Já me preparei para contar esta história em algum culto inúmeras vezes, mas até hoje não tive coragem, talvez por achar ela um pouco comprida, ou meio chata. Então como sei que você tem paciência, vou te contar. Guardei esta história durante muitos anos, nunca contei à ninguém, mas agora ...Continuar leitura
Já me preparei para contar esta história em algum culto inúmeras vezes, mas até hoje não tive coragem, talvez por achar ela um pouco comprida, ou meio chata. Então como sei que você tem paciência, vou te contar. Guardei esta história durante muitos anos, nunca contei à ninguém, mas agora acho que devo contar.
É a historia de um chefe escoteiro e seu escoteirinho e que fala principalmente sobre duas coisas: de fazer o bem sem precisar ser reconhecido, sem precisar fazer propaganda disso, sem a necessidade que os outros saibam, e fala também que o bem se pratica com pequenos gestos, pequenos atos, que não precisa ser obra grande.
Essa história começa 15 ou 20 dias antes de um grande acampamento que iria ocorrer. Tratava-se do II Camporee Sul que se realizaria na cidade de Esteio – Rio Grande do Sul. Era o sonho de todos os escoteiros da época, “participar deste acampamento”, pois esperava-se a participação de escoteiros do Brasil inteiro, algo em torno de 4 mil participantes.
E não era diferente com o escoteirinho, que tinha então 12 anos e que já participava ativamente na preparação e na empolgação. Mas um fato ocorreria que mudaria por completo sua história. Foi quando o pai do escoteirinho abandonou sua casa, deixou esposa e quatro filhos e, sem notícias, sumiu. Provavelmente sua mãe soubesse o que estava para acontecer, mas ele não, foi pego de surpresa. Sua tristeza só aumentava quando viu sua mãe ser abandonada pelo seu pai e rejeitada pela família dele, que negou-se a ajudar. Foram tempos difíceis, onde tiveram que vender garrafas que tinham em casa para comprar pão e outras necessidades.
Mas voltando a história do escoteirinho,
triste já estava e mais triste ficou quando viu que não poderia participar do acampamento por falta de dinheiro para pagar a inscrição. Seriam apenas 80 cruzeiros, uma "fortuna" que ele não tinha. Sua mãe bem que tentou arrumar o dinheiro mas não conseguiu, afinal ela tinha mais 3 filhos e não poderia se dar ao luxo de gastar tanto com apenas um dos filhos.
Triste estava e conformado ficou.
Os dias passaram e então seu pai, de uma maneira que o escoteirinho não ficou sabendo como, enviou-lhe a quantia de 100 cruzeiros. Os dias alegres voltaram, apesar da tristeza em seu coração pela partida do pai, e o escoteirinho logo fez sua inscrição e comunicou a todos que ele iria ao acampamento. Foram pensamentos alegre, pois imaginava ele: "meu pai não esqueceu de mim".
Inscrição feita e paga, mochila pronta, hora das despedidas e em vão procurou por seu pai, "será que ele esqueceu do dia ?" - pensava. "deve ter tido algum compromisso talvez". Mas o acampamento não pode esperar, afinal foram meses de sonhos, desilusões, alegrias e finalmente o ônibus partiu.
Viagem normal, nada que ficasse na memória do escoteirinho para ser lembrado. Mas uma coisa tinha em seu pensamento que o incomodava: ele havia feito sua inscrição, pago 100 cruzeiros, mas o chefe não lhe deu o troco de 20 cruzeiros. Que faria ele, se somente contava com este dinheiro para suas despesas e para comprar presentes para sua mãe e seus irmãos, que contavam então com 13, 8 e 1 ano. "Quando chegar lá o chefe certamente vai me dar o dinheiro, ele deve ter esquecido", pensava o escoteirinho.
Chegada ao acampamento, montagem do campo, atividades, muita gente, tudo transcorrendo normal, o escoteirinho não lembra de detalhes, apenas um dia que caiu o mundo em forma de chuva e tiveram que dormir no local onde se guardava as vacas da exposição. O local era um grande Parque de Exposições de Animais e outras coisas do gênero. Mas o que preocupava mesmo o escoteirinho era o seu dinheiro, que aliás, ele não tinha nenhum, apenas contava com seu "troco". E preocupado estava pois nos proximos dias iriam à um passeio até Porto Alegre, onde teriam a oportunidade de fazer compras. Ele não lembra mas certamente deve ter comentado com algum outro escoteiro sobre seu "problema".
Então, foi quando o chefe chamou o escoteirinho em particular e lhe falou que havia ocorrido um mau entendido, que o preço do acampamento não éra 80 cruzeiros como pensava e sim, 100 cruzeiros, e não precisou falar mais nada.
Duro estava e triste ficou.
Essa conversa havia ocorrido pela manhã, e a tarde o chefe chamou novamente o escoteirinho para conversar e disse-lhe que seu pai havia telefonado e mandado dinheiro para ele, foram 20 cruzeiros que o chefe entregou ao escoteirinho. Foram momentos de alegria, tinha dinheiro para os presentes e, principalmente, seu pai estava preocupado com ele. Uma sensação de prazer e bem-estar invadiu o coração do escoteirinho, que não cabia em si de tanta alegria.
E a vida no acampamento continuou normalmente, atividades, amigos, e nada que ficasse na memória do escoteirinho, apenas alguns fragmentos de imagens. Então chegou o dia do passeio. Um ônibus levou todos à conhecer Porto Alegre, e o escoterinho lembra de ter comprado: um cortador de unhas para sua mãe, uma boneca para sua irmã mais velha, um carrinho para seu irmão e um chocalho ou um mordedor, ele não lembra, para seu irmão menor.
E assim foi o acampamento, o primeiro grande acampamento que o escoteirinho participou. Ele até hoje guarda o Certificado de Participação e o Distintivo. Foram dias ótimos. Chegou em casa e sua vida continuou, ... sem o pai.
Passaram-se alguns meses, talvez até anos, ele não lembra, o seu chefe já não mais estava na tropa, quando o escoteirinho teve um pensamento. Começou como uma pequena indagação, que foi crescendo e se tornou uma grande dúvida: "Como seu pai havia telefonado, se onde ele estava acampando nem telefone tinha ? não haviam celulares na época". "Como ele havia mandado dinheiro, se tampouco haviam bancos onde estavam ?" O banco mais perto éra em Porto Alegre e, mesmo assim, demoraria dias para fazer a transferência.
Confuso estava e pensativo ficou.
E tanto pensou que, de repente, tudo ficou muito claro. Seu pai não havia telefonado coisa nenhuma, nem tampouco mandado dinheiro, que provavelmente, tenha vindo do bolso do chefe.
Um dia eu vou terminar de escrever esta história, mas realmente acho que não precisa.
O nome do chefe é Igor Kipmann na época, do G. E. Marechal Rondon.
Na Região Escoteira tem um quadro com a foto dele, pois foi presidente da Região.
E o escoteirinho? bem, este era eu...
Luiz Gilmar Hecke
Escrito em 2007Recolher