Meu nome é Rafaela.
Só tenho minha mãe, meu pai eu não conheci. Tenho sete irmãos.
Ser mais velha é tipo.. Você faz tudo pra mais nova, não é muito legal, não. Eu cresci cuidando das minhas irmãs pra minha mãe ter que trabalhar. Eu tinha que arrumar a casa. Eu tinha que fazer comida pr...Continuar leitura
Meu nome é Rafaela.
Só tenho minha mãe, meu pai eu não conheci. Tenho sete irmãos.
Ser mais velha é tipo.. Você faz tudo pra mais nova, não é muito legal, não. Eu cresci cuidando das minhas irmãs pra minha mãe ter que trabalhar. Eu tinha que arrumar a casa. Eu tinha que fazer comida pra eles, tinha que deixar tudo organizado, tinha que cuidar, dar banho, tudo.
Se você quer saber, eu não lembro de muita coisa da minha época de criança. Eu acho que nem tive essa faixa de ser criança. Eu tive que assumir responsabilidade muito cedo. Eu tive que cuidar dos meus irmãos logo cedo, tive que aprender a cuidar deles - delas, são meninas.
Não me lembro do que eu gostava de fazer, até porque a gente não podia nem sair no meio da rua. A gente era mais dentro de casa, trancada, então era só ali. O que eu lembro mesmo era ter que ir pra escola, quando me soltavam, quando podia me distrair.
Eu saí de casa muito nova, tinha treze anos. Quando minha mãe foi morar com meu padrasto eu tinha seis anos. Eu e minha irmã, ele judiava muito da gente. Ele batia muito na gente, maltratava muito.
Acho que desde os nove até os treze anos ele me aliciou. No dia que minha mãe descobriu, ela me botou pra fora de casa. Ele fazia o que na época eu não entendia, mas hoje eu entendo. Ele ficava me tocando, me alisando, me fazendo tocar nele. Às vezes, de madrugada, ele acordava… Quando estava tendo relação com a minha mãe ele me acordava pra eu ficar vendo e, sabe, era muito perturbador.
Eu sentia raiva, sentia nojo. Eu achava que a culpa era minha, porque não sabia se a minha mãe ia ficar do meu lado. Eu tinha medo, porque ele ameaçava. Ele batia muito na minha mãe. Ele chegava bêbado, batia na minha mãe, batia em mim, na minha outra irmã.
Eu não sei se ela sabia ou via ou se ela se fazia de doida, mas acho que uma mãe… Hoje eu sou mãe e eu sei quando seu filho está estranho, quando seu filho não quer ficar com uma pessoa. Eu acho que ela devia ter desconfiado de alguma coisa. Você não quer ficar dentro de casa, você faz de tudo pra não estar ali sozinha com ele. Eu chorava pelos cantos com ela, pra não ter que ficar só, então não sei. Mas quando eu fiz treze anos… Eu cresci meio rebelde. Numa briga que eu tive com ele, eu puxei uma faca pra matá-lo e foi uma confusão danada dentro de casa. Quando passou a confusão, contei a ela, só que ela botou a culpa em mim.
Ela disse que a culpa era minha e [perguntou] se ele nunca chegou a [me] penetrar, mas se tivesse tirado minha virgindade ela tinha me botado num Conselho Tutelar. Aí me expulsou de casa, fui morar com meu avô. Só que ninguém na minha família sabe, eu nunca mais contei pra ninguém.
Quando eu saí de casa, que eu fui pra casa do meu avô, eu fiquei totalmente rebelde. Não queria mais saber de ninguém mandar em mim, de ninguém dizer o que eu ia fazer ou deixar de fazer, então morar [na] casa do meu avô foi briga em cima de briga; eu saía, ele não queria deixar e eu saía mesmo. Ia e fazia, começando a fazer coisa errada. Chegava [às] sete horas da noite em casa, então era muita confusão.
Não tinha espaço meu. Dormia na rede, na sala. Às vezes só ia mesmo pra dormir e passava o dia fora de casa, pra não ter que estar dentro de casa escutando nada. No horário da escola eu ia pra escola, depois ficava na rua.
No começo eu ficava com os amigos, conversando. Comecei a fumar, comecei a beber. Comecei uma vida meio que não [é] certa pra ninguém. Não sei, não tinha apoio de ninguém.
Eu não fazia nada. Eu ficava na rua bagunçando, ficava arrumando briga em festa. Eu fumava maconha, eu bebia - isso já é uma droga, né? Eu só nunca cheguei a usar o pó e nem o crack, graças a Deus.
Minha primeira relação foi com o pai do meu filho. Foi estranho porque eu sentia nojo de mim mesma, mas com o tempo a gente vai superando essas coisas.
Logo depois, eu conheci o pai do meu menino e com uns quinze anos já engravidei. Fui morar com ele, tive o meu filho; foi quando eu comecei a botar a cabeça no lugar e querer fazer diferente pra ele.
A família dele queria que eu botasse pra fora, só que eu nunca aceitei, porque apesar do que a minha mãe fez, ela me teve com dezessete anos e até o momento dela conhecer o meu padrasto, ela me assumia. Ela sempre trabalhou, me assumiu e me criou até os meus seis anos, sozinha, então não ia fazer isso com um filho. A gente foi morar junto e ficou junto até meu filho ter dois anos e pouco.
Morar com ele foi tranquilo até um certo tempo, [em] que começou briga, discussões, ciúmes. Quando começou essa época de briga, discussões, muito dentro de casa, meu filho era muito novo e eu não quis isso pra ele. Cheguei a me separar dele por conta disso, porque não queria que meu filho visse o pai e a mãe brigando, discutindo, não tendo mais respeito dentro de casa. Uma coisa que eu cresci vendo, não queria que meu filho crescesse vendo.
Nessa época, minha mãe já estava separada do meu padrasto e eu voltei pra dentro de casa, fui morar com ela. Eu já falava com ela, só que o sentimento fica, a mágoa fica, não é mais aquela coisa. Você chama de mãe porque está acostumada a chamar de mãe, mas você não sente o amor da sua mãe, você não tem amor pela sua mãe. Você mora ali porque tem que morar, você não tem pra onde ir. Eu não dava satisfações a ela; ela fazia o que quisesse, eu fazia o que eu quisesse, ela não se metia.
Quando fui morar com ela eu não estava trabalhando. Por isso que eu digo que minha mãe sempre quis se redimir com o neto, porque minha mãe não deixava faltar nada pra ele, era tudo pra ele, e comigo eu me virava. No começo, o pai dele ainda dava umas coisas, mas depois parou de dar e hoje também nem liga mais. Mas minha mãe sempre me ajudou com ele. Pra ele não falta nada.
Depois da gravidez eu voltei, vivia em festa. Ela ficava com o meu menino, então saía de noite. Ia pra festa, ia pra balada, comecei de novo a me envolver com gente errada, com gente que usava droga de novo. Comecei a curtir, a sair, arrumar dinheiro. No outro dia de manhã, eu botava ele pra escola e ia dormir. Só que ela não perguntava, por que eu também não dava satisfações. Era uma desconhecida.
Pra arranjar dinheiro, às vezes a gente ficava com uma pessoa, entendeu? Arrumava uma pessoa, um ficante; ele sempre dava um dinheiro e ajudava, sabe assim? A gente sempre estava trazendo dinheiro, então era uma certa forma de ganhar dinheiro.
Às vezes você ficava com uma pessoa, ia ficando, ele te dava cem, 150. Ele perguntava o que você estava precisando, aí ele ia e comprava. Eu nunca cheguei a estabelecer um preço, tipo ‘eu faço tanto por tal’. Era mais assim, a gente buscava ficantes que tivessem dinheiro, que soubesse que eram mão aberta, que iam dar dinheiro. “Você tá precisando de alguma coisa?” “Você tá precisando de dinheiro?” Você: “Estou, [de] tanto.” Eles davam.
Eu procurava me envolver com pessoas que eu sentisse pelo menos um pouco de atração, gostasse, achasse bonito. Assim ficava bem mais fácil. Você não ia fazer por fazer, você fazia também porque gostava.
Eu acho que essa fase durou um ano, dois anos, no máximo. Comecei a parar de sair, comecei a buscar outra coisa. Foi na época que eu trabalhei na Secretaria de Saúde. Logo depois da Secretaria de Saúde, passou um tempo [e] eu fiz inscrição no projeto [ViraVida]. Entrei no projeto, foi quando eu me estabeleci e pronto. Disse: “Eu vou dar uma vida melhor ao meu filho. Eu vou trabalhar, vou terminar meus estudos e pensar numa coisa melhor. Continuar meus treinos e me dedicar a isso.”
Conheci o jiu-jitsu com um amigo meu. A gente estava conversando, ele disse que fazia jiu-jitsu.
Eu sempre tive um gosto por esporte. Acho que eu era muito arengueira [brigona] na escola. Eu vivia brigando, sendo expulsa da escola porque vivia em confusão. Quando eu conheci o jiu-jitsu, achei estranho, mas depois eu comecei a fazer, aí me apaixonei pelo esporte. Do jiu-jitsu eu conheci o muay thai, aí fiquei. Foi a única coisa que eu nunca abandonei.
Na hora das minhas lutas eu me sentia bem. Sentia-me fazendo o que eu gosto, botando em prática o que eu aprendi. Você se sente bem fazendo aquilo que gosta, que você se identifica, que não é errado. Ninguém vai lhe criticar por isso.
Eu comecei a me dedicar mais ainda ao esporte à noite. Voltei a estudar, na época que eu fazia o ProJovem, o Ensino Fundamental, aí terminei. Depois disso eu comecei a fazer o [Ensino] Médio. Comecei a trabalhar, a me aquietar, a ficar em casa. Ia treinar, voltava pra casa, ficava com meu filho e não queria sair de casa. Tinha que ter uma forma pra me sustentar, também pra sair de casa, o ambiente não estava legal. Era sempre briga. Minhas irmãs mexiam nas minhas coisas, eu não gostava, então era briga por cima de briga. A minha mãe sempre passou a mão na cabeça delas, então eu tinha que sair de casa.
Foi quando eu conheci também o projeto [ViraVida]. Eu fui me inscrever; foi quando tudo mudou mesmo, realmente. Eu saí de casa, comecei a comprar minhas coisas, eu tenho meu canto com meu filho.
Eu fiquei sabendo do projeto acho que desde 2009, quando eu ainda estudava em uma escola. Até as meninas que eu conheci estavam fazendo. Em 2009 eu me inscrevi, mas era muita gente, eu não consegui entrar. Em 2010, eu comecei trabalhar também na Secretaria de Saúde. Em 2011 foi que eu consegui me filiar, aí eu me inscrevi e fui chamada.
Minha irmã nunca morou próximo de mim e da minha mãe. Eu sempre morei próxima à rua da minha mãe, que é uma [rua] que eu considero mais tranquila; ela sempre morou mais lá em cima, com os amigos dela, as amigas. Era mais lá pra cima, ela vivia lá em cima. [Eu] não subia muito também, não vivia mais assim. Eu já não andava mais pelo bairro. Ficava mais naquele canto ali, ficava em casa, ia treinar. Eu fui me inscrever com outra amiga no ViraVida e nem sabia que ela tinha se inscrito também.
Eu fiquei feliz por ela estar ali. Ela já tinha sido chamada duas vezes e não foi, ela desistiu, e eu fiquei feliz por ela ter ido, ter continuado.
Eu escolhi o curso de supermercado porque eu achava que... Porque [em] hotelaria, tudo o que eu já ouvi falar… Você trabalha muito. Inclusive umas pessoas que eu conheci trabalhavam naquela área de domingo a domingo, carregando bandeja e correndo de um lado pro outro. Era um trabalho muito pesado, você não tinha horário pra sair, às vezes tinha que dobrar, fazer [hora] extra. Supermercado eu achei mais fácil, um trabalho mais tranquilo. Você trabalha de domingo a domingo, mas não é tão puxado e você conhece várias áreas.
Como as aulas do projeto eram de tarde, meu filho estudava de tarde. De manhã eu ia treinar, eu às vezes levava ele, às vezes ele ficava com minhas outras irmãs. De tarde, ele estaria na escola e eu estaria no curso. Quando minha mãe saía do trabalho o pegava na escola.
Minha mãe nunca cobrou nada pra ficar com ele, inclusive acho que a minha mãe cuida do meu filho. Acho que com os netos… Minha irmã também tem uma menina, minha sobrinha tem um ano. Quem cria praticamente é minha mãe, fica lá na minha mãe direto e é assim, é uma babação com eles.
Das atividades do projeto, eu gostava muito da parte parte do esporte. Tinha o SESC, a gente ia pra quadra, ia fazer alguma coisa. Sempre estava fazendo alguma coisa diferente, às vezes jogar futsal e jogar vôlei. Eu sempre gostei de esporte, sempre gostei de me movimentar, fazer alguma coisa, sabe? Eu sou muito elétrica, tenho que botar as energias pra fora.
O ViraVida me mudou muito. Você vê pessoas que realmente se importam com a situação que você vive, que querem te ajudar, que querem te dar a mão e você não encontra na família isso. Eu me vejo mais experiente, me vejo mais madura. Eu me vejo mais capaz, mais determinada, mais consciente, mais sabendo o que eu quero, mais sabendo o que é certo e o que é errado, o que eu devo e o que eu não devo [fazer]. Eu me sinto mais mãe.
Através do ViraVida, eu pude me aproximar mais da minha mãe. A gente não tem tanto contato, porque é uma coisa que você se acostuma e não volta atrás no que acontece, mas você diminui a raiva, o rancor, a mágoa que você tinha por ela. O ViraVida fez a gente se aproximar. Nesse tempo todinho eu nunca me lembrei de dizer pra minha mãe que eu a amava e no projeto eu disse. (fica emocionada) Hoje em dia eu sinto um carinho por minha mãe que eu nunca senti. O ViraVida me fez aproximar dela, me fez ser uma pessoa, vamos dizer, menos rancorosa, [aprendi] a perdoar. Eu tenho que esquecer. Deixar pra trás, o que passou, passou.
Pro meu filho eu dou muito amor. Eu vivo dizendo a ele que eu o amo, tanto que ele diz que me ama. Vixe, eu amo muito o meu filho e passo muito carinho pra ele - pela ausência do pai também, o pai não é presente na vida dele. Faz cinco anos que eu me separei. Ele simplesmente deixou de participar da vida dele e eu também não vou atrás. Então, como não tive pai e não tive carinho nem de pai nem de mãe, eu tento passar pelo menos o meu carinho, todo o amor que eu sinto por ele, pra ele.
Meu sonho - se dependesse de mim, como não é fácil... - era viver do meu esporte, viver daquilo que eu gosto de fazer, porque eu gosto de estar na academia. [É] onde eu me sinto bem, onde eu treino, estou gostando de fazer aquilo; [é] onde eu gosto de estar, onde eu gosto de fazer com as pessoas que eu me dou bem. Fazer minha faculdade, fazer Educação Física, abrir uma academia, poder dar aula, poder viver disso. Para o meu filho, poder dar um estudo, um conforto melhor do que eu tive, poder dar um exemplo melhor do que o meu, poder tirar ele do ambiente que eu vivo, do bairro que eu vivo. Aqui você vê muita coisa e eu não quero que ele cresça achando que isso é normal, porque não é.
Contar do que me aconteceu ainda me magoa, lembrar, mas acho que eu superei. Hoje, eu superei. Poder passar pras pessoas que a gente é capaz de superar as coisas, é capaz de seguir em frente e passar por cima dos obstáculos da vida, que nada pode nos derrubar… A gente não pode se deixar derrubar.
\"Nesta entrevista foram utilizados nomes fantasia para preservar a integridade da imagem dos entrevistados. A entrevista na íntegra bem como a identidade dos entrevistados tem veiculação restrita e qualquer uso deve respeitar a confidencialidade destas informações.\"Recolher