P - Jô, muito obrigado por oportunizar esse momento, eu sei que está uma correria, muito obrigado. Pra começar por uma questão de identificação você poderia falar o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento?
R - Josilene Brandão da Costa, eu nasci na comunidade de Salobo, no m...Continuar leitura
P - Jô, muito obrigado por oportunizar esse momento, eu sei que está uma correria, muito obrigado. Pra começar por uma questão de identificação você poderia falar o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento?
R - Josilene Brandão da Costa, eu nasci na comunidade de Salobo, no município de Bacabal, Maranhão, num quilombo lá em Bacabal, em 1968.
P - Conta um pouco pra gente qual o seu envolvimento com o Programa? Qual a atividade que você exerce?
R - Bom, o meu envolvimento com o Programa, ele já é bem recente do ponto de vista de que eu assumi recentemente a coordenação da Ação Griô dentro do MinC, mas eu já venho de uma luta dos movimentos sociais e automaticamente de atividades culturais no Maranhão e a nível nacional através do movimento Quilombola. Mas essa relação com o Programa propriamente dito já é bem recente, agora de forma mais institucional.
P - De forma institucional você está chamando o quê? Você visita os lugares? Como é esse...
R - De forma institucional que eu falo, porque está assumindo uma parte que é de gestão pública de fazer acontecer a política na verdade. Então há uma diferença em você ser do movimento social onde você dialoga de outro espaço com os grupos que são ali da sociedade civil. Então de forma institucional que eu falo é estando dentro de uma instituição pública lidando com os movimentos sociais, mas do ponto de vista da sociedade civil, então eu já venho de uma luta cultural de muito tempo.
P - Mas, por exemplo, o Programa já faz alguns anos, né? Então você teve um envolvimento, digamos recebendo o Programa e agora como gestora, né? Você pode contar um pouco como foi essa experiência recebendo o Programa Cultura Viva? E depois como gestora?
R - Eu acho que é interessante essa transição, porque eu lembro que no Maranhão um dos primeiros projetos de Ponto de Cultura que eu ajudei inclusive a elaborar que foi do quilombo Frechal. A gente nunca imaginou que um dia aquela prática que a gente já fazia na comunidade, que a comunidade Frechal já fazia fosse reconhecida dentro de um programa governamental com essa nominação de Ponto de Cultura, foi surpresa, né? E a gente achava que era uma coisa pequena e também acompanhei outros lugares que também já tinham atividades culturais e que depois viraram... Foram reconhecidas como Ponto de Cultura, mas muito no processo de elaboração de proposta de projeto pra que esses grupos pudessem acessar recurso público de potencializar sua atividade. Então mais recentemente é que eu fui assumir dentro do MinC uma ação como gestora pública de lidar diretamente com esses Pontos de Cultura. Então foi um tempo assim interessante de experimentar como sociedade civil a questão dos pontos e depois ver que isso não era uma coisa pequena como a gente achou nos primeiros momentos de seleção de projeto e que chegou e tomou uma dimensão muito grande. Então é uma experiência de transição bastante amadurecida que foi experimentar que aquilo não era um projeto qualquer que era um programa que se consolidou e tomou uma dimensão muito grande já nos últimos anos assim, nos últimos tempos.
P - Você podia contar um pouco o que esse Programa ajudou, por exemplo, no Ponto de Cultura que você teve mais envolvimento? Qual o desenvolvimento que você poderia destacar pra gente assim?
R - Como eu sou do movimento Quilombola eu tive oportunidade de passear, de estar em vários grupos que fazem parte dos pontos de cultura, né? E esses outros grupos, os quilombos principalmente, eles já fazem uma prática cultural, esses grupos estão ali secularmente fazendo suas práticas culturais que não é necessariamente só dança ou música... Porque às vezes incorre a ideia de que a cultura é apenas dança e música e não é isso só, a forma de cobrir a casa no quilombo é um aspecto cultural, as comidas que as mulheres nas suas cozinhas se reúnem pra fazer inclusive as comidas sagradas é também um aspecto cultural. Então, nesse sentido, o passar nesses espaços, de conviver com esses grupos especiais quilombola e de terreiro me fez perceber que houve muitas mudanças nesse processo, não é que o Ponto foi pra comunidade é que o Estado reconheceu o Ponto de Cultura. Então é uma viagem contrária do que às vezes a gente pensa, não é que o Ponto foi para aquele quilombo, o quilombo já existia, o Ponto já funcionava com outro nome, fazíamos nossa cultura e aí chegou um reconhecimento da parte do governo de dizer: “Nós temos obrigação de reconhecer e de potencializar isso.” Então é uma relação um pouco diferenciada que agora a gente pode fazer talvez com um pouco mais de força aquilo que a gente já fazia, que é o que eu chamo de potencializar é nesse sentido, porque a gente não inventou nada a partir do Ponto de Cultura, não foi isso o Programa, o Programa apenas valorizou e potencializou o que já estava ali, que já havia uma abrangência.
P - E conta pra gente então uma experiência sua, uma vivência sua que tenha sido muito marcante que envolva essa potencialização, por exemplo, do Programa? Você poderia narrar pra gente alguma etapa?
R - Eu queria citar, por exemplo, a experiência do Campinho da Independência que é um dos Pontos de Cultura quilombola no Brasil, porque a minha experiência é mais de quilombo que com a chegada do apoio, do reconhecimento governamental, eles ampliaram a sua capacidade de se articular com outros grupos, de ter o seu produto local valorizado, de ter a sua cultura vista por outros segmentos sociais que nunca tinham sido visto e também no sentido de que esses outros segmentos sociais, eles passam a se relacionar com esses grupos de uma forma diferente, ou seja, os grupos deixam de ser um espetáculo cultural pra ser uma comunidade que tem uma cultura tradicional. Então é uma relação que muda na medida em que esse grupo pode viajar e conversar com outros grupos, na medida em que esse grupo pode participar de um evento como esse... Na medida em que esse grupo pode entrar na Bienal em São Paulo com a sua cultura sem precisar mudar pra estar naquele espaço, é um rompimento constante de uma ideia de que aquele grupo é isolado. Então essa experiência que eu acho que é marcante de perceber nesses grupos sociais.
P - Você tocou num assunto que é muito importante assim pra gente, porque assim tem o reconhecimento, mas ainda havia um Governo, né? O reconhecimento de um Governo, como foi essa relação com a comunidade, digamos de acolher, de envolver outras pessoas, como foi esse processo assim? No caso que você vivenciou e tal? A relação da comunidade.
R - Pra comunidade o que é interessante? As pessoas estavam ali naquele espaço fazendo suas coisas e um dia ela vai descobrindo que ela pode ampliar isso e que outros grupos fazem outras coisas e que um dia elas podem se encontrar, por exemplo, pra dizer: “Olha, eu faço isso e você faz isso.” Eu acho que esse Programa, ele construiu um processo de encontro e de rede dos grupos para que as pessoas se percebessem, se vissem, se olhassem um no outro e vissem o que os outros estão fazendo. Por exemplo, o Ponto de Cultura do quilombo Frechal, o Ponto de Cultura de Campinho que são quilombolas podem interagir com um Ponto de Cultura de Recife, por exemplo, da Mãe Lúcia de Ilê Orixá e Côco de Umbigada. Então essa experiência de convivência dos grupos faz com que eles se percebam e vejam a multiplicidade cultural que é o Brasil, por exemplo, a co-relação com os indígenas, né? Posso falar também na experiência da rede Mocambos onde a Casa de Cultura Tainã em São Paulo, é uma experiência de Ponto de Cultura, hoje é o Pontão mais ou menos. E eles congregam ali a rede Mocambos que é uma rede de inclusão digital de comunidades de quilombos que se encontram. Vai até acontecer um encontro agora no próximo mês e desses grupos vão se ver das mais diferentes formas. São os indígenas com os Índios Online, Conceição das Crioulas que tem o Crioulas Vídeo que é quilombola, Campinho da Independência ou Tainã que é do meio urbano de Campinas e as coisas vão se congregando. Então eu acho que o programa, ele é o eixo pra um encontro dessas diversidades brasileiras que são os espaços desses Pontos. Então essa dimensão é muito grande porque se você olhar na última Teia que aconteceu em Brasília você tem 3000 pessoas ali, um caldeirão de coisas fervendo de experiências e de energias que vem da comunidade. Então daqui a dois, três anos você pode ter 10 mil pessoas reunidas na Teia e essas 10 mil pessoas é apenas uma representação do que é essa experiência cultural nos bastidores do Brasil que a sociedade brasileira não conhece, né? Que não estão nos palcos que não estão na grande mídia, que não estão nos espaços públicos onde se fala de cultura. Mas elas estão em outro espaço que uma determinada camada da sociedade não quer ver ou não a reconhece como cultura brasileira. Então eu acho que o Programa, ele traz esse desafio de dar visibilidade, a Mãe Lúcia usou essa expressão de manhã que é abrir uma cortina e as pessoas botarem a cara na janela, então quem passa na rua vai ver cultura na janela.
P - Além desse desafio, quais são os outros desafios que você enxerga pra esse Programa?
R - Pra mim o maior desafio desse Programa hoje é romper com a burocracia, porque eu acho... A gente refletiu hoje de manhã, a burocracia ainda do Estado, ela ainda impede esses grupos e emperra muita coisa, quer dizer ao mesmo tempo em que ele abre caminhos pra se ter visibilidade, ele põe um enquadramento de uma forma de fazer as coisas que às vezes não é do grupo, né? Ela rompe de onde você pode estar fazendo a batucada que está vindo aí (batuque ao fundo) você tem que escrever o projeto ou fazer a tabelinha ou um abaixo assinado.
P - Bom, então eu vou retomar a questão do desafio, né? Quais são os desafios que você vê para o programa?
R - Bom, o maior desafio pra mim é romper com a burocracia e essa burocracia que eu falo é quando um grupo às vezes tem sua prática cultural é fácil se envolver com processos, procedimentos, com a normativa que estabelece o modelo de projeto, o modelo de prestação de contas, um roteiro a ser seguir. Então isso ao mesmo tempo que abre caminho, ele emperra e também cria um processo de desgaste profundo do grupo, porque o Estado brasileiro ainda não se adequou a essa realidade cultural. Eu sou uma das que acredito que não é o povo, não são as comunidades que tem que se adequar ao Estado e sim o Estado se adequar a realidade das comunidades e nesse sentido a gente ainda não conseguiu romper apesar de todo o esforço de alguns segmentos dento do Governo, de alguns gestores comprometidos e com olhar diferente, pensamento diferente pra isso, mas a gente ainda não conseguiu numa escala maior que isso é uma forma de acesso do recurso público pra esses grupos de uma forma mais simplificada. O que não quer dizer que seja aberto e que essas coisas corram de um jeito que não há um controle social, não é isso que eu estou falando, eu estou falando que tem que haver uma redução de normativa que facilite isso, porque a mesma legislação que rege uma empreiteira rege um Côco de Umbigada, isso é desigual, isso é desumano porque as pessoas não têm a mesma forma de acessar os recursos, porque você está falando de uma empresa e falando de um Ponto de Cultura que está habituado a fazer outro tipo de prática. Então essa legislação precisa ser revista, eu acho pro Estado brasileiro um grande desafio é rever essa coisa da burocracia. Mas eu queria também dizer que eu acho outro desafio tem a ver com as concepções, por exemplo, o que rege e o que vem antes da burocracia é uma concepção de gestão pública de que esses grupos não têm direito a acessar e na medida em que eu na condição de gestor não reconheço o direito desses grupos de acessarem a política, eu vou fazer uma normativa que emperrem eles de chegarem lá. Então isso é um processo secular é uma luta de muitos anos que a gente tem que ir aos poucos rompendo, eu acho que o Cultura Viva já nos ajudou muito a romper um pouco com isso, a nova concepção, a nova visão pra outra realidade, mas a gente ainda tem muito a construir dento de um processo como esse.
P - Inevitavelmente a gente cai numa próxima pergunta que é justamente isso, né? Quais são os desdobramentos daqui a alguns anos? Onde você espera ver o Programa Cultura Viva?
R - O desdobramento daqui uns anos e que eu espero e acho que é o desejo de todos que têm compromisso com a gestão ou com o movimento social com a cultura é de que isso não seja apenas um programa, isso tem que ser uma política de Estado e a política de Estado não pode pensar numa camada social em detrimento da outra. Então no caso do programa Cultura Viva o Estado tem que transformar isso numa política onde independente de qualquer governo que entre, isso continue porque não podemos admitir que a cultura seja um espaço apenas de uma concepção governamental onde quem chega muda o que quer e atrapalha o que quer e cria uma confusão e não reconhece ou dá continuidade a um trabalho que está dando certo. Então eu acho que isso é preciso ser construído e o programa Cultura Viva o que é interessante é que ele não tem mais como recuar, né? Porque não é só o Governo que está levando as coisas, as comunidades que estão em processo de construção. Então quando a gente constrói no coletivo dificulta que o outro desmonte o que a gente está fazendo, eu acho que o Cultura Viva tem uma constituição muito coletiva, ou seja, esses grupos já faziam e continuam fazendo, eles vão continuar fazendo independente de qualquer edital ou recurso público, o Governo vai disponibilizar, porque nós já fazíamos essa cultura nas nossas comunidades. Mas é preciso que se tenha uma concepção de que o Programa não pode continuar sendo programa, ele tem que passar a ser uma política de Estado, eu hoje ouvi uma frase interessante que só tem dignidade quem mantém a sua cultura. Então, quem não mantém sua cultura não tem dignidade nenhuma, ele é vulnerável, ele é volúvel, ele pode ir de um lado pro outro como um ser sem rumo, né? Então eu acho que a sociedade, ela não pode dissociar o desenvolvimento da cultura, porque se não você vai ter um povo inteiramente sem história, sem memória e sem dignidade,
P - Ok. Já indo pra uma finalização assim Jô, você poderia contar pra gente alguma história que eu não tenha perguntado, enfim gostaria de compartilhar uma história que foi bem marcante pra você do Programa que você vivenciou?
R - Não, eu ouvi um pouco hoje um depoimento muito interessante da Mãe Lúcia que é mãe Ilê Orixá de Recife e que ela falava muito emocionada de que hoje nós estamos vivendo uma realidade, uma nova realidade onde uma Ilê Orixá dialoga com o governo, onde um babalorixá dialoga com o governo, onde o indígena dialoga com o Governo, onde o mestre de cultura, de bordado, de Reisado, de Congo ou de qualquer outra prática cultural
pode sentar na mesa com o Governo e dialogar no mesmo nível. Isso foi um sonho que nós não ficamos deitados sonhando, a gente trabalhou, a gente lutou e morreu muita gente pra gente chegar nesse momento de diálogo na mesma mesa. Então eu acho que o fato que eu queria trazer é que esse processo de construção desses grupos, ele é legítimo e cabe ao Estado reconhecer e além dele ser legítimo, ele não tem volta de dizer que acabou, porque a gente sempre fez cultura nesse país. Então minha reflexão final é de que o Estado brasileiro é obrigado a reconhecer a sua multiplicidade cultural e multiétnica e ele não é obrigado a reconhecer porque tem bondade, não, é porque os povos estão dizendo isso. Então a sociedade brasileira precisa se curvar diante dessa multiplicidade cultural, essa pluralidade cultural porque esses grupos não são passivos, esses grupos sempre existiram e sempre lutaram. E não sendo passivos, ele aos poucos vão obrigando o Estado a romper com suas barreiras, suas paredes grossas e seus gabinetes pra escutar o que a sociedade de cultura está fazendo nas suas periferias, nos seus bairros, seus quilombos, nos seus terreiros, nas suas aldeias. Então eu acho que essa é a grande lição da experiência vivida enquanto cidadã, enquanto quilombola, enquanto mulher de terreiro é que nós estamos rompendo com a outra lógica e construindo a nova geografia a partir do nosso olhar da nossa experiência e da nossa realidade.
P - Muito obrigado.
R - Eu que agradeço.Recolher