebook, perguntam se eu faço entrega, dependendo do local eu levo, cobro uma taxa que é a condução, ou a pessoa vem até a mim e conhece os demais produtos, já uma forma também de apresentar um pouco mais, os outros projetos que estão dentro deste trabalho.
01:51:59
P/1 - Você pode falar um pouco deles?
R - Então, um dos projetos, nem como orgulho, eu como uma obrigação mesmo, porque a gente não leva nada conosco, aqui tudo fica. Eu cheguei a um ponto da minha vida, que eu tinha que compartilhar esse meu trabalho com outras pessoas, e que esse meu trabalho tinha que ser importante também. Foi quando um certo dia eu senti frio dentro da minha casa, aí eu pensei no pessoal que não tem casa e que dorme na rua, eu comecei a fazer cobertor de jeans, porque a minha não tinha grana pra comprar cobertor bom pra nós, ela fazia cobertor com os retalhos da fábrica. Eu fiz um post no Facebook pedindo, começou a aparecer um monte, no final ficou muito pesado e aí eu transformei em ecobag, que já é pra um lado da sustentabilidade, as pessoas abandonarem as sacolas plásticas. E na hora de levar esses cobertores, a minha irmã dizia: “A gente resolve o frio, mas e fome?” Aí começamos a fazer a comida também. Aí uma vez por mês a gente se reúne e leva roupas e comida.
01:53:35
P/1 - Leva onde?
R - Na [[Avenida] Brasil, no local mesmo que a gente mora, porque se não, não faz sentido. Tem gente que fala: “Ah, lá no centro da cidade, lá não sei onde....”. E eu digo: “Não, não faz sentido, eu moro aqui, eu tenho que enxergar os que moram comigo, fazem parte da minha vida aqui”. Aí a gente leva lá, alguns já conhecem a gente, a gente evita usar o descartável, a gente pede os potes de margarina, os potes de sorvete, copo de festa, para evitar gerar mais lixo. Isso até conscientiza eles, eles guardam, às vezes quando vamos servir o suco eles abrem o saco e está aqui o meu, ó guardei da outra vez.
P/1 - Bacana, um aprendizado.
R - Pois é, e aí essas peças que eu passei a fazer com os jeans, a venda dessas peças retorna para essa ação.
01:54:43
P/1 - E o que significa pra você, estar envolvida neste projeto?
R - Eu estou ajudando o planeta né?! Ajudando as pessoas, conscientizando, não sou só as pessoas que estão lá na rua, que eu nem uso esse nome, eu falo “é os manos”. A gente chega: “Chega aí mano, vem aqui lanchar manos, vem cá mana”. As meninas são em número menor, são poucas as mulheres que estão nas ruas, o grande número são os homens e quando tem mulher, são eles que vêm buscar para elas. É porque as mulheres já sofrem tantas coisas, né? E aí ela já se retrai né, quando chegam outras pessoas, aí os companheiros é quem tomam a frente.
01:55:37
P/1 - Tem crianças também?
R - Uma vez, um pré-adolescente, que é o único menino que aparece às vezes, mas crianças mesmo não tem.
01:55:54
P/1 - Eu queria que você contasse um pouco, e a gente vai tentando finalizar, você tem uma trajetória muito interessante de vida e profissional, o seu envolvimento com a Rede da Maré, com a Casa das Mulheres. Como você se aproximou, que tipo de curso você fez? Como foi o seu envolvimento? Algum projeto social específico? De que forma eles colaboram para a sua formação pessoal e profissional?
R - Uma amiga irmã de consideração, chegou lá em casa um dia e disse: “Rafa, eu inscrevi a gente na aula de ioga”, e eu disse: “Não!, aquele negócio que faz assim?, sério?!”. E eu pulei de emoção. Eu não acredito que eu vou fazer esse negócio, e ela: “Vamos, vamos sim, mas o nosso nome está na lista de desistência”. Mas eu disse: “A gente vai fazer! E aí fica no aguardo, porque eu coloquei o seu telefone”. E quando eu estava no ateliê, lá no Catete, me ligaram: “Oi, é da Redes da Maré.” Eu: “De onde?” Então, você vai fazer…” Eu já, Tereza anota aí pra mim, era numa quarta feira a primeira aula e desde então foi o primeiro projeto que me aproximou do Redes da Maré, eu amei essa aula e fiquei tão apaixonada, muito muito de verdade, parece que eu já fazia a milênios, parece que eu me encontrei. Parece não, de verdade eu me encontrei nessa aula. Sou praticante já faz seis anos do projeto, e eu continuo sendo aluna e futuramente instrutora também. Vieram outros projetos, no caso foi quando me convidaram: vai ter alguma coisa no centro de arte, eu fiz dança de salão, fiz percussão. Tem aula disso, eu estou a toa então eu vou, vou largar um pouquinho o trabalho, vou me mexer, vou me exercitar, vou sair um pouco de casa. E aí logo em seguida, fazendo minhas peças, eu conheci a Casa das Mulheres que era curso de Gastronomia e também foi uma sorte, porque me inscrevi, mas achava que nem ia aprender nada, porque eu já sabia cozinhar, mais pra conhecer pessoas diferentes, e foi uma vaga de desistência também. E como todo espaço que eu chego, quero que o meu trabalho encante as pessoas, mas desta forma, de ajudar. E eu me incomodei com a touca, porque toda vez que entrava na cozinha, aquela touca descartável ia para o lixo, e eu: não, não pode gente. Aí de retalho, sobras de camisaria, eu fiz a minha touca e da minha irmã de consideração, que é uma outra irmã também, as outras meninas viram e já queriam saber se eu vendia, eu disse que ia pensar num preço simbólico, só a minha mão de obra, porque o material não paguei por ele. Todo mundo quis a touca. Aí depois veio o incômodo com as camisas, porque eram sintéticas, e sintético pra cozinha não combina, tem que ser algodão, então vamos atrás de fazer a camisa de algodão, mas tem que ser silk, então vamos mandar fazer a tela, e eu mesma corri atrás disso tudo. Fiz o meu avental, todo mundo quis avental. Mas eu não faço só pra vender, tem que ser confortável. É uma necessidade? então vamos desenvolver isso, eu sempre pensei desta forma.
02:00:25
P/1 - A touca era para todos os tipos de cabelo?
R - Algumas meninas tinham o cabelo black, e do tamanho que saia lá, porque eu aproveitava os retalhos, então uma saia pra cabelo curtinho, tem pra todos os tamanhos, vê o que encaixa e usa e fica, e as meninas que não podem pagar, eu dou de presente.
02:01:30
P/2 - Rafaela, você comentou que essa aproximação da Casa das Mulheres te trouxe tanto oportunidade profissionais, quanto oportunidade de estudos, Você consegue falar pra gente um pouco mais sobre isso?
R - Através da Casas das Mulheres, eu fui convidada para participar do WOW Festival de Mulheres do Mundo, e isso fez com que muita gente conhecesse o meu trabalho, foi bem bacana.
02:02:01
P/2 - E neste sentido, como funcionou o festival? Como você conseguiu divulgar? Você apresentou alguma coisa nova?
R - Foram três dias de trabalho intenso, vendas intensas, teve gente que eu nem sabia conversar direito, pois não falava a minha língua, mas eu tinha a minha professora do lado, foi muita venda e pro bolso foi bem positivo, foi uma experiência boa, muito boa mesmo.
02:02:38
P/2 - Você comentou também de uma formação, que veio com o Paul [ Heritage] e o trabalho da People 's Palace Projects. Como foi isso?
R - O Building the Barricades foi a formação de quarenta jovens produtores culturais, que faziam a diferença dentro da sua comunidade, e eu nem imaginava que eu fazia parte, que eu era tanto assim. Aí eu fui convidada para participar e fui muito bacana, a gente passou o final de semana em Petrópolis, fazendo curso com o Paul, com o Faustine, que hoje ele está na cultura e eu torço muito por ele. Conheci ele neste projeto e fez muito a diferença esse olhar, eu já tinha esse cuidado na questão da arte, mas em questão de cultura juntar essas duas coisas, faz muito mais sentido, e ter esse olhar mais amplo, mais prático.
02:05:56
P/1 - Como você se vê inserida como mulher e moradora do Parque União, vinculada à arte e cultura, como você se vê nesse contexto? Com todos esses atributos, viés, de que forma a sua inserção como moradora da comunidade é importante para você, para sua formação como indivíduo, na sua vida profissional?
R - Eu nunca parei pra me observar, eu sempre quis olhar pra fora, de olhar pra algo e querer melhorar ou ajudar a melhorar, ou completar, sempre pra frente. Se a gente pode mudar algo, vamos lá, se a gente não pode, paciência. Sempre quis melhorar tudo em si, ou pensar, pensar em quem não está conseguindo, quem tem o poder de melhorar e não está conseguindo, a gente oferecer uma ajuda, dar uma opinião, ou ir lá e fazer.
02:05:10
P/1 - Mas você faz isso através da arte e da moda. Que é o caminho que você escolheu?
R - Se eu não posso mudar de uma forma, mas eu posso mudar do meu jeito, ou melhorar do meu jeito a visão. Embora seja simples para algumas pessoas, para mim é grandioso.
02:05:31
P/1 - Você pode repetir pra gente finalizar? A gente está passando por um momento difícil, histórico, que a gente está vivendo com a pandemia da Covid e você fez um trabalho bacana, também dentro da arte e da costura, das máscaras, a distribuição de máscaras de pano reutilizáveis. Você pode então comentar como você se envolveu nessa atividade?
R - No início eu não queria fazer máscaras, de jeito nenhum, porque como no facebook tem os grupos de costura, aí eu via o pessoal comentando: “Ah vai ganhar dinheiro em cima de uma doença”, eu refletindo sobre isso pensei, poxa é mesmo, enquanto tem gente morrendo a gente vai ganhar dinheiro vendendo máscara?!, e não é o tecido correto e tal. Aí a minha irmã é diabética, ela chegou pra mim e disse: “Irmã, não tem para comprar, você vai ter que fazer e provavelmente você também vai ter que usar. Onde eu ia ter o modelo, o molde, não tinha pra comprar. Aí eu fui procurar na internet, achei umas fotos japonesas, nas meninas japonesas é diferente, mas eu consegui reverter e fazer. Realmente eu coloquei moda nisso, porque fiz tudo de caveira, nós somos roqueiras então as primeiras saíram roqueiras. E as mulheres da igreja queriam usar e diziam: mas tem como ser sem caveira, minha filha? Eu dizia que dava um jeito, tirava a pontinha do tecido e não saia a caveira. E as primeiras eu vendia num preço simbólico também, eu não iria comprar caro, porque os tecidos ficaram muito caros, eu dizia: não vou pagar caro num tecido, porque senão eu vou ter que vender caro também, eu sei que tem pessoas que nem trabalhando está. Então a cada duas que eu vendia, uma eu dava, até aparecer projetos que me pagavam pra eu fazer e essas que eram feitas depois, iriam ser todas doadas, poxa que causa bacana. E foram vários projetos, que me deram renda também, pra poder me manter.
02:08:13
P/1 - Só pra gente finalizar, tem alguma coisa na sua vida que se pudesse mudar, você mudaria?
R - Não, não mudaria nada, nada mesmo.
02:08:27
P/1 - Tem sonhos, expectativas de vida? O que você prospecta?
R - Anos antes eu até criava, mentalizava sonhos, mas a vida me ensinou que a gente tem que viver o hoje, o aqui e o agora.
02:10:00
P/1 - Como é um dia seu, da sua vida?
R - Acordo sem muita pressa, faço um alongamento ainda na cama, tomo um banho gelado, um café bem quente e sem açúcar, aí olho ao meu redor e por onde começar. Aí o centro da minha vida é a máquina de costura, às vezes eu começo por ela, o que eu vou criar hoje, ou o fogão mesmo, o prato que eu vou fazer hoje, às vezes já acordo pensando no almoço, ou o que eu vou criar. Assim é o meu começo, às vezes eu crio uma peça e às vezes não, ou eu saio para um compromisso, ou reproduzo uma geleia nova, um antepasto pras minhas vendas, uma receita nova.
02:11:09
P/1 - Com quem você mora?
R - Eu moro sozinha. Por um lado é muito positivo, quando se quer criar, porque não tem interrupção de ninguém.
P/1 - Mas o filho está perto?
R - Às vezes eu estou lá na minha, aí ele chega com as meninas, porque ele tem duas filhas, e aí já começam a brincar lá, e eu sempre no cuidado, porque casa de costureira, agulha, alfinete pra tudo que é lado, mas dá tudo certo.
P/1 - Mais mulheres na família.
02:11:51
P/1 - Rafaela, você gostaria de comentar mais alguma coisa? A gente vai encerrar e eu vou agradecer profundamente esse partilhar, um pouco da sua história de vida e das suas experiências. Gostaria de comentar alguma coisa?
R - Eu só queria agradecer, poder compartilhar esses pontos da minha vida, só queria agradecer mesmo a oportunidade de poder falar, sobre um pouco da minha vida.
P/1 - Você acha que é importante, você acha bacana?
R - É bem positivo né, se eu estou fazendo algo bacana pra alguém, que seja inspirador para outras pessoas. Que a gente não é melhor do que ninguém e nem igual a ninguém, mas a gente pode ajudar as pessoas a serem melhores do que elas mesmas.
02:12:51
P/1 - Maré é muito diferente de quando você era pequenininha pra 2021?
R - Muito, muito diferente, todas as ruas asfaltadas, umas oportunidades a mais, muitas e um grande número aqui no Rede da Maré, que dá oportunidade pra muita gente, empregos, uma outra visão mesmo. Muitas vezes as pessoas saiam pra trabalhar fora, agora encontram até mesmo na esquina de casa, ou criam o seu próprio trabalho na porta de casa ou dentro de casa.
P/1 - Isso é bom, né?
R - É muito bom, porque é dono do seu próprio negócio, ou ajudar o outro a construir o seu negócio, ou melhorar a qualidade de vida, atendimento também de saúde, embora que ainda precário, mas a agente de saúde vem até a sua casa e pergunta se está tudo bem, se quer marcar uma consulta, é raro, mas acontece. Mas tem melhorado sim, mudado muita coisa, muita coisa mesmo, algumas pra melhor outras nem tanto, mas a gente enxerga o positivo que faz que a gente não ignore o negativo, mas enxergue que se está ruim a gente pode tentar melhorar.
P/1 - E com certeza, o Made in Mare ajuda bastante isso.
R - Sim. É a minha contribuição, que tem a outra fala, que tem a outra visão.
02:14:53
P/1 - Gente, agradeço a Rafaela, agradeço as meninas todas parceiras, muito obrigada, e muito obrigado pelo partilhar.
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