Programa Conte Sua História
Depoimento de Patrícia Fonseca
Entrevistado por Carol Margiotte e Ligia Furlan
São Paulo, 14/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV739_Patrícia Fonseca
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Patrícia, boa tarde.
R – ...Continuar leitura
Programa Conte Sua História
Depoimento de Patrícia Fonseca
Entrevistado por Carol Margiotte e Ligia Furlan
São Paulo, 14/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV739_Patrícia Fonseca
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Patrícia, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui hoje, é uma honra recebê-la. E, para começar, o seu nome completo.
R – Patrícia Fonseca.
P/1 – O local e a data do seu nascimento?
R – 29 de julho de 1985, na cidade de São Paulo.
P/1 – E, falando um pouco sobre o seu nascimento, você sabe por que os seus pais te deram esse nome, Patrícia?
R – Não, sinceramente.
P/1 – E, ainda sobre o nascimento, seus pais contaram ou contam histórias de como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim, porque, na verdade, o dia do meu nascimento foi bastante estressante. A minha história começa realmente... A de todo mundo começa no dia do nascimento, mas, digamos assim, talvez a minha história de luta, a minha história, daquilo que é mais significativo na minha vida, começou já desde o nascimento. Minha mãe teve um parto muito difícil, foram 12 horas, eu nasci de fórceps e, quando eu nasci, eles disseram para os meus pais que eu não iria sobreviver. Então, ali, eu acho que já começou uma jornada não só para mim, mas como para a minha família toda, para todos. Porque os médicos informaram que eu tinha um problema de coração e que, provavelmente, o meu coração não aguentaria e que dificilmente eu passaria de um ano de vida. E, na verdade, logo nas primeiras semanas, minha mãe conta que eu ficava roxa, eu não tinha forças para mamar por causa dessa questão cardíaca. E, aí, com 20 dias de idade, eu já estava internada numa UTI [Unidade de Terapia Intensiva] e começou tudo.
P/1 – Mas em que momento os médicos fizeram esse diagnóstico da questão do coração?
R – Eu acho que foi quando eu me internei com 20 dias de idade. Eu ainda era um bebezinho, ninguém conseguia entender, eu não conseguia mamar, eu ficava roxa e, aí, eles me levaram para um hospital cardíaco. Foi ali que eles detectaram, e eu fiquei meses internada, mas consegui sair.
P/1 – Mas tem um diagnóstico do que...?
R – Tem. Na época, eles informaram meu pai que eu tinha múltiplas insuficiências, então, eu tinha muita coisa, na verdade, eu tinha comunicação interatrial e interventricular, que são os buraquinhos no coração, nas paredes, tinha insuficiência das válvulas. Minha cardiopatia é dilatada, e eu tinha... Hoje, nós sabemos que eu tinha uma condição que era genética também, mas a medicina ainda não conhecia esse problema na época. Então, é um defeito genético que acontece no quarto mês de gestação, é uma má formação, eu tinha o miocárdio esponjoso. O meu músculo cardíaco não se compactou, eles chamam de miocárdio mal compactado. Então, o meu coração tinha um pouco mais de dificuldade de trabalhar com todas essas peculiaridades.
P/1 – E o que os seus pais falavam pra você, ou ainda falam, sobre como foi esse período, da parte dos 20 dias na UTI?
R – Na verdade, eu acho que foi um período de aflição pra todo mundo, acho que ninguém ali sabia, realmente, quanto eu ia viver. E, talvez por isso, cada dia era muito comemorado ou cada aniversário era muito comemorado. Sempre foi uma luta, mas, por incrível que pareça, sempre foi leve, e eu dedico isso muito à minha mãe. Então, com um ano de idade, eles falaram que talvez eu não sobrevivesse, aí eu sobrevivi. Eles falaram que, talvez com três anos, eu não passasse dos três anos porque o coração talvez não se desenvolveria à medida que eu crescesse. E eu passei dos três anos. E, na verdade, eu vivia nos médicos, vivia nos hospitais, vivia fazendo exame. Se você me levar pra um exame, eu me posiciono, eu te digo tudo como funciona porque eu tenho uma carreira longa como paciente. Mas tudo isso para mim sempre foi normal, por incrível que pareça, porque pra minha mãe não parecia um problema. Então, costumo falar muito isso, né? O papel dos pais nesse cuidado e o papel dos pais quando a criança tem um problema ou uma doença... Essa palavra nunca foi falada na minha casa. Eu tinha um problema de coração, “hoje é dia de ir no hospital”, eu ia. Eu fui perceber que não era assim com todo mundo quando eu fui para a escola, porque até esse momento de ir para a escola: “Todo mundo não é assim? Todo mundo não vai ao hospital direto, todo mês, fazer exame, não é assim com todo mundo, com toda criança?”. Eu não tinha essa noção. E hoje, às vezes, eu vejo mães com seus filhos falando assim: “Aí, de novo, eu tô aqui com você, de novo está dando problema”, me dá uma chateação, que eu dou ainda mais valor e tenho ainda mais a magnitude de como foram importantes os meus pais ao longo dessa luta e de como talvez eu só esteja aqui porque esse empurrãozinho, no fundo, é de autoestima, no fundo é de dignidade, de você não se sentir um peso para a sua família, ou de se sentir um lixo, de se sentir menos. Não. Ninguém nunca me tratou dessa forma, então, eu não me sentia dessa forma. E se eu não me sentia dessa forma, eu não me colocava dessa forma para a sociedade, então, as pessoas também me viam como uma pessoa normal e iam descobrindo depois as questões que eu tinha. Tudo começou, na verdade, com eles, com a minha família.
P/1 – E, falando um pouco sobre esse jeito de ser, então, dos seus pais, diante de uma situação difícil com a filha, o que os fez serem assim? Eles tinham algum apego talvez religioso, ou uma questão de personalidade, o que os sustentou para terem essa postura diante da dificuldade?
R – Eu acho que no caso da minha mãe é amor. Eu acho que o amor mais puro, ele é doação, e essa palavra tem tudo a ver com a minha história. O amor é você doar sem esperar nada em troca. Então, era puro amor e não existe nada maior do que esse amor de mãe. Ela fazia tudo por mim e não era um peso, eu não consigo pensar em outra palavra para descrever ela. No caso do meu pai, o meu pai sempre foi uma pessoa muito prática, muito realista, então, nenhum dos dois nunca foram pessoas de mimimi, de: “Ai, coitado de mim, ai, tadinho de mim”. Então, não tinha essa referência de se vitimizar, porque eu nunca vi eles fazerem isso com as próprias vidas. Eu acho que isso também vai sendo um aprendizado que vai sendo passado.
P/1 – E, falando dessas duas expectativas de vida que os médicos inicialmente deram de um ano e, depois, três anos, como sua família comemorou a chegada no primeiro ano?
R – Acho que teve uma festinha de um ano, que todo mundo, às vezes, comemora, normal. Mas eu não vou ter a recordação, a memória do que significou para eles, né? Porque tem muito a ver com isso, eu não tinha a dimensão do que era, porque eles não me passavam a dimensão do que era. Então, era mais um ano de vida, enfim, era vida que seguia. Na verdade, eu nunca fiquei sabendo desses deadlines que estavam me dando. Eu fui saber muito lá na frente na minha vida. Eu fui poupada em muitos momentos de informações, eu acho que isso é tão fundamental porque ninguém tem o direito de dar um prazo de validade para um ser humano. Eu entendo a posição de todas as equipes médicas e de saúde que tinham que informar para os meus pais, mas quanta generosidade e amor não tinha no ato deles de não me informarem? Porque eu não me limitava e eu não precisava acreditar que eu já estava no lucro, já estava vivendo mais do que estava sendo esperado. Eu acho que foi uma missão generosa.
P/1 – Tudo bem se a gente continuar, porque tem um monte de perguntas antes sobre os seus pais, mas tudo bem se eu continuar falando sobre esse tema?
R – Tá, tudo.
P/1 – Mesmo sendo uma coisa da sua rotina, as consultas, visitas ao médicos, eu queria que você tentasse voltar e lembrar de como que era esse começo, como que era essa rotina médica na sua vida, mas bem no comecinho? Talvez as primeiras lembranças que você tem nesse ambiente.
R – Na verdade, é assim: eu lembro que eu e a minha mãe, a gente ia para o hospital pra passar a tarde no hospital. Então, a gente ia pra lá e pagava a senha, eram longas as filas, longas esperas, e a gente ficava lá sentadinho e tinha que, às vezes, levar um lanchinho, alguma coisa, porque eram horas e horas de espera para a consulta. E a gente ficava esperando o número no painel até chegar a nossa vez. Quando chegava a nossa vez, a gente passava pela triagem, aí volta para outro painel, para outra senha. Então, eram dias de esperar, passar por um médico, aí passar por um exame. Basicamente, pegar fila (risos). E as consultas, eu lembro que eram muito rápidas. A maior parte do tempo, a gente estava em filas mesmo, porque eu me tratava em hospital público, então, tinha muita gente, você via muita gente, gente de todas as idades, que, às vezes, não estava muito bem, mas eu também via como uma coisa normal. Era algo que eu tinha que fazer.
P/1 – E é curioso porque essa questão de coração não é uma coisa que é da pediatria, não é um ambiente com crianças. Tem de todas as idades, né? E eu não sei se tem alguma imagem que talvez tenha ficado na sua... Pensando essas filas, pensando nessas esperas, alguma imagem que talvez, nessa sua cabeça de criança fale: “Nossa, o quê que é isso?”, alguma situação que você presenciou?
R – Não, eu acho que é assim: dessas recordações que têm a ver com médicos, com internações, talvez o que mais me lembro quando eu era criança foi a minha primeira UTI pediátrica, estar com outras crianças que também tinham passado por cirurgia, ou estavam mal, sendo cuidada por pessoas que eu não conhecia e longe da minha família. E aquelas crianças choravam porque eram crianças, e eu era uma delas. E eles choravam e eu não entendia por que elas choravam e eu não entendia por que as pessoas não conseguiam ajudar elas. E aquilo foi muito traumatizante para mim, então, ali ganhou um outro peso. Mas até ali era tudo normal, na minha cabeça.
P/1 – Bom, falando nos seus pais, eu que queria que você falasse o nome deles.
R – Minha mãe é Maria Consuelo Carvalho Fonseca, meu pai é Antônio Júlio Fonseca Filho.
P/1 – E eu queria que você falasse um pouco sobre eles, como é que eles são, o que eles fazem.
R – Sim, a minha mãe já partiu, já faleceu. E ela se dedicou, basicamente, a vida toda a cuidar de mim e do meu irmão, do meu pai e da casa, o melhor que ela podia, sabe? Não tem como descrever, ela foi maravilhosa. E o meu pai é uma pessoa de muita força, eu acho que eu aprendi muito com essa força dele. Meu pai trabalha, é empresário, construiu tudo do zero, trabalhou muito a vida toda. A vida inteira, eu lembro que era assim: o meu pai acordava às cinco da manhã para ir trabalhar e ficava trabalhando até às dez da noite, e ele nunca reclamou. Então, a gente vai vendo como as histórias e os comportamentos vão se cruzando. Eu lembro de toda vez... Como eu sabia que o meu pai estava indo pra o trabalho? Eu ouvia ele assoviar. Então, eu estava no meu quarto deitada, mas, quando ele amarrava o tênis, ele assoviava para ir trabalhar, porque trabalhar é uma coisa muito boa e muito digna, se sentir útil. Então, os valores do trabalho eram muito positivos e muito benéficos na minha família. É um valor mesmo. Então, ser útil, se sentir útil, eu acho que tudo isso também foi sendo transmitido para mim. E isso foi fundamental para sobreviver a tudo que ainda viria na minha vida e eu não fazia ideia. Para os desafios que a vida ainda traria. Então, se eu tivesse que resumir eles em uma palavra, o meu pai é força e a minha mãe é amor. E eu precisei dos dois.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Eles se conheceram num Carnaval (risos). Minha mãe estava de ginasta no interior de Minas e o meu pai estava vestido de ET. E, aí, começou tudo.
P/1 – Caramba. E eles são nascidos onde? Qual é a história de cada um?
R – Meu pai é de São Paulo. A família do meu pai, na verdade, veio de Belém, mas ele já nasceu em São Paulo. E a minha mãe é do interior de Minas. Eles se conheceram num Carnaval no interior de Minas, essas coisas acontecem. E, ali, começou toda a história, minha mãe veio pra São Paulo e, aí, eu nasci, o meu irmão nasceu e a nossa vida foi acontecendo.
P/1 – E vinham histórias sobre como foi esse começo de namoro, essa conquista no Carnaval? Como que foi o contato depois?
R – Gente, eu não sei, né? Carnaval (risos)! Não sei para contar, mas deu certo.
P/1 – E aqui em São Paulo, eles foram morar onde?
R – Então, nós começamos... Nós, né? Eles começaram morando no bairro da Saúde e, depois, acabaram mudando para o Ipiranga. Mas, na verdade, depois da Saúde, eles acabaram voltando para a casa da minha avó, porque, com essa questão do meu nascimento, de todo esse desafio: “Não vai sobreviver, o coração da menina é muito fraquinho”, eles voltaram a morar com os meus avós paternos, para eles ajudarem em tudo nesse começo. Mas, depois, a gente continuou morando no bairro do Ipiranga, que é o bairro do coração (risos).
P/1 – E, além de você, teve também...
R – O meu irmão, o Eduardo Fonseca.
P/1 – E como que é a relação entre vocês?
R – A relação com o meu irmão é maravilhosa! Meu irmão é uma pessoa de muita paz, muita serenidade, surfista, ele sempre me ajudou em tudo que eu precisei na minha vida, ele sempre foi muito parceiro. Então, quando eu precisei comer 100% sem sal por causa das questões cardíacas, ele comia junto. Ele já me carregou em escada, já me carregou quando eu não conseguia caminhar direito. Então, ele sempre esteve presente. E ele sempre me passou uma paz, uma tranquilidade muito grande. E eu acho também que ele tem um papel muito grande nessa dinâmica, porque, muitas vezes, eu fui uma urgência e, quando eu fui uma urgência, dentro dessa dinâmica familiar, ele não se sentiu de fora. Porque, às vezes, quando os pais estão dando mais atenção para um filho, o outro pode se sentir um pouco mais afastado. E não, ele entrava pra ajudar junto e ele sempre entendeu que, às vezes, eu acabava demandando um pouco mais. Então, eu não tenho o que falar ao meu irmão, e ele é maravilhoso, sempre foi.
P/1 – Mais velho, né?
R – Mais novo.
P/1 – Mais novo?
R – Dois anos mais novo, sim!
P/1 – E como que você se sentia como irmã mais velha? Porque, ao mesmo tempo, ele também cuidava muito de você, era uma parceria, mas você era a filha mais velha. Tinha alguma coisa de ser nessa relação a irmão mais velha?
R – Então, não lembro de nada específico. Era a irmã mais velha, então, tecnicamente, bem mais velha, porque eu parecia uma velhinha (risos). Então, não tinha grande referência sobre isso.
P/1 – E você chegou a conhecer os seus avós?
R – Sim. Meus quatro avós, cheguei a conhecer todos eles e, na verdade, dos quatro, só sobrou uma avó, paterna.
P/1 – Queria que você falasse o nome.
R – Deles? Meu avô era Antônio Júlio Fonseca, a minha avó é Dalci Lacorte Fonseca. A minha avó materna é Celina Nanete Carvalho Suertes – pior que o Suertes não é dela, é Celina Nanete de Carvalho, e o meu avô era Waldemar Suertes de Carvalho.
P/1 – E a casa da sua infância é a casa da Saúde?
R – Bem infância, porque eu fiquei lá só até um ano de vida. Então, depois, eu fui pro Ipiranga mesmo. A casa da minha infância é a do Ipiranga.
P/1 – Eu queria que você descrevesse essa casa.
R – Como assim, só para eu saber?
P/1 – Você está entrando na casa, como que ela é? Como que as coisas são distribuídas?
R – Então, eu frequento essa casa até hoje, porque o meu pai mora nessa casa ainda. Quando eu entro, eu entro direto na sala, aí vem um corredor, nele tem o quarto do meu irmão, tinha o meu quarto, o quarto dos meus pais, os banheiros à direita. Quando você ia um pouquinho mais para a direita, antes dos quartos, tinha a cozinha, onde a gente fazia as refeições e, aí, um pouquinho para trás, tinha a área de serviço. E é um apartamento antigo, mas muito gostoso. E a gente está muito perto do Museu do Ipiranga, então, muitas vezes na minha vida, eu precisei ficar deitada na cama e, nossa, ficar olhando para as árvores do museu, muitas vezes, me salvava também, porque era a vida, era natureza, era um verde. Para quem não tem nada, o pouco é tanta coisa. Então, poder ver ali o parque, o museu, me fazia tão bem, me faz muito bem até hoje. A casa é mais ou menos assim.
P/1 – E em que momento vocês podiam ir até o museu?
R – Quando eu era criança, às vezes, nós íamos. Principalmente, eu ia com uma amiga minha, a Lígia e a família dela, que são muito queridos pra mim, são praticamente segundos pais, porque eu estava sempre na casa dela, no mesmo prédio. Então, eu ia muito com ela e eu acho que, de certa forma, eu me beneficiei um pouco por ser uma criança de apartamento porque, no apartamento, as brincadeiras eram um pouco mais limitadas, o que era excelente, porque eu também era mais limitada. Então, eu acho que, se eu morasse numa casa e todo mundo saísse para jogar bola e sair correndo, eu ia sentir mais a diferença, mas, como as brincadeiras eram mais em apartamento, eu acho que ficava tudo mais na cabeça, na imaginação, as brincadeiras. Então, na imaginação eu não era limitada, na imaginação eu não tinha uma insuficiência, ela era cardíaca. Eu acho que isso ajudou de alguma forma.
P/1 – E quais eram as brincadeiras?
R – Nossa! Tudo. A gente brincava de tudo. A gente era muito criativa. A gente, uma vez, botou água na varanda porque a gente queria fazer uma piscina. Os pais dela não gostaram, mas a gente brincava de muita coisa. A gente era bem criativa. Brincadeira de criança.
P/1 – E, ainda nessa infância, tinha alguma divisão de tarefas na casa? Como que vocês se organizavam na questão da casa?
R – Eu fui sempre protegida na divisão de tarefas, na verdade, eu não tinha tarefa nenhuma. Eu só tinha que descansar e sobreviver. Como eu também não tinha tarefa, o meu irmão acabava não ganhando tarefa. Então, ficava tudo sobrecarregado na minha mãe. Ela que fazia tudo. Ela cuidava de toda a casa, ela que lavava, passava, cozinhava, limpava, fazia tudo. E eu nunca fui cobrada de fazer nada. Isso até agora, depois que tudo aconteceu e que tudo deu certo na minha vida, e eu pude ter a minha casa, algo que eu me perguntava: “Será que um dia eu vou poder morar sozinha? Porque, sem a minha mãe cuidando de mim, será que eu vou dar conta? Porque é assim, se eu tô morando fora, eu tenho que lavar roupa, eu tenho que cozinhar, mas eu não aguento comer, às vezes, então, como é que eu vou cozinhar? Não aguento ficar muito tempo em pé, então, como é que eu vou lavar a roupa? Não posso fazer exercício, então, como é que eu vou fazer essas atividades diárias? Será que eu vou dar conta?”. Então, hoje eu tenho essa vida, hoje eu posso, eu consigo, só que, às vezes, eu não sei fazer, porque eu não fiz a vida toda (risos). Então, às vezes, eu vou ligando para as pessoas: “Gente, como é que eu cozinho isso? Como é que eu faço isso?”, porque eu nunca fiz a vida toda. Claro, porque eu tinha quem fizesse, minha mãe. Mas, mais do que isso, hoje eu consigo ver também que era porque eu era fraquinha, ela tentava me poupar. Ela fazia eu sempre descansar, eu era o tipo de criança que, se eu falasse assim: “Eu tô um pouco cansada”, ela: “Dorme, não precisa ir na aula hoje”. “Sério?” “Não precisa ir na aula hoje, descansa, filhinha, descansa, tá bom?” Me dava um beijinho, fechava a porta do quarto. Eu podia faltar quando eu quisesse. É que eu gostava de ir na aula, porque, senão, ia ser uma várzea. Com o meu irmão, não acontecia isso: “Eu tô com sono”. “Vamos, vamos, vamos levantar.” Mas porque, se eu estava cansada: “Dorme, pelo amor de Deus, recupera”. Então, um pouco isso.
P/1 – Em que momento vocês quatro se reuniam?
R – Era difícil nós quatro nos reunirmos. Meu pai trabalhava muito e estava sempre muito focado no trabalho. Quem se reunia mais era eu, minha mãe e o meu irmão, principalmente, nas refeições. Meu pai não participava das refeições conosco e acho que a gente se reunia mais quando a gente viajava pra algum lugar, viajava pra casa dos meus avós em Minas. Porque eu tenho família no sul, quando a gente viajava para outros lugares, acho que ali a gente se reunia. Ali, a gente fugia um pouco da rotina.
P/1 – Mas você tem alguma lembrança de alguma imagem dos quatro?
R – Não, acho que está sempre relacionada a estar fora de casa. Estar sempre fora.
P/1 – Em que momentos que você visitava os seus avós?
R – Era de fim de semana. A gente ia pra Minas e aproveitava, estava com eles. Porque a minha mãe também, por ser do interior de Minas, estava sempre querendo voltar, visitar a família. Então, era de fim de semana mesmo.
P/1 – E como é que era essa ida pra casa? Tinha uma expectativa para a casa dos seus avós?
R – Na verdade, tudo que eu e o meu irmão, tudo o que a gente mais amava era ir para Machado, no sul de Minas, que era a casa dos meus avós. E, às vezes, acontecia de a gente não conseguir ir. Uma vez, no Natal, a gente não conseguiu ir, a gente chorava, a gente chorava, porque a gente amava ir para lá. Era sinônimo de família, sinônimo de estar junto. Ali, todo mundo se reunia. Era aquela bagunça boa. Família cheio de primo, cheio de tios, então, é sinônimo de muita lembrança boa. E os meus avós, eles também foram excelentes referências. A minha avó era um sinônimo de força, ela trabalhou, batalhou a vida toda, ela trabalhava de madrugada para fazer docinho para ajudar a formar, para botar comida na mesa dos cinco filhos. E o meu avô sempre também foi uma pessoa de muita paz. E muita gente ali na família já enfrentou muita coisa, mas todo mundo sempre de cabeça erguida, como isso tudo também vai nos nutrindo e vai nos formando. Uma vez, o meu avô falou assim: “Patrícia, a gente não precisa de muito da vida, a gente precisa de sol e alegria”. É isso. E, aí, a gente enfrenta a vida. Eu já nem diria o sol, porque, com tudo o que eu passei na minha vida, até os dias nublados, eu acho lindos (risos). Então, a gente só precisa realmente de alegria. Eu acho que o bom humor salva. Se eu tivesse também que dizer algo que me salvou nessa trajetória toda foi o bom humor. Se a gente não puder fazer piada das nossas tragédias, o que poderemos fazer com elas? Então, eu acho que eu tive boas influências de vários lados. São pessoas muito lutadoras na minha família, que batalharam muito para conseguir superar os desafios da vida, ou conseguir chegar onde chegaram ou, enfim, caminhar, né?
P/1 – Como que vocês faziam para ocupar o tempo na estrada até chegar na casa dos seus avós?
R – Basicamente, era o meu pai ouvindo as musicas dele (risos). A gente só ouvia a música as três horas e meia de viagem.
P/1 – E quais eram?
R – Olha, a lembrança que eu tenho me vem Chitãozinho e Xororó, me vêm uns sertanejos assim, mas eu não vou lembrar todas. Mas o que eu me lembro dessa época da estrada é que eu sempre gostei muito de ficar vendo a estrada, o verde. Eu gosto até hoje da estrada, da paisagem, do caminho. Eu gosto dessa sensação de você estar indo para algum lugar.
P/1 – E como é que era a recepção dos seus avós?
R – Maravilhosa, eles sempre estavam mega-animados. Todos os tios iam pra lá também, todos os primos iam para lá também. Como a gente morava mais longe, às vezes, todo mundo aproveitava para, quando a gente ia, irem também. Então, quando a gente ia, estava sempre muita gente. Era bem animado.
P/1 – E quais eram as comidas que tinham nesses encontros de família?
R – Minha família tem influência italiana, então, era macarronada. Em Minas, acontece uma coisa que, aqui em São Paulo, o pessoal acha surreal, mas, se tem macarrão, tem feijão, a gente come macarrão com feijão. Não necessariamente tem arroz, mas tem feijão. Então, era macarrão, feijão. O que eu mais lembro era macarrão mesmo. Minha avó fazia muito macarrão, ela fazia aqueles biscoitinhos secos, aquelas coisinhas, aqueles quitutes. Bolachinha. Lá, eles chamam de bolachinha do pobre, né? Que dói o dente. Não é que dói o dente, mas tem que fazer uma força pra quebrar a bolacha. E vários biscoitinhos, ela fazia isso pra vender, então, a gente se fartava de comer. Não tanto eu, mas a família toda.
P/1 – E os avós de São Paulo?
R – Meus avós de São Paulo, um avô morreu muito cedo, eu convivi pouco com ele porque ele teve um câncer, mas ele era uma pessoa muito animada, que gostava muito da vida. Minha mãe conta que... Imagina a minha mãe, a alegria dela, ela descobriu que ele me pegava pra passear, claro, com o consentimento dela, mas me pegava pra passear, ia no bar, molhava o dedinho na pinga e dava pra eu mamar. Aí, quando ela descobriu isso, ela nunca mais deixou ele me levar para passear, eu não sei por quê. Falam pra menina que ela não vai sobreviver um ano e, então, o avô leva pro bar para mamar na pinga... Ele falou pra ela: “Deixa eu mostrar pra ela o que é a vida, né?”. Então, digamos que a gente estava aproveitando a vida desde cedo. Mas o meu avô era uma pessoa alto-astral, animada, que também batalhou muito a vida toda, trabalhou, perdeu tudo, se reconstruiu, perdeu tudo, se reconstruiu. Então, pessoas que sempre lutaram muito. E minha avó também. Minha avó, apesar de ser mulher, ela tem uma história de muita força também. Ela era desenhista industrial, isso lá no começo do século XX, né, gente? No século XX. Então, ela trabalhava e ela sustentava a família. Alguns irmãos puderam estudar porque ela, que não era a mais velha, trabalhava e ela trabalhava porque ela tinha um talento, ela desenhava muito bem. E, aí, quando ela engravidou, o meu avô quis que ela parasse de trabalhar e, pra gente ter ideia, imagina, naquela época, o dono da empresa falou pra ela: “Assim que você tiver o bebê, pode voltar, o teu emprego está aqui”. Então, para uma mulher poder trabalhar naquela época... Mas ela sofreu as pressões da sociedade na época, não voltou e se arrependeu. Mas, apesar disso, ela não parou de trabalhar, ela trabalhava. O meu avô tinha indústria também de borracha, trabalhava com ele no chão de fábrica, estava lá batalhando todos os dias. Então, as mulheres da minha família sempre foram sinônimo de força e de trabalho também, ninguém ficava muito parada. Não sei como eu poderia falar, mas todas batalharam sempre juntos. Os homens e as mulheres sempre tiveram assim, os dois, posições de trabalho, de estarem à frente juntos na família. Então, eu acho que isso também é legal.
P/1 – E esses avós de São Paulo, vocês iam pra casa deles em que momentos também?
R – Ah, de fins de semana, às vezes, a gente ia almoçar, ia visitá-los durante a semana. A casa da minha avó era próxima do meu colégio. Eu saía do colégio e ia para lá.
P/1 – E, nesses avós, quais eram os tipos de comida que tinha?
R – Ixi, também tem influência italiana ali, então, minha avó gostava de fazer lasanha. Ela faz um bolo de carne que no fundo é carne moída, purê, é como se fosse um escondidinho, mas não é exatamente um escondidinho. Juro, é muito bom o bolo de carne da minha avó. Basicamente, ela sempre faz lasanha e bolo de carne, então, eu acho que é mais isso mesmo. Ah, e uma escarola, uma escarola maravilhosa com uvas passas, maravilhoso. Então, essas referências.
P/1 – Sim, e a escola?
R – Então, a escola. Foi ali que eu descobri a diferença um pouco. Por exemplo, eu não podia fazer educação física, então, na hora da educação física, eu ficava na arquibancada assistindo, enquanto todo mundo corria e brincava. Eu sempre tive muita vontade de poder fazer. Meu irmão fazia judô, e eu lembro que, enquanto ele estava na aula do judô, minha mãe ficava esperando ele, e eu sempre ficava junto esperando. E naquela mesma hora tinha aula de vôlei para as meninas da minha idade. Eu queria muito poder fazer. Às vezes, no meio da quadra, a bola vazava, eu ia lá, pegava a bola. Eu sinto que é isso até hoje. Eu pegava a bola e eu entregava a bola. Mas eu queria ir jogar junto. Mas não tinha muito o que fazer, por causa do problema do coração, eu não podia. Então, eu passava vontade, mas isso não me entristecia naquela época. Porque eu aceitava. Eu acho que uma palavra muito forte na minha história é resignação. Então, assim: “Ok, não dá para fazer, mas eu posso fazer outras coisas”. Eu acho que os meus pais me ensinaram muito isso: não dá para fazer uma coisa, mas dá para fazer outra. Então, o que eu mais amava fazer era dançar. Não dava. Mas eu amava ler também. E dava. Então, eu li muito e isso me ajudou muito na fase da escola, porque, de alguma forma, se eu não era boa de uma coisa, eu era boa em outra. Então, acho que foi de alguma forma assim, dessa forma. Eu acho que o que me impactou muito na época da escola foi na época em que eu operei. E voltar para a escola recém-operada e eu não conseguia ficar no recreio com todas as pessoas, tinha que ficar um pouco mais separada, mas eu não aguentava subir as escadas. Então, essas fases foram um pouco mais complicadas, mas eu ia seguindo.
P/1 – Mas foi ainda na época da infância?
R – Eu já tinha uns 14 anos aí.
P/1 – Tá, nós vamos chegar lá, então.
R – Isso.
P/1 – E, quando você entrou na escola, você falou que, aí, você começou a perceber as diferenças, mas teve alguma situação ou teve algum marco que te fez falar: “Nossa! Espera aí, deixa eu pensar porque tem alguma coisa diferente”? Teve algum acontecimento ou foi um fluxo?
R – Acho que não, acho que foi um fluxo, acho que foi normal. Eu acho que, aos poucos, eu fui percebendo que as outras pessoas conseguiam mais, eram mais fortes, aguentavam mais ou se cansavam não tão rápido. As crianças, né? Então, aos poucos, talvez eu fui entendendo isso. E, claro, daí aparece passeio da escola, não podia ir. Então, todo mundo ia ou para o Hopi Hari ou para o Playcenter, ou alguma coisa desse tipo, e não dava pra eu ir. Aos poucos essas coisas iam surgindo.
P/1 – E você se lembra do primeiro dia de aula?
R – Não.
P/1 – Ou desse comecinho de ir para a escola?
R – Então, se eu for lembrar bem antes da pré-escola, maternal, essas coisas, eu lembro que eu era muito paparicada pelos professores, então, eu me sentia especial. Mas hoje, quando eu olho pra trás, eu consigo reler a história e perceber que eu não era paparicada. Na verdade, todo mundo ali devia ter uma noção da minha questão, que os meus pais deveriam ter passado pra eles, e eu tinha um cuidado a mais. Então, todo mundo levava lancheirinha, sentava na mesinha para comer. Eu era a única que podia deitar no colchonete para descansar e tomar mamadeira. Eu achava que era um privilégio meu, vai ver eles não queriam tomar mamadeira, vai saber. Mas, na verdade, era um momento que, talvez, estava separado para descansar. Então, isso era muito... Essa lembrança é vívida pra mim, todo mundo sentava e comia o seu lanchinho: “Patrícia, agora deita no colchonete”. Não era se eu queria, era que aquele era o meu momento de deitar no colchonete. Então, eu não sei, eu acho que era um cuidado a mais, mas é aquilo que eu falei, ninguém me explicava muito e isso eu acho que era bom, porque também não tinha uma separação muito grande. Era um cuidado a mais.
P/1 – E, ainda nessa escola, nessa primeira escola da infância, qual é o nome dela?
R – Picolina (risos).
P/1 – E onde ela ficava essa escola?
R – Na frente da minha casa, na frente do meu apartamento do Ipiranga. Então, era superfácil, nada cansativo, só atravessava a rua. Então, ajudou bastante a minha mãe nessa fase de não se preocupar, de estar presente. Qualquer coisa que acontecesse, estava ali na frente, ela corria lá.
P/1 – E o que a menina Patrícia queria ser quando crescesse?
R – Eu queria ser assistente da Tia Luci (risos), que era a tia que cuidava de mim lá na escolinha. Então, pra mim, o ápice da minha carreira de pessoa humana era ser assistente da Tia Luci. Era esse meu desejo de criança.
P/1 – Ah, então, fala sobre a Tia Luci pra gente?
R – Eu não lembro tanto. Mas eu sei que ela cuidava muito de mim, que eu lembro que tem uma foto em que eu tô num carrinho de Natal, aquelas coisas de bairro, que o carrinho andava assim, em volta do quarteirão e com todas as crianças vestidas de Papai Noel. Eu tô no colo dela, então, sempre tinha esse cuidado. Eu sempre estava com alguém, alguém me poupando, me olhando de perto. Então, eu achava que ela gostava muito de mim porque ela me cuidava tanto, eu tinha muito carinho por ela. Mas acho que tinha um quê de cuidado também, um olhar para essa questão do coração.
P/1 – Mas você tinha vontade de fazer alguma coisa específica sendo assistente dela?
R – Não, acho que eu nem sabia o que significava isso.
P/1 – E, entrando agora mais nessa pré-adolescência, a sua mãe conversava com você sobre as transformações do corpo?
R – Não. Não era algo que se conversava muito na minha família. Acho que a minha mãe era um pouco... Não sei se a palavra seria recatada, mas ela não era tão aberta assim. Minha mãe era uma pessoa muito próxima, muito amiga, mas ela não ia ter a facilidade de tocar nesses assuntos. Então, acho que talvez eu fui aprendendo mais com as minhas amigas do que em casa. E eu acho que foi uma coisa que foi até normal de todas as famílias da minha época, não existia ainda toda essa conversa, toda essa abertura de falar, de transformação, de sexo, de desejo, de primeira vez, de primeiro beijo, todas essas transformações. Não tinha.
P/1 – E a sua primeira menstruação?
R – Veio tarde, acho que o meu corpo estava poupando sangue (risos). Então, o corpo é muito sábio. Teve uma época da minha vida que eu estava muito mal, que eu parei de menstruar durante dois anos e, aí, depois que aconteceu tudo, depois que eu transplantei, voltou. E, aí, conversando com os médicos, eles explicam que o corpo é sábio, que eu não tinha sangue a perder, então, o corpo parou de menstruar. Não é que eu tomava um coagulante, na época, eu tomava anticoncepcional, meu corpo parou. Assim como teve momentos em que o meu cabelo se jogou da minha cabeça, eu achava que eu estava com problema, mas, na verdade, o meu problema ainda era o original, o de coração. Porque, quando o coração está muito fraco, ele só bombeia para o coração, pulmão e cérebro. O resto, ele vai desligando. Então, eu dependia de diuréticos para o meu rim funcionar, eu não tinha fome porque o estômago não queria trabalhar e, se entrar comida, vai energia para o estômago, e o maior trabalho para o intestino e tudo funcionar. Então, eu sentia enjoo de ver comida, era uma resposta do meu corpo: “Pelo amor de Deus, não me dá trabalho, eu já tô levando sangue para todas as células”. Tudo ia um pouco se desligando. Então, o corpo é um sábio, quando ele tem que poupar energia. Ele já sabia que ele ia precisar daquele sangue, ele falou: “Demora pra começar esse processo”.
P/1 – Mas era uma expectativa sua?
R – Eu não lembro, nada específico sobre isso, mas acho que toda mulher de alguma forma vê esse momento como um marco, uma transição. Eu demorei bastante, tanto que todas as minhas amigas já eram mocinhas. Eu acho que tinha até um status você usar Modess na época (risos).
P/1 – Tudo bem falar sobre isso?
R – Tudo!
P/1 – E quando veio pra você a primeira vez, como foi?
R – Eu não lembro, eu não tenho essa memória de como foi, mas, como demorou, acho que foi normal, porque eu já sabia o que era. Talvez seja mais impactante para quem vê como uma novidade, não sabe o que é direito, como funciona. Acho que foi normal. Estava preparada.
P/1 – E, na adolescência, você estudou onde?
R – Eu estudei em um colégio de bairro, no Colégio Rainha dos Apóstolos, lá no Ipiranga, e o meu colégio também foi muito bom. Eles foram muito... Por ser um colégio pequeno de bairro, eles foram muito parceiros sempre. Então, quando eu precisava de alguns cuidados, ou de um certo olhar, eles também estavam presentes. Chegou uma hora que era muito chato ficar na arquibancada assistindo educação física, os outros poderem fazer e eu não. E eu consegui a liberação pra eu sair da escola. Então, como a educação física era sexta na última aula, eu podia ir embora mais cedo. Isso era legal também, ter esse olhar. Então, na época que eu operei, eu não podia descer para o recreio, mas eles permitiam que as minhas amigas subissem lá para onde ficava a área dos professores para que eu não ficasse sozinha. Então, em um colégio que é cheio de regras e onde você não tem um nome, você é um número, não sei como seria isso, mas eu tinha um nome, eles sabiam a minha história. Eles também, de alguma forma, iam construindo isso comigo. E eu acho que isso também foi fundamental nessa fase para eu não me sentir excluída. Então, eles também foram bem importantes.
P/1 – E a adolescência, sendo um fase complicada no sentido de muitas descobertas, muitas transformações, como que era para você lidar com a adolescência, mas também lidar com a coisa do coração?
R – Então, eu não sei se eu lembro de algo assim.
P/1 – Vinham questionamentos seus mesmo, vinha alguma reflexão?
R – Eu sempre fui um pouco mais madura que a maioria por tudo que eu passei na minha vida, por todas esses desafios. Então, com 14 anos, eu já tinha operado, e já sabia o que era uma UTI de adulto, uma UTI pediátrica, eu já tinha entendido, se é que eu posso dizer isso, um pouco mais o que era a vida e o valor dela, e o valor do momento presente e o valor de você estar vivo, de você simplesmente poder ser qualquer coisa que seja, de você acordar, de você olhar o céu, de você caminhar, de você sentir o vento, de você conversar com uma pessoa, de você dar oi para uma pessoa no elevador, de alguém ser gentil, de você ser gentil com alguém. Toda essa dinâmica, eu já entendia o valor dela. Então, eu acho que eu era um pouco mais madura na minha adolescência. Eu não tive, não me lembro de ter tido grandes chiliques. O que eu me lembro agora é que, quando as minhas amigas começaram a sair na balada, não rolava muito pra mim, meus pais me proibiam porque... E hoje eu entendo que, realmente, eu não aguentaria muito, mas talvez ali foi o mínimo que aconteceu. Eu brigava, eu falava: “Vocês não me deixam viver”. Aí, a minha mãe explicava que eu ia me cansar: “Eu quero viver o que eu tenho para viver”. Então, acontecia isso, vez ou outra. Mas eles eram bem rígidos. Então, na verdade, acontecia que eu não saía mesmo.
P/1 – Mas era um tema que era abordado nas rodas de conversa com as suas amigas?
R – Na verdade, nessa parte, eu ficava um pouco de fora. Todo mundo saía, e eu não saía muito, então, eu tive que aprender a lidar com isso. Até ali, eu já sabia um pouco o que era não fazer parte, então, não fazer parte muito do mundo das baladas era só mais um “não fazer parte”. Eu já não fazia parte da educação física, eu já não fazia parte do exercício, eu não fazia parte de alguns passeios da escola, então, era mais um. Não é que eu nunca fui, mas não vivi tanto esse processo. A lembrança que eu tenho é assim: eu tinha as roupas, eu tinha uma prima do sul que me dava muita roupa dela, que ela era um pouco mais velha. As roupas dela eram lindas, nossa, e queria tanto poder sair com as roupas dela. E com aquele tomara que caia, que era tudo brilhante, aquelas coisas bem anos 90. Mas eu não podia sair, então, eu ficava olhando aquelas roupas e eu pensava: “O que adianta eu ter a roupa? Não posso sair!”. Nessas horas, era um pouco frustrante, mas também não tinha muito o que fazer. Então, bola pra frente, vamos fazer o que dá pra fazer.
P/1 – E o que dava pra fazer?
R – Ler (risos). Dava pra ler. Então, eu lia muito, não sei, era o que dava pra fazer. Assistia à TV. Era, basicamente, a maior parte das coisas que eu fazia.
P/1 – Dentro dessa parte da leitura, teve algum livro ou alguma história que tenha sido muito marcante?
R – O mundo de Sofia me marcou muito. É um dos meus livros preferidos. É, foi o que mais me marcou, O mundo de Sofia. Acho que a leitura me ajudou também, porque a leitura abre a sua cabeça. De repente, eu não vejo mais a Patrícia que tem um problema de coração, que mora no Ipiranga, no Brasil, planeta Terra, mini. A leitura abre a sua cabeça. Então, eu via outras histórias, via outras coisas, o mundo era maior para mim, o meu problema acabava parecendo pequeno. Tem tanta coisa acontecendo no mundo, tanta coisa acontecendo com tanta gente. Então, talvez, ter essa noção fazia com que eu não me desse tanto o direito de me vitimizar. Porque eu conseguia enxergar o que eu tinha. Então, poxa, em vez de eu enxergar tudo que eu não tinha, olha tudo que eu posso fazer e, no que eu podia fazer, eu tentava ser boa. Então, eu sempre tive um pouco esse olhar na vida, eu acho que a leitura me ajudou muito. Sem dúvidas.
P/1 – E onde você acessava esses livros?
R – Alguns... Muito cedo, eu acabei com os livros lá de casa, então, eu lia Osho com 12 anos, que eu tinha livro do meu pai lá, que era o que tinha para ler. Eu ia devorando, porque eu queria ler. Aí, tinha a biblioteca pública no Ipiranga, a gente ia lá, pegava livros também. Sei lá, a gente ia passear no shopping, eu pedia um livro, era o que eu pedia, eu pedia livro, porque era a coisa mais divertida que eu fazia. Então, ia indo dessa forma.
P/1 – E como que foi receber essa notícia de que seria preciso fazer uma cirurgia?
R – Com 14 anos, quando eu fiz a primeira cirurgia, foi, pra mim, desesperador, porque eu tive muito medo na época. Eu chorava, eu falava que eu não queria operar. Foi bem tenso e, no final, não tinha muito o que fazer, porque tudo foi meio de urgência. Então, eu fui para três ou quatro prontos-socorros, ninguém descobriu o que eu tinha exatamente. Quando, finalmente, alguém descobriu, a médica olhou pra mim e falou assim: “Você não sai mais daqui”. Então, me internou. Eu tinha problemas maiores na minha adolescência pra me preocupar e, aí, quando ela falou: “Você não sai mais daqui”, eu falei: “Como assim? Não saio mais daqui?”. E, de repente, vêm os outros médicos, e fazem exame, de repente, viram pra mim e falam: “Você tem que operar no máximo em uma semana, senão, a gente não sabe o que pode acontecer”. “Como assim, eu tenho que operar do nada?” Então, de repente, eles falam assim: “A gente vai te operar daqui a dois dias”. “Como assim daqui a dois dias?” Foi tudo muito rápido. Muitas coisas na minha vida foram assim, de supetão. E eu tinha que encarar da forma que viesse. E essa fase foi muito complicada. Acho que eu esqueci o que eu tinha para falar.
P/1 – Eu tinha perguntado sobre a cirurgia, mas, como foi no susto, o que você estava sentindo para que você procurasse o pronto-socorro?
R – Eu comecei a me sentir muito mais cansada nessa época, eu não conseguia deitar, que eu tinha falta de ar. Eu comecei a precisar de dois travesseiros, dois travesseiros não eram suficientes, três travesseiros. Mesmo assim, eu não conseguia dormir porque tinha dificuldade de respirar. E, aí, ao mesmo tempo, eu não tinha fome, eu não queria comer nada. “Come um pouquinho só.” ‘Não quero.” Ficava o dia inteiro no sofá jogada, os meus pais começaram a ver que tinha alguma coisa que estava muito errada. E, aí, um amigo da família era médico, foi lá me ver: “Leva ela no médico”. Aí, foi no médico, o primeiro médico receitou... Gente, eu nunca vou me esquecer dessas etapas, porque ele receitou comer uma colherada de água de azeitona pra eu melhorar. Água de azeitona é puro sódio, sódio retém líquido, que é o que você não pode no caso de uma insuficiência cardíaca. Mas foi o que aquele médico receitou: tomar água de azeitona como se fosse remédio. Aí, no próximo hospital, me analisaram e falaram assim: “Você precisa de soro”. Colocaram dois litros de soro no meu corpo, sendo que eu precisava enxugar, que hoje eu entendo isso. Então, foi uma sequência de coisas até chegar num hospital que realmente entendeu mais ou menos o que estava acontecendo e, aí, já me internou e já era pra eu operar. E foi uma coisa atrás da outra. Eu me sentia muito cansada nessa época e é incrível como esse cansaço te suga. Você fica jogada, a pressão baixa, você fica muito muito mal.
P/1 – E qual foi o momento que você falou assim: “Não vou conseguir fugir, vou ter eu fazer essa cirurgia”?
R – Não teve esse momento, porque eu estava internada no hospital, eu era menor de idade, e quem decidia eram os meus pais. Tudo aconteceu de supetão, eles só me explicaram que eu ia ter que operar, eu não tinha essa opção. E eu fui. E, naquela época, eu fui com medo, eu lembro que eu tinha aquela fitinha do Senhor do Bonfim, que você faz os desejos, e eu lembro que cortaram na hora da operação, eu falei: “Meu Deus, meus desejos! Isso não pode ser bom, eu tô aqui pra operar, eles cortam a minha fitinha”, mas faz parte do procedimento cirúrgico. Então, pequenas coisas que vão tendo um peso maior pra gente. Porque já é tão difícil lidar com tudo, às vezes, uma pequena coisa, a gente se apega àquilo. Mas deu tudo certo, eu sobrevivi.
P/1 – Você lembra quais eram os desejos da fitinha?
R – Eu não lembro exatamente, mas eu lembro que eles cortaram a fitinha, é isso que eu lembro. Daí ficou marcado. E o mínimo que eu esperava é que eles tivessem guardado pra mim, nem guardaram a minha fitinha.
P/1 – E de quem você tinha ganhado essa fitinha?
R – Não sei também, talvez alguém que foi pra Bahia e me deu. Não me lembro, mas eu lembro que eu gostava dela e demorava pra cair. Oh, fitinha! Nossa senhora, aquele... Oh, material bom! Você usa anos e não cai.
P/1 – E, Patrícia, qual é a primeira lembrança que você tem no pós-cirúrgico, de você acordando? Você se lembra desse primeiro momento?
R – Ah, nessa fase, a lembrança que eu tenho é... E vai ser engraçado depois quando eu contar os outros momentos mais pra frente, as outras lembranças, como é completamente diferente. Mas, nessa fase, quando eu operei, eu acordei antes de me desentubarem. Péssimo! Não indico isso, não façam isso, desentubem a pessoa antes. Então, eu estava entubada, já tinha noção de tudo ao redor e não conseguia falar. E eu era uma criança, vai? Uma adolescente, não sabia nada daquilo, de onde eu estava, sozinha, pessoas estranhas, sem os meus pais, entubada. Eu não conseguia falar, eu tentava, e eles: “Para, para, não tenta, não força”. E tudo foi feito comigo consciente, eles me desentubaram consciente. Então, foi horrível aquele tubo saindo. Gente, aquele tubo é um tubo enorme, quando você descobre o tamanho do tubo, você se assusta. E eu estava com o tubo também pelo nariz, tudo foi consciente que foi sendo tirado, então, foi muito traumático. Mas nada como ser formada a ferro e fogo, não tem o que fazer, nesse caminho da sobrevivência, você não tem escolha. Então, é engraçado para quem passa por essas questões de saúde, as pessoas falam assim: “Nossa, como você é forte”. A gente não tem outra opção. Eu entendo, sim, nós somos fortes, mas não é que existia outra opção. Só existia uma opção, seguir em frente. Então, era isso que era necessário para se manter vivo. Mas foi meio punk essa fase.
P/1 – Por ser a primeira cirurgia. Tudo bem se eu fizer mais algumas perguntas sobre ela?
R – Pode.
P/1 – E aí, depois disso, dessa saída do pós-cirúrgico, teve o período da UTI?
R – Sim.
P/1 – Relata como que foi essa experiência, descreve como que era esse ambiente.
R – Eu ficava próxima à janela. Minha maca, nessa fase, eu estava em uma UTI pediátrica, não foi a minha primeira vez numa UTI pediátrica, mas estava na UTI pediátrica. Eu lembro que para mim era... Eu não sei nem dizer a palavra ao certo, mas eu estava ali, eu lembro que eu contei, tinha 12 tubos saindo de mim, 12 tubos me prendiam à cama. E eu olhava as pessoas andando na rua. Porque, do alto do hospital, daquela janela, dava pra ver a rua lá embaixo e era uma avenida grande. E eu via as pessoas caminhando pra lá e pra cá, indo para a vida delas, cheias de problemas que eu queria ter. Tudo o que eu queria era ter o problema delas. Porque ali, elas andavam, ela tinham vida para resolver o problema delas. Pra mim, não era um problema, pra mim era vida. E como é diferente a referência porque, aí, eu não tinha nada, eu estava presa. Então, eu lembro que falaram pra mim que eu ia ficar tantos dias, eu fiquei muito mais dias, minha mãe ia me visitar, eu chorava pedindo pra ir embora, mas o que mais me marcou foi aquela janela em que eu estava ali, presa, vendo todo mundo vivendo a sua vida lá embaixo. Então, eu sempre dei muito valor em estar lá embaixo, estar na rua, estar vivendo. Eu nunca me incomodei com o pouco. Às vezes, por exemplo, você pergunta: “Como era para você não poder fazer...?”. O pouco pra mim era muito bom. O que eu podia fazer com saúde era muito bom, eu estava fora daquela lugar, eu estava fora da UTI. Eu estava na vida assim. Então, o que mais me marcou acho que foi essa... Ser uma expectadora da vida.
P/1 – E teve algum ou alguma enfermeira ou médico que tinha algum cuidado bacana, que tenha marcado?
R – Tem uma. Acho que foi uma técnica de enfermagem, que ela me marcou porque eu não podia beber água muito, eu estava com uma restrição hídrica, acontece isso logo depois das operações. E ela me trazia um copo de água escondido. Uma vez, me trouxeram até laranja pra eu chupar, juro, Deus abençoe essas pessoas, porque essas pessoas nos salvam, sério! Porque ali já não... Chega um momento que já não é mais o remédio que vai te salvar, não é mais a operação e o tratamento, você precisa de uma humanidade. Você precisa de um afeto, de um carinho. E isso também é tratamento. Então, era como se viesse a mensagem assim: você não está sozinha, eu tô com você. Está todo mundo seguindo o protocolo, mas ela não seguiu o protocolo. Aquele pequeno segredo era um pouco de vida que, de repente, eu não estava mais vendo a vida lá de baixo e eu tinha o meu copo de água escondido ali dentro. É pequeno, mas significou muito.
P/1 – E como que foi receber alta?
R – Eu lembro que, quando eu saí do hospital, eu me prometi que eu só voltaria para o hospital na minha vida para ter filhos. Não rolou, né? Taí uma promessa que eu não cumpri, não dependia tanto de mim como eu voltei para o hospital depois, mas foi maravilhoso levar alta. Poucas coisas são tão boas como levar alta. Então, foi ótimo finalmente sair.
P/2 – Deixa eu só voltar um pouquinho: nessas idas suas ao hospital desde muito cedo, você desenvolveu alguma relação com os médicos ou com os pacientes? Teve isso?
R – Não. Como nos hospitais que eu frequentava tinha muita gente e cada dia que você vai eram outras pessoas que estavam ali na fila de espera, você até podia ter alguma interação, mas o próximo dia que você fosse, já não eram mais essas mesmas pessoas que estavam lá. Então, com pacientes, não. E é engraçado que, às vezes, mesmo os médicos mudavam muito. Então, às vezes, eu era atendida por um médico na consulta, na outra vez que eu ia, era outro. Ele pegava o meu prontuário, lia o meu prontuário, me avaliava. A não frequência dos profissionais, não ser o mesmo sempre, acho que impedia de criar esse vínculo maior, que eu acho superimportante, que eu acho que isso também ajuda no tratamento e que, quando eu tomei consciência disso mais pra frente na minha vida, eu já era um pouco mais empoderada nas minhas idas aos hospitais, porque, daí, você vai apendendo a ser um pouco mais rebelde. E não é ser rebelde porque você não aceita o que é ruim, é assim: você aprende que você pode impor um pouco as suas regras e você vai entendendo que você não é uma refém ou uma prisioneira dentro do hospital, não. Você está indo ali cuidar, então, espera aí, eu também quero palpitar. Então, às vezes, em outras internações, eu falava: “Eu quero que tal pessoa cuide de mim”. “Não pode.” “Mas eu quero que tal pessoa cuide de mim”, porque ela era carinhosa, porque ela me tratava bem, porque ela era doce. Às vezes, eu conseguia, às vezes, eu não conseguia, mas ali eu já tinha um pouco mais de voz. Mas foram uns dez anos depois disso pra eu começar a entender os “paranauês”.
P/1 – E você saiu do hospital com algum tipo de recomendação médica?
R – Nossa, eu tinha muita recomendação médica. Eu vivia de recomendação médica (risos). Eu não podia fazer esforço físico pra não me cansar, tomava, como eu disse, os diuréticos, a minha comida era 100% sem sal, é terrível, mas vamos lá. Eu tomava anticoagulante para ajudar o coração. Então, eu não podia me bater muito, porque formava roxos e eu não podia me cortar porque, senão, eu tinha risco de hemorragia. Qualquer coisa que eu pudesse fazer, que pudesse me trazer um risco, não era pra fazer. Então, era para ficar mais parada. Eu lembro que, em uma certa fase, eu tomava remédio pra hipertensão pulmonar, que eu comecei a ter questões no pulmão, por causa da insuficiência cardíaca, e vocês sabem qual é o remédio para hipertensão pulmonar? É o Viagra!
P/1 – Mentira!
R – O Viagra foi descoberto totalmente ao acaso, era uma pesquisa para um remédio novo para hipertensão pulmonar, aí, todos os homens que tomaram o novo medicamento ficaram ali, digamos, bem animados. E assim eles descobriram o Viagra e salvaram a vida de muitas pessoas, de muitos casais. Então, foi isso. Mas eu tomava o Viagra e não dá efeito nenhum na mulher e tomava para o pulmão, mas era engraçado quando eu pedia pra alguém comprar o remédio. Homens não gostavam de ir na farmácia comprar o remédio pra mim, por mais que fosse o genérico. Então, eu tinha milhões de remédios que eu tomava, eu tomava uns 20 medicamentos ao dia, todas essas doses, administrar tudo isso. Não beber muita água pra não ingerir muita água para o corpo, para não ficar inchada. Era bastante recomendação.
P/1 – E como foi chegar em casa?
R – Ah, foi maravilhoso, eu sempre fui muito cuidada pela minha família. Então, nessa fase, eu ganhava pijaminha novo. Porque era o que dava pra usar em casa, então, era um carinho. Eu lembro que minha avó me dava um pijaminha novo, aí minha tia me dava um outro pijaminha novo. Eram esses meus presentes, que era o que dava pra usar. Ah, foi ótimo. Tudo que eu quisesse comer, eles faziam pra mim, porque, que eu quisesse comer, era o que dava pra comer. Então, eu era bem paparicada nessas fases, principalmente pós-hospital, pós-cirurgia. Aí, a gente tem que aproveitar as coisas boas.
P/1 – E depois de quanto tempo que você voltou para a escola?
R – Acho que foram uns dois meses. E, aí, eu lembro que eu cheguei na escola, foi tipo abril, então, eu já tinha perdido fevereiro e março na escola. E era exatamente o primeiro ano no colegial, que entravam novas matérias, física, química, biologia, nunca tinha tido aquilo, e o pessoal estava com medo que eu não acompanhasse, perdesse o ano por causa da operação. Mas aí eu tinha uma amiga minha muito querida, muito amada, que ela levava todo dia as lições pra mim, e eu copiava. Então, eu estava em casa, mas eu copiava todas as lições que tinha tido no dia. As lições de segunda-feira, na segunda à tarde, eu já estava copiando. Chegava terça-feira, a mesma coisa. E, aí, o primeiro dia que eu voltei para a aula foi a primeira prova de física, porque eu tinha que ir fazer a prova para não perder o ano, senão, não era ainda para eu voltar, eu voltei em abril. Aí, eu lembro que eu fiquei morrendo de medo, nunca tinha tido uma aula, só tinha copiado a lição, e eu tirei a nota mais alta da sala. Ler muito tinha que servir pra alguma coisa. Eu tinha que ser boa em alguma coisa. Foi. A professora deu um escândalo quando entregou as notas, ela gritava, ela falava: “Eu não devo servir pra nada”. Juro, foi um barraco: “Eu não devo servir pra nada, porque essa daí não assistiu a uma aula minha, a maior nota, o que vocês fizeram aqui em todas essas aulas que eu estava falando?”. No fundo, eu fiquei feliz, mas foi um barraco. Juro, foi um barraco! Mas eu me senti o máximo, pelo menos eu podia me sentir o máximo em alguma coisa. Digamos que foi um retorno triunfal pra escola, pelo menos isso. Estava com a cirurgia, com a cicatriz no peito, mas tirei a maior nota de física. E aí foi indo.
P/1 – Quem é essa amiga que ia pra sua casa?
R – Celina, minha melhor amiga nessa época.
P/1 – E como que foi essa decisão dela ir todos os dias na sua casa pra levar...
R – Ah, foi da minha mãe. Minha mãe ia lá, buscava a lição dela, eu copiava e devolvia de noite a lição dela. Minha mãe estava sempre presente, em todas as ações, quando você for ver, tinha o dedinho dela.
P/1 – E como a escola te recebeu nessa volta?
R – Não teve nenhuma recepção especial, mas me receberam superbem, eu podia usar o elevador pra subir, porque a sala era no terceiro andar, nessa época, logo depois da cirurgia. E eu lembro que as pessoas queriam saber o que tinha acontecido comigo, porque elas tinham ficado sabendo, e acho que também porque os professores contavam na época em que: “Cadê a Patrícia?”. Mas foi isso, foi normal. Foi boa a volta.
P/1 – E como você lidava com a sua primeira cicatriz?
R – Eu tive muito medo da cicatriz antes de tê-la, antes de operar. Eu achava absolutamente assustador pensar que uma cicatriz no meio do meu peito, cortando, e depois eu descobri que ela não era nada, praticamente esquecia que eu tinha uma cicatriz. Sempre usei decote, nunca tive vergonha e, mais do que isso, ao longo da minha vida, ela nunca me incomodou, eu nunca escondi a minha primeira cicatriz e, quando veio a minha segunda cicatriz no transplante, na segunda operação, hoje eu faço até um movimento de empoderamento feminino pra gente exaltar as nossas cicatrizes. Não é: “Sou bonita, apesar da minha cicatriz”, não. É: “Eu sou bonita pela minha cicatriz, por causa da minha cicatriz, ela é minha história, ela é minha força”. Sabe quem tem uma cicatriz? Quem sobreviveu, ela é a prova da nossa força. Entro, hoje eu faço um trabalho dentre as coisas que eu atuo, pra empoderar outras mulheres, que eu sei que muitas não lidam de uma forma positiva ou fácil, para empoderá-las a aprenderem a se aceitar, se amar, e, num outro nível, se exaltar. Então, eu tenho orgulho da minha cicatriz. Não é que ela não me incomoda, é outro nível já, eu tenho orgulho dela. E eu acho que todas as mulheres têm que aceitar cada marca. É parte da nossa história, parte de quem a gente é. Então, foi uma caminhada, foi construído.
P/1 – E como foi ver pela primeira vez?
R – Tudo na primeira vez foi traumático. Porque eu lembro que, na época, eles me deram um adesivo que ajudava a prevenir queloide e, aí, você cortava, minha mãe cortava o adesivo e botava na cicatriz. Só que era um adesivo e, como você tirava o adesivo na hora do banho, ficava colado e, gente, eu chorava, mas eu chorava, às vezes, de gritar para arrancar o maldito adesivo que era pra evitar queloide. Então, muitos aprendizados não foram tão simples. Hoje, eu torço para que ninguém indique esse adesivo e eu, claramente, não usei. Aliás, se eu tivesse algo para indicar pra alguém, eu indicaria creme de rosa mosqueta, que é uma frutinha, é um creme feito de uma frutinha, acho que é da Argentina, você encontra em qualquer lugar de cosmético, farmácia de manipulação. Isso é ótimo, evita queloide, você passa. Foi o que eu usei da segunda vez, mas, na primeira vez, foi tenso isso daí.
P/1 – Mas você tem essa lembrança de você voltando e: “Quero ver...”?
R – Então, eu não tenho essa lembrança, eu não lembro se foi no hospital, se foi em casa, eu lembro dessa coisa mesmo do cuidado que tinha que ter com ela, que era muito sofrido naquela época. Mas a minha relação com ela depois, eu descobri que não era nada demais. É só uma cicatriz. As pessoas perguntavam: ”Você operou o coração?”. “Operei”, normal. Não era: “Operei, tadinha de mim”, não. Era: “Operei”. Então, se eu mostro que é algo normal, para as pessoas não é nada demais. Acho que essa é a grande sacada da vida.
P/1 – E, Patrícia, nessa fase também de novas descobertas, começou a ter algum interesse por alguém? As primeiras paixões?
R – Não, gente, isso daí sempre temos na nossa vida, mas, sim, gostava de um menininho, depois gostava de outro, depois gostava de outro. E aí foi.
P/1 – Mas teve alguém que te fez assim, nessa época...
R – Não, acho que eu não era muito correspondida nessa época (risos). Não teve nada muito marcante nessa época, tinha minhas paixões secretas, digamos assim.
P/1 – E como continuou a sua rotina médica?
R – Hoje?
P/1 – Não, logo depois dessa...
R – A mesma coisa: vai no hospital, faz os exames, acompanha com o médico. O problema é que, um ano depois de me operaram, já queriam me operar de novo. A operação, em tese, não deu muito certo, então, todo esse trauma, toda essa passagem na minha vida barra, eles viraram e falaram: “Vamos fazer de novo?”. Não deu certo. E eu lembro que eu não queria operar, minha mãe também foi um pouco contra na época e, aí, a gente foi seguindo com outros médicos que toparam, que acreditavam que existia um caminho sem ser a operação. Eu fui seguindo aos trancos e barrancos a minha vida até mais ou menos os 19 anos de idade. Nessa época eu já tinha entrado na faculdade, já estava cursando Economia. E eu tive uma outra crise. Eu entrei em arritmia, eu fui levada pro hospital, tudo no susto de novo. E o coração, às vezes, ele dava uns panes, tadinho, meu coração guerreiro. Aí, nessa fase, começou a entrar a história do transplante, eles começaram a cogitar o transplante pra mim, só que eu fui negada pra entrar na fila de espera para o transplante porque um órgão saudável, ele tem que ir para alguém que tenha chances, que vai conseguir segurar esse coração. E eu tinha uma questão no pulmão, como eu falei. Então, a hipertensão pulmonar que eu tinha, um novo coração não iria saber trabalhar com ela. Eu não podia receber um novo coração, mas aí volta na história dos meus pais, eles nunca me contaram isso, eles nunca me contaram que eu não tinha saída, que eu não podia transplantar, que os médicos me negaram. Eles contaram pra mim: “Os quatro médicos que nós fomos queriam transplantar, mas a gente encontrou um médico que acredita que nós podemos seguir só com medicamentos, então, vamos tentar isso primeiro”. Aí, eu: “Ótimo”. Aí, eu parei a faculdade, passei um ano de cama, um ano da minha vida, ficar zen, não tem o que fazer, eu brinco que foi um ano sabático à força, não tinha muito o que fazer, eu fiquei descansando. E os meus remédios aumentaram, acompanhava uma ou duas vezes por mês no médico e, por incrível que pareça, eu melhorei um pouco, eu consegui retomar de novo. Então, acho que a história até chegar nesse momento de uma hora dar a virada, que é o transplante, foi sempre de idas e vindas, altos e baixos, sustos e superações. Aí, quando eu consegui voltar, retomei a faculdade, mas mais devagar, eu só podia fazer duas matérias por semestre ou três, porque, aí, eu não cansava. Eu tinha liberação para entrar por uma entrada que era o menor caminho possível até a sala de aula. Então, várias pequenas liberações também consegui na faculdade por causa disso. Claro que eu também não podia fazer educação física na faculdade. E eu consegui me formar depois, aos pouquinhos. Todo mundo saía da faculdade, eu ainda estava na faculdade, mas consegui me formar. E fui seguindo a minha vida, até uma hora em que eu piorei de novo e, aí, volta pra UTI, volta pras internações. A minha vida foi um pouco essas idas e vindas, até que chegou numa hora que eu comecei a piorar muito, eu comecei a ficar tão cansada, mas tão cansada, que eu acho que existir me cansava. Eu estava deitada numa cama, às vezes, eu pensava assim: “Vou mudar de lado”. Estava tão cansada que eu não conseguia fazer isso, não conseguia mudar de lado na cama ou estava tão cansada que eu queria falar algo, eu não falava. Eu tinha um comentário para fazer, eu tinha algo para falar, mas eu não falava, os pensamentos já ficavam guardados na minha cabeça. Eu estava ficando presa no meu próprio corpo, eu via todo mundo ao meu redor, eu via situações, eu não conseguia interagir. Então, ali, eu acho que foi o ápice, foi o momento mais difícil de todos, foi quando eu comecei a me sentir presa dentro do meu próprio corpo. Eu já estava um tempo de cama em casa, tudo que podia ser tentado já tinha sido tentado, só que tem uma sacada no meio desse caminho. Entre os 20 anos, que eu fui negada para o transplante, e os 29, que foi o ápice quando eu fiquei mal, a medicina evoluiu, eles desenvolveram um medicamento que poderia controlar o meu pulmão na hora da operação. E foi por isso que pôde ser cogitado novamente o transplante. E, ali, eu fui inserida na fila do transplante. Então, se eu tinha uma chance na minha vida, era um novo coração, eu ia depender da doação de órgãos. Eu já não sabia mais nessa fase da minha vida se eu iria estar viva na semana seguinte. Eu me sentia tão fraca que eu não conseguia imaginar como ia ser chegar até lá. Eu estava na fila de espera, já nessa altura, eu estava bem mal, então, as refeições vinham até mim, na cama, eu não aguentava andar até a mesa para comer. Eu passava o dia deitada. O meu dia era acordar, comer e descansar. Aí, meu Deus, o almoço, come e descansa. Era isso. Chegou uma hora que eu não aguentava mais ficar em casa, porque eu não conseguia ir até o banheiro pra tomar um banho, fazer xixi, então, eu tive que ser internada na UTI, eu comecei a depender de aparelhos para bombear o meu coração. Se em casa eu não sabia se eu ia estar viva na semana seguinte, quando eu estava na UTI, eu lutava para estar viva no dia seguinte, eu lutava para chegar no dia seguinte. As pessoas falam: “Você está na fila de espera”, eu acho esse nome absurdo, “fila de espera”. Espera passa uma passividade: pega uma senha e espera a sua vez. Quem está esperando a sua vez? Ninguém numa fila de espera está esperando a sua vez, estamos lutando pra ter a chance de ter uma vez. Então, pra mim, é fila de luta, não é fila de espera, porque todo mundo que está nessa fila esperando a bênção de uma doação de órgãos está lutando pra conseguir aguentar. Muitas não aguentam a fase da espera. Então, estamos matando um leão por dia, porque, quem sabe, o coração vai chegar daqui a uma hora, daqui a um mês, daqui a cinco meses, não tem hora. Então, isso também vai gerando uma ansiedade nessa fase em que você está na fila de luta. Eu fiquei dois meses ao todo na UTI, além do tempo, dos meses que eu estava em casa. A fase da UTI foi maravilhosa, foi muito difícil, que, diferente da experiência que eu tive quando eu tinha 14 anos de idade, que foi tudo muito traumático, as pessoas me ajudaram tanto nessa fase, eu fiz amigos. Eu lembro que eu esperava a hora da fisioterapia que a Keci, que foi a minha primeira amiga dentro do hospital, porque eu queria ouvir ela contar da vida dela como se não existisse tudo aquilo, não existe essa maca, não existissem esses aparelhos, esse pi, pi, pi. Eu falava: “Pelo amor de Deus, desliga esse pi, pi, que eu não quero ficar ouvindo esse coração que está com arritmia”. Era como se eu esquecesse um pouco que eu estava ali, e ela simplesmente me contasse o que estava acontecendo na vida dela, do namorado dela, que ela ia não sei onde. E, aí, ela prometeu pra mim que ia na academia, porque ela falou assim: “Eu sinto até vergonha, eu posso fazer e eu não faço e você aqui com tanta vontade de fazer”. “Então, você me deve isso.” Daquele dia em diante, ela disse que ela se matriculou na academia e foi fazer. E você imagina quantas pessoas começaram a se exercitar depois, porque eu acho que, às vezes, a falta do outro nos faz dar valor ao que a gente tem. E eu tenho um pensamento na minha vida que é o seguinte: eu gostaria de ter aprendido tudo o que eu aprendi pelo amor. Infelizmente, muitas das coisas que eu aprendi foi pela dor, mas eu me nego a acreditar que as pessoas precisem aprender apenas pela dor. Eu acho que o que é a minha história? Eu espero que a minha história seja um canal para as pessoas aprenderem pelo amor, aprenderem a dar valor na sua vida, na sua saúde, no seu corpo, a se exercitar, no seu coração, no seu pulmão, no seu rim, nos seu olhos, sei lá, em tudo. Espero que a minha história permita que as pessoas aprendam pelo amor, não pela dor, porque eu dou muito valor, mas, meu bem, esse aprendizado foi dureza! Então, aí, a fase da UTI foi uma fase em que eu fui muito ajudada. E tem um papel dos profissionais de saúde que, quando eles têm esse olhar humanizado, tornam a nossa luta ali, que está muito difícil, um pouco mais fácil. Em vez de ter uma pessoa que me trazia escondido um copo de água, ninguém me trazia escondido um copo de água, mas eram outros cuidados, eram outros carinhos. Então, por exemplo, quando eu estava na fase da UTI, eu tive Dia dos Namorados na UTI, eu conversei com a equipe de enfermagem, eles conseguiram me sentar numa cadeira, permitiram que eu usasse uma outra roupa nesse dia, deixaram eu me maquiar, e o meu namorado veio me ver achando que eu ia estar com a cara da derrota, deitada numa maca de UTI, e, quando viu, eu estava sentadinha, tinham duas refeições e a gente jantou na UTI. Durou meia hora, eu estava muito cansada e eu precisava deitar? Sim, mas minimamente o que eu podia estar vivendo, eu estava tentando viver. Então, a fase da UTI foi marcada muito por isso, por essa tentativa de viver o mínimo que eu ainda tinha, que eu podia, porque eu não queria mais que a minha vida estivesse do lado de fora da janela. Eu quis trazer a minha vida para o lado de cá da janela. Aí, chegou um dia que era o dia do meu aniversário. Meu aniversário estava chegando, eu ia fazer 30 anos dentro de uma UTI, não era o meu plano de vida fazer 30 anos numa UTI, mas era onde eu estava. Então, pensei assim: “O que dá para fazer?”. Conversei com a equipe de enfermagem, e o pessoal falou que só dava para ter um bolo. Então, encomendei o bolo, apesar de não poder comer, porque eu estava com todas as restrições, mas também não tinha problema. Só sei que, no dia do meu aniversário de 30 anos, a primeira ligação que eu recebi foi do meu médico pra dizer: “Patrícia, aguenta firme, o coração chegou” (risos). Juro, foi o dia mais feliz da minha vida, a coisa mais linda que podia ter acontecido na minha vida (choro) foi aquela ligação para dizer: “Patrícia, você vai ser salva, o coração chegou, porque alguém doou, porque alguém disse sim para a doação de órgãos”. Então, toda a minha história passa por doação, eu tô viva porque minha mãe, minha família e todo mundo se doou. Eu tô viva porque milhões de profissionais da saúde se doaram e, no ápice da doação, eu tô viva porque alguém, uma família no Brasil disse “sim” e, quando eles disseram “sim”, um coração que não mais ia bater, que não mais ia ser utilizado pôde vir para alguém que queria tanto estar viva, que queria tanto poder fazer tudo, que queria tanto poder fazer milhões de coisas. Então, o coração chegou, eu estava eufórica! Enquanto eu fui para uma UTI com medo quando eu tinha 14 anos, o único lugar em que eu queria estar... Não, enquanto eu fui para um centro cirúrgico com medo antes, o único lugar que eu queria estar naquele dia era no centro cirúrgico, era onde eu queria estar. Eu fui completamente tranquila para a operação, era a coisa mais linda que podia acontecer na minha vida, era: “Pelo amor de Deus, corta esse peito, bota esse novo coração!”. Então, minha cirurgia foi um sucesso, com poucos dias, eu já estava de pé na UTI, tudo foi ao contrário. Enquanto me disseram: “Você vai ficar tantos dias”, e eu ficava mais, e nunca me liberaram antes nas outras operações, dessa vez, eles falaram: “Mínimo de 15 dias na UTI”. Eu fiquei cinco dias e no terceiro eu já estava de pé. Quando eu estava na fase da UTI, eu anotava uns papéis e botava na parede da UTI, que era coração de atleta, sucesso, recuperação recorde, dançar, viver, pular, correr, nadar, mil coisas. E as pessoas, vendo os papéis, elas começavam a escrever também, foi uma dinâmica muito bacana que aconteceu. E uma vez perguntaram assim: “Por que você está escrevendo isso?”. “Porque eu vou ter que trocar de coração, não vou? Então, quero fazer tudo que eu nunca pude fazer.” Uma hora você perguntou pra mim assim: “Você era a irmã mais velha”. Como mais velha, eu parecia uma velhinha. Exato, eu já fui uma velhinha. Quando esse coração chegou, ele me permitiu pela primeira vez na minha vida ser jovem. Então, com o primeiro mês de transplante, eu estava já na academia do hospital, fazendo exercícios com a reabilitação. Com um ano de transplante, eles me permitiram correr, com um ano e quatro meses... Eu lembro quando eu estava lá no hospital, eles não me avisaram, eles simplesmente chegaram no meu lado na esteira, eu estava caminhando, eles só falaram assim: “Tá pronta pra correr?”, e aumentaram, eu comecei a correr e ver o meu corpo fazendo aquilo, eu chorava. E eles: “Não chora, pelo amor de Deus”. E eu achava aquilo tão: “Uau, não acredito que agora eu consigo fazer isso!”. Minha primeira corrida de rua foi com um ano e quatro meses, foi um acontecimento! Todos os meus amigos foram junto e eles fizeram camiseta com o logo da campanha que eu criei, porque, enquanto eu estava na UTI, eu gravei um vídeo pedindo para as pessoas conversarem sobre o assunto, se conscientizarem sobre o ato de doarem os órgãos, que é muito pouco falado no Brasil. E, depois, eu criei, com um ano de transplante, eu criei o “Sou Doador”, que é uma campanha em prol da doação de órgãos. E eles fizeram as camisetas de surpresa nessa corrida, as camisetas do “Sou Doador”. Então, já era muito legal minha primeira corrida de rua, eu estava superfeliz, com a camiseta da corrida e eles: “Não, você não vai correr com essa camiseta”. “Como não?” E, de repente, eles tiraram um saco e mostraram a camiseta em prol da doação de órgãos. Então, eu corri. Se você vir as fotos, eu tô de braços abertos, eu corri pela vida, corri pela vida que eu nunca tinha tido. Essas pessoas corriam ao meu redor, tinha gente que corria de costas só pra ficar olhando a minha alegria. Foi um acontecimento. Com dois anos de transplante, eu fui liberada pra nadar, comecei a nadar. Alguns meses depois, eu fui liberada para andar de bicicleta e, com dois anos de transplante, eu decidi que era uma excelente ideia eu ir para as Olimpíadas dos Transplantados (risos). E eu fui para competir no triatlo, porque, afinal, era o que tinha mais opções de modalidades de uma vez só e eu queria poder fazer tudo agora. Então, eu fui para a Espanha representar o Brasil, fui escolhida como porta-bandeira, todas essas sensações. É como se eu tivesse renascido na própria vida, só que, dessa vez, eu tenho saúde. É a mesma vida, eu voltei e eu ainda sou Patrícia, esse ainda é meu pai, essa ainda é a minha mãe, está todo mundo aqui, mas agora eu tenho tudo! Agora eu tenho saúde, eu entrando, vendo aquela plateia enorme segurando a bandeira do Brasil, quem era eu pra pensar que iria segurar uma bandeira do Brasil? Tudo o que eu queria era simplesmente sair do hospital. E eu estava ali, segurando a bandeira do Brasil, ouvindo todo mundo gritar. Corri, nadei, pedalei, gente, foi um acontecimento na minha vida! É absolutamente inacreditável a vida que eu tô vivendo por causa de uma doação de órgãos, por causa de um novo coração. A partir disso, eu comecei a me engajar muito na causa da doação de órgãos, porque foi tão magnífico viver isso. E eu tinha plena noção de que eu podia não ter saído da fila de espera se alguém não tivesse doado. E, talvez, se uma doação não tivesse acontecido e eu tivesse que esperar mais um mês, mais dois meses, talvez eu não tivesse aguentado. Então, o número de doações impacta, sim, o número de vidas salvas, porque nem todo mundo aguenta esperar muito tempo. Às vezes, as pessoas estão muito mal e a gente pode salvar o pai de alguém, a gente pode salvar a mãe de alguém, a gente pode salvar os filhos de alguém, a gente pode salvar pessoas que são amadas por outras pessoas, porque é o que eu falo, quando me salvaram, não salvaram só a mim, salvaram a minha mãe, salvaram o meu pai, salvaram o meu irmão, salvaram os meus amigos, salvaram o meu namorado, salvaram todo mundo que me amava. Então, um doador salva até oito vidas, mas não salva só oito vidas, se você contar que umas cem pessoas estão em volta dessa outra pessoa, cem pessoas amam essa outra pessoa, um doador salva 800 vidas. O meu pai não perdeu a filha, a minha mãe não perdeu a filha, o meu irmão não perdeu a irmã, meu namorado não perdeu a namorada, o amor da vida dele (risos). Então, é muito magnífico! Eu comecei a me engajar para que outras pessoas pudessem sair da fila de espera, da fila de luta, pudessem sair e pudessem viver uma vida tão boa como a que eu estava vivendo. Foi uma promessa que eu fiz pra minha... Antes de sair do hospital, antes de ter alta, eu falei assim: “Hoje eu tô saindo, mas eu tenho consciência do porquê eu tô saindo e eu não vou me esquecer dos que continuaram no hospital, eles ainda precisam da gente”. E eu queria que, se eu não estivesse saindo, quem estivesse saindo tivesse lembrado que eu ainda estava ali e tivesse lutado por mim, porque quem está num fila de espera por um órgão não tem forças para lutar por si mesmo. Nós que precisamos lutar por essas pessoas, é a sociedade que precisa lutar por essas pessoas. Elas estão no ápice de não ter forças e elas querem viver e elas podem viver. Então, eu me engajei muito nessa causa, vou pra Brasília, faço palestras, vou em escolas, vou em empresas, vou em centrais de transplantes, vou em hospitais. Hoje, o time é muito maior, ele começou comigo e com o meu marido nesse projeto. Hoje, o time envolve vários transplantados, envolve vários profissionais de saúde, e a gente está desenvolvendo campanhas e material e lutando, porque a gente acredita que, quanto mais a gente puder mostrar esse lado da doação de órgãos, o quanto ela gera vida, o quanto ela gera alegria, só tem coisa boa. Você pode não doar, é um direito seu, é uma escolha, mas não vai acontecer nada, ninguém vai ser salvo, mas, se você doar, gente, você devolve tanta alegria a tanta gente que eu acho que a máxima que existe por detrás dessa escolha, dessa decisão, desse ato é você fazer pros outros o que você gostaria que fizessem pra você. Se fosse o seu pai precisando de um rim, você não gostaria que doassem? Se fosse o seu filho de cinco anos precisando de um coração, você não gostaria que doassem? Então, acho que a ideia é muito maior, que é o gesto de ser doador, que é simplesmente você poder avisar a sua família: “Eu sou um doador”. Todo mundo vai ter uma vida linda e vai viver tudo o que tem para viver e que coisa linda poder um dia fechar com chave de ouro falando assim: “Segue aí um presente para vocês, aproveitem a vida, vocês, que queriam tanto também”. Então, eu acho que... Nossa, a minha vida é pura doação, do começo ao fim. E não ao fim, do começo a reticências, porque eu tô nas reticências, eu tô escrevendo ela ainda.
P/1 – O que você sabe sobre o seu doador?
R – Então, no Brasil, todo o processo é sigiloso. Quem doa não sabe para quem vai e quem recebe não sabe de quem veio. As pessoas que recebem, elas têm direito a saber idade, sexo e o que aconteceu. Eu pedi para não saber, eu preferi não saber. Eu sei que a minha doação veio de uma pessoa jovem, mas não tenho mais informações. Eu acho que, acima de tudo, o que eu vejo muito, trabalhando na causa, na doação de órgãos, é que todo mundo que doa doa com muito amor. E todo mundo que recebe recebe com muita gratidão. E eu acho que a minha tentativa de ajudar outras pessoas passa também por, de alguma forma, eu devolver esse gesto. Então, quando eu tento ajudar as outras pessoas é uma forma de eu expressar e de eu viver a gratidão que eu tenho por ter recebido um gesto. Então, saber, a gente não tem como, o processo no Brasil é sigiloso, mas a gente pode passar pra frente o amor e o gesto que a gente recebeu. E eu acho que isso é muito forte em todo transplantado.
P/1 – E, com o coração que foi substituído, existe algum tipo de ritual? O que foi feito com ele, como seu?
R – Então, o meu coração guerreiro, eu pedi para que ele fosse doado para pesquisa, porque eu tinha uma condição que era rara, o miocárdio esponjoso mal compactado, que era um defeito genético. E eu não sei, que ele pudesse ajudar a entender melhor o assunto e ajudar outras crianças que podem nascer também com essa condição. Pra onde foi, exatamente, eu não sei, mas foi um pedido meu, que ele fosse para pesquisa.
P/1 – Mas você não chegou a ter nenhum tipo de contato com...
R – Não, eu também nunca gostei muito dessas coisas de ver sangue. Por incrível que pareça, apesar da minha carreira em hospital, nunca amei muito isso. Então, quando eu estava pra fazer o transplante, as pessoas me mandavam vídeo de transplante. Eu nem abria, pelo amor de Deus, quem quer ver isso? Eu não quero ver isso, ver tirar o coração, ver botar o coração, não, gente, eu só preciso de uma coisa, sentir o coração no meu peito. Não preciso ver como ele entrou, não preciso ver como saiu o outro, não faço muita questão de ver essas coisas muito aí da área médica.
P/1 – Eu queria saber sobre as sensações de estar nessa lista que se chama de lista de espera. Você sabe a posição em que você está? Como isso funciona?
R – Então, quando você entra na fila, você é informado da posição em que você está. As filas se dividem por tipo sanguíneo, então, pra haver essa compatibilidade entre o doador e receptor, são levados em consideração vários quesitos: tipo sanguíneo. Se eu sou A, eu tenho que receber o coração de uma pessoa A, se eu sou A positivo, eu tenho que receber de A positivo, é mais ou menos assim. Um outro critério são os anticorpos, então, eu não posso receber o coração de uma pessoa que teve uma doença que eu não tive. Se os dois tiveram a doença, tudo bem, mas, se não, eu vou pegar a doença, vai trazer pra mim. E altura e peso, porque um coração muito pequenininho não ia dar conta de bombear para o meu corpo todo. Então, as filas se dividem por tipo sanguíneo. Quando você entra na sua fila, você recebe o seu número na fila de espera. Eu não lembro exatamente qual era o meu, eu tentava até não ver muito, porque é muito angustiante. Porque: “Sua posição é tal”. Aí, passa na outra semana, a sua posição, às vezes, aumentou, aí você: “Como assim?”. Porque, se entra alguém com muita urgência, passa na sua frente. Então, por exemplo, um critério de urgência é uma pessoa que seja um retransplante, acabou de transplantar, não deu certo, a pessoa tem que botar um outro coração porque aquele coração não está dando certo. Ou a pessoa está com balão aórtico, no caso do coração. Então, critérios de urgência são critérios assim: a pessoa tem 24 horas, a pessoa tem 48 horas no máximo. É muito angustiante, porque, quando você tem um número na fila de espera, você espera que ele ande e você anda pra trás. Acontece isso, faz parte. E os médicos têm toda sabedoria de entender quem está em que nível. No meu ápice de estar mal, eu acabei entrando na urgência também, porque o meu tempo estava se esgotando. Então, essa fase é bem complicada, porque você tem uma informação, mas não tem muita informação. Você não sabe exatamente o que está acontecendo, você não sabe o que aconteceu, porque andou pra trás. Hoje, por trabalhar com isso, por entender a doação de órgãos, eu sei que é isso. Mas, na época, eu não sabia, eu só via um número diminuindo ou um número aumentando, então, é complicado pra quem está fila. E, às vezes, não é fácil também obter as informações. Eu acho que todo o processo pode ser repensado, pode ser melhorado a partir da perspectiva do usuário, de quem está na fila esperando.
P/1 – E foi a primeira ligação do dia que você...
R – Foi, no meu aniversário.
P/1 – E como você passou pra frente essa notícia?
R – Então, quando vieram me falar... Quando eu liguei, todo mundo já sabia, na verdade. Eu estava na UTI, meu médico me ligou, porque não ia conseguir chegar a tempo para falar pessoalmente. Nisso, minha família já estava vindo, só que eles estavam sabendo há várias horas, porque eu só fui avisada quando já estava bem encaminhado, quando tinha dado certo. Eles ligaram pra minha família, avisaram que tinha um potencial doador, que parecia que era um bom coração e tudo já estava sendo conversado com eles. Quando eu contei, eles, na verdade, já sabiam. Então, foi um dia de muita euforia, todo mundo foi pra UTI, a gente bateu palmas, cantou parabéns na UTI. Foi inesquecível. Eu sei que eu vou viver muitos dias maravilhosos e felizes na minha vida, mas esse foi o dia mais feliz da minha vida. Eu tenho um aniversário que é duplo, é de nascimento e de renascimento. Sou a Fênix (risos).
P/1 – E, depois disso, como é que ficou essa rotina médica? Ela existia ainda?
R – Sim, existe. Então, quando você transplanta, os primeiros seis meses te exigem cuidados maiores. Hoje, minha vida é completamente normal, tudo que eu tenho que fazer é tomar dois remédios por dia. E, aí, tem gente que me fala assim: “Nossa, mas você vai ter que tomar esses remédios para o resto da vida?”. “Pelo amor de Deus, eu tomava 20 medicamentos para ficar mal. Eu tomo dois para ficar bem, para estar ótima, maravilhosa, claro que eu tomo! Eu amo tomar imunossupressor, eu amo imunossupressor.” Agora, hoje, eu só preciso fazer isso. Nos primeiros seis meses não, tem maiores cuidados. Então, eu tinha que usar máscara, porque os imunossupressores ainda estavam altos. Por que eu tomo imunossupressor? Eu preciso reduzir a imunidade do meu corpo para aceitação desse coração ser maior, porque ele traz uma carga genética de um doador. Então, a ideia é toda ligada à manutenção e à aceitação desse novo órgão. No começo, estão bem altos esses remédios, eles são em doses bem altas. Eu usava máscara, tinha que evitar o contato com muitas pessoas, os meus alimentos tinham que ser muito bem higienizados, seguir um protocolo de segurança alimentar, não podia ir em lugares púbicos nos primeiros três meses, metrô, cinema, que tem um ar muito fechado, todo mundo ali, shows. Gente, eu andava sem dificuldade, eu respirava sem dificuldade, eu lavava uma louça, eu tinha condições. Então, isso pra mim já era um parque de diversões, já era maravilhoso. Tudo foi muito fácil pra mim. Eu só pude ir à praia depois de três meses, caraca! Quando eu pisei na areia, você não imagina, porque eu me imaginei tantas vezes ali quando eu estava na UTI, eu sempre acreditei que ia dar certo. Eu não sabia como, mas eu sempre acreditei que eu ia sobreviver, eu tinha que sobreviver, eu queria muito viver. Então, tudo foi, pra mim, fácil, mas tem bastante cuidados a serem tomados nos primeiros seis meses. A partir daí, é alegria de viver. Aí, é tomar o remédio e seguir alguns cuidados que todo mundo deveria seguir, então, eu higienizo muito as minhas mãos. Se alguém está muito resfriado, eu tento não ficar muito próximo. Alimento de rua, eu tomo muito cuidado, evito, mas todo mundo deveria fazer isso. Então, é muito tranquilo.
P/1 – Eu nem sei se a minha próxima pergunta faz sentido, então, você pode falar que não tem nada a ver mesmo, mas por tentar entender como isso funciona.
R – Tá.
P/1 – Principalmente na sua cabeça. Como é que é essa relação de você saber que é um coração que veio de outra pessoa? Como que é esse processo? É um processo, não é um processo?
R – Eu acho que, por exemplo, no Brasil, existe muito misticismo ainda sobre esse assunto, e muitos tabus que existem na doação de órgãos estão ligados a uma falta de conhecimento sobre isso, a um místico que tem sobre isso, principalmente, com o coração. Porque o coração tem uma simbologia forte, mas o coração é só uma bomba que bombeia sangue. Então, eu recebo muitas perguntas que são meio absurdas, às vezes.
P/1 – Desculpa.
R – Imagina, mas, então, eu sei que o coração veio através de uma doação, veio de um doador maravilhoso, mas eu enxergo ele como todo transplantado deve enxergar: esse é o meu novo coração, ele está no meu corpo, o meu corpo recebeu, é como se eu tivesse adotado esse novo coração. É como se fosse um novo filho, então, é o meu novo coração. Ele veio como presente de um doador maravilhoso e quem dera eu, um dia, possa ser aquela a presentear outras pessoas, a dar para elas um novo amiguinho, algo que elas continuem a vida delas. Então, essa relação é muito tranquila pra mim, porque eu vejo como um novo coração, meu mesmo. E, como eu te falei, todo mundo que doa doa com muito amor mesmo, então, é um gesto que vem carregado de muito amor. As pessoas doam para que você possa seguir a sua vida, para que você possa ser feliz, para que você possa ter uma chance. Eu acho que o único compromisso que o transplantado tem que ter com esse novo órgão é cuidar dele, é zelar por ele e ser muito feliz. E, se possível, que é o que eu vejo que a maioria faz mesmo, ainda espalhar umas sementinhas de amor aí pelo caminho, umas sementes do bem, porque ser ajudado nesse nível, nesse âmbito, é muito impactante. Então, a maioria zela muito mesmo pelo novo órgão e, enfim, é uma nova forma de ver a vida.
P/1 – E, só para seguir na história, tem uma pergunta que eu queria entender, na verdade, duas. A primeira: seu namorado, como que você o conheceu?
R – No vestibular.
P/1 – Só um minutinho que eu vou fazer outra pergunta antes.
R – Tá bom.
P/1 – Por que Economia? Como que foi a escolha por Economia?
R – Olha, não teve grande emoção. O que aconteceu foi que eu fiz um teste vocacional e deu Economia ou Direito e, aí, eu gosto de matemática, achei que iria sentir falta de não ter os números no Direito e fui para Economia. E, no final, eu gostei muito do curso. Mas não teve grandes motivos.
P/1 – Mas como que foi esse período de se preparar para prestar as provas?
R – Eu conheci ele no cursinho, eu falei errado, desculpa. É que você falou vestibular, eu pensei na faculdade... Não, eu conheci no cursinho, porque ele não prestou Economia, ele fez tecnologia, Ciências da Computação. Então, nessa fase da Economia ele não estava. Só porque agora que eu entendi o...
P/1 – Só para entender a narrativa.
R – Sim, a cronologia.
P/1 – Exato!
R – Então, eu li muito na minha vida. Graças a Deus, eu era uma boa aluna e os melhores alunos das escolas ganhavam cursinho de graça. Então, eu ganhei um cursinho no meu terceiro colegial pra fazer junto com o terceiro colegial, e ele também ganhou. A gente se conheceu aí, nessa fase de prestar. Ele sempre soube tudo o que eu passei na minha vida, na verdade, foi meu amigo durante muitos e muitos anos. Aí, uma hora eu peguei o meu amigo (risos).
P/1 – Qual o nome dele?
R – Sidney.
P/1 – Mas teve um momento em que você se deu conta de que tinha um sentimento rolando ali?
R – Sim. E, aí, tiveram idas e vindas, até que uma hora engatamos. E ele foi maravilhoso, eu não tenho o que falar! Ele estava todos os dias ao meu lado na UTI. Ele contrabandeava pão de queijo pra mim, que eu não podia comer (risos). A gente vive dessas coisas na UTI. E ele foi incrível! Não tenho o que falar. Hoje, a gente colhe tudo o que nós lutamos juntos, essa vida que a gente lutou para ter. Então, não foi fácil esse período, mas a espera vale cada segundo.
P/1 – O jantar do Dia dos Namorados, que vocês tiveram na UTI, qual foi a janta?
R – Eu não sei, a minha eu não lembro. A dele eu lembro que eu pedi se podia ser carne porque ele não gosta muito de frango, essas coisas, aí eu lembro que o pessoal deu risada que eu pedi isso. Eu falei: “Pelo amor de Deus, põe qualquer coisa no prato, mas põe carne, por favor, ele não come...”. Porque eu queria um Dia dos Namorados, imagina, eu queria que ele chegasse e gostasse. E deu tudo certo no final, ele mal acreditou, porque ele realmente achou que ia me ver na UTI, coitada, acabada. E não, eu estava lá esperando ele pra gente ainda viver o nosso momento. Então, eu acho que essas minhas vontades ainda de viver, mesmo ali dentro, faziam com que o nosso relacionamento ainda conseguisse ser nutrido. Isso também dava força pra ele lutar, porque eu não estava abandonada, meio abandonada, eu não estava jogada, não, eu estava no game: “Eu tô aqui pra sobreviver, eu vou lutar e eu vou viver”. Então, a gente lutou muito juntos.
P/1 – E, depois do transplante, o que mudou na relação, pensando nessa coisa natural mesmo, de ir morar junto? Como que essas decisões foram tomando corpo?
R – A gente tentou morar juntos antes do transplante, quando eu tinha ainda a insuficiência cardíaca, e foi muito frustrante, porque, depois de um mês morando juntos, eu piorei e, aí, eu já não conseguia mais me cuidar sozinha e a gente precisou ir para a casa dos meus pais. Então, antes, eu morava com os meus pais, aí eu tentei morar sozinha com ele, eu não aguentei, eu levei ele junto (risos). E a gente foi morar na casa dos meus pais, no meu antigo quarto, e veio toda história do transplante, a fila de espera. E a vida vai se impondo, a gente vai enfrentando os desafios que vão vindo. Foram anos intensos.
P/1 – E, hoje, vocês moram onde?
R – A gente mora no Ipiranga também, continua morando. Não tem o que falar, a gente mora no Ipiranga. A gente tem uma vida normal, que é absolutamente maravilhosa, que é o que a gente queria ter, que todo mundo tem. Então, a gente mora juntos, a gente tem uma casa, a gente sai e encontra nossos amigos, a gente está com a nossa família, pacote completo.
P/1 – E como que ele te acompanha nessas atividades do projeto que se chama Sou Doador?
R – Então, ele fundou comigo o Sou Doador, até porque é assim: eu tive a ideia e ele era da Ciências da Computação, então, ele realmente montou o site, montou o projeto. O projeto passa por uma ideia de compartilhamento de informação e de histórias. Até tem um pouco a ver assim... Porque a gente acredita que, dentro da doação de órgãos, contar a história desses transplantados ajuda a dar vida. Pra causa da doação, porque, senão, é assim: “Doe órgãos, doe vida”. O que é vida? Não é vida, é a vida da Patrícia, da Marcela, do Antônio, ela tem sonho... Ganha corpo. Então, a gente conta a história dos transplantados, a gente compartilha informações sobre todo o processo, que eu acho que era uma coisa que faltava muito, eu acho que sofri mais do que eu precisava na fila de espera, porque eu não entendia o que era ser uma transplantada depois. Eu não fazia ideia que eu ia ter essa qualidade de vida, eu descobri vivendo. E quanta força a gente não dá para as pessoas que estão na fila de espera quando a gente mostra pra elas uma referência, do tipo: “Luta, porque olha como é bom, olha como essa pessoa está bem”. Hoje, a gente faz as campanhas, como eu te contei, junto a diversas instituições, e tudo começou com nós dois. A gente no hospital mesmo conversou que, se a gente saísse dali, mas não era um “se” a gente, porque a gente “vai” sair dali. Mas, quando a gente saísse dai, a gente tentar fazer algo pra ajudar.
P/1 – E, na prática, o que é feito nesse projeto?
R – Ele começou como um blog em que as histórias eram contadas. Hoje, o projeto é um pouco maior, os profissionais da saúde também entraram, então, a gente compartilha informações sobre a fila de espera, sobre a insuficiência cardíaca, renal, pulmonar, ou seja, pessoas que estão nessa fase, a gente compartilha informações sobre o pós-transplante, os cuidados. Então, temos fisioterapeutas, psicólogos e outros profissionais para darem informações também sobre todo esse processo. A gente traz um olhar que também é bastante inovador, que é de quem trabalha no processo de doação de órgãos e transplante, porque, às vezes, eles não são lembrados, ou que trabalham nos hospitais enquanto a gente está ali lutando, porque eles lutam tanto com a gente e como é bom poder mostrar o trabalho deles. Quando, por exemplo, a gente posta, conta a história de uma enfermeira que aborda as famílias, então, é mostrar todos os agentes de todo esse processo maravilhoso e, com isso, eu acho que aos poucos a gente vai construindo uma cultura doadora. Então, o projeto começou virtualmente. Hoje, ele tem as suas facetas presenciais em eventos, em palestras, e a gente tem uma coisa que surgiu de uma maneira muito natural, que foi a camiseta. Como surgiu a camiseta do projeto? Foi na minha primeira corrida de rua, quando os meus amigos fizeram. Quando eles fizeram, as pessoas viram as fotos, todo mundo queria. A Paolla Oliveira, inclusive, já postou com a nossa camiseta, umas coisas assim, muito legais, que a gente não imaginava, não esperava. Então, a gente começou. E a camiseta é uma coisa tão simples, mas que empodera as pessoas a levarem a mensagem pelo Brasil. Você está lá correndo, se exercitando, está na academia, foi comprar pão, está lá escrito: “Sou doador, seja você também, avise a sua família”. Não precisa falar mais nada, sem querer, você vai acabar levando um pouquinho a mensagem. Então, o projeto é um projeto em construção, a gente tem milhões de ideias, vai bombando. Às vezes, a gente tem mais ideias do que mão de obra mesmo. Então, todo mundo que está no projeto são pessoas muito engajadas, muito dedicadas e muito gratas ou por estarem vivas, que são as transplantadas, ou por fazerem parte desse processo, porque é muito gratificante para quem trabalha nisso ver a pessoa que queria tanto viver, é um milagre, você ver a pessoa com a saúde que ela sonhou. Então, o projeto passa um pouco, principalmente, pelo empoderamento que vem através da informação. Porque a gente desmistifica tabus e permite que as pessoas tenham a completa noção do que é ser um doador, como é lindo ser um doador. E a minha mãe, quando ela faleceu, nós autorizamos a doação de órgãos dela. Ela só pôde doar as córneas, no caso, e é um orgulho pra nossa família. Nos honra poder falar que nós somos uma família doadora, que nós doamos e alguém enxerga por causa dela, com seus novos olhinhos.
P/1 – Em que momento... Se a gente puder falar sobre o falecimento da sua mãe, em que momento a família conversou e decidiu?
R – Nós já éramos uma família doadora mesmo antes do transplante. Já era um assunto que era do nosso conhecimento. E é engraçado, porque, por exemplo, na nossa família: “Como assim? Por que não doar? Vai enterrar, vai cremar. Alguém pode viver”. Então, não é banal a palavra, mas é algo bastante normal. Pra nós, doar os órgãos era algo bastante normal. Então, todos nós já sabíamos. Quando eu passei por tudo, ganhou outra dimensão. Todo mundo já sabia que a minha mãe era doadora, meu pai, meu irmão, todo mundo é, a família toda é. Uma vez, o meu avô de 86 anos me telefonou: “Pati, eu queria saber, eu posso ser um doador?”. “Vô, que coisa linda. Claro que você pode ser um doador, vô. Doador é o gesto de ser doador. Quem vai decidir um dia se pode ou não ser doado são os médicos, eles que vão decidir, ser doador é o gesto”. “E como eu faço?” “Vô, você tem que avisar a sua família.” ”Vou ligar para o seu tio Luís Fernando, muito obrigado.” E ligou, que, aí, na cabeça dele, ele tinha um filho homem e quatro filhas mulheres, na cabeça dele, avisar a família era avisar o filho mais velho, filho homem. E ligou para o meu tio e falou: “Luís Fernando, gostaria de te avisar que eu sou doador de órgãos”. Aí, gente, é muito amor, né? Então, eu acho que é isso. Cada história de vida vai espalhando um pouco a mensagem. Eu já esqueci o que você tinha perguntado.
P/1 – Sua mãe.
R – Ah, o que era mesmo?
P/1 – E como que aconteceu que a sua mãe faleceu?
R – Minha mãe lutou 13 anos contra um câncer. Às vezes, eu estava bem, e ela estava mal, às vezes, eu estava mal, e ela estava bem. A gente se revezou um pouco a uma certa altura da vida. Todo mundo fala que, quando ela me viu bem, ela descansou. Então, ela me viu ter fome, depois de uma vida inteira em que ela lutou pra inventar coisas pra eu comer. Ela me viu correr. Depois de uma vida toda, de tudo que a gente passou, ela me viu bem, ela cumpriu talvez o maior desejo dela, que era me ver bem. Claro que eu gostaria que ela estivesse aqui ainda, mas eu acho que ela me amou tanto, me amou tanto que eu não sinto tanto a falta dela, a presença dela está comigo. Ela me amou por todos os outros anos que eu ainda vou viver. Ela vive em cada gesto meu, em cada ato meu. Então, é isso.
P/1 – Apresenta pra gente as suas medalhas?
R – Apresento. Essa daqui foi da minha primeira corrida de rua, que foi a corrida da Rolling Stones. Foi muito legal, até me anunciaram na chegada: “Está chegando a Patrícia, transplantada de coração, vem Patrícia, vem Patrícia”. Foi sensacional. Aí, as de competição mesmo, tem essa daqui que é das Olimpíadas dos Transplantados.
P/1 – Se quiser ir falando onde elas aconteceram.
R – Esta aqui foi na Espanha. Esta aqui foi dos Jogos Americanos para Transplantados. Esta foi a minha primeira medalha, medalha, que eu ganhei. Nas Olimpíadas, eu não tenho vergonha de dizer, eu fui a última a chegar, mas não tem problema, porque antes eu nem podia fazer nada, então, eu fui a última a chegar. Gente, eu comemorei tanto, quando eu bati a mão na piscina, que foi a última etapa – no triatlo dos transplantados é um pouco diferente, então, primeiro, a gente corre, depois a gente pedala, depois a gente nada, em dias separados, cada coisa em um dia. Então, quando eu bati a mão na piscina, eu olhei para: “Uhu!”, tem foto disso. Nas Olimpíadas, eu fui a última a chegar, mas, quando eu fui para os Jogos Americanos Transplantados em Salt Lake City, nos Estados Unidos – gente, olha o que eu tô falando, fui para os jogos em Salt Lake City, eu tô me sentindo uma atleta –, eu ganhei medalha de prata no ciclismo. Quando eu ganhei, eu não acreditei. Quando eu perguntei... Minha prova foi linda, foi maravilhosa, eu amei. Aí, eu fui ver o meu tempo, quando eu olhei lá: dois. Falei: “O que é dois?”, eu não associei. Aí, eu fui perguntar, eu falei: “O que é dois? Dois ganha alguma coisa?”. Eles olharam pra mim, tipo assim: “Sua idiota”. E eu ganhei medalha de prata, foi a primeira medalha que eu ganhei. Nem precisava ganhar, só fazer já estava ótimo. Podia ser a última, eu sou muito boa em ser a última. Aqui, eu fui, no final, campeã americana de triatlo, nessa competição. Aqui, são outras medalhas dessa competição também. Aqui eu fui para os Jogos Latino-Americanos dos Transplantados, na Argentina, fui campeã latino-americana de natação. Esta daqui foi no triatlo, eu fui prata. Esta daqui é muito legal, foi a minha primeira prova de mar, uma das coisas que eu mais gosto hoje em dia, nadar no mar. Pra mim, fiquei tanto tempo presa dentro de um hospital, nadar no mar, você não tem noção, você está respirando, você olha o morro, você está na água, é o ápice, porque é como se você tivesse 360 graus, sei lá, 3D, todo envolto em muita vida, muita natureza, muito maravilhoso.
P/1 – Onde foi?
R – Foi em Ilhabela. Esta aqui. Aí, outras medalhas dessa competição também. E aqui é corrida de rua, o resto. Mas, das competições, são estas mesmo. E quem imaginaria que eu ia ter medalha pra mostrar nessa vida? Inacreditável!
P/1 – Demais! Muito legal conhecer as suas medalhas!
R – Não é incrível?
P/1 – Incrível.
R – Não precisava ganhar, estava tão feliz em fazer. Então, essas fotos que eu apaguei eu preciso mandar pra vocês. Uma delas é esta que eles conseguiram pegar o momento exato em que eu levanto a mão na piscina. Do tipo, eu bati a mão na olimpíada, eu olhei pra plateia e eu era a última, mas dane-se, eu fiz assim: “Uhu!”. As pessoas olharam, levantaram e bateram palmas. Eu fui a última, mas a plateia levantou e bateu palma, porque eu acho que eles viram que eu estava tão feliz, que foi tão significativo pra mim ser a última, que eles mesmo vibraram. Então, eu não tenho o que falar, é só gratidão e viver a vida o máximo que eu puder.
P/1 – E como você se organiza pra participar desses campeonatos?
R – Agora eu tenho um problema que eu faço mais coisas do que também eu dou conta, porque, às vezes, parece que eu tô querendo cobrir o atraso. Neste ano vai ter olimpíadas também, vai ser na Inglaterra, em agosto, então, eu tô treinando pra isso e pra outras provas, fazer prova de mar, que é muito gostoso. Eu vou escolhendo as provas e vou me organizando. Hoje, eu trabalho, eu tenho a minha vida, eu cuido da minha casa, eu faço toda a organização de doação de órgão no Sou Doador, e vou para as competições, e vou fazendo muitas outras coisas ainda, olha quantas coisas eu ainda... Olha, eu não sei tocar piano, eu não sei tocar violão, eu nunca fiz arco e flecha, eu nunca escalei, eu não aprendi a surfar. Eu tenho muita coisa pra fazer ainda. Então, é isso, a vida pra mim é um... Tem tantas palavras pra mim que é... É um presente. Então, eu tô aproveitando.
P/1 – Eu tenho mais umas perguntas, mas antes...
P/2 – Eu queria entender um pouco essa relação sua com o esporte, se tem essa coisa de auto-superação também, como isso funciona? Como isso começou?
R –
Eu sempre quis porque eu nunca pude fazer. E como eu vou explicar isso? Pra quem não sentia essa energia no corpo, é muito mágico sentir isso. Uma vez eu disse isso para uma pessoa: “Eu tô na Disney da vida”, porque é assim: você dorme cansado, quando você acorda, você não está mais cansado, o negócio acontece. E eu passei minha vida inteira cansada, eu descansava e continuava cansada, eu não sabia o que era não estar cansada. Agora você dorme e, de repente, eu tô descansada de novo, isso é mágico. Sentir isso é muito incrível, então, eu quero movimentar o meu corpo, eu quero correr, quero andar, quero fazer tudo. Um dia desses, me chamaram pra jogar vôlei de praia no Piauí. O que eu falei? “Óbvio, claro, eu vou.” Eu tive um mês para aprender, chamei lá o meu professor, falei: “Por favor, pelo amor de Deus”. Liguei até no meu antigo colégio: “Vocês podem ceder a quadra?”. Imagina, pedi para ele me ensinar, ele me ensinou o máximo que ele pôde, o meu objetivo era apenas fazer com que a bola passasse a rede. Não ligava de perder, aliás, coitada da pessoa que jogou comigo. Mas eu não tenho como explicar quando eu fui numa loja e falei: “Eu queria uma bola de vôlei, a minha bola de vôlei”. Eu não ia mais devolver para os outros jogarem, era a minha bola de vôlei. E eu tô com a bola lá em casa até hoje e eu aprendi, eu joguei, minhas bolas todas passaram na rede. Realmente, eu perdi o jogo, não tem problema, mas foi magnífico. Então, vou fazer todos os outros esportes, fique certa disso, chegarei em todos os outros.
P/1 – E, quando você começa a fazer qualquer esporte, você para pra pensar e para pra sentir pulsando... Como é esse momento?
R – Olha, como não foi pouco tempo, não fiquei mal um ano, foram 30 anos, então, muitos momentos da minha vida, quase todo dia, algo me remete ao passado. Então, às vezes, eu tô aqui bebendo um copo d’água, eu: “Nossa, eu posso beber um copo d’água”. Porque antes eu não podia beber um copo d’água, eu tomava shots de água, eram dois golinhos, eu tomava água em um copinho de pinga. Lá em casa, os copinhos de pinga eram meus, não mais porque o meu avô me levava pra
mamar pinga, não, mas porque era ali que eu tomava água, pra saber que eu estava tomando a dose certa. O meu sonho era tomar um copo d’água, então, às vezes, eu pegava assim: “Nossa!”. Então, quando eu tô correndo, quando eu tô fazendo esportes, sempre me remete. A primeira medalha que eu ganhei, que foi essa medalha de prata em Salt Lake City, o que eu combinei comigo nessa prova? Eram 20 quilômetros de bicicleta, e eu combinei que, a cada quilometro, eu ia lembrar de uma das coisas que eu tinha passado na minha vida. Eu voei, porque a cada quilometro eu pensava em alguém falando: “A menina não vai sobreviver”. E eu pedalava, pedalava. Aí, eu lembrava da médica que falou: “Você não sai mais daqui, mocinha”. Ela fez assim, aí, eu: “Você não sai mais daqui, mocinha?”. Pedalava, pedalava, pedalava. Eu fui pedalando e lembrando das coisas que eu tinha passado, das coisas que tinham me falado, fui lembrando de tudo, eu voei na prova. Eu voei na prova, nem eu acreditava, eu olhava a minha velocidade e falava: “Caraca!”. E foi incrível! Então, tudo acaba me remetendo um pouco. Às vezes, nos momentos que eu não espero. Muitas vezes, eu tô conversando com os amigos, de repente, bate um vento, simples assim, e eu: “Nossa!”. Aí, eu já não tô mais ali, eu já tô um pouco fora, eu olho tudo aquilo e falo: “Gente, eu voltei a fazer parte, eu tô aqui onde bate o vento”. Ou no banho, porque você não imagina como é mágico, as gotinhas descendo no seu corpo, que a gravidade leva elas, quando você toma banho numa cama de UTI não há gravidade, você está deitada. Então, você fica deitado, sentindo aquela água correr, só quem sabe o que é um banho deitado entende o que é um banho em pé! Então, todos os momentos da minha vida podem ser passiveis de me remeter a algo, algo que eu passei, eu dou muito valor. É o que eu falei, um dia nublado, um dia nublado é lindo! Puro algodão doce no céu. Tipo, tudo é lindo! Tudo me remete um pouco.
P/1 – Você conversa com ele?
R – Com o meu coração? Super! Eu já conversava com o outro. Não, o meu coração, eu conversava muito com ele, meu coração megaguerreiro, quantas vezes eu pedi pra ele aguentar? Conversava com ele, conversava com todos os meus órgãos, com todas as minha células, o que eu fiz pra sobreviver (risos), tudo que você puder imaginar eu fazia ou eu tentava. Então, conversava muito com ele. Quando esse novo coração chegou, eu dizia pra ele o seguinte: “É bom você gostar de mim porque eu já te amo e eu não vou te abandonar nunca mais”. Então, ele já chegou num ambiente de muito amor. E eu acho que ele está bem feliz comigo e eu converso com ele.
P/1 – E se o outro era o coração guerreiro, esse é o coração...?
R – De atleta. Que eu transformei num coração de atleta. Quando pela primeira vez eu tive um coração saudável, eu pude realizar todos os meus sonhos de fazer tudo que eu nunca pude, e um dos papéis na UTI era “coração de atleta”, porque eu queria poder fazer exercício. E eu pude realizar o meu sonho e transformar esse coração que eu recebi num coração de atleta.
P/2 – Eu queria saber a sensação que você teve quando você acordou da cirurgia, de ter um órgão novo, ali, que era tão importante pra você?
R – Dá sensação, por exemplo, a gente não sente nada diferente, o que eu senti? Eu me senti bem, pela primeira vez, eu me senti bem, então, eu me sentia saudável, você não tem uma sensação física de algo diferente, você só sente que está tudo funcionando, como se tivessem colocado uma nova engrenagem no lugar e, de repente, agora, tudo começou a fazer sentido. Então, eu passei a vida toda tomando diurético para o rim funcionar, de repente, eu não tomava mais diurético e sentia a vontade de fazer xixi. Porque, com o novo coração, o rim voltou: “Agora eu vou fazer o meu trabalho”, porque chegava sangue até ele. Então, o que eu senti foi que eu me senti bem, eu senti fome. Eu não sentia fome, então, é uma sensação de se sentir bem, que acho que só dá pra explicar pra quem se sentiu mal, porque talvez é o que todo mundo sente normalmente. Mas eu não conhecia. Não é que eu era saudável, eu fiquei doente e depois fiquei bem, eu nunca conheci porque eu nasci com problema, então, quando eu senti isso, eu: “Eu tô na Disney da vida, tudo funciona, eu tô bem”. É inacreditável pra mim mesmo. Então, eu acho que eu me senti bem.
P/1 – Posso ir para as finais?
P/2 – Sim.
P/1 – Antes, não sei se tem mais alguma coisa que ficou que a gente não te estimulou a contar.
R – Não lembro, não, acho que não.
P/1 – Então, eu vou fazer as últimas perguntas. A primeira: eu queria saber como você se sentiu hoje, contando a sua história pra gente.
R – Ah, eu adorei contar a minha história pra vocês. Eu achei muito legal o olhar que vocês trouxeram, muito mais pra pessoa do que só para o procedimento, do que só para o acontecimento. Espero, de verdade, que a minha história ajude a mudar o olhar que as pessoas têm sobre a doação de órgãos, então, eu adorei contar e eu espero que as pessoas gostem de ouvir.
P/1 – A última pergunta, então: quais são os seus sonhos hoje?
R – Nossa! Você sabe que, quando me perguntam isso, é difícil de responder porque, como a vida toda eu nunca me imaginei muito lá na frente, por tudo que eu passei, não tinha essa coisa “como eu sonho estar com 40 anos de idade, com 50 anos de idade”. Não tinha isso muito longe, então, eu aprendi a viver muito no presente. O meu sonho eu já vivo, é estar com saúde, é estar bem, é o dia de hoje. O resto tudo é lucro, é construção. Se eu disser pra você qual é o meu sonho, eu não tô acostumada a olhar tão longe, na frente. Não sei. Vai ser construído. Eu já tô no sonho, eu já cheguei no sonho. Meus planos? Continuar trabalhando pela doação de órgãos, viver minha vida, cuidar da minha casa, estar com o meu marido, ir para as olimpíadas competir. Mas o sonho já é agora. Já cheguei nele.
P/1 – Patrícia, então, eu quero te agradecer por esse presente que você deu pra gente hoje. Foi lindo te ouvir. Foi lindo, lindo!
R – Obrigada. Eu que agradeço.
P/1 – Muito obrigada. Obrigada mesmo.
R – E espero que todo mundo possa passar essa mensagem pra frente sobre a doação de órgãos, sobre o papel disso, porque a gente vai um sensibilizando o outro. E é isso.
P/1 – Obrigada.
R – Eu que agradeço.Recolher