P - Andrea, inicialmente queria agradecer por você dar um tempinho aqui para a gente conversar um pouquinho.
R - Eu é que agradeço.
P - Eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Meu nome é Andrea Escobar Freire, eu sou de Ponta Porã, no Ma...Continuar leitura
P - Andrea, inicialmente queria agradecer por você dar um tempinho aqui para a gente conversar um pouquinho.
R - Eu é que agradeço.
P - Eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Meu nome é Andrea Escobar Freire, eu sou de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Nasci em 17 de julho de 1976.
P - Fala um pouco sobre o seu trabalho, quem são vocês. Conta um pouquinho para a gente.
R - Eu nasci na fronteira do Brasil com o Paraguai, a minha família toda é do Paraguai. Mas eu nunca vivi na fronteira, vivi na capital, que é Campo Grande. Quando eu fiz 16 anos, eu resolvi fazer artes cênicas, então fui fazer faculdade de teatro no Rio de Janeiro. Morei lá mais ou menos uns dez anos, me formei, e resolvi voltar para o Mato Grosso do Sul, porque meu interesse mesmo era em aprender teatro, aprender essa linguagem. Não tinha muito esse idéia de fazer televisão. Trabalhei um tempo ali no grande centro. E como eu ia todo final de ano para o estado, eu percebia que eu podia fazer um trabalho lá. E resolvi voltar. E logo que eu voltei comecei a trabalhar dando aulas de teatro, dessas aulas de teatro saíam espetáculos, esses espetáculos tinham temporadas, participavam de projetos. E assim foi se consolidando um trabalho, e nós construímos uma associação, chamada Associação Cultural Oficina de Criação Teatral. Porque é de uma oficina de teatro que nasciam os espetáculos, e assim os grupos. Eu tive uma experiência muito interessante no estado porque, pela minha vivência com o teatro, isso acabou me projetando. E como eu produzia os trabalhos no teatro, eu acabei sendo convidada para produzir alguns projetos do estado. Projetos que aí envolviam música, cinema, várias áreas. Eu também fui Secretária de Estado de Comunicação e de Cultura, fui secretária adjunta, o que também foi uma experiência muito interessante, porque me deu uma noção do que era o estado, e de como a cultura e a comunicação estavam... como acontecia isso no estado. Mas sempre trabalhando também com a minha associação, sempre fazendo trabalhos na capital e expandindo para o interior do estado. Eu tive uma experiência muito importante para a Oficina de Criação Teatral, que foi um projeto que nós fizemos, chamado Terra, Teatro e Cidadania. Nós fizemos um trabalho de teatro em assentamentos rurais no Estado, com o pessoal do MST. E foi um trabalho muito significativo, porque eu aprendi mais do que ensinei. Quer dizer, eu tinha uma experiência com o teatro, e quando me deparei com o pessoal do MST eu entrei num universo absolutamente interessante, fascinante, cheio de conteúdo. E dessa experiência, ela somou muito para o que a Oficina é hoje. Ou seja, a importância de levar o teatro, de estar fazendo o teatro uma ferramenta social. A arte como transformação social. E isso tem tudo a ver com o Pontão de Cultura Guaicuru. Foi muito baseado nessa experiência que a gente também formulou o projeto do Pontão Guaicuru.
P - Como foi essa transformação? Veio junto com o Programa? Você poderia contar um pouco essa transformação, essa transição? O que mudou, antes e depois?
R - A gente estava passando um momento muito difícil no estado. Porque houve uma mudança de governo, e também houve uma mudança na política cultural, que diminuiu, ficou com muito menos recurso. Foi exatamente aí quando a gente viu o edital do Pontão. A gente tinha uma idéia... essa experiência com o MST foi muito rica, mas ela foi interrompida. Então, quando a gente vê o edital do Pontão, e vimos ali que o Pontão tinha o papel de articular os Pontos de Cultura do estado, a gente foi conhecer esses Pontos de Cultura. A gente foi ver o que era Ponto de Cultura, e fomos conhecer. E nos deparamos com um universo absolutamente interessante. Os Pontos de Cultura do Mato Grosso do Sul revelam Ponto de Cultura negra, o Ponto de Cultura indígena, o Ponto de Cultura paraguaio, Ponto de Cultura boliviano. Quer dizer, ali estava a malha social do nosso estado. Então a gente falou: “Porque a gente não trabalha com o que a gente já fez com o MST, levando isso para outras comunidades?” E vimos, assim, que essa malha social que é a cara do estado, ela também estava escondida. Eu nunca tinha ouvido falar nos Pontos de Cultura. Então, a partir disso nós formulamos uma idéia de atividades de teatro. Como nós queríamos investigar o audiovisual também, pensamos que o Pontão atuaria na área do teatro e do audiovisual. E temos feito isso com os Pontos de Cultura, unindo os Pontos, criando relacionamento entre eles, formando a rede. Eu acho que o Pontão teve um papel muito importante... a gente começou a trabalhar há exatamente um ano... porque ele também ajudou a revelar os Pontos de Cultura do estado. E fez com que os Pontos realmente se relacionassem. Nós temos uma atividade, que é o Teatro no Ponto, que acontece em cinco Pontos de Cultura. São aulas de teatro semanais. Nós estamos finalizando agora, estamos fazendo uma mostra do Teatro no Ponto, os grupos vão se encontrar para mostrar as suas produções. É o teatro numa aldeia indígena, é o teatro numa comunidade negra, é o teatro no MST, é o teatro no centro da cidade de Campo Grande, aí pega as pessoas da cidade, e vai mostrar... Então vai mostrar a cara do estado. E o teatro é usado como ferramenta para essas comunidades se revelarem, para elas narrarem a sua história através do teatro. Temos também uma outra atividade, que é o Cinema Livre. Criamos salas de exibição em alguns Pontos de Cultura, e em outras comunidades também que não são Pontos de Cultura. Porque o que aconteceu é que quando você começa a fazer um trabalho com os Pontos aquilo vai tendo uma visibilidade, e outros grupos populares, culturais, artísticos, começam a se interessar, e começam a se relacionar conosco. Também criamos um portal na Internet, exatamente com a idéia de entrar um pouco na cultura digital, de investigar, entendendo a importância desse digital, dessa comunicação, para fazer com que esses Pontos pudessem cada vez mais ser revelados. A gente criou um portal na Internet, que é o Pontão Guaicuru, e é ali que a gente dá visibilidade para o trabalho dos Pontos. Tem a TV Pontão. Acabamos também estimulando a produção audiovisual dos Pontos, e revelando através da TV Pontão. Então, o Pontão acabou fazendo um trabalho não só de identificação desses Pontos e de rede, mas revelando para a sociedade do estado com muita propriedade essa malha social. Que a publicidade usa muito bem enquanto publicidade, mas não se aprofunda. Então hoje o Pontão agrega muitos grupos, além dos Pontos. E mais essencialmente eu acho que deu visibilidade a essas comunidades que formam a malha social do nosso estado.
P - Andrea, conta para mim então, que é bem diversificado, várias iniciativas diferentes, descreva um para a gente que foi bem marcante para vocês, como resultado, impactante. Algo que você fale: “Poxa, aquele dia foi uma experiência bem interessante”. Conta para gente, por favor.
R - A gente faz um trabalho... a Oficina de Teatro vai para uma aldeia Guarani, que é dos índios Guarani. A gente vive uma situação, lá no Mato Grosso do Sul, muito triste, muito forte, em relação aos Guarani, que são absolutamente desconhecidos. A gente costuma dizer que os índios lá são invisíveis, porque a sociedade não olha para eles. Então a experiência com jovens indígenas no teatro foi muito interessante e também muito difícil no início. Porque eles não estão acostumados a falar deles. São índios muito massacrados. Então eles tinham uma dificuldade de se expressar. E o teatro no início, este diálogo foi bem complicado, a gente também investigando uma cultura que não era a nossa. A gente vem com um modelo, uma experiência de teatro, quando a gente se depara com um universo indígena, onde a gente mais aprende do que ensina. E nesse processo, as primeiras aulas de teatro eles tinham dificuldade de se relacionar. Hoje passaram-se dez meses, eles estão apresentando agora em dezembro um mito Guarani, vão apresentar na capital, vão ter publicidade para isso. Quer dizer, aos poucos a gente foi trabalhando essa estima deles, também com muito cuidado, sem querer dizer isso ou aquilo para eles, mas deixando que eles se revelassem. Procurando criar um ambiente onde a experiência pudesse acontecer de uma maneira mais genuína. E a gente acha que isso é muito importante, porque os Guaranis são muito mal vistos no estado. Quando se fala em indígena, no nosso estado, se fala sempre de uma maneira muito pejorativa. E a nossa idéia é mostrar um universo que a gente não conhece. É mostrar um universo... toda a cosmogonia do universo indígena, que a gente não conhece. E tiveram outras experiências também, a própria cultura negra, o teatro na cultura negra, eles estão apresentando, e vão apresentar agora “Zumbi”, um pouco em homenagem aí ao próprio Boal, texto do Boal. E no começo também um pouco de dificuldade. Eles vão fazer a apresentação nesse domingo, eu acabei de receber um e-mail do orgulho deles de estar se apresentando, estar construindo um espetáculo que fala deles. Porque “Zumbi” fala dessa valorização da cultura negra. Então, o que eu acho que é muito emocionante de ver é como aos poucos... A gente vive num estado aonde existe quem manda e quem faz. E quem faz não tem muita voz. E quando o Célio diz que Ponto de Cultura é voz na garganta de quem quer falar, a gente vai reparando isso na prática mesmo. Ou seja, no início o trabalho era um pouco difícil, tímido, e aos poucos ele vai se descortinando, ele vai ganhando força, ele vai ganhando identidade, autonomia, auto-estima. E assim vai se revelando para o estado, para uma sociedade que é uma sociedade muito dura, muito engessada. E a sociedade vai se surpreendendo com isso. Quer dizer, é pela cultura, não é pelo viés da política, da política institucionalizada. Porque arte também é política. Mas você vai por um outro viés, e vai juntando pessoas em volta daquilo, vai sensibilizando outros grupos, e aquela identidade vai ganhando força. Nós fizemos esse ano o Vídeo Índio Brasil, que é um evento que mostra a produção audiovisual indígena, feita por realizadores indígenas e não indígenas. Isso teve uma repercussão excelente no estado. Você imagina um estado onde o índio é invisível, de repente tem outdoor em todas as cidades. Nós fizemos em sete cidades do estado, em praticamente quase todos os Pontos de Cultura, em outras comunidades também. Quer dizer, o índio entra na pauta da sociedade de uma maneira muito interessante. E nós trouxemos comunidades indígenas para Campo Grande, ele foi feito no Cinema de Arte de Campo Grande. Então ali você mistura o índio e o não-índio. Então é uma mistura absolutamente curiosa, porque é tanto o índio olhando para o não-índio, quanto o não-índio, que não está acostumado com aquilo, apesar de o nosso estado ser a segunda maior população do país, indígena, não existe essa proximidade, eles estão lá e nós estamos aqui. Então essas atividades são muito importantes para o índio, mas são muito importantes para o não-índio. Porque elas ajudam a diminuir o fosso do preconceito que existe, ajudam a revelar uma cultura que está escondida, e que é absolutamente bela, com valores muito diferentes dos nossos, e com valores muito importantes. A gente costuma dizer que os Guarani não têm um artesanato que chame a atenção, eles não são índios como os Xavantes, que são índios se pintam. Os Guaranis, todos os valores deles são subjetivos. Está em como eles se relacionam com a terra, com as crianças, como eles se relacionam com os velhos. Está numa formação social, que não está no material. E são índios muito dignos, porque passam por dificuldades materiais muito grandes, muito fortes. E quando você vai para uma aldeia daquela você sai muito diferente do você entrou. Ninguém passa por uma aldeia indígena, ninguém sai diferente do que entrou. Então a oportunidade das atividades do Pontão, estarem revelando isso para a sociedade, e também trabalhando na sociedade esses valores, é muito bacana.
P - Poxa, muito legal. Você está somando. Porque o Programa tem alguns conceitos que ele lança, alguns pilares, como a questão do protagonismo, autonomia, empoderamento...
R - A gente, por exemplo, trabalhar... o nosso primeiro foco, em todas as comunidades, isso também na comunidade do MST, que também era uma comunidade que se relacionava entre eles. Imagina, falar em MST num estado como o Mato Grosso do Sul, que é a briga pela terra, tanto na questão indígena como na questão agrária é muito forte. Então eles se relacionavam entre eles. São comunidades que... Quando você começa a fazer a ponte, essas comunidades começam a se fortalecer entre elas. E uma das primeiras coisas que a gente trabalhou foi esse protagonismo. Quem somos nós? O que nós somos, de dentro para fora? E poder revelar isso através do teatro é muito bacana. Então que história nós queremos narrar? Então primeiro é preciso entender que nós somos protagonistas. Quando eu digo nós, eles. Eles são protagonistas. E o teatro começa a revelar isso, primeiro revelar entre eles, e depois entre os Pontos, que começam a se relacionar. E o Pontão tem essa função, quer dizer, unir, fazer com que os Pontos se relacionem, e entendam que têm muito em comum, apesar de cada comunidade ser uma. Então a gente tem muito orgulho de ver que a gente consegue reunir todos eles, consegue se relacionar com todos eles, e depois de um ano de trabalho... A gente fez recentemente o Encontro no Ponto, que foi uma atividade do Pontão que reuniu os Pontos de Cultura em Campo Grande, e trouxemos também um Ponto de cada região brasileira que tinha similaridade com os nossos Pontos. Então levamos os Krahô, um pouco para contar a experiência deles, levamos o pessoal do sul, que trabalha lá com as questões agrárias, trocar com o pessoal do MST, trouxemos o Invenção Brasileira, que é um Ponto de teatro, um Ponto de Cultura que também é teatro, que é do Chico Simões. Quer dizer, tudo nesse universo de troca. Então, dentro do Programa Cultura Viva... a gente estudou muito o Programa, e procuramos trabalhar tanto a cultura digital, quanto esses valores do protagonismo, empoderamento, autonomia. Hoje a gente percebe que... Nós começamos pelo protagonismo, e depois eles foram ganhando autonomia, e aí foram empoderando. E a gente está no início do trabalho. Porque o que a gente fez? A gente juntou coletivos interessados no teatro nessas comunidades. Hoje eles começam a se relacionar, e a gente espera que o ano que vem isso se intensifique. E também trabalhamos com o software livre. Começamos a investigar bastante o software livre, com muita dificuldade, sem informação aqui e ali. Mas aí, participando dessa rede nacional, começamos a nos relacionar com outros Pontos do Brasil, e começamos a nos alimentar das informações que eles nos davam. E assim nós vamos fazendo o nosso trabalho.
P - Eu queria entender um pouco do trabalho de vocês mesmo. Fiquei curioso. Porque ele é bem plural, é vasto. Me conta a ação de vocês. Vocês têm uma equipe?
R - Nós temos cinco metas. A primeira meta é o Teatro no Ponto. Então cinco Pontos de Cultura têm aulas semanais de teatro. Nós fizemos uma seleção pública, lançamos um edital, para professores de teatro interessados em concorrer, que nos apresentassem um projeto, respeitando as condições do edital. Selecionamos, e esses professores vêm trabalhando com os Pontos de Cultura. Criamos um método de teatro, algo a ser experimentado, muito baseado no que o Boal diz, apesar de não fazermos o teatro do oprimido em si, exatamente. Mas bebemos na fonte do Boal, bebemos na fonte do Brecht, e muito na minha experiência como atriz, como diretora de teatro. Então o Teatro no Ponto é uma meta. O Cinema Livre é outra meta. Ou seja, criar salas de exibição e fazer do cinema não só um ponto de convívio social, mas também um momento de reflexão. Nós temos 600 filmes brasileiros que disponibilizamos para essas comunidades, eles fazem a sua programação. Tem Ponto de Cultura que é uma vez por mês, tem Ponto que é de 15 em 15 dias, tem Ponto que é de 20 em 20 dias. E nós orientamos a sala de exibição. Esse é o Cinema Livre. Uma outra meta é o Portal Guaicuru. Ou seja, criamos um portal todo em software livre, para revelar o trabalho dos Pontos, e não só dos Pontos de Cultura, mas para revelar outros grupos do Mato Grosso do Sul, que mereceriam ser Pontos, que já têm um trabalho há muito tempo. A outra meta é Encontro no Ponto, ou seja, reunir todos eles, fazer com que eles se conhecessem. E esse encontro foi em encontro de experiências, depoimentos, e também um encontro de oficinas. Aí levamos o Coco da Umbiguada, para fazer a rádio Web lá, levamos o Invenção Brasileira, que apresentou o mamulengo, levamos o pessoal da TV Ovo, do Rio Grande do Sul, trouxemos os Krahô. Quer dizer, foi um encontro super bacana. E para mostrar para os Pontos que existiam desde 2005, e trabalhavam, mesmo como Ponto de Cultura, muito ali, dentro da sua comunidade, para eles entenderem o Programa Cultura Viva de uma maneira mais ampla. E agora estamos realizando em dezembro o Festival das Culturas Populares. Que é trazer todo mundo de novo, mas aí é com manifestações artísticas. Então são essas cinco metas. E dentro dessas metas acaba tendo ramificações.
P - E tudo isso foi viabilizado com o Programa?
R - Tudo com o Programa.
P - De infra-estrutura...
R - Aí sim, montamos uma estrutura física. A Associação Oficina de Criação Teatral, que é a entidade que gere o Pontão... a gente nunca teve uma sede. Pela dificuldade. A gente sempre trabalhou em escola, na garagem de casa, às vezes no centro cultural da cidade, ficava ali por um tempo. Mas aquilo nunca era... a gente sempre carregava as coisas. E com o Pontão, conseguimos envolver outros apoiadores que de alguma maneira apoiou esse trabalho ao longo... a nossa entidade, mas que agora, com o Pontão, a gente conseguiu um recurso para ter uma sede. Porque aí, tendo o Pontão de Cultura como meta, a gente conseguiu ter a sede, e ali nós passamos a ser um centro de referência do Programa Cultura Viva, e que tem sido cada vez mais importante no Mato Grosso do Sul. Porque ele dissemina o Programa Cultura Viva. Hoje o estado está na finalização dos seus Pontos de Cultura, o município está abrindo 15 novos Pontos. E o Pontão tem sido um articulador também do desenvolvimento dessa estadualização e municipalização dos Pontos.
P - Você entrou num outro assunto que é importante. Quais são os desdobramentos, como você vê o Programa Cultura Viva daqui a alguns anos? Quais são as expectativas que vocês têm em relação ao Programa?
R - Eu acho que o Programa, sem dúvida nenhuma, descortinou todo um universo riquíssimo. E, como eu disse, a publicidade, quando você fala no Mato Grosso do Sul, você vê lá o Pantanal, você vê a figura do índio. Mas aquilo não é verdade. O estado não reconhece aquilo de fato. Aquilo é apenas uma publicidade. Quando você vê o Ministério da Cultura do país reconhecendo o trabalho daquela comunidade, que era uma comunidade que estava isolada, aquilo tem uma importância Aquilo os coloca na agenda da sociedade. Então, eu acho que isso hoje é o que está colocado lá, o desafio dessas comunidades continuarem trabalhando é o que está aí colocado também. Quer dizer, ajuda eles a pensar nessa continuidade. Eles começam a pensar politicamente na cultura, o que é política pública de cultura. Quer dizer, ajuda a desenvolver aquela região do país que é uma região de coronel. Que é uma região de quem manda e quem faz. Quem manda e quem obedece. Hoje esse quem obedece começa a pensar. Começa a formular, começa a elaborar, começa a reconhecer a sua história. Começa a pensar na memória da sua comunidade. Então começa a olhar para o passado para pensar onde é o futuro. Eu não posso te dizer aonde isso vai dar. Mas eu acho que vai estar dando na valorização dessas comunidades, que começam a ter voz, começam a se colocar com muita propriedade. E tem gente que não gosta, mas quem não gosta, não gosta. Mas começa a juntar todo um universo de pessoas em volta daquilo, e que cada vez mais vai se ampliando. Eu estava vendo agora o pessoal do Ponto de Cultura Mucando Candongo, que montou Zumbi, eles estão sendo convidados por outras comunidades para se apresentar. Vai aqui, vai ali. E para esses meninos que procuram o teatro... Porque o teatro é uma arte fascinante. No teatro cabe tudo, cabe música, cabe dança, cabe artes plásticas. Começa a dar a eles alguma perspectiva de pensar se isso pode ser uma profissão ou não para eles. Porque como eles começam a se apresentar em outros lugares, começam a ter o exercício do teatro, isso só vai dar para avançar. Avançar no método, avançar no estudo, avançar no aprendizado. E sempre para revelar uma coisa que é importante para aquela comunidade. Quando a gente procurou os Pontos, nós como Pontão, e dissemos: “Olha, nós temos uma atividade que é Teatro no Ponto. Quem quer teatro?”, a percepção deles de que o teatro era importante para eles se revelarem, para eles principalmente atraírem os jovens da comunidade... Porque tem muito jovem que faz parte do Ponto de Cultura, mas que estava distante. Então o teatro também foi um atrativo a mais para aquele jovem chegar e, através das aulas, pensar a sua comunidade.
P - Já para finalizar a nossa conversa, alguma história, algum caso que você gostaria de contar desses seus anos de envolvimento com o Programa, que eu não perguntei?
R - Ah, são tantos. Eu acho que tem, assim, eu fico falando desse relacionamento, porque a gente vem de um Estado que não tem relacionamento. Existem guetos. Então é muito legal quando você vê as comunidades se relacionando. É muito legal quando você vê o pessoal lá da Bolívia reconhecendo a cultura negra, quando você vê o pessoal do Paraguai olhando para a cultura indígena, através desses grupos. O Encontro no Ponto foi um momento muito especial, foi muito além daquilo que a gente escreveu. E quando a gente pôs o nome Guaicuru no nosso Pontão... que Guaicuru são os índios cavalheiros que resistiram à colonização dos espanhóis. A gente viu que essa malha social, o negro, o índio, o paraguaio, o boliviano, o homem do campo, que são a malha social do estado, estavam escondidos. E eu, como sul-matogrossense, percebi que essa história me interessava, e que essa memória eu também não tinha. E os Guaicurus, falar dos Guaicurus, por esse nome, significa olhar para um passado que a gente desconhece. É falar de uma memória e de grupos indígenas que resistiram à colonização. E que para trabalhar com cultura, ou seja, essas comunidades, tem que ter muita valentia, tem que ter muita vontade. Então, quando a gente vê esses relacionamentos acontecendo, quando a gente vê eles se relacionando a partir da gente, e já entre eles, isso é muito curioso. Porque é um estado duro, é um estado de quem manda e de quem faz. Isso começa a mostrar que não precisa ser assim sempre. Existe uma possibilidade de isso mudar. E é através da cultura. Ou seja, não é através do embate político, não é através... Os movimentos no Mato Grosso do Sul são muito tímidos, eles não têm muita força. Então a gente percebe que é pela cultura, por aquilo eles produzem de mais genuíno, é que eles conseguem de relacionar. E começam também a deixar meio perplexos os políticos. Porque não sabem lidar com aquilo. Então é a dança do bate-pau indígena que vai para o centro da cidade, é a dança do camalote, que é uma dança pantaneira, que vai lá também para o centro da cidade. E antes as pessoas falavam: “Não, isso aí é...” Quando você vê uma valorização nacional disso, a própria cidade começa a olhar: “Mas poxa, mas isso tem valor então”. Então começa a agregar em torno dos Pontos, a partir dos Pontos, a valorização da cultura do estado. Então isso lá para o Mato Grosso do Sul tem um significado muito grande. Porque nós estamos um pouco fora... a cultura lá é muito massificada. Então eu acho que o Pontão teve esse papel e tem esse papel de fazer com que essas comunidades se relacionem e, juntas, tenham uma força para mudar a sociedade, o estado. Mudar não, eu não vou dizer mudar, mas tenham uma força para abalar aquilo que estava tão direitinho, tão certinho.
P - Andrea, obrigado por dar essa entrevista.
R - Obrigada.Recolher