Projeto Conte Sua História
Depoimento de Maria Aparecida da Silva Santiago (Cyda Baú)
Entrevistada por Denise Nacht e Lara Nacht
São Paulo, 17/08/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV606_Maria Aparecida da Silva Santiago (Cyda Baú)
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
Revisado por Denise Cooke
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Projeto Conte Sua História
Depoimento de Maria Aparecida da Silva Santiago (Cyda Baú)
Entrevistada por Denise Nacht e Lara Nacht
São Paulo, 17/08/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV606_Maria Aparecida da Silva Santiago (Cyda Baú)
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
Revisado por Denise Cooke
P/1 – O seu nome, local e data de nascimento.
R – Você perguntou o que? Desculpa.
P/1 – Seu nome, local e data de nascimento.
R – Bom, eu nasci em Araçaí, município de Minas Gerais, no norte de Minas. Meu nome, eu me chamo Maria Aparecida da Silva Santiago, mas quase todos me conhecem como Cyda Baú.
P/1 – Que ano você nasceu?
R – Eu nasci em 1975. Nasci em 1975, um ano que minha vó me conta que teve uma enchente tremenda.
P/1 – E por que o nome baú? De onde vem?
R – O nome Baú, no lugar que eu nasci, na fazenda que eu nasci lá em Minas, se configurou um lugar de quilombo onde os meus avós, meus bisavós, todos eles moraram naquele lugar, cresceram ali, trabalharam por ali, criaram, constituíram suas famílias naquele lugar, se tornou um nome Baú. Mas porque o meu bisavô também trazia esse nome. Então eles se referiam a ele como Antônio Baú, porque ele fazia baús. Ele na época ainda de fugas, era o meu bisavô, então ele tinha muito ainda nele aquela questão das fugas dos escravos e esse lugar que eles pararam foi um lugar que foi: “Aqui ninguém me acha. Aqui ninguém me pega”. É um lugar muito enfurnado na mata de um lugar lá de Minas e que lá ele construiu toda a sua família e tal. Mas ele é uma pessoa que construía baús, porque ele já estava idoso e não conseguia mais fugir e fazer corridas tão fortes como os outros mais novos. Como ele tinha uma artimanha muito boa, uma capacidade de fazer móveis, de construir e consertar ele colocou o nome dele de Antônio Baú e esse espaço, esse lugar dentro do mato virou o Quilombo Baú. Então eu nasci nesse lugar. Lugar maravilhoso. Minha vó quando eu nasci... Meus pais eram muito novinhos, bem novinhos mesmo, bem inconsequentes, minha mãe novinha praticamente foi empurrada para se casar com meu pai, porque ela tinha uma relação muito difícil com a mãe dela, era uma mulher fechada, uma mulher solitária a mãe da minha mãe, então casou com meu pai. Meu pai é um doce de homem, um doce de pai, um doce de pessoa, porém com uma característica, com um problema talvez dos mais graves que o Brasil traz hoje que é a questão do vício. O vício quando toma uma pessoa que não se atentou para a vida, para outro lado melhor da vida tanto para a saúde corporal, física, mental, quanto de legado que deixa para uma família, para uma vida, para outros como exemplo. Por exemplo, minha vó nesse lugar ela trabalhava com dois fazendeiros, ela trabalhava “a meia” não sei se vocês conhecem o nome, é lavrador. Então ela trabalhava a vida inteira, minha vó trabalhou a vida inteira, teve 15 filhos, criou praticamente todos os netos. Era uma mulher guerreira naquele espaço que se configurava muito com muitas outras famílias, família dela, de outros lugares, mas ela na casa dela teve os 15 filhos dela, ajudou a vida inteira a criar os filhos dos dois patrões, eram dois patrões irmãos que tinham duas fazendas enormes com possibilidade de minha vó trabalhar a vida inteira, como ela trabalhou 50 anos nessa fazenda, nessas duas fazendas. Então ela trabalhava “a meia” que é a questão de tomar conta da terra, cuida da terra, planta e divide com quem é o dono da terra, no caso os patrões. E eu fui criada pela minha vó porque, como eu falei, meus pais eram muito inconsequentes, muito novinhos. Meu pai tinha o vício de beber cachaça. No interior, muitos homens acham um norte para eles no vício, a cachaça, porque não têm escola, porque não têm outro lugar talvez de estímulo, o maior estímulo que eles encontram é aquele mais fácil ali que é talvez até do dia a dia deles mesmo. Por exemplo, no caso do meu pai que não é só ele que era um cara que bebia muito e que se viciou muito na bebida como os outros, tanto da minha vó como de outras famílias também, porque a minha vó tinha um alambique de cachaça. Ela alambicava cachaça “a meia” também com os patrões. Ela plantava cana, a vida inteira plantou cana, todos os tipos de mantimentos, feijão, arroz, mandioca, minha vó era uma grande mulher da terra, uma grande mulher que sabe cavacar a terra e trabalhar e dá, o que ela planta dá. Inclusive o alambique. Ela trabalhou muitos anos com esse alambique e ela teve muitos filhos homens, o alambique de cachaça requer força braçal de homem para cortar cana, atravessar o rio, passar na máquina de fazer a cana. Então o meu pai, por exemplo, os meus tios sempre ajudaram muito a minha vó. Com isso eles vão aprendendo a beber cachaça, quando aprende a beber o vício leva para várias outras questões que não ajudam muito uma família. Nesse caso, por exemplo, aconteceu conosco de ele casar com minha mãe muito novo, não tinha um planejamento de vida e tal aí eu nasci. Eu nasci, eles me deixaram com a minha vó, minha mãe, meu pai, cada um foi para um canto quando eles começaram a brigar, se desentender muito e minha vó cuidava de mim. Eles ficam um tempo fora, depois voltavam, me pegavam, eu ia com eles para onde eles fosse morar, daqui a pouco separava de novo, me largava, minha vó vinha: “Vem cá que eu cuido dela”.
P/1 – E você teve irmãos?
R – Tive. Eu tive irmãos. Eu sou a mais velha da família, eu sou a única mulher, tem mais cinco irmãos. Mas só que minha mãe me teve e ela ficou muitos anos sem ter criança. Então fiquei uma menina mais velha, a menina velha, mais velha da família por muito tempo e depois veio uma leva só de homens. Hoje eles estão aí, estão melhor de vida, estão com outras cabeças. Graças a Deus meus pais estão vivos, graças a Deus, meus irmãos todos trabalhando, todos engajados na vida. Mas eu venho desse lugar, uma criança que nasceu de pais muito jovens, com um contexto de vida muito forte, porque essas pessoas... Nós, por exemplo, nós somos de um lugar que nós viemos de um lugar de refugiados, mas de refugiados dentro do nosso próprio país por causa da questão da diáspora, por causa da questão da escravidão. Somos pessoas praticamente que vieram do escondido do mato fugindo das chibatadas. Eu sou resquício disso. Não sou eu, mas eu sou resquício. Tá em mim, tá dentro do meu sangue. Eu fui crescendo ali com a minha vó, junto com todo mundo, a casa da minha vó era sempre com muita gente, muita fartura. Uma casa com muito cachorro, você via muitos bichos. Era de uma natureza incrível, das mais incríveis que eu já vi na vida.
P/1 – Fala da sua infância. O que você fazia lá?
R – As pessoas me perguntam, quando me perguntam: “Você é quilombola?”. As pessoas acham que quilombola é nada. Putz, eu vivi em cima de pé de manga, chupando manga, escorrendo pelos cotovelos, chupando tudo quanto é tipo de fruta, imagina. Minha vó plantava demais que tinha toda uma questão com a natureza, com as plantações, com os alimentos. Então eu tinha melancia da melhor qualidade, milho assado, batata cozinha, mandioca que a minha vó fazia muita farinha, tudo era feito por ali mesmo. Biscoitos, minha vó sempre fez muitos biscoitos “escrevidos”. Eu, sinceramente, sou uma mulher muito privilegiada de ter tido uma infância muito privilegiada. Embora sou resquício de ter nascido num lugar desse por causa de um passado nosso que até hoje não foi reparado, mas dentro desse lugar, a natureza daquele lugar que eu cresci foi de uma riqueza e é de uma riqueza ainda para mim porque tá sempre dentro de mim, vive em mim. Qualquer coisa que eu sou na vida eu sou por causa daquele lugar que me fez. Eu sou por causa daquele lugar que eu vivi com muita gente, convivi com todos os meus parentes por ali, a nossa forma de cultura, a nossa forma de nos expressar. Minha vó, por exemplo, era muito católica, muito religiosa. Todo ano ela fazia as novenas de Nossa Senhora da Aparecida em 12 de outubro. Então nós tínhamos uma grande festa, todas as minhas tias, todo mundo se empenhava para poder estudar os cantos, que a gente tinha que fazer as novenas naquele vilarejo todo e eu era uma das mais sapecas que já queria cantar tudo. E cantava mesmo, cantava certo, cantava errado, mas estava lá. (risos) Era muito bom. Então eu tenho essa riqueza. O rio, sabe? Você poder chegar no rio. A gente não vestia roupa. Eu não vestia roupa, até 11 anos de idade eu não punha roupa. Você vai por roupa para que para morar no mato? Mora no mato, não tem como. Então a minha infância foi das mais ricas que uma criança no Brasil pode ter vivido, porque a gente vivia livre. Livre.
P/1 – E fora essa festa da novena, você se lembra de outros rituais ou aspectos da cultura do quilombo, coisas que ficaram na sua cabeça?
R – Sempre as rodas de capoeira. Por exemplo, o meu avô, um querido, vovô Larinho que a gente chamava ele, meu vovô Larinho, querido, amável por todo, um griô que nem aquele que eu mostrei para vocês. É exatamente aquilo que eu mostrei para vocês. Ele era um griô, meu avô. A gente sentava todos enrodilhados a ele, aí ele contava as histórias dos outros quilombos, do passado dele, contava para a gente. Aí ali mesmo já havia um grupo de meninos e já jogava uma capoeira e a gente batia palma e cantava para eles jogarem. Daqui a pouco eles paravam com aquilo e a gente pegava uns tambores e fazia uns batuques na roda. Brincava muito de roda, porque tinha muitas meninas, muitos meninos e nós brincávamos tudo uns com os outros. Não tinha essa coisa menina não brinca de menino e menino não brinca de menina, a gente era criança que brincava de tudo. Andava a cavalo, tomava banho no rio, que é uma das coisas mais maravilhosas que eu tenho na minha memória, o nosso rio que a gente tinha, que a gente tem lá até hoje. Uma memória forte que eu tenho dentro de mim, como eu te falei antes, eu nasci em 1975 e a minha vó fala que nesse ano teve uma enchente muito forte, e teve mesmo. Uma noite lá estava todo mundo dentro de casa conversando, na roça assim você não tem luz, esses postes de luz que iluminam tudo, que deixam você zumbi, zumbi aqui na cidade grande. Na roça sete horas da noite tudo já está breu, já está escuro, você já está querendo ir dormir e tal. Eles estavam conversando lá, não sei o que, e viram que estava chovendo, todo mundo viu, chover estava chovendo, mas ninguém percebeu, eles não perceberam que a enchente foi muito forte na cabeceira do rio e o rio subiu. O rio subiu e tomou toda a nossa casa. Minha vó me conta que ela saiu comigo enroladinha nos panos procurando um abrigo numa outra casa. Saiu correndo enquanto o povo da casa, os homens e as mulheres que estavam lá com eles naquela noite foram tentando salvar as galinhas, os porcos, a colheita que eles tinham feito naquele ano. Foi incrível assim eu acho. E o mais doido dessa memória que eu vou falar para vocês é que a nossa casa foi toda levada, toda. Tudo que nós tínhamos nós perdemos naquela noite. Só que a carcaça da casa de pau-a-pique, porque é casa de pau-a-pique que a gente mora no mato, ficou inteira. Ficou por anos e anos, anos e anos. Aí a gente apelidava de casa velha, que a gente morava aqui mais na margem do rio, o rio subiu, tomou toda a nossa casa, mais para cima o meu avô construiu outra casa, mais para cima do morro. Então toda vez que a gente ia para o rio a gente passava ao lado da casa velha: “Ah, tá lá na casa velha”. Sabe uma coisa assim? Você tem uma casa que ela tem só as forquilhas, sabe? “Olha, eu dormia lá. Ó, minha vó falou que era aqui que é a cozinha”. Isso aí é uma imagem muito forte dessa casa para mim.
P/2 – E você ficou até quantos anos nesse vilarejo, nessa cidade?
R – Eu saia e voltava muito porque os meus pais muito flexíveis, vamos chamar hoje assim, eu vou falar assim hoje. Eles experimentavam muito. Meu pai quando foi ganhando mais maturidade ele começou a experimentar ir trabalhar em outras fazendas, então eles me levavam, eu ficava um tempo.
P/1 – E como eram essas experiências para você de ir passar um tempo com eles, voltar? Como você se sentia?
R – Tem uma coisa muito importante nessa história toda que, como eu falei para vocês, o meu pai era um homem muito dócil, é um homem muito dócil, muito carinhoso, muito amável, embora quando ele bebesse, ele se transformasse. Ele se transformava quando bebia. Meu pai é um homem forte, grande, e quando ele bebia ele virava aquele gigante de homem e eu não sei o que era, mas algo tomava ele de uma forma que ele só queria bater em todo mundo que estivesse na frente dele. Uma dessas pessoas quem que vocês acham? A minha mãe. Muitas vezes, eu já com sete anos, oito anos, eu percebia que era bom eu ir para eu estar do lado da minha mãe. Porque eu tinha uma coisa com o meu pai, eu era pequenininha, olha que doido isso, eu, uma menina frágil, mulher, uma criança, uma menina, eu já percebia nele que tinha alguma coisa em mim que eu ajudava entre a minha mãe e ele. Eu falava para ele: “Você não vai bater na minha mãe. Você não vai machucar a minha mãe”. Eu via nele que ele gostava muito de mim, é um apaixonado por mim, então eu colocava entre nós dois muito forte, eu deixava que ele visse esse amor que ele tinha por mim para que isso não atravessasse e chegasse até a minha mãe. Porque se um pai tem um amor a uma filha, tem uma ligação muito forte com a mãe, quando ele vai judiar, espancar de uma mãe, eu acho que ele pensa duas, três vezes. Quando ele vê sua filha, aí ele deve pensar assim: “Que porra é essa? Eu tenho essa menina e eu espanco a mãe dela?”. Sabe essas coisas? Então muitas vezes que ele ia trabalhar em outros lugares e minha mãe ia com ele, uma mulher supersubmissa, supersubmissa, carinhosa, sinceramente, minha mãe é um presente de mulher hoje para mim na minha vida, uma grandeza de força que eu tenho ela para olhar para a história de vida dela e me fortalecer através dela, sabe? Achar-me mulher através de como ela vivia. Porque eu fico sinceramente hoje pensando que se fosse comigo eu não daria conta e ela foi brava. Talvez foi brava para poder me ter por perto, cuidar da filha dela da maneira que ela podia, mas eu ia e voltava.
P/1 – Você frequentava a escola nessa época?
R – Eu frequentei a escola muito tarde. Para todos nós lá no quilombo a escola chegava muito tarde. Quando chegou foi através de uma tia do meu pai, que foi a única da família da minha vó que estudou até a quarta série, a única, estudou até a quarta série e ela tinha essa vontade de ensinar para a gente. Então ela montou, ela mesma montou uma mesinha e ensinava algumas coisas para a gente. Um dia lá, não sei o que aconteceu, na cidade de Araçaí, porque até então a gente morava dentro do mato, na cidade de Araçaí começou a ter esse contato, essa questão de falar: “Vamos levar a escola para aquele lugar. Vamos levar a escola para aquele lugarejo porque lá tem tantas crianças, tem uma mulher lá que se interessa”. Essas coisas. Mas o governo mesmo, a política que deveria não chegou. Então eu comecei a estudar mesmo, mesmo quando eu fui para a cidade, para Araçaí. A gente quando cresce em fazendas a única coisa que eu acho que as mulheres pensam é em criar as filhas para serem serviçal do outro. Qual é a referência que ela busca? Que ela tem? Eu acho que a minha vó nunca pensou em me criar para ser uma advogada. Ela me criava ali para eu trabalhar na casa da patroa dela. Foi assim que foi, que aconteceu. Lá pelos 13 anos de idade ela já me colocava para trabalhar na casa da... Bem mais cedo. Na casa da gente, no hall que a gente vive, no contexto de vida que a gente vive as meninas já trabalham desde novinhas, desde pequenas. Se a gente ia para o rio com a minha vó lavar uma vasilha, ajudava. Não vejo menor problema nisso. Não vejo porque não mata, não fere, não deixa menor, uma criança pode aprender a fazer uma coisa, sim, pode lavar uma roupa junto com uma mãe. Ela não é quem vai fazer aquilo de fato, mas ela tá junto ali da mãe que está dando os cuidados e ensina. O problema é que a mãe sem saber o que ela está ensinando, ela ensina a filha a ir para o mesmo caminho que ela viveu, que é não ter estudo, não ter perspectiva de vida, que é não ter um olhar do lugar da mulher, não saber para que lado vai. Então simplesmente cresce uma pessoa, mas não se sabe o que essa pessoa vai se dar. E eu fui trabalhar na casa dos meus avós na cidade, na casa dos patrões dos meus avós na cidade de Araçuaí, comecei por ali fazendo uma comida, varrendo uma casa e tal. Dali começou a despertar em mim... Por exemplo, onde a gente viveu a gente não tinha televisão. Eu fui ver televisão eu já tinha 16 anos. Lá em Araçuaí eu cheguei a ver quando eu fui para lá bem mais novinha. Eu fui trabalhar na casa de uma das patroas da minha vó e o mundo começou a se despertar em mim, despertar em mim para eu olhar para os lados, para eu olhar, me perguntar: “Gente, mas por que é assim? Por que eu to aqui?”. Eu sentia saudade da minha família, me senti afastada daquele lugar que eu cresci, daquele afeto que eu tinha, aquele monte de gente, aquelas tantas possibilidades de vida em liberdade que eu tinha. De repente eu me vejo encurralada, enclausurada numa casa de pessoas brancas, que eu tinha que fazer serviços de determinada maneira, em determinado tempo, de determinada forma e passa a ser uma obrigação ter que fazer aquilo. Eu comecei a me perguntar por que tinha que ser assim no mundo, eu comecei a olhar para frente. Aí alguém me matriculou numa escola lá em Araçuaí mesmo, eu já estava bem mais velha, com 14 anos, por aí. Não me desenvolvi muito bem porque a escola infelizmente, pelo menos lá na nossa escola lá em Minas, naquela época a gente não tinha esse olhar que a gente tem hoje de mais tête-à-tête. Você é uma professora, é um ser humano, eu sou uma aluna, mas também sou um ser humano. Então não tinha esse lugar e eu fui percebendo que eu não era bem aceita, eu não tinha um lugar, eu não via crianças negras ali que tinham esse convívio. E quando tinham as crianças negras, e tem nessa escola em outras classes, em outras turmas, eu sentia esse distanciamento de nós negros, sentia muito esse distanciamento. Eu cresci com oito, seis, nove meninas que a gente conversava, brincava, falava de coisas. Na cidade grande não, era esse distanciamento entre o negro com o negro, branco com negro, negro com branco. Era sempre um trabalho de favor e não de troca, de convivência de vida. Comecei a perceber que o mundo era outro, que o mundo é muito outro. O meu pai veio com umas questões de querer eu o sustentasse quando ele viu que eu comecei a trabalhar. Mas quando eu comecei a trabalhar na casa dos patrões da minha vó eu não recebia nenhum dinheiro. Também é uma coisa que eu comecei a sentir dentro de mim que tinha algum valor, que eu comecei a perceber que as pessoas ganham, que as pessoas fazem os seus trabalhos, que é uma troca, é uma escolha, você pode ter uma profissão, que profissão pode ser essa, o que você pode ser na vida. Comecei a perceber que as pessoas sonham, que elas fazem perspectiva de vida. E eu comecei a pensar: “Eu não vou morar nesse lugar, nessa cidade, porque se eu morar aqui eu vou fazer isso a vida inteira. Se eu voltar para a roça eu vou casar e eu vou ter filhos muito cedo, como minha mãe. Eu vou casar com uma pessoa que não estudou, eu também não estudei para casar com uma pessoa que não estudou. Eu vou ter uma vida muito rasa”. Embora seja na natureza que nos dá tudo, que nos abarca com tudo, mas falta coisa que a gente precisa também completar. A natureza dá, mas a gente completa, a gente vai pondo mais e melhorando o que ela nos dá todos os dias. Eu fui para Belo Horizonte, mas eu fui trabalhar na casa da filha dos patrões da minha vó. Lá continuou a mesma coisa, eu já estava com 16 anos. De maneira nenhuma que eu tenho de ingratidão com essas pessoas brancas às quais eu trabalhei porque de verdade, de verdade, todas elas sempre me trataram muito bem, todas elas me tiveram como humana mesmo dentro da casa deles. Porém, dentro desse lugar que (corte no áudio) 0:27:25.0 será uma pessoa que também não vai ter outra perspectiva de vida a não ser uma empregada doméstica.
P/1 – Mas você não era remunerada em Belo Horizonte também?
R – Também não era remunerada. Com 16 anos eu comecei a pensar: “Se você trabalha, você ganha. E se você ganha você tem escolhas de fazer com o que você ganhou. E se você tem escolhas onde que eu vou colocá-las?”. Eu fugi dessa casa, fui para outra casa que eu ganhava. Aí eu ganhei o meu primeiro salário. Eu fui para a casa de uma professora que me adorava na escola. Lá em Belo Horizonte eles me matricularam em uma escola à noite, eu tinha que trabalhar o dia inteiro e eu estudava à noite. Foi maravilhoso, porque eu adorava ir para a escola, eu vi que eu adorava estudar. Aprendi tudo do zero lá. Aprender mesmo, escrever meu nome ali e tal. E essa professora que me adorava na escola também outro lugar que hoje eu fico vendo as coisas, analisando, pensando, eu falo assim, engraçado, até mesmo aquele que oprime... Aquele que oprime não sabe. Ele não sabe que está oprimindo. Ele oprime já com um lugar construído. Ele nem pergunta: “Poxa vida, eu vou colocar uma menina para trabalhar na minha casa como empregada doméstica. O que eu to dando para essa pessoa?”. Mas eu fui trabalhar com ela. Não tinha nenhuma questão dessa na minha mente, isso que eu tô contando agora. Não tinha, não pensava dessa forma. Eu acredito que ela também não, tanto que eu fui trabalhar na casa dela como eu trabalhei na casa de tantas outras. Também foi um lugar maravilhoso por quê? Porque ela me acolheu e ela não só me acolheu como pessoa, mas ela me acolheu na escrita, na leitura. Ela falou: “Cyda, você vai aprender a ler, você vai aprender a escrever. Você vai aprender porque você é muito inteligente. Você é uma menina muito especial. Você é uma menina muito querida por nós. A escola inteira gosta de você”. Isso foi o meu mundo assim, meu mundo: “Eu vou aprender, dona Marcia, eu vou aprender a ler, eu vou aprender... Posso ser quem eu quiser?” “Pode. Você vai fazer uma escolha de vida, uma hora você vai fazer. Você vai fazer uma escolha de vida”. E foi indo assim. Fui trabalhar em outras casas de pessoas mais maravilhosas também, outras patroas. Fiz bastante faxina, trabalhava nas casas o dia inteiro, no sábado e no domingo eu fazia faxina para eu poder pagar meu lugar que eu morava, ter mais condição de pagar minhas coisas e tal. Em 97 eu morava na minha primeira casa (risos) orgulho da minha vida. A minha primeira casa era desse tamanho aqui, uma casinha, um quartinho que eu aluguei lá em Belo Horizonte. Então eu tinha todas as minhas coisas certinhas, tudo de madeira, que eu sou metida, sabe? Eu gosto tudo de madeira (risos). E aí eu tinha meu cantinho, meu lugar de escrever, de estudar, minhas roupas. Tudo. O que eu podia ter dentro daquele espacinho eu tinha. Foi meu porto seguro por muitos anos. Uma família querida lá em Belo Horizonte que alugou para mim essa casa. Eu tinha que buscar, eu lembro que eu tinha que ter muitas... Como é que chama isso? Fiador. Eu tinha até fiador (risos). Pode isso, gente? Você imagina uma menina que sai de um quilombo, vai por aí e ainda exige dela fiador (risos). E aí eu morei muitos anos nesse lugar, graças a Deus. Fui estudar, fui para uma escola, continuei os estudos que a dona Marcia tinha me encaminhado e tudo. Também tinha saído da casa dela e tal. Mas um dia, em 97 mais ou menos, foi em 97, o ano não me esqueço, um dia eu acordei e eu falei assim: “Eu não vou mais fazer isso que eu faço. Eu não quero mais ser essa pessoa como eu sou hoje. Eu quero mudar. Mas para onde que eu vou? O que eu vou fazer? Por onde eu vou começar?”. Eu tinha uma televisão pequenininha assim em cima de um rackzinho que tinham me dado, era o que eu tinha, então eu tinha essa televisão. Eu assistia muito pouco porque eu nunca fui de assistir, ser uma pessoa que chega e... Não. Não assistia televisão. De vez em quando eu a ligava, momento de solidão, eu falava: “Vamos ver o que tá...”. Eu olhei para a televisão, eu falei assim: “Gente, mas o que esse povo tanto fala? O que esse povo tanto mexe com a boca?” – nas novelas. “O que eles tanto falam?”. Eu ainda não entendia esse mundo da arte. Eu falei: “Eu vou ser isso! É isso! Eu vou trabalhar disso, desse trem aí. Eu vou trabalhar aí dentro. Eu vou trabalhar dentro dessa televisão”. Arrasou! Mas no dia seguinte, minha nega, eu fui é fazer faxina (risos). Isso era um dia. Isso era um dia. Eu tinha comprado nesses anos todos que eu trabalhei tudo assim que você tem apegos, seu rack, sua cama de madeira, tudo bonitinho, tudo arrumado, eu falei assim, meu e minha mãe nunca batalharam muito para ter as coisas, eles sempre ficam esperando que a gente dê para eles as coisas: “Eu vou mandar isso tudo lá para Minas, eu vou por num caminhão tudo que eu tenho aqui, eu vou mandar para eles. A casa deles vai ficar ótima, vai ficar linda. E eu vou me mandar para o Rio de Janeiro”. Foi o que eu fiz. Em uma semana eu empacotei tudo que tinha, tudo bonitinho do bom e do melhor, tudo que eu tinha. Eu me desapeguei de tudo e dei de coração, mandei para Minas, mandei um caminhão levar lá em Minas na casa dos meus pais. Comprei uma passagem, fiz o contato com minha tia que eu não via, há anos que eu não via, que é irmã da minha mãe, saiu de Araçaí de lá da nossa região muito cedo também para trabalhar como empregada doméstica, mas ela já foi direto para o Rio de Janeiro. Eu não tinha contato com essa tia, a não ser de ouvir falar dela que ela era uma governanta e eu falava: “Ó, governanta. Ó!”. Eu achava isso: “Nossa, minha tia é governanta no Rio de Janeiro. Nossa Senhora, desceu um luxo”. Isso quando eu era mais nova eu pensava. Mas quando eu estava nessa casa, por exemplo, eu já sabia o que era uma governanta, que era mais do que uma empregada doméstica, mais e mais e mais, mas era uma profissão. Aí eu a contatei, falei: “Tia, é assim, eu to pensando que eu quero mudar de profissão, eu quero estudar outra coisa. Eu gosto muito de arte e eu vejo que aqui em Belo Horizonte eu não tô com muita facilidade de fazer porque eu não tenho muitos contatos. Eu queria...”. Quando você vê um artista na televisão você quer imediatamente entrar lá, só que você quer entrar e aí você imagina imediatamente do Rio de Janeiro, que você acha que é lá que faz, você fala: “Então é para lá que eu vou”. (risos) Fui para o Rio de Janeiro, cheguei lá, minha tia foi me buscar, aquela coisa toda, me pegou, me recebeu na casa que ela trabalhava. Eu percebia que era com o coração na mão, por que como é que você vai receber alguém no lugar que você trabalha que não é sua casa? Não é a sua casa e você tem que acolher porque é a única pessoa que tem ali. Minha tia morava na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, num apartamento luxuosíssimo, uma casa enorme e tal. Há muitos anos que ela trabalhava nessa casa, ela já trabalhava há 25 anos como governanta. E aí quando ela foi me mostrar o quarto para dormir, onde eu ia ficar, gente, era isso aqui, sabe? Eu falei assim: “Gente, mas a minha casa é maior do que o quarto que minha tia mora”. Então eu via que a minha tia dormia numa posição fetal e eu tinha que dormir mais fetal ainda com ela porque não tinha espaço para aquilo. Aquilo foi me tomando, sabe? Aquilo foi me tomando, eu falei assim: “Gente, mas o lugar que eu tô buscando de ser atriz, mas não é necessariamente só ser uma atriz, só trabalhar com arte. Essas imagens, esses lugares, esses tamanhos de lugares que nos são oferecidos, que nos cercam...” – eu comecei a questionar isso – “Por que nós estamos nesses lugares? Por que nós conseguimos chegar só nesses lugares?”. Então isso foi me levando a buscar mais e tal. Eu perguntei para a minha tia se ela conhecia pessoas que trabalhassem, minha tia não tinha o menor contato com arte, o menor contato com teatro, com nada. Eu falei: “Mas, tia, a senhora não vai ao teatro? A senhora não assiste? A senhora não vai ver peça de teatro?”. Eu achava que ela nadava no mundo da arte lá porque ela morava no Rio de Janeiro. “Não, Cyda. Não tenho o menor contato. Não vou.” “Mas isso não tá certo”. E aí ela arrumou um trabalho, outra casa mais rica, de alguém mais rico de quem ela já trabalhava e tal, eu fui trabalhar nessa casa, tinha o meu salário e tal, eu comecei a ver nos jornais, olhar nos jornais curso, algum curso que eu pudesse fazer e tal. Eu via aquelas coisas caras que eu nem sabia onde ficava, nem sabia por onde andar no Rio de Janeiro, mas foi na cara dura, foi quebrando a cara. Nos finais de semana que eu não trabalhava eu ia com a minha tia, eu pegava um ônibus e ia de uma ponta, eu saía da Barra da Tijuca para ir no Leme, só para saber onde ficava tal endereço, que daí no outro mês quando eu tivesse o dinheiro eu ia lá para fazer o curso. Então eu ia fazendo isso. No Rio de Janeiro, aí eu já estava com 25 anos, cheguei lá em 2001 com 25 anos. Eu tive um processo comigo que eu sempre falo que eu sou muito abençoada, sempre acho que tem uma luz que me protege, que me ajuda, que me faz abrir os olhos mais rápido, que me faz ir para o lugar que às vezes é o lugar que eu precisava ir, sabe assim? E lá me deu um norte que eu falei assim: “Gente, para eu estudar, para eu ser atriz eu tenho que estudar e eu nunca estudei isso”. Todo mundo fala, eu comecei a me inteirar com as coisas vendo as pessoas que trabalhavam, negros que trabalham na televisão, as atrizes negras que eu vejo, todas elas, brancas também, comecei a me inteirar com o mundo de quem faz televisão, de quem faz teatro, de quem faz arte. Comecei a ler livros de pintores, comecei a ler essas coisas que eu não tinha lido na escola. Então eu falei assim: “Gente, então eu tenho que fazer uma faculdade. É isso. Eu tenho que procurar uma escola de teatro que me ensine a ser uma atriz, mas para eu fazer uma escola eu tenho que pagar caro. Não tenho esse dinheiro. Deve ter uma escola que ensina de graça, não sei”. Aí eu fui procurando, procurando até que eu encontrei a Martins Pena. A Martins Pena é uma escola, é a primeira escola de formação de atores da América Latina, que fica no Rio de Janeiro, no Centro do Rio de Janeiro. É um patrimônio nosso, que o Brasil tem. É uma escola em que todos os maiores principais e grandes atores do Brasil passaram por lá. Fernanda Montenegro, Paulo Autran. Todos. A começar, Martins Pena. Então eu falei: “É isso que eu vou fazer na minha vida. Eu vou fazer tudo que eu precisar de fazer porque eu vou entrar nessa escola”. Eu comecei a fuçar que o vestibular para entrar lá era muito foda, que era um lugar que todo mundo do Brasil vai para lá. Primeiro porque é uma escola do governo, uma escola gratuita, depois porque é uma escola de muito respeito, de muita qualidade, com professores de extremo gabarito e porque é uma escola que está do lado do lugar que se faz televisão, faz teatro. Gente que faz aquela escola acaba indo para a televisão, se formou para ator lá naquela escola. Então é a escola que fica do lado do O Tablado, que também é uma grande escola de atores no Rio de Janeiro. Outra escola particular que se chama CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), que fica em Laranjeiras, então eu comecei a circular entre esses três lugares. Os atores que estudavam na CAL faziam já televisão, os que trabalhavam no O Tablado como, por exemplo, Andréa Beltrão, várias outras atrizes, Drica Moraes. Vários outros atores e atrizes que fizeram suas carreiras, seus estudos naquelas escolas. Eu fiz o vestibular, prestei o vestibular, fiquei em casa, estudei que nem uma louca, fiquei um mês confinada em livros, confinada lendo, estudando, estudando, eu fiz a prova e passei. Entrei assim muito bem colocada. Muito bem colocada mesmo. Eu fui a segunda aluna das notas. Aí meu mundo abriu. Aí meu mundo abriu que eu vi que eu era um ser humano, eu comecei a perceber que eu era uma mulher negra que nasceu em um quilombo, que nasceu no Brasil, que nasceu com “n” possibilidades de ser marginalizada, rejeitada, de sofrer preconceito, primeiro por ser mulher, por ser negra, por ser de classe social muito baixa, por ter vindo de um quilombo. A única maneira que eu vi de poder sustentar isso era na questão de estudar e ir em frente. Estudar e ir em frente. Estudar, trabalhar e ir em frente com as pessoas que com certeza estariam junto comigo, até mesmo aquelas que estão no nosso caminho para serem os nossos inimigos, na verdade são sempre para nos fortalecer. Eu prefiro olhar dessa forma porque todos aqueles que pestanejaram em ser amigos, eles me ajudaram. Eles me ajudaram a ser mais forte para continuar a caminhada. Quando tentou ser preconceituoso comigo, quando tentou judiar de mim de forma... Denegrir, menosprezar, deixar menor do que eu já vinha sendo. Eu falei: “Não. Você tá me ajudando. Eu deixo você seguir o seu caminho e eu sigo também o meu”.
P/1 – Como que foi, Cyda, essa sua vivência com todo esse seu histórico que você tá falando, de uma menina que vem de classe baixa, empregada doméstica, negra, mulher, nesse ambiente de elite, que provavelmente devia ser uma elite lá na Zona Sul carioca, dos melhores que estão dentro dessa escola de teatro? Como é que isso foi?
R – Foi, como que eu vou dizer? Aliás, não foi, a impressão que eu tenho é que é eternamente desbravador, porque você tem que ter um lugar, criar, trazer, cuidar de um lugar em você para você saber lidar com você da maneira que você é, a partir do lugar que você vem, com tudo que você traz da onde você vem, porque a gente sempre traz, sim. Por que não? Não deveria deixar, talvez, porque faz parte de mim, o que eu sou e da onde eu vim, de quem eu vim. Eu sou isso. Mas também aqui eu sei que nesse lugar tem outras pessoas com outros jeitos, com outras qualidades, com outros privilégios, oportunidades de ser, porque são outras pessoas, e está tudo certo. Eu vejo que sempre tem que partir de mim essa questão de como é que eu lido com o outro, é sempre como é que eu lido comigo. Porque se eu souber lidar comigo eu sei lidar com o outro. E lidar com outro para mim é sempre lidando comigo com muito amor, sabe? Com muita amorosidade comigo, com muito respeito de quem eu sou, de onde eu venho, para onde eu quero ir, onde eu estou, com quem eu estou. Como é que eu lido com essas pessoas? Como é que eu lido comigo nesses lugares? Então quando eu lido comigo eu lido com o outro. Porque sempre que eu olhar para mim com muito respeito, amorosidade comigo da maneira que eu sou, o outro vem, eu reverbero no outro.
P/1 – Da onde você acha que vem essa amorosidade ou esse jeito seu de encarar? Você acha que tem a ver talvez com a sua vó, com a sua história? Você enxerga da onde? Ou você acha que é seu?
R – Olha, o Criador eu sempre acredito. Eu não tenho religião, mas eu acredito numa força maior que nos abraça, que é tão generoso. Acredito numa força que é tão generosa, tão generosa que ela é capaz de abraçar todos nós de uma vez. Então se ela é capaz de abraçar todos nós de uma vez, ninguém escapa, todo mundo tem um pouquinho dessa amorosidade dentro da gente. Mas o lugar, as pessoas, as situações, as condições também nos moldam, também nos constroem. Eu acredito que os pais, os avós da gente, as pessoas que nos ajudam, que nos acolhem, não importa qual é a situação que aconteceu e essa pessoa nos acolheu, no meu caso eu gosto muito de pensar e acreditar, toda vez que você olha para trás e você vê alguém que te ajudou, que olhou para você antes que você olhasse para você, antes que eu mesma olhasse para mim, alguém lá atrás já olhou, eu penso que eu existe um lugar em mim que eu quero muito é que somente eu siga um caminho, que eu possa ser mais e, ao mesmo tempo, trazendo quem já me colocou, já me trouxe, já me deu um lugar. Eu penso que é um exercício de uma continuidade daquele melhor que você recebeu. Toda vez que eu olho as grandezas, as pessoas que me ajudaram, eu só posso fazer mais do que eu, eu tenho que procurar fazer mais do que elas já fizeram por mim. Então acho que essa força tem que vir para mim, no meu caso tem que vir daí porque eu fui muito ajudada. Eu fui muito. Eu fui uma pessoa que todas as portas foram muito abertas para mim no sentido de me ajudar, até mesmo nos momentos de dor eu tive que tirar dali esse alimento. Eu tive que tirar desses lugares. Esses lugares por onde eu passei, essas casas por onde eu passei, as mulheres com quem eu convivi, que muitas delas me educaram, eu era novinha ainda, uma menina ingênua ainda. Mesmo que com memórias, coisas, vivências da roça, do interior, de uma mãe também submissa, de uma vó submissa que trabalhou para ter filhos e trabalha na terra, trabalha para o outro e tal, tem que vir desses lugares. E as mulheres, todas elas, as negras, as brancas, as mais velhas, as mães de leite, essas todas me fortaleceram muito, essas todas me construíram e vêm me construindo, porque a estrada continua.
P/1 – E como é que foi essa sua vida nova que começou quando você entrou na escola?
R – Eu entrei na escola e foi maravilhoso, porque daí eu já tinha outro olhar para vida. Eu já olhava a vida de outra forma porque eu já não trabalhava mais em casa de família, eu passei a trabalhar em loja, fui trabalhar na C&A, fui trabalhar em várias outras coisas que não fossem uma casa. Fui trabalhar numa loja num shopping chama Amor aos Pedaços, trabalhar nesse shopping. Lá eu trabalhava nesse shopping, um dia chegou uma equipe, daqui a pouco colocou umas luzes assim, eu falei: “Ué, mas por que vocês estão fazendo isso comigo?” “A gente quer fotografar você. Você é muito linda.” “Mas eu tô trabalhando. Eu tô trabalhando”. Era a Globo querendo que eu fosse participar do Big Brother, um Big Brother X lá que eu não lembro. Eu cheguei a me cadastrar, mas não me chamaram para fazer. Você vê que doida, eu nem estava buscando isso e isso chegou atrás de mim lá. Sumiu essa história. Eu fui procurar as agências de publicidade, porque você estuda teatro, você começa a ver ator, aí você começa a ver que ator precisa fazer tudo mesmo, tudo que pintar na vida porque você não vai trabalhar de ator instantaneamente. Tem uns que conseguem, tem outros que não. Você não vai trabalhar de ator instantaneamente que já ganha tudo um mundo de dinheiro para poder pagar tudo que você tem para viver, comprar seus livros e tal. Então eu fui fazendo tudo que aparecia, menos de empregada doméstica, já tinha abençoado a profissão, entregado para o universo, falei: “Agora eu quero outra para mim”. Não desmereço, porque cresci muito, ganhei muito, trabalhei muito, ajudei muito essas pessoas. Criei muitas crianças, amo criança de paixão, criei muitos meninos, tem uns aí que estão fazendo sucesso agora. (risos) Lindos, queridos. Eu fui trabalhando em agências, comecei a fazer publicidade, depois eu comecei a fazer figuração na Globo, fui fazer várias figurações, a minha primeira figuração, gente, eu me senti o máximo. (risos) Eu fui fazer, tinha uma série que chamava O Quinto dos Infernos, não sei se vocês ouviram. Tem um ator que eu tenho uma grande assim, das minhas paixões de referência como ator, Lima Duarte. Eu tenho grande paixão por ele, a voz, o corpo, a barba, sabe? Parece que é um negócio. Eu já pensei tanto nesse homem, fazer um trabalho com esse homem, sentar do lado dele, dar um texto do lado dele, eu já pensei tanto isso que eu consegui, como é que chama que eles falam muito na espiritualidade? Colapsar. Eu consegui colapsá-lo. Chamaram-me para fazer uma ponta. Uma pontinha. Ponta é elenco de ponta que eles chamam, elencão, figuração e elenco de ponta. Nem figuração eu era mais, olha isso. Era para fazer uma pontinha com o Lima Duarte, eu ia fazer uma mucama que era a mucama dele. E (corte no áudio) a cena nua. Eu tinha o cabelo todo raspado, no Rio de Janeiro era muito quente, eu raspava o cabelo porque se tivesse o cabelo tinha que ir ao salão e tudo, eu nunca gostei: “Esse povo pondo a mão, não sei o que, gasto dinheiro”. Queria comprar livro, estudar, meu cabelo livre. Então eu era toda morenaça, aquela pele dourada de praia, não sei o que e tal, eu fui lá fazer a cena com o Lima Duarte. Tinha que fazer a cena nua, quem me dirigiu carinhosamente foi o Wolf Maya. Então foi a primeira vez que eu entrei num lugar assim, com luz, essas luzes maravilhosas, não sei quantas câmeras do lado. Quando eu entrei o Lima estava já deitado na cama, generoso, amoroso como ele é, me recebeu carinhosamente, foi me alisando, foi me tocando para me acalmar, para me ajudar a estar naquele lugar na frente de 30 pessoas, diretor como o Wolf Maya que é superconhecido como diretor bravo, não podia errar. E era para eu simplesmente deitar, fazer a cena com ele que a gente estava transando e a esposa dele entrava no quarto, encontrava a gente e eu rolava da cama e caia debaixo da cama. Rolava e entrava debaixo da cama. Mas foi das melhores coisas que eu já fiz na minha vida sem ter aberto a boca. Eu que falo para caramba não abri a boca, porque a cena era de trepar, não de falação, eu não trepei nada com ele porque não deu, não dava tempo. Mas foi das melhores coisas que eu fiz porque eu caí na mão de um ator de quilate como o Lima Duarte, que me cuidou naquele momento, me ajudou a fazer aquela cena, foi “de prima”, o Wolf Maya não gritou nem um segundo comigo: “Valeu, Cyda, foi lindo”. Deve ter sido lindo mesmo porque a preta manda bem quando tá pelada. (risos) A última novela que eu fiz ponta, assim pontinhas foi uma novela chamada Celebridade. Bacana, fiz muita coisa lá, consegui pagar as minhas contas enquanto fazia essas pontinhas lá com eles. Nesse tempo que eu estava estudando na Martins Pena eu vi lá pelas tantas uma inscrição na internet. Eu não tinha e-mail, eu não tinha computador, eu não sabia, nem mexia em computador, em 2004, nem sabia mexer em computador, eu vi escrito uma vez na casa de uma amiga minha, ela falou: “Olha, Cyda, o que tá aqui.” “Olha, tá contratando gente no SBT para fazer a Casa dos Artistas. Eu vou me inscrever para esse trem. Vou me inscrever agora”. Inscrevi-me. Juro por Deus, me inscrevi e foi, porque a gente põe esse negócio aí no computador, vai embora, você não sabe mais para onde vai. Foi. Nessa época eu estava ajudando uma amiga minha que estudava comigo teatro, a Milena, Milena Liz, uma querida de Araruama que veio fazer teatro, passou, entrou na faculdade, entrou junto comigo e nós morávamos junto, ela veio morar comigo na minha casa, não tinha lugar para morar no Rio de Janeiro. Olha para você ver que coisa, é uma pessoa superestruturada também, mas para fazer teatro largou tudo e foi para o Rio de Janeiro para fazer teatro, para fazer televisão. Encontrou essa maluca aqui, foi morar comigo na minha casa. Eu fiz a inscrição e tal e a Milena tinha a questão da música, ela é muito cantora, é uma mulher super, canta, uma voz, um trabalho de voz que ela tem maravilhoso como cantora e eu fazia a produção dela. Eu estava sem trabalho, sem nada, sem fazer nada, eu fui fazer a produção do show dela. Eu estava num museu no Largo do Catete, uma tarde assim, umas três horas da tarde, eu recebo um telefonema. Uma voz estrondosa, uma coisa mais linda do mundo, um negócio falando: “Eu sou Paulo Belém, eu estou aqui em São Paulo e você foi selecionada para a gente poder conhecer você, que você é muito linda. Você gostaria de participar da Casa dos Artistas?”. Eu fui ficando branca, ficando branca no museu lá no lugar que eu estava fazendo a produção para a Milena. Gente, eu não enxergava nada: “Gente, como assim? Chamaram-me. É verdade? Eu fui selecionada?” “Só que você não pode falar com ninguém porque por enquanto é só uma pré ainda, eu não sei se você vai, se você vai entrar, tem que ver como é que você é mesmo e tal.” “Gente, eu tô aqui. Eu vou. Eu vou entrar”. Eu falando com ele. Nem conhecia a pessoa aqui em São Paulo me ligando lá no Rio. Dois dias depois ele estava lá no Rio de Janeiro num apartamento gravando tudo, me filmando: “Quem é você, menina?”. Exatamente como aqui agora, lá no Rio de Janeiro. Toda equipe do SBT: “Não, a gente veio aqui para filmar você, a gente quer saber da sua história”. Eu contei a minha história para eles como eu tô contando aqui agora para vocês. Eles vieram para cá, para São Paulo, dois dias depois eu já estava aqui em São Paulo. “Você foi selecionada. Essa é a primeira seleção, vamos para São Paulo, você tem que fazer mais uma...” “Mas eu já entrei? Eu já entrei na casa?”. Meu negócio era entrar para livrar do aluguel. (risos)
P/1 – Vou ter onde morar.
R – Tem comida lá? Vai dar para poder passar esse mês? Eles rolavam de rir. Olha, era uma farra. Fiz talvez dos melhores amigos que eu tenho aqui em São Paulo hoje, foram eles. Amigos que ficaram para depois da casa. Cheguei aqui, fiquei confinada, aquela coisa toda, fui fazer todos aqueles exames e tal. Forte, saudável como eu não tinha nada, não tinha nada. Entrei na casa, foi aquele turbilhão de coisa na minha vida, aquele encontro maravilhoso com todos os participantes da casa. A casa se chamava Casa dos Artistas: Protagonistas de Novelas, foi a última casa que foi feita no SBT. Essa casa teve esse nome porque o Silvio resolveu fazer a casa da seguinte forma: Casa dos Artistas: Protagonistas de Novelas porque quem ganhasse a casa faria a novela que eles estavam produzindo naquela sequência. Então foi um turbilhão de coisas que aconteceram mesmo lá dentro, coisas boas, até as ruins também que acontecem, que somos seres humanos, tanto comigo quanto com os outros. Eu hoje classifico como tudo foi do jeito que tinha que ser. Eu não ganhei a casa, que também dentro disso descobri outra coisa que o Brasil construído em cima da questão da exploração, de um lugar de exploração, de preconceito, de racismo estrutural, ele é impregnado. Porque coloca uma mulher negra que tem muita gana para fazer teatro, fazer televisão, fazer cinema, fazer o que é para fazer com uma câmera, com a palavra, com a voz, com texto, com a emoção, com a entonação, com jeito mais especial, mais simples de fazer as coisas, eu queria muito isso para a minha vida. Então se eu tive aquela oportunidade eu fui com muita gana para eu fazer tudo que eles me pedissem para fazer. Isso acontecia que eu ganhava, acabava ganhando toda semana a imunidade da casa. Eu já estava no caminho de ser a protagonista da novela, mas eu sou uma mulher negra, a protagonista da novela era uma mulher loira dos olhos azuis. Vocês imaginam a confusão na cabeça de um ser humano como a minha?
P/1 – Ou seja, você nunca teria chance de protagonizar a novela.
R – Faltando, se eu não me engano, duas ou três semanas de acabar a casa, eu que já estava ganhando toda semana fui eliminada. De uma hora para a outra fui eliminada. Aí eu saí da casa com um mundo de fama, eu tinha que dar autógrafo, as pessoas me conhecendo no metrô, no ônibus, nisso, naquilo, e eu ao mesmo tempo me sentindo vazia. Sem casa, porque o apartamento lá do Rio já não tinha mais, sem o meu lugar, sem entender aquele negócio que a gente tem que é a fama, que é num lugar, um pedestal maravilhoso, mas você não tem casa, você não tem moradia, não tem o seu sustento, não tem conta no banco que te pague tudo, que abarque as suas coisas. É muito bom ser famoso, mas famoso dentro de um avião, dentro de um apartamento superequipado, com uma conta bancária super que você faz isso e vem. Agora, famoso para você sair na rua ralé, mano? Famoso para você pegar o ônibus e ficar lá sacodindo? Não quero essa fama. Minha cabeça pirou. Eu entrei em parafuso. Eu entrei em parafuso porque eu falei: “E agora? O que eu vou fazer com isso? Porque eu estou famosa, mas eu não tô famosa”. Você está famosa, mas e daí? A Globo não te contrata no dia seguinte. Não quer nem saber de você, nem sabe que você existe. É Brasil, é estrutural o preconceito, o racismo, a negação e tal. Outro mundo começa a abrir para mim, falei: “Olha, o negócio não é bem assim. Olha, a coisa não é bem assim. Ser artista não é isso, Cyda, só isso. Ou só isso”. Dentro da casa eu tive das melhores experiências que eu já tive na minha vida, porque eu estudei lá dentro com um cara chamado Nilton Travesso que é um homem de televisão que a vida, TV Tupi, Manchete, todas as grandes novelas, esse homem passou por elas.
P/1 – Ele era o diretor da casa dos artistas?
R – Ele era o nosso diretor de cena, de estudo de cena, de palco, de tudo. Então eu tive essa honra de ter estudado com esse homem lá dentro. Abre mais ainda mundos para você, principalmente quando você está num lugar confinada com 14 pessoas, cada um com uma classe social, um modo de vida. Cada um com a sua estrutura, você, faz aquele encontro com aquelas pessoas naquele lugar.
P/1 – Eles exigiam de você que você exercesse determinado papel na casa? Você era a mulher negra da casa? Tinha alguma coisa nesse sentido?
R – Não.
P/1 – Você era você...
R – A única exigência... Não exigência, mas dever mesmo que é do ator fazer o papel quando ele está no palco, fazer o personagem. Não era uma exigência, era um dever. Você vai fazer um personagem, então tira a sua personalidade, põe ela de um ladinho e vai dar vida aquela personagem que deram para você dar vida. Isso sim. Isso aí não é mesmo, mas dentro da casa éramos normais, cada um com sua personalidade do seu jeito. Não tinha. Fui muito bem tratada lá dentro, o tempo todo, sempre fui muito bem tratada pelo Silvio Santos, por toda a equipe, não só a mim. Acredito que todos os meninos, todo mundo sempre fala muito bem. Eu, graças a Deus, nunca tenho nada que reclamar, a não ser essa questão que aconteceu de depois de eu sair da casa que comecei a pensar, conversando com outras pessoas que eu comecei a ter. Porque lá dentro você não tem esse start. Eu não sabia, nós não sabíamos da novela, qual era a escala, quais eram os personagens, nós não sabíamos isso. Inclusive eu só fui saber depois que eu saí da casa que a novela estava completamente pronta, escalada. Já tinha a atriz que ia fazer. Aí você fala: “Eu fui usada. Por que falou assim para nós?”. Mas diante do lugar que eu estava lá no Rio de Janeiro, trabalhando que nem uma louca para conseguir me alimentar, comer, pagar meu aluguel, você recebe uma proposta dessa, num país desse que a gente vive, que a gente não tem chance toda hora, a gente vai. A gente vai. Não tinha filhos, não era casada, não tinha nada, nenhum vínculo com ninguém a não ser ir atrás do que eu queria fazer: arte. E fiz. Entrei na casa, aprendi, fiz muitas cenas, errei bastante, aprendi bastante, conheci gente de quilate grandiosíssimo, tive contato com o Silvio ali do meu lado. Contato com as pessoas que estavam comigo ali dentro, cresci junto com elas, então foi muito rico, muito rico nesse sentido. Quando eu saí da casa que eu me deparei com todas essas questões eu falei: “E agora? O que eu vou fazer?”. Eu saí da casa, eu perdi, se eu perdi eu não vou nem trabalhar na novela porque eu perdi. Eu voltei para o Rio de Janeiro, mas uma semana depois o Silvio mandou chamar para fazer o teste. Eu voltei para cá, fiz o teste e aí passei, entrei na novela para fazer a personagem lá que eles colocaram e tal, me ofereceram. Quando a novela terminou eu já comecei também, eu sou uma pessoa muito inquieta, graças a Deus, eu não posso deixar isso morrer em mim, ser inquieta. A novela estava acabando eu já estava começando a pensar o que eu ia fazer da minha vida.
P/1 – A novela é Esmeralda? E que papel você fez?
R – Eu fiz uma personagem que é a Jacinta, que é uma empregada doméstica. Olha a sina. Olha aí como é que... Era uma empregada doméstica que era empregada da Lucinha Lins, a grande personagem da novela porque ela é a mãe do filho que namora a mocinha na novela, o Cláudio Lins. A Lucinha e o filho dela fizeram a novela, então o núcleo maior ali era o nosso. Núcleo forte da novela era da Lucinha Lins, a mãe do menino que ia fazer o personagem com a mocinha. Eu falei: “Gente, eu vou continuar aqui em São Paulo? Eu vou para o Rio? O que eu vou fazer da minha vida? Será que eu mudo para cá? O pessoal está falando que aqui tem mais trabalhos e tal, no Rio não rolou nada, ninguém me chamou para fazer nada, já me viu aqui na casa, também não me chamou. O que eu vou fazer?”. Eu andando na São João, na época que eu fazia a novela eu morava na Alameda Santos, num flat que o SBT me ofereceu, quando eu saía da novela eu ficava perambulando pela cidade para eu saber, conhecer a cidade, ver que buraco que eu entrava, onde que eu ia sair e tal. Virar essa cidade aqui para ver o que tem aqui, pô. Um dia passando embaixo do Viaduto São João tem um sebo quase com a esquina com a Avenida Angélica, eu entrei no sebo. Logo que eu olhei eu falei: “Aprenda alemão sozinho. Vixe. Vou aprender essa língua, caralho”. (risos) Gente, eu falo uai, ui, uai, eu peguei esse livro, eu falei: “Eu vou aprender esse trem. Esse trem é difícil, mas eu vou aprender essa língua. Não tem mais nada para fazer, vai acabar a novela mesmo”. Comprei esse livro, fui com ele debaixo do braço pro flat. Cheguei lá, a primeira palavra eu falei assim: “Gente, mas é tudo de trás para frente que esse povo fala”. Comecei a folhear esse livro, comecei a brincar mesmo que eu estava aprendendo aquilo. Eu falei assim: “Quando eu terminar essa novela eu acho que eu vou fazer o seguinte...”. Porque eu sou muito malandra, eu sou muito mineira, tudo que eu ganhava de dinheiro eu guardava. Eu falei: “Eu vou guardar o meu dinheiro porque quando acabar a novela eu vou ter que me sustentar, eu vou ter que ir para um lugar, então eu vou segurar essa onda, vou aprender a guardar um pouquinho”. Quando eu terminei a novela eu tinha um bom dinheirinho e tal, comprei uma passagem e fui para a Alemanha.
P/1 – Sem conhecer ninguém lá?
R – Eu quero apagar esse negócio da minha memória, de fama. Não é isso. Eu quero ser uma atriz em outro lugar, meu papel é esse. É bacana, mas não tem nada. É vazio. É bacana, mas você tem que ser mais, precisa ser mais. No país que a gente vive a gente precisa ser mais e principalmente mais pé no chão. Então eu fui para a Alemanha com esse livro. Não sabia falar nada mesmo, tinha lido ele, mas você não aprender muito como deve aprender. Fui para a Alemanha, minha tia que morava no Rio de Janeiro casou com um alemão, morava lá em Munique. A primeira vez que eu fui para a Alemanha eu fui, fiquei na casa dela, ela me acolheu lá na Alemanha. Ela, o esposo dela e tal. Outro mundo começa a abrir porque é outra cultura, outro povo, outro tipo de frio, outro clima. Eu comecei, falei: “Gente, mas a vida vai, a estrada é longa”. Minha tia foi me dando outras possibilidades, me mostrando outras possibilidades que ela já tinha aprendido lá também na Alemanha. A Alemanha me ensinou uma coisa muito forte, muito forte que é olhar para o seu país e querer conhece-lo. Eu estava lá, eu saí daqui para poder apagar tudo que estava aqui, aquela confusão toda que estava na minha cabeça de fama, de ter lugar, não ter lugar ao mesmo tempo. Você é suspensa, você é solta. Você fala assim: “Eu sou quem? Eu estou onde? Eu tenho o que?”. O povo alemão, qualquer país lá fora, eles valorizam muito o país deles, eles valorizam muito, pelo menos na Europa eu tive muito essa impressão. Seu povo, seu lugar, sua comida, sua cultura, sua língua, principalmente sua língua. Como atriz eu fiquei pensando assim: “Gente, mas o idioma português é dos mais ricos que a gente tem no mundo. Eu sou uma atriz, eu vou ficar fazendo o que aqui se eu não aprender a falar alemão correto para poder falar, falar correto”. Aprender alemão correto, cair nesse mundo aqui do teatro para eu falar sem sotaque, para trabalhar na Alemanha você tem que falar sem sotaque, pelo menos onde eu consegui chegar. Eu vi que eu não ia conseguir aquilo com tanta facilidade e rápido, eu comecei de lá olhar para o Brasil. Eu na escola da vida, normal, eu percebia que eu principalmente tinha muita dificuldade e via que muitos que estudam nas escolas a gente aprende muito pouco do nosso país. Muito pouco do Brasil a gente aprende. O máximo que você aprende é do seu Estado. Você não aprende que o Brasil é essa riqueza que ele é. Vinte e seis Estados que você tem que viajar horas e horas, coisa que lá na Alemanha eu via, eu viajava para dois, três países em uma semana. Aqui você precisa de uma semana talvez para ir de um Estado para o outro, às vezes de ônibus quando você não consegue ir de avião. Então quer dizer que é extenso demais. Uma coisa que me chamou muita atenção, que me fez ter outro norte, uma vez eu conversando com o meu tio alemão, eles lidam com a vida muito com a lógica, com as estatísticas, eles olham muito para a realidade da coisa, para a coisa prática da coisa. Eu achei um dia, ele conversando com a minha tia, ele falou assim: “Déia...” – minha tia se chama Déia – “Aqui, Déia, o Brasil está assim, assim, assado...” – e ele colocava a mão, é óbvio, você pega um mapa do Brasil, você vê todos os Estados lá porque está desenhado, está com nome e tal. Mas quando você pega um Estado e você vai falando, definhando ele, falando sobre ele com uma naturalidade, com um vigor, com um carisma, com respeito por aquele lugar, meu tio fazia isso, ele pegava um mapa: “Déia, aqui é seu Estado que vai ser assim, vai ser assado, não sei o que, vai acontecer isso...” “Caramba, como ele conhece do meu Brasil. Eu não sei fazer isso, pegar o mapa rápido do Brasil e pensar no Brasil assim como ele faz”. E eu comecei a olhar para o Brasil, comecei a ler as matérias que saíam nos jornais de lá, comecei a assistir os jornais. Chega muita coisa do Brasil, muita coisa. Todos os dias eu assistia matérias sobre o Brasil, sobre o preconceito, sobre o racismo, sobre as mulheres, sobre o genocídio dos negros, sobre a política, o roubo. É uma vergonha, a gente sente vergonha. Eu falei assim: “Se eu ficar aqui a sociedade alemã jamais vai me aceitar com os meus princípios. Eu não vou mudar nada no país deles. Eu não vou mudar. Não tem ninguém aqui que eu vou ter uma referência para eu seguir, para eu dar continuidade e seguir junto. No meu Brasil não. No meu Brasil eu tenho o meu povo que nasceu lá, foram escravos lá, tenho toda minha família lá, tenho história de vida lá, é um país que é construído pela maioria do meu próprio povo, tem um idioma maravilhoso, tem um clima maravilhoso, tem lugares belíssimos, riquíssimos. Eu vou voltar para o meu país”. Mas adorando aprender a língua, adorando o idioma e tal. Voltei e aí quando cheguei aqui eu fui morar em Higienópolis com uma atriz que trabalhou na novela comigo, a Sônia Guedes. Uma mulher extraordinária, um ser humano incrível que me abarcou na casa dela, fiquei morando quatro anos quando eu voltei da Alemanha na casa dela sem pagar um tostão, só na convivência de respeito, de amor, de troca, de entrega. Olha para você ver como eu falei para vocês o quanto que eu ganhei na vida. Uma mulher branca me acolheu no colo dela, na casa dela, comprou livros para mim, me levou para o teatro para assistir outras coisas, me ensinou sobre filmes, filmes maravilhosos que um ator, que uma artista precisa saber. A vida dela simples no sítio dela, fui várias vezes para lá, plantei com ela junto... Olha que coisa, plantei com a minha vó, uma mulher negra, plantei com uma atriz, uma grande atriz desse país, aqui. A Cleyde Yáconis também uma amicíssima da Sônia, então tínhamos muito contato e muitos outros atores, muitos outros artistas. A Sônia falou: “Cyda, você tem muita facilidade realmente com alemão, você gosta mesmo”. Que eu voltei e continuei e também eu trouxe muita coisa da vivência, que eu estava lá com eles, morei lá um ano e tal, já tinham algumas coisas que vão ficando na gente, na memória e você vai aprendendo. Quando eu cheguei aqui a Sônia falou: “Cyda, vai estudar no Goethe”. Eu não tinha um puto furado. “Vai estudar que eu pago para você. Pelo menos o primeiro ano eu te pago, aí você arruma um trabalho e você começa a pagar você sozinha”. A Sônia me matriculou no Goethe, eu fui estudar alemão, lá eu estudei por três anos. Antes de completar os três anos o Goethe me deu uma bolsa, uma coisa bacana que eu tinha conseguido naquele semestre, tinha que ralar muito naquele mês, o Goethe me deu essa bolsa, eu fui de novo para a Alemanha para estudar. Fiquei lá em Munique de verdade, depois eu fui para Berlim, fiquei morando na casa da filha da Sônia, que mora em Berlim, que é uma cantora de ópera lá maravilhosa, magníssima, um estrondo de mulher. Uma dramaturga, uma atriz, uma cantora, uma cantora lírica, pianista, filha da Sônia Guedes, que moram todos os artistas que precisam, que vão sem um puto furado para a Alemanha ficam lá na casa dela, ela dá um jeito. “Dorme aqui. Dorme na sala”. Mamberti, o Sérgio Mamberti disse: “Kátia, eu estou indo para aí para a Alemanha, mas...” “Não, fica aqui na minha casa”. Gente que se ajuda, gente que dá o braço, que dá a mão, que fala: “Estamos junto. O que tiver a gente come, se não tiver a gente dá um jeito”. Sabe assim? Voltei. Quando voltei para o Brasil, falei: “Bom, agora eu vou firmar mesmo aqui. É isso que eu quero fazer. Eu quero trabalhar mesmo com teatro, com cinema, com televisão”. Tive a experiência de ter feito filme lá, eles me convidaram lá em Berlim para fazer o filme. A Kátia Guedes, que eu fiquei na casa dela, filha da Sônia Guedes, me ajudou muito nesse filme porque...
P/1 – Fala um pouco desse filme para a gente.
R – Então, lá em Berlim, como eu tinha falado aquela hora, um grande amigo da Kátia sabia de uns moleques... Acontece o seguinte, Berlim é um lugar muito maravilhoso de se viver. É um dos lugares mais fantásticos do mundo que eu acho. Embora eu acho que não posso falar do mundo porque eu não viajei o mundo, mas a impressão que a gente tem quando vive lá é isso. De facilidade, de oportunidade, de respeito, de troca, de um turbilhão de possibilidades de entradas e saídas, de pessoas. Você para de questionar vocêzinha, sabe? Porque tem tanto milhão de pessoas também acontecendo que você acontece junto delas. E a Kátia como uma mulher muito foda lá na Alemanha, a Kátia Guedes é uma brasileira que mora na Alemanha hoje em dia que assim, é um dos maiores orgulhos que o Brasil deveria ter. Porque é uma mulher que sustenta a música boa, a música brasileira, a música popular brasileira de uma grandeza, de uma força, de um respeito com a música da melhor qualidade que o nosso país tem, na voz dela lírica. E ela como conhece milhões de pessoas: “Cyda, tem um amigo meu que tem outros amigos que tem muitas oportunidades. Você sabe, Cyda, aqui em Berlim o governo dá muitas possibilidades para os jovens fazerem cinema”. Tem muitas bolsas. As bolsas são mais fáceis, os projetos são mais fáceis. Os jovens conseguem entrar no mercado de trabalho com muito mais facilidade, primeiro porque eles estudaram mesmo, eles tiveram escola boa mesmo, estudaram. E mesmo as escolas que necessariamente não são as “hoch Deutsch”, como se fala, qualquer escola na Alemanha é uma escola de qualidade, então todo mundo sabe fazer, quando termina a escola já tem uma profissão muito boa. No caso deles sendo de cinema, você está andando numa praça pública de Berlim, tem milhões de gente fazendo cinema, tem uma câmera ali... “Então o meu amigo está precisando de uma pessoa, você tá aqui, vai fazer.” “Simbora. Mas eu não toco, Kátia.” “Se vira. Você não é brasileira? Se vira. Toca, vai lá e inventa”. Fui, era para fazer umas brincadeiras com pandeiro e tal, ensaiei com eles. Ele estava fazendo um filme lindo, um filme chamado “Der Kleine Ben”, um curta para criança. Lindo, um filme lindo, uma história linda, respeitosa. Uma história muito bonita mesmo, muito bonita, muito respeitosa de se contar, contar e querer assistir. Fiz esse filme, aí voltei para o Brasil e aqui falei: “Bom, vou dar continuidade. É isso”. Fiz milhões de cursos, outros cursos aqui em São Paulo, continuo fazendo, oficinas, o Théâtre du Soleil já veio não sei quantas vezes, eu já fui fazer oficina com eles não sei quantas vezes, eles falam comigo: “Você não tá boa. Você não tá pronta ainda”. Outras pessoas, agora mesmo eu fiz uma oficina maravilhosa que me ensinou bastante, Jean-Jacques Lemêtre veio da França, tá fazendo um trabalho com ator de corpo e voz como ator. Fui lá, fiz, foi das coisas mais lindas que eu fiz na minha vida de me ensinar, deixar minha memória afiada para virem outras memórias. Aí aqui nesses estudos, fazendo oficina, fazendo trabalho, sendo chamada para fazer isso, aquilo, outras vezes não, eu conheci meu digníssimo Frederico Cunha Santiago, que hoje é o meu esposo. Esse cara junto comigo fez talvez uma das peripécias que eu chamo assim mais fodásticas que uma mulher e um homem podem fazer, que é um filho. Nasceu o João Thor, meu filho e hoje a gente já está há quatro anos casados, o João tem três anos. Só posso dizer que nesse momento hoje que nós estamos vivendo no Brasil de um desmanche, de uma desigualdade cada vez mais, principalmente no mundo que se chama Brasília, que é um lugar que foi criado, que foi pensado para trabalhar por nós, nos representar, fazer por nós e pelo país, está fazendo do jeito que está fazendo com o nosso Brasil. Com uma família, mãe hoje de um menino de três anos negro eu me vejo em outro lugar de mundo de muitas outras descobertas, porque eu já sei por tudo que eu já passei na vida, por tudo que eu tô passando, que eu vejo o meu povo passando, eu fico imaginando que o meu filho não tá fora disso. E você enquanto mãe saber que... Não é que eu quero, não tô determinando isso, mas a gente não pode ser ingênua de não imaginar que da maneira que nós estamos vivendo num país de violência como o Brasil está, de uma falta de tolerância, de um ódio que eu fico me perguntando da onde sai de tantas pessoas que nos machucam, fico muito temerosa com o meu filho. Quero criar o meu filho, quero ver ele crescer, quero ver ele andar, fazer uma caminhada. Talvez não seja, nem deve ser como a minha, mas que ele tenha uma caminhada como todos nesse país já tiveram a oportunidade e têm. Mas quando a gente vê que na maioria das vezes as oportunidades, os lugares de excelência, as possibilidades de tornar o ser humano em excelência não estão na nossa grande população, está para aqueles que têm mais poder, isso é assustador. Porque faz com que a gente pense, faz com que eu veja, eu penso, eu sinto e eu sei que nós estamos num país dividido. Tá dividindo a gente. Então assim, hoje acordei pensando nisso, falei: “Meu Deus, vou falar de mim, vou falar da minha história, vou falar da minha vó, minha grande heroína, vou falar de um povo que me trouxe, que me tornou essa mulher que eu sou”. Se eu começo a pensar que daqui para frente isso vai ter também que caminhar sozinha, não mais com todo esse povo que está lá atrás, que já passou umas dores daquelas, mas que daqui para frente você está só, porque você precisa também ajudar outros a ir, no caso do meu filho que é pequenininho. Mas ao mesmo tempo no lugar que eu me encontro hoje no Brasil em que a mulher negra está colocada em um dos grupos de maior rejeição, de maior falta de respeito, de maior discriminação, de maior não reconhecimento do nosso poder infinito, que uma mulher seja ela negra, branca, mas principalmente nós mulheres estamos nesse lugar da sociedade, principalmente aqui no Brasil, é muito assustador. É muito triste. É muito assim de pensar que eu não sei até onde eu vou chegar.
P/1 – E qual que é o seu sonho, Cyda? Então pensando em tudo isso que você tá falando, se você olha para frente, de maneira integral assim, pensando você como mãe, mulher, atriz.
R – Olha, você falou uma coisa tão interessante. Quando você me pergunta qual é o meu sonho, você me coloca exatamente num lugar em que realmente hoje para mim é o maior esteio de vida que é olhar para minha ancestralidade, ver o que eles fizeram por nós, por mim, por toda população negra aqui no Brasil, e fazer pergunta do que é que nós queremos fazer. O que eu Cyda em relação a tudo que nós estamos vivendo hoje e olhando para ancestralidade, tudo que já foi vivido por mim, o que eu Cyda quero fazer? Então a sua pergunta eu só posso responde-la assim, quando eu faço essa pergunta me vem: “O que você quer continuar sonhando para estar viva? Para estar aqui?”. Aí eu vou responder para você o seguinte, eu fiz essa pergunta que você me fez dois anos atrás. Eu estava num processo muito triste sem trabalho, sem convite, sem fazer nada, sem saber o que fazer, sem nenhuma ideia na mente, eu perguntei para mim para onde que eu queria ir: “E agora, Cyda, o que você vai fazer da sua vida? Para onde você vai?”. Como eu nasci na roça, lá não tem um poste de luz, mas tem a lamparina, a candeia que nos ilumina. Na roça a gente se ilumina com aquela lamparina, fica o tempo todo fazendo comida com aquilo na mão. Eu peguei aquela lamparina na minha imaginação, de novo, peguei na minha mão e iluminei o meu caminho para onde eu deveria ir, porque eu não sabia, estava tão escuro que eu não conseguia enxergar. Mas eu fui com essa lamparina tateando, tateando para um lado, para um lado e indo, e indo, eu comecei a ver. Eu comecei a ver os esteios, os rastros das mulheres que são fortes, que eu sempre olhei para mulher no lugar de um poço de força que é infinito. E como eu nas minhas escolas, na Martins Pena, na escola de teatro, eu não soube dessas mulheres, eu não soube dessa força, eu não aprendi nos livros, na literatura sobre essas forças, na escola, a escola que o governo nos oferece, eu comecei a ler uma mulher chamada Carolina Maria de Jesus. Quando eu li essa mulher, Carolina Maria de Jesus, que escreveu Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada, eu pensei: “Aqui acontece só uma questão de geografia. Ela nasceu no interior de Minas, veio para São Paulo e viveu da maneira que viveu numa favela chamada Canindé e eu nasci em um quilombo. É só uma questão de geografia, mas é a mesma pessoa. Eu vou montar essa mulher. Eu vou escrever sobre ela, eu vou montá-la”. A partir da obra da Carolina Maria de Jesus eu comecei a ler outras mulheres negras que questionam tudo isso que eu tô falando, que perguntam por que é que não conta a nossa história do jeito que ela é. Por que é que não nos mostra, porque nos escondeu a nossa história? Por que é que nos nega o nosso maior patrimônio que é a nossa memória? Porque a memória é nossa para que a gente vá repassando e somando, ajudando, construindo, abrindo outros caminhos e dando outros passos. O sistema no Brasil como foi montado, como foi criado foi de que quando chegasse em 2012 não tivesse nenhum negro no Brasil. Foi desse jeito que eles montaram. Quando chegar 2012 não é para ter negro no Brasil. Só que deu errado porque nós somos muito foda, vai nascendo mais, não deu para poder sair daqui. Mas o plano que os homens brancos uns anos atrás, uns séculos até, era de que não tivesse mais negros aqui. Então eles sonegam muito a nossa história e quando contam a nossa história contam muito num lugar de vitimismo, de não ter feito, de não ter conseguido, de ser fraco. Não contou como nós somos vitoriosos, como nós somos heróis. Só de resistir tudo isso que nós vimos resistindo há 300 anos, como nós somos heróis. Só daquelas mulheres que ajudaram o Brasil a se erguer, olha como que essas mulheres são heroínas. A minha vó, que por acaso chama dona Heroína, essa mulher 50 anos, eu só conheço 50 anos que ela trabalhou numa fazenda acordando três horas da manhã e indo dormir meia noite, para trabalhar, para gerar renda. Então eu comecei a estudar Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Geni Guimarães, Maria Firmina dos Reis, Tereza de Benguela, Acotirene, Aqualtune. Eu comecei a estudar as mulheres negras que escrevem sobre nós, escrevem sobre a mulher, escrevem sobre o homem negro, escrevem sobre o Brasil que é feito com negros, que escrevem que os negros são vidas que importam. É importante a vida, a nossa vida, a vida de uma mulher negra, a vida de um homem negro, de uma criança negra é também importante no país. Eu comecei a olhar para isso e com isso eu tô montando a minha peça de teatro que se chama “Os Rastros das Marias”.
P/1 – Você quer dizer mais alguma coisa? Você quer concluir?
R – Vou deixar aqui o meu abraço, a minha gratidão infinita por um espaço com esse para pessoas. Todos vocês que trabalham num espaço como esse, que pensam um espaço como esse e que faz com que o país tenha um lugar chamado Museu da Pessoa que conta as memórias desse país. Mas eu gostaria muito, fico muito na esperança que daqui uns anos, uns cem anos, 200 anos, que as pessoas que sentarem aqui para deixar um pedacinho das suas memórias tenham mais brilho, sabe? Que elas tenham mais brilho, que o sol tenha iluminado mais por elas, pelos seus ancestrais. De repente já muda, esse lugar seja um lugar acredito que com todas as memórias que aqui já estão, que elas ajudem com que as outras que virão por aí, que elas tenham tido o privilégio de que o sol tenha brilhado mais por elas.
P/2 – Muito obrigada.
P/1 – Obrigada, Cyda. Foi além das nossas expectativas. Foi lindo realmente. Muito obrigada.
R – Só tenho a agradecer vocês, meninas. Suas lindas.
P/1 – A gente que agradece. Foi um privilégio ouvir a sua história.
FINAL DA ENTREVISTARecolher