Ponto de Cultura
Depoimento de Amélia Americano Franco Domingues de Castro
Entrevistada por Carolina Misoreli e Patrícia Fonseca
São Paulo, 15/01/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV096
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Dona Amélia, eu queria que você começasse falando seu n...Continuar leitura
Ponto de Cultura
Depoimento de Amélia Americano Franco Domingues de Castro
Entrevistada por Carolina Misoreli e Patrícia Fonseca
São Paulo, 15/01/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV096
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Dona Amélia, eu queria que você começasse falando seu nome completo.
R – Amélia Americano Franco Domingues de Castro. Meu nome de solteira Amélia Americano Franco. O nome de casada foi acrescentado Domingues de Castro.
P/1 – E qual a data de nascimento?
R – Bom, isso é que é difícil de confessar: 27 de dezembro de 1920.
P/1 – E a cidade de nascimento?
R – No Rio de Janeiro quando ainda era Distrito Federal, já era lindo!
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Severino Ribeiro Franco, que foi oficial do exército. E minha mãe era Alicia Americano Franco. Ela que era paulista e o meu pai era gaúcho.
P/1 – E você lembra o nome dos seus avós?
R – Lembro. Dos meus avós, eu conheci uma avó paterna que a gente chamava Vó Maina, mas ela era Ana Ribeiro Franco e o meu avô paterno eu não conheci. Era Franco de Souza Franco. Os avós maternos eu conheci o avô, Luiz Americano, este eu convivi até quando eu tinha 15, quando ele faleceu. E a minha avó morreu muito cedo, de quem eu tenho o nome: Amélia Cardoso Americano, mas ela eu não conheci.
P/1 – Você sabe a origem deles?
R – Eu acho que a origem de todos eles era portuguesa. Dos meus avós maternos eu tenho bem mais informações, porque os ascendentes, de onde veio a família do meu avô, era o pessoal de Minas e se você for mais atrás você vai encontrar os inconfidentes: Bárbara Heliodora, José Inácio Alvarenga Peixoto, os inconfidentes mineiros. É uma raiz portuguesa, sempre. E a da minha avó materna foi bem mais recente, porque a gente sabe que foi na primeira parte do século XIX, mil oitocentos e poucos, que o meu bisavô português Miguel José Cardoso veio pro Brasil.
P/1 – E você sabe por quê? Como foi essa vinda?
R – Dos primeiros a gente não sabe, devem ter vindo procurar ouro, apressar escravos, sei lá, dos mais antigos. Mas desses de José Miguel Cardoso, ele tinha um problema político. Foi quando o nosso Dom Pedro I voltou a Portugal; ele estava em luta com o irmão dele, Dom Miguel, pelo trono e parece que o meu avô era miguelista. Então ele fugiu de Portugal, foi para a Inglaterra. Teve a sorte de aprender inglês muito bem e veio para o Brasil ser professor de inglês, esse foi o primeiro professor da família que eu conheci. Mas a minha avó paterna também foi professora primária, esta que eu chamava de Vó Maina, do Rio Grande do Sul. Quer dizer, eu tenho ascendentes professores, porque a minha família valoriza muito essa profissão.
P/1 – Onde é que você viveu na infância?
R – Eu vivi no Rio de Janeiro os meus primeiros 11 anos.
P/1 – E como era a sua casa, você lembra?
R – Ah, eu gostava muito de morar lá porque era mais ou menos perto... Nós moramos em vários lugares, mas o que eu lembro mais, onde eu já era mais maiorzinha e estava num colégio que era na Rua Pinheiro Machado, hoje seria bem perto do Palácio Guanabara. A minha casa era mais perto da Praia do Flamengo, antes do aterro. Porque hoje a Praia do Flamengo teve um aterro, ganhou-se muito sobre o mar, mas a parte de tomar banho de mar agora acabou lá, mas quando eu era criança eu tomava [banho de mar] porque o Flamengo era só uma rua e depois vinha o mar. Então era muito agradável morar lá, eu gostei muito. Mas vinha sempre à São Paulo porque minha mãe era paulista. Os irmãos dela eram daqui e o meu pai se dava muito bem com os cunhados, então eu vinha muito à São Paulo. Em 32... Quer que eu conte como eu vim parar em São Paulo?
P/1 – Não, ainda um pouquinho antes. Lembra das brincadeiras de criança?
R – Ah, sim. Era uma vida, criança tinha muito mais liberdade porque podia brincar na rua. Eu me lembro que ficava alguém vigiando, uma empregada e tal, mas a gente brincava na rua. Pulava corda na frente de casa, tinha vizinhos, era muito tranquila a vida nos anos 20.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Não tenho, eu sou filha única. Eu brincava muito com os primos que eram os filhos da irmã da minha mãe, meus grandes amigos. Eles são mais moços que eu, hoje os dois são falecidos. O último infelizmente faleceu no ano passado, mas eram meus companheiros de brincadeira.
P/1 – E você lembra da casa mesmo em que você morava? Como é que ela era?
R – Das casas!
P/1 – Foram muitas?
R – É, eu mudei. Eu tinha uma que era... Engraçado, as duas casas em que eu morei eram casas térreas, casas que não tinham segundo andar. Esta segunda que eu morei mais tempo, no Senador Correia no Rio, era uma casa que tinha um porão alto. Eles chamavam aquilo de porão habitável. O porão para nós não era habitável, era brincável. Era muito bom para as brincadeiras pra gente sair correndo, brigar, fazer vários jogos, barulheira. Mas era esse tipo de casa... Muito engraçado porque eu chamo de casa tipo bonde: um corredor e quarto, quarto, quarto. Você entra, tem uma sala; depois tem um corredor e quarto, quarto, quarto; depois tem uma outra sala e o banheiro era perto da cozinha, lá longe. É engraçado essa grande mudança da arquitetura hoje, que exige um banheiro para cada quarto, naquela época o banheiro era lá longe e ninguém achava... E o telefone quando tinha, que já não era desses telefones de manivela. Telefone de manivela eu vim conhecer no interior de São Paulo. Mas era um telefone que a gente pedia o número, a telefonista perguntava "número, por favor!", você dava e ela ligava. Ela acabava conhecendo a gente e tal: "Olha, você telefona mais tarde? Está ocupado." E o telefone era no corredor, ninguém pensaria em ter um telefone assim numa mesinha e muito menos dentro da bolsa como é hoje (risos). O telefone mudou radicalmente.
P/1 – E como era um dia típico na sua casa? Se você for contar como era...
R – Será que eu lembro? A gente brincava, era levado à escola, voltava, tinha essas brincadeiras à tarde, onde a gente brincava na frente de casa porque tinham outras crianças e...
P/1 – E sua mãe? O que ela fazia?
R – A minha mãe fazia tudo, nossa! Fazia tudo. Ela tinha uma empregada, mas as empregadas eram um pouco precárias, então acabava tendo muito trabalho a dona da casa. Minha mãe gostava muito de costurar e ela tocava piano e cantava. Eu adorava! Era a coisa mais linda! Eu aprendi piano, mas quando a gente começa a parte de estudos, não toca mais o piano. O dia era muito preenchido. Depois nós viemos para São Paulo quando eu tinha 11 anos.
P/1 – E como foi essa vinda?
R – Pois é, essa vinda foi uma coisa meio traumatizante. Porque, vocês se lembram, conhecem história e sabem que em 1930 o Getúlio Vargas tomou o poder. O meu pai era Oficial do Exército, mas meu pai sempre foi uma pessoa legalista, ele obedecia a lei. E a lei não era a Revolução, embora ele fosse gaúcho. Ele não concordava com Getúlio Vargas. Então, quando houve a Revolução de 32, ele fez parte de um grupo de Oficiais no Rio de Janeiro que conspirou contra o Getúlio. Eles fizeram um grupo que vinha para São Paulo, para ajudar aqui na Revolução. Os meus tios estavam aqui e ele sabia que seriam todos recebidos, tinham estado em contato. Mas eles foram apanhados com a boca na botija e eles foram presos, o meu pai e esse grupo todo de conspiradores. Ele ficou preso durante a Revolução toda, que foram poucos meses, né? Ele ficou preso num presídio primeiro, depois num navio ancorado no meio da Baía de Guanabara. Vocês podem imaginar que coisa curiosa, né? Mas o Getúlio, na verdade, deu aos oficiais uma prisão muito honrosa de certo modo. Eles ficaram presos naquele navio, mas as famílias tinham o direito de ir visitar, aliás eu adorava porque, imaginem, visitar o meu pai preso num navio no meio da Baía de Guanabara, era uma coisa sensacional. Quando terminou a Revolução ele foi reformado do Exército, então viemos morar em São Paulo, onde estavam os irmãos da minha mãe, a família toda da minha mãe. Desde daí nós sempre moramos em São Paulo.
P/1 – Esse período, esses meses que vocês ficaram com o seu pai preso, como é que foram?
R – Pois é, é algo que... Sabe, eu era criança, tem umas coisas curiosas. Eu me achava no meio de uma história sensacional (risos). E meu pai não estava sofrendo, esses oficiais nunca foram maltratados pelo Getúlio. E nós tínhamos comunicação pelo rádio. Com a Revolução, os revolucionários de 32... Sabe aquele rádio? A gente chamava rádio de capela, era um rádio bem grande, escuros e tal e dava uma estática terrível. Fazia um barulhão horroroso e lá pelas tantas da noite é que se conseguia ouvir notícias de São Paulo. Então havia aquela música muito conhecida, até vou cantar um pedacinho, embora não tenha voz nenhuma. Canta: TÁ TÁ TÁ TÁ, TARATÁ TÁ TÁ, que era típica da Revolução de São Paulo. Ficávamos todos muito impressionados. Nesse pedaço nós fomos morar na casa da minha tia e do meu tio, no Rio, para minha mãe não ficar sozinha. Eu achava muito bom durante a Revolução, eu achava ótimo! Tava na casa dos primos, com toda aquela emoção. Todo domingo - eu não sei se era todo domingo - pelo menos algumas vezes a gente ia visitar o pai e ele estava muito bem. Então passei a Revolução muito feliz. Ruim foi quando eu vim morar em São Paulo. Porque eu gostava muito daqui, dos tios, de tudo, mas eu tinha outros parentes no Rio e outras... Vamos dizer, o Rio de Janeiro é realmente uma cidade que tem um encanto muito grande, não é? Tinha a praia, tinha outros primos, primos um pouco mais longe, mas também muito queridos, eu me relaciono com eles até hoje.
P/1 – Eu fiquei muito curiosa pra saber como era esse navio. Como era? Vocês levavam coisas?
R – Era o Dom Pedro II, era um navio da, como é que se chama? Era aquela antiga companhia do governo brasileiro... Agora eu não me lembro, tem muita coisa que eu esqueço e de repente eu lembro. Dandolóide! Navio do Lóide brasileiro, Dom Pedro II, ancorado no meio da Baía de Guanabara.
P/1 – E como foi o dia da lembrança, você lembra?
R – Ah, não lembro de jeito nenhum. Engraçado, eu tenho idéia de eu ter vindo para São Paulo não com a minha mãe e meu pai, mas com um tio meu que também morava no Rio e que trabalhou com o presidente Washington Luís. Ele era Procurador Geral do Distrito Federal, o meu tio Jorge Americano. É engraçado, já me disseram que isso não era verdade, mas eu tenho idéia... Teria sido outra viagem talvez, que eu vim de automóvel com esse meu tio e a família dele.
P/1 – Você não lembra como é que você veio, então?
R – Eu tenho essa idéia deu ter vindo com eles, talvez minha mãe e o meu pai tenham deixado vir com eles para eles fazerem uma mudança mais movimentada.
P/1 – E vocês vieram pra onde?
R – Primeiro nós ficamos numa pensão, eu, minha mãe o meu pai, enquanto eles procuravam um apartamento, ali no bairro de Santa Cecília. Eu tenho uma vaga idéia dessa pensão, mas eu não me lembro muito bem. Depois foi alugado um apartamento na Avenida Angélica, lá embaixo, perto da Praça Marechal Deodoro e nós passamos a morar lá. A minha tia também morava lá por perto, daí nós sempre moramos, enquanto eu fui solteira, moramos lá naquele bairro.
P/1 – E como é que era, conta como foi esse período de deixar o Rio e chegar a São Paulo.
R – Ah, foi bom. São engraçados esses cortes, porque também eu tinha terminado o curso primário e precisava entrar no ginásio. O tempo do ginásio era cinco anos, então logo aqui nossa família indicou que o melhor era o Instituto de Educação Caetano de Campos. Eu sei que eu tive uma professora particular, da qual eu não lembro grande coisa, mas eu tive um bom curso primário no Rio. No Rio eu tive um curso particular muito bom. Então eu fiz um exame de admissão, que naquela época, coitadas, as crianças de 11 anos tinham de fazer. Ah, meus filhos ainda fizeram curso de admissão ao ginásio. Fiz o exame de admissão, entrei. Aí, sabe, a capacidade de adaptação de uma criança é muito grande. Eu tinha uns parentes aqui também e passei a viver como paulista.
P/1 – O que você gostava de fazer?
R – Eu não tinha, assim, uma... Eu gostava muito de ler, vamos dizer que [é] a coisa mais importante pra mim. Eu acho que uma filha única, um filho único recorre muito... Hoje se recorre muito à televisão, mas naquela época eu gostava muito de ler. Eu sempre fui fácil de fazer amigas, tinha muitas colegas, amigas. Tinha uma muito boa que morava perto de mim, a gente ia a pé para a escola. Eu morava ali no bairro de Santa Cecília e para ir para a Praça da República a gente ia à pé. Ninguém tinha preocupação de mandar uma criança de 11, 12 anos à pé, atravessar ruas, atravessar o Largo do Arouche, ir para a escola era fácil.
P/1 – Você lembra se tinha uniforme, como era a escola?
R – Tinha, tinha a conhecida saia azul marinho de pregas. Aliás, todos os colégios tinham uniformes. Saia azul marinho de pregas, blusa branca, boina, era obrigatório. Era escandaloso você andar sem chapéu e crianças meninas usavam boina, uma boina, assim, de lado, azul-marinho também.
P/1 – E a escola era quanto tempo? Era pela manhã, era o dia todo?
R – Eu tenho idéia de ter estado mais no período da tarde, mas houve um ano que eu estudava no período da manhã.
P/1 – Como era o cotidiano da escola? Tem algum professor que tenha te marcado?
R – Pois é, muitos. O Caetano de Campos era uma escola muito especial em São Paulo, porque tinha sido uma escola normal, tinha sido reformada para ter o curso ginasial e depois o normal, e tinha cursos de aperfeiçoamento, cursos de preparação de professores, de administradores escolares e tal. E era nesse ótimo prédio da Praça da República, na época abrangia todo esse pátio que hoje é atrás da Rua São Luiz. Pegava aquela parte da Rua São Luiz, era um jardim muito grande e tinha um edifício muito bonito do jardim da infância de aço e vidro, muito bonito mesmo. Era muito agradável a escola, mas era um tipo de disciplina muito mais severo do que a escola que eu tinha estado no Rio. Eu de começo me ressenti um pouco, mas por outro lado tinha uma biblioteca deliciosa. Todas as vezes que faltava um professor ou todas as vezes que eu resolvia cabular aula, eu ia para a biblioteca (risos). Era onde eu podia ler todos os livros que eu queria. Na época, eu nem sei, líamos muito. Não eram só os livros de criança - estavam se esgotando - da Condessa de _____________ e Monteiro Lobato, eu li todos. Monteiro Lobato era quando eu estava mais no Rio. Eu acabava de ler um livro e recomeçava imediatamente de tanto que eu gostava! Depois aqui era mais a literatura de biblioteca das moças, Júlio Diniz, que era um escritor português que tinha uns livros grossíssimos, não sei como é que era, mas nós líamos tudo. Comecei a ler Júlio Verne, todas as aventuras. Sei que entrávamos, digo entrávamos porque as minhas colegas também muitas vezes faziam o mesmo roteiro. No mais, você me perguntou o que a gente fazia, a gente ia ao cinema. Domingo tinha matinê no cinema porque era comprido. Primeiro você tinha todos aqueles complementos: tinha jornal, trailer, seriado. Esses seriados que os meninos gostavam muito, esses seriados de cowboy. Depois tinha um intervalo, que a gente comprava bala e tal, e aí tinha o filme principal. Cinema era domingo, não tinha esse negócio de cinema durante a semana, nem pensar! Nem faziam, mas deviam fazer matinê, não é?
P/1 – A senhora falou que tinha uma diferença da escola no Rio e da rigidez da escola em São Paulo. Tem alguma história que você lembre? Que te assustou?
R – Eu me lembro que eu não entendia o que era o vice-diretor, um senhor muito alto e muito pomposo, e quando nos intervalos a gente fazia um pouco de barulho, ele chegava e dizia: "Meninas, que era uma classe feminina, isso aqui não é um mercado de peixe!" (risos). E eu dizia "mas como será um mercado de peixe?", eu nunca tinha visto (risos). Ele ficava muito bravo, mas ele não falava “meninas”, ele falava “moças”. E nós éramos, afinal, crianças! "Moças, isso não é um mercado de peixes!", professor João Alfredo. Agora, os professores eram muito bons. Professor Silveira Bueno, professor da Faculdade de Filosofia. Um professor de física excelente, como é o nome dele? Agora me escapa... Depois, o professor de matemática era ótimo. Doutor (Vilhena?) que ensinava latim, nós aprendíamos latim. Eu já tinha vindo do Rio de Janeiro com um certo conhecimento do francês porque lá no curso primário ensinavam francês e o francês era muito valorizado. Aqui peguei também um bom professor de francês, que era um professor português, o professor José de Souza. E aproveitei muito, eu nunca tive professor particular de francês, nem Aliança Francesa, nada. E quando eu entrei na faculdade, tive professores franceses e entendia tudo muito bem porque eu tive ótimo curso de francês. Tive também inglês, era um currículo muito bom de ginásio. Era muito exigente, nós tínhamos muita lição de casa, hoje chamam dever de casa, lição de casa. Na lição de casa, estudava-se muito, formavam-se os grupinhos de estudos. Eu levava muito a sério o estudo, eu sempre fui estudiosa.
P/1 – Como eram esses grupos de estudo que você falou agora? Vocês iam na casa de alguém? Onde vocês estudavam?
R – É, ou na casa de uma ou na casa de outra. Nós tínhamos... Os que moravam mais perto era mais fácil. Então...
P/1 – Estudava para a prova, eram todos os dias?
R – Tinha até umas que moravam longe e a gente ia porque afinal era fácil, andava-se de bonde ou de ônibus. Eu morava na Avenida Angélica e tinha ótima condução porque tinha o bonde Angélica e tinha um ônibus também. O bonde Angélica subia toda a Avenida Angélica, andava toda a Avenida Paulista e ia para a Liberdade. Eu tinha um tio que morava lá longe, a gente levava uma meia hora, uns três quartos de hora porque o trânsito era pouco, era fácil.
P/1 – Você comentou que ia para o interior de São Paulo. Em algum momento você comentou "conheci isso no interior de São Paulo"...
R – No interior? Sim, algumas vezes, mas não era comum, porque nós tínhamos também parentes aqui no Vale do Paraíba, em Lorena e Guaratinguetá.
P/1 – E você continuava indo pro Rio visitar?
R – Continuava indo no Rio sim, porque tinha outros parentes lá. Então eu ia passar férias, eu adorava passar as férias lá. Eu tenho primos até hoje, me dou muito com ela, com a minha prima. E eu tenho outros parentes mais recentes no Rio. Mas eu adorava.
P/1 – Adolescente, então, você passava as férias no Rio.
R – Às vezes, muitas vezes. Mas também no Vale do Paraíba porque tinham parentes aqui em Taubaté. Então esse eixo Rio-São Paulo sempre foi muito frequentado por nós.
P/1 – E como eram as festas? Você contou que o seu aniversário é perto do Natal, vocês reuniam toda a família?
R – As festas eram muito simples, sabe? A gente convidava para comer um bolinho, festejar, acender as velas, comer uns sanduichinhos, eram muito simples.
P/1 – Reunia a família toda?
R – É, reunia a família, tinham as amigas, primos, eram festas muito simples, mas que a gente gostava muito (risos), muito divertidas.
P/1 – Eu queria saber agora um pouquinho de você mais jovem, mais nova. Depois você foi ficando mais velha, adolescente e depois jovem...
R – Pois é, aí começa o problema de querer ir às festas, a mãe não deixar. Porque naquela época, imagina se ia na festa sozinha ou com amiga ou com namorado? Mas de jeito nenhum! Eu não tinha irmãos, né, para servir de... Eu tinha uma grande amiga que tinha um irmão que a minha mãe aprovava (risos). Então eu podia ir à festa com ela ou quando vinha meu primo do Rio passar as férias aqui. Porque como eu ia para lá, também os primos do Rio, às vezes, vinham para cá. Quando vinha o meu primo do Rio, era uma benção porque ele acompanhava a gente, a mim e a minha prima daqui. Minha mãe confiava muito nele, eu não sei se tinha razão (risos).
P/1 – Para onde vocês iam?
R – As festas, bailes de fim de ano, eu lembro que tinham no Clube Paulistano, que a gente frequentava. Tinham também bailes, por exemplo, do Grêmio Politécnico, essas eram prestigiadíssimas. Ou do... Que hoje é a Faculdade de Direito. Mas esse do Grêmio Politécnico eu lembro que era muito prestigiado e tinha um amigo nosso que arranjava convites, nós íamos. Ou então eram festinhas. Quando você fala de adolescentes, aí mudava, eram festinhas em casa de família, mas com música que não era nada de DJ, era disco mesmo. Aqueles discos pesados... Festinhas de dança e tal.
P/1 – E tem alguma festa que tenha te marcado?
R – Ah, tinham tantas, tão gostosas, a gente ia ou fazia na minha casa também. Mas na minha casa eu não me lembro de ter música, não. Não era o gênero, era mais... Fazia-se brincadeiras, não me lembro mais, sorte, sorteios, tinha sorte, ganhava-se prêmios, um versinho prevendo o futuro, umas brincadeiras desse tipo.
P/1 – Você lembra que música vocês ouviam e dançavam?
R – É engraçado porque tinha... Engraçado, eu não lembro da música nacional ser muito valorizada. A música nacional era mais valorizada quando a gente fazia um tipo de seresta com alguém que tocava violão e que a gente cantava (Saudade de Matão?), essas cantigas todas antigas. Mas para dançar e para cantar, a música americana estava invadindo por causa dos filmes, porque a minha adolescência foram os filmes.... Começaram os musicais americanos. Todos os filmes eram sapateados com o Fred Astaire, Gingi Rogers, todas essas figuras do cinema americano. Mas nós gostávamos muito também das músicas francesas, porque tinha o famoso Jean Sablon, tinha o Rossi. Então tinha essas vertentes diferentes. Para dançar, para festa, era música americana mesmo. Era o Fox trote, era o tipo de música que agitava mais.
P/1 – E vocês bebiam alguma coisa?
R – Mas era curioso o baile porque... Isto é o que eu acho formidável, a diferença para hoje. Hoje cada um dança como quer e a moça vai buscar o rapaz ou não vai buscar ninguém e dança sozinha. Nos nossos bailes, as moças ficavam todas sentadas, esperavam ser tiradas para dançar. Então vinha um rapaz, se curvava: "Vamos dançar?". Antes tinham fórmulas mais rebuscadas, mas no meu tempo já não era "você me dar o prazer...". Era "vamos dançar?", mas eles é que tomavam a iniciativa. E as moças ficavam ali, esperando ser tiradas, era um desgosto horrível se a gente não era tirada. E um desgosto horrível para os rapazes se eles não eram aceitos. Porque às vezes vinha um desconhecido, a gente não gostava da cara e dizia "não, obrigada, estou cansada" (risos) e o coitado... A gente dizia "fulano tomou tábua", tomar tábua é porque era recusado. Engraçado que eu não lembrava disso, me lembrei agora, vocês me obrigaram a lembrar!
P/1 – E aconteceu de alguém que você queria muito dançar vir lhe chamar? Tem alguma história assim?
R – Acontecia muito de alguém que a gente queria muito dançar, ele vinha e convidava a moça vizinha e não a gente (risos), tristíssimo, né? Eu via ele vir e pensava "ah, ele vem me chamar!", não, era a vizinha (risos). Horrível!
P/1 – Eu queria saber um pouquinho como foi a sua escolha profissional, como é que foi isso?
R – Pois é, esse é um outro problema curioso, de um certo modo da história da evolução da mulher. Porque você veja, já ninguém duvidava de que a mulher devesse ter educação, pelo menos educação a nível médio. Porque a saída era você fazer o ginásio e a escola normal, você então seria professora primária, porque não havia formação de professores secundários, o professor secundário era improvisado. Esses meus professores do ginásio, tinha médico, advogado, engenheiro que faziam o ensino como um bico ou por vocação. Porque alguns eram de uma vocação pro ensino, como o professor Silveira Bueno, que era um grande professor de português da faculdade de filosofia. Eram professores improvisados. Bom, mas em 1934 foi fundada a Universidade de São Paulo com uma faculdade nova, a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. Essa faculdade começou com uma idéia de ser completamente nova. Ela não dava só uma formação profissional, porque ela formava professores de nível médio, quer dizer, não mais o professor primário, mas o professor do ginásio, que hoje é o ginásio e colégio. Mas ela também formava o pesquisador, o estudioso em profundidade das determinadas áreas da ciência, tanto das ciências físicas, das ciências naturais, quanto das ciências humanas das letras: filosofia, ciências e letras. Essa faculdade foi interpretada primeiro como uma faculdade de formação de professores um pouco mais elevada, o que permitia que as famílias achassem ótimo que as mulheres fossem. Então a quantidade de mulheres na faculdade de Filosofia era muito grande, principalmente nessas áreas de ciências humanas e letras. Depois elas começaram a invadir as áreas de ciências físicas e naturais. O que aconteceu foi uma porta aberta para a gente fazer porque tinha poucas moças na Faculdade de Direito, na Faculdade de Medicina, Engenharia eu acho que uma ou duas, era muito pouco o que tinha ainda.
P/1 – Na sua casa você nem...
R – Na minha casa todos queriam que a gente fizesse, que eu e a minha prima fizéssemos um curso superior, queriam muito. Eu tinha um tio advogado, até trabalhei no escritório dele quando eu tinha 16, 17 anos e ele queria muito que eu fizesse Faculdade de Direito, ele era professor de Direito e queria... Mas eu não tinha nenhum interesse, justamente porque eu trabalhei um ano ou dois no escritório dele. Eu achava muito árida aquela missão de tratar com leis, problemas. Gostava de ensinar mesmo, sabe? Achava que ser professora era uma boa coisa. Essa idéia de ser professora de gente mais velha, de uma matéria, de estudar... Eu adorava história, tive um ótimo curso de história no ginásio. Então eu juntava as duas coisas: a história e eu poderia ensinar. Enquanto eu estava na faculdade já, eu dava aulas para o pessoal que ia fazer vestibular. O Grêmio tinha um cursinho de vestibular, pra mim foi uma coisa, muito... Me lembro que eu estava de férias, nós estávamos em alguma estação de águas, quando a minha prima me mandou um recado por uma pessoa para que eu viesse para São Paulo, porque ela estava se preparando para fazer vestibular para a faculdade. E a minha mãe achou ótimo...
P/1 – (Pausa) A senhora estava contando do dia que a sua prima ligou...
R – Ela mandou um recado por uma pessoa que ia para lá porque era para eu ir depressa, pois ela tinha arrumado um professor que tava dando uma espécie de cursinho durante um mês, preparando a pessoa para fazer exames para a faculdade, vestibular. E lá fui eu correndo e escolhi, essa minha prima também, geografia e história, era um curso conjugado, os dois juntos. Então nós estudamos durante aquele mês um pouco precipitadamente. Nós tínhamos bons cursos antes e o vestibular naquela época era uma coisa, completamente diferente. Não havia esse número enorme de candidatos, então o vestibular podia ser tranquilo. Tinha exame escrito e o oral. Nós passamos mais de uma semana em exames, mas a gente também podia se expandir mais. Eram provas dissertativas, como nós tínhamos bons cursos anteriores, eu e a minha prima entramos muito bem, muito satisfeitas.
A entrada na faculdade - é uma coisa interessante - foi em 1938, é. A entrada na faculdade, o começo, aquelas aulas com aqueles professores, não só tínhamos excelentes professores franceses que tinham vindo com a fundação da faculdade para dar um impulso aqui, como eles também estavam preparando outros professores para desenvolver. E eram pessoas de muita competência, então era como se abrisse uma cortina nova no mundo, era uma coisa completamente nova, completamente diferente, não tinha nada a ver com os cursos que nós tínhamos feito.
P/1 – Como eram?
R – Porque os professores franceses... Pra começar, eles falavam francês e você tinha que se acomodar com aquilo. E você veja, o estudo da geografia... O de história, eu tinha tido um bom curso de história com Dona Branca, que já era uma professora mais evoluída. O de geografia tinha sido muito daqueles de nomes e data, daqueles de nomenclatura, de fazer mapinha e tal. E de repente a gente começou num nível de conhecer de como é que se fazia geografia. Tinham excursões, a gente saía por aí afora pelo estado de São Paulo com o professor (Mondrique?), em grupos. Tinha um começo de pesquisa com trabalhos com mapas, de fazer gráficos com mapas. Então nós tínhamos uma visão completamente diferente. Não era uma nomenclatura, era uma vida. E outra coisa, o professor (Mondrique?) deu uma grande vitalidade à geografia do Brasil. Porque era comum no ensino médio, nós sabíamos muito bem o nome dos estados e capitais da Europa, da África e tal e a gente sabia tão pouco do Brasil, do que andava por aí. Ele deu um grande impulso à geografia do Brasil a partir do trabalho de descoberta, de fazer ciência geográfica. Em história, a gente trabalhava com documentos, coisa que nunca se tinha feito, e não só história do Brasil como também história da Europa... A acentuação para nós era a acentuação européia, na parte de história eram professores europeus que se interessavam mais por história européia, então nós tínhamos mais esse desenvolvimento. Agora, quanto ao de geografia não! Em geografia nós entramos no Brasil, foi uma coisa muito importante.
P/1 – Tem alguma viagem que você tenha feito nesse curso, por essas excursões, que tenha te marcado?
R – Nós fizemos várias aqui pelo interior, lá em zonas pioneiras do estado de São Paulo... Não fomos muito longe porque tudo isso exigia também financiamento, era difícil. A gente fazia um bolinho para financiar... Mas aprendemos muito nesse sentido. Estava interessada em ensino e pensei: "é isso que a gente precisa ensinar às crianças, aos estudantes. Ensinar essa nova mentalidade de história". Ainda ontem, por coincidência, eu fui procurar... Porque um dos maridos de uma neta queria saber como é que tinham sido as minhas aulas de tupi-guarani. Nós tínhamos aulas de tupi-guarani porque afinal, tínhamos uma quantidade imensa de topônimos no Brasil, como a própria rua onde vocês estão: Natingui. Muitas ruas aqui perto são nomes tupi-guarani e não sabemos o que é. Então nós tínhamos essa aula de tupi-guarani para poder decifrar os topônimos, os significados que isso tinha inclusive na nossa história. Dr. Plínio Airosa montou um museu tupi-guarani, então tínhamos não só vários cursos de história, como vários de geografia. Era geografia física e geografia humana e nós tínhamos também essa parte de apoio com tupi-guarani, com sociologia, o que mais? Era isso.
P/1 – E como era o grupo de amigos da faculdade? Era diferente do grupo das meninas do colégio?
R – Era diferente. Esses primeiro tempos da faculdade, acho que o pessoal de hoje perdeu esse conhecimento que nós tínhamos que era de conhecer, de colidir com todas as turmas, porque eram turmas menores, muito menores e nós estávamos curiosamente alojados em um lugar, em outro, em outros e a gente ficava conhecendo outra turma, outras sessões, fazia outros amigos. Porque a Faculdade de Filosofia esteve hospedada no terceiro andar da Praça da República durante muitos anos e esteve num prédio alugado, que era na Rua São Luiz, onde hoje existem aqueles arranhas céus, esteve num palacete na Alameda Glete que tinha sido de uma família muito rica. Quando eu entrei era lá, mas tinham outras sessões que eram em outros lugares, até juntar tudo na Maria Antônia, quer dizer, algumas partes, [até] ir aos poucos mudando para a Cidade Universitária. Na Cidade Universitária foi depois, quando eu já estava trabalhando, em 1970.
P/1 – Como foi esse período da faculdade? Você já sabia que queria ensinar, né?
R – Ah, sabia, eu queria. Eu tinha o maior interesse, então eu me dei muito bem nas matérias pedagógicas. Nos últimos anos nós tínhamos as matérias pedagógicas e o professor de didática, Professor Onofre Arruda Penteado, me convidou para trabalhar com ele, para ser assistente.
P/1 – Você já tinha trabalhado antes ou você...
R – Não, eu tinha trabalhado dando essas aulas do Grêmio, para as pessoas que iam... E depois, esse professor tinha um colégio e ele primeiro me convidou a dar aula no colégio dele, dava aula no primeiro ano de história.
P/1 – Seu primeiro trabalho então foi dar aula no grêmio?
R – No grêmio. Depois eu dei aulas destinadas ao professor Onofre, mas eu dava aula de história ao primeiro ano. Você já imaginou o programa de primeira série do ginásio? Era história antiga e história oriental. Então você tinha que trabalhar com Pérsia, Síria, babilônia, Egito e tal. Quer dizer, era difícil você encontrar um caminho que não ficasse só no pitoresco. Era muito difícil, mas a gente fazia o possível. E quando eu comecei a trabalhar na faculdade, porque eu trabalhava em didática, quer dizer, em ensino de história, era muito interessante porque os meus próprios alunos, muitos deles eram professores. Sabe, nessa época de transição entre você ter no ensino médio professores todos leigos e você ter uma formação, muitos desses leigos estavam fazendo a faculdade para se capacitarem. Então, estes meus alunos muitas vezes eram professores e permitiam que os outros estagiassem com eles e dava uma discussão muito boa, uma discussão ótima. Eu me apoiei muito na experiência deles também. Esses primeiros anos eram muito estimulantes porque a gente estava criando uma mentalidade nova, tava criando um ideário novo para o professor: um modo de trabalhar, um modo não só quanto ao tipo de matéria, quanto um modo de tratar o aluno. Na época as teorias pedagógicas vinham de duas fontes: um era John Dewey, nos Estados Unidos, um pedagogo de muita influência que abriu muito as idéias para uma educação que ele chamava de educação democrática, que a educação respeitasse o aluno, que trouxesse as necessidades do aluno à tona para você atender, isso a linha americana. E o correspondente europeu era a linha Claparède. Claparède e todo um grupo de professores franceses que eram os que pregavam uma educação nova: a éducation nouvelle. Na época logo depois da guerra, isso se disseminou muito porque eles tinham uma classe nova, a classe nouvelle, que fazia experiências. Isso tudo estava começando, e era muito estimulante você ter toda uma série de teorias, uma série de experiências novas sendo feitas e que nós estávamos acreditando nelas. A gente acreditava que era preciso mudar, que a rigidez do meu curso, fazendo um parênteses, eu disse para vocês que eu tinha muitos bons professores, muito sábios professores, mas nem todos eram assim. E aqueles mesmos, muitas vezes eles caíam naquela rotina de falar, falar, falar e o aluno tomava nota, era um ditado disfarçado. A gente aprendia a escrever depressíssima, eu adquiri uma velocidade enorme porque eu queria pegar cada palavra do professor, e era aquilo que era requerido nas provas. Quando eu comecei a trabalhar, eu queria muito mudar isso, achava que isso não dava certo. Tanta coisa acumulada por escrito muitas vezes decorada, então a gente queria que o aluno aprendesse essa nova mentalidade dele conquistar o seu saber, dele descobrir o que ele queria. Então foram esses primeiros anos muito, muito estimulantes para nós. Eu fiquei dois anos substituindo uma professora e depois ela não voltou e eu fiquei mesmo 40, 42 contratada na faculdade.
P/1 – Você se tornou professora da faculdade?
R – É, da Faculdade de Filosofia.
P/1 – Por quanto tempo você continuou na faculdade dando aula?
R – Na Faculdade de Filosofia - depois virou Faculdade de Educação -
fiquei 35 anos aqui e depois mais 15 anos em Campinas, eu trabalhei 50 anos. Não trabalhei mais porque depois mandam a gente embora, com 70 anos.
P/1 – Quando você foi para a Faculdade de Filosofia? Porque você estava na Faculdade de História, né?
R – Não, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, tinham todas essas sessões: Filosofia, Ciências e Letras. No campo das Ciências você tinha Ciências Humanas como a História, Filosofia - bom, a Filosofia era uma sessão à parte - História, Ciências Sociais e você tinha as sessões de Ciências Naturais, Física e tal. A sessão de História e Geografia era uma sessão da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
P/1 – Ah, entendi. Depois você cursou outro curso?
R – Depois eu cursei Filosofia. Porque tinha Psicologia, aí é que veio o problema. Eu estava trabalhando em ensino de História na faculdade. Na faculdade, você veja, eu fui contratada por um professor que se interessava, que era professor de didática, ensino de alguma coisa. E eu trabalhava primeiro em ensino de História e Geografia, ensino de Ciências Humanas, depois é que eu passei a trabalhar em didática geral. Aí eu comecei a sentir muita falta de um apoio psicológico, porque você vê, tanto da parte do professor quanto da parte do aluno tem um problema que é psicológico: como você aprende? Como você ensina para que o outro aprenda? Este é um problema que hoje em dia se denomina psicopedagógico, mas para mim faltava o psico. Então eu fiz Filosofia, mas aí eu já estava trabalhando e senti falta porque eu estava fazendo o doutorado. Na minha época não existia ainda o mestrado, existia só o doutorado. Então eu fiz o doutorado em 1950.
P/1 – Você fez um novo vestibular para Filosofia e Psicologia?
R – Eu não precisei fazer um novo vestibular porque no ano que eu resolvi entrar na Filosofia, as vagas excedentes eram oferecidas a professores já formados. Eu já estava formada, me candidatei e não houve concorrência, se tivesse concorrência, eu teria de fazer, mas não teve.
P/1 – E como foi esse novo curso?
R – Filosofia?
P/1 – É.
R – Filosofia eu já fiz com mais dificuldade porque eu já estava casada, tinha três filhos (risos), era um negócio que não era brincadeira. Mas também eu estava muito mais madura. O primeiro curso eu fiz com 17 anos.
P/1 – E como é que você conheceu o seu marido?
R – Ele trabalhava no escritório do meu tio, era também estudante de direito. Aí ficamos nos conhecendo.
P/1 – E você lembra da época do namoro, como é que era?
R – Lembro. Como eu disse, você tinha que levar acompanhante até para ir ao cinema com o namorado, tinha que pagar ao primo para ir junto.
P/1 – Pagava como?
R – Ah, pagava balas ou dava um dinheirinho para ele comprar bala (risos), então ele ia.
P/1 – Que ótimo!
R – Para passear de automóvel precisava ir junto. Eu tinha um primo mais novo que fazia dessas. Mas era um negócio de passear de mãos dadas ao redor da quadra de casa, da escola. Os namoros eram muito tranquilos, não tinham nada parecido com os negócios de hoje. Para ir às festas - é isso que eu tava contando - tinha que ir algum homem da família, mulher não servia. Eu lembro que eu podia ir com a minha prima, mas não servia de acompanhante, precisava de um rapaz. O preconceito era esse, precisava de um rapaz, irmão ou primo ou irmão de uma amiga de confiança para acompanhar.
P/1 – Você já o conhecia fazia tempo antes de vocês começarem a namorar?
R – Eu já o conhecia há alguns anos, depois começamos a namorar. Eu me casei em 42, eu tinha 21 anos.
P/1 – E como foi o início do namoro, você lembra?
R – Pois é, foi um negócio, começou… De repente vão muitos às suas festas e de repente vai só aquele. A gente tem vários programas e de repente só tem aquele programa. Começa assim, excluindo os outros e ficando só aquele. Então o namoro vai... Todo mundo vai dizendo "ah, você está namorando fulano", eu dizia "não". Até que a gente assume: "Estou, pronto!".
P/1 – Vocês namoraram quanto tempo?
R – Uns três anos entre namoro, noivado (silêncio)...
P/1 – Vocês ficaram noivos?
R – É, porque tinha esse negócio de ficar noivo, aliança na mão direita. Um ano noivos, o negócio é comprido (risos). Nada de semelhante com o que existe hoje.
P/1 – Ele te pediu em casamento?
R – Pediu! O pai dele, não era o próprio noivo, não. Era o pai que ia falar com o pai da noiva. Mas nós nos conhecíamos, eram pessoas de nossas relações, então não houve problema nenhum, tudo muito tranquilo.
P/1 – O pai dele foi à sua casa pedir a sua mão?
R – É, veio. Veio na minha casa falar com o meu pai e a minha mãe. Então deu tudo certo.
P/1 – E o seu pai falou o quê?
R – Ele deu o sim, tava tudo mais do que combinado (riso).
P/1 – E como foi? Vocês se casaram como? Na igreja?
R – Na igreja e no civil, né? Dos dois modos.
P/1 – E você lembra como foi?
R – Foi um casamento muito simples, nós morávamos ali na Angélica. Porque, veja, o meu pai era oficial do Exército - eu pulei um episódio que eu acho interessante como episódio histórico - ele foi reformado porque ele foi preso pelo Getúlio, como eu te falei. Quando nós viemos para São Paulo ele foi reformado. Já um Oficial do Exército ganha pouco, quando ele é reformado ele ganha menos. E ele veio para São Paulo e fez vários bicos, trabalhos, até propagandista de remédio ele fez. Porque para as pessoas de São Paulo meu pai tinha sido constitucionalista, não é? Tinha apoiado a Revolução. Davam uns empreguinhos, assim. Na guerra ele voltou ao Exército porque ele tinha sido convocado, já tinham acabado os problemas da Revolução, ele então voltou, foi convocado e trabalhou em recrutamento. Ele já era um homem mais velho, então trabalhou em recrutamento, começou a ganhar mais. Mas a nossa vida era muito modesta porque com os proventos de um Oficial reformado, ele era apenas major, não era oficial superior. Era Oficial reformado e com os empreguinhos que ele tinha... Então casamento era uma coisa caseira. Eu casei na Igreja de Santa Cecília e depois lá em casa minha mãe fez um lanche, um tipo de almoço com um lanche, isso sim. E pronto, acabou, só a família, a nossa e a dele. Poucas pessoas, só as mais próximas. Não tinha esse brilho dos casamentos de hoje. Foi uma festa familiar conforme as posses que a gente tinha: se eram pouca, se fazia dentro do possível.
P/1 – Depois vocês foram morar onde?
R – Nós fomos morar na própria Avenida Angélica, justamente. Minha mãe tinha comprado uma casa com uma herança do meu avô - meu avô morreu em 35, alguns anos depois da Revolução de 32 - com a herança do meu avô, minha mãe comprou uma casa na Avenida Angélica e nós fomos morar nesse apartamento, nesse prédio em que nós alugávamos o apartamento antes. Era bem pertinho, o que foi ótimo para mim porque eu comecei a ter filhos. Era há uma quadra, eu trazia as crianças, deixava com a mamãe e ia trabalhar. A faculdade esteve esse período... Depois que a faculdade se instalou na Maria Antônia, pra mim foi ótimo! Primeiro era na Praça da República, depois na Maria Antônia. Era muito bom porque tinha o bonde Vila Buarque que saía dali e ia dar na esquina.
P/1 – E como foi a primeira gravidez, você lembra?
R – Na primeira gravidez eu enjoei muito. Eu achava muito ruim, custei para parar de enjoar. Nos três, quatro primeiros meses eu enjoei muito, isso era desagradável. Mas depois foi tudo normal, eu tive partos normais, todos.
P/1 – Você teve quantos filhos?
R – Três. O pai da Antônia é o caçula.
P/1 – Todos homens?
R – Não, duas moças e um rapaz.
P/1 – Nessa época então você acordava, levava seus filhos para a casa da sua mãe e aí ia pra faculdade?
R – Nossa, era uma vida atribulada. Ia pra faculdade, dava aula, voltava. A questão do professor acho que tem uma certa vantagem porque pode combinar os horários, né? Depois que eu passei a trabalhar em tempo integral, mas aí os meus filhos já estavam mais velhos, estavam na escola, aí era possível a gente maneirar. Mas a vida de uma mulher que trabalhava naquela época não era fácil. E olha que eu tinha esta benção de Deus que era a minha mãe, que me ajudava em tudo, que ficava com as crianças, as crianças adoravam ela. Morava pertinho, eu era filha única. Ela me atendia em tempo integral! Tinha essa facilidade, mesmo assim não era fácil.
P/1 – Imagino, três filhos.
R – É, para ter filho, fazer concurso, porque na faculdade você tinha que fazer.
P/1 – Depois eles começaram a ir para a escola e as coisas começaram a ficar mais fácil?
R – Aí a coisa sempre melhora, mas tem um negócio: levar e buscar e tal...
P/1 – E quando eles foram crescendo, o que mudou na sua vida? A casa cheia, enfim, como era?
R – Era, era porque também nós conseguimos construir uma casa no Pacaembu e vendemos essa que tinha sido da minha mãe. Então numa casa maior... Moramos também num apartamento bem apertado, mas depois, em 61, a casa ficou pronta. Aí começou aquela vida agitada com filhos adolescentes (riso), muito alegre. Muito alegre e muito agitada, mas era interessante. Depois os meus filhos entraram nas faculdades, os três, todos na USP.
P/1 – E como foi esse período com eles adolescentes? Qual era a diferença da sua adolescência da deles? Como era a educação em casa?
R – Coitados, eu acho que eles passaram um período de transição muito difícil. Porque eles se revoltavam muito com as restrições que nós, o pai e a mãe, fazíamos às saídas deles. Porque nós vínhamos de uma outra época, né, cheia de restrições. E eles não se conformavam, elas sobretudo, porque para os homens nunca houve restrições. As moças é que tinham restrições e elas ficavam muito revoltadas com os limites que nós colocávamos porque nós ainda vínhamos de uma outra época. Aos poucos elas foram se libertando e nós fomos nos conformando, porque aí chega uma época que os filhos ensinam os pais, nós não podíamos mais manter aquele tipo de limite.
P/1 – Conta uma história de uma rebeldia de suas filhas.
R – (risos) Bom, minha filha teve uma famosa. Eu fui para faculdade dar aula e nós tínhamos carro, a minha segunda filha sabia dirigir, mas não tinha carta e a gente não queria que saísse, principalmente porque a gente não sabia a onde ela iria. Tinha um carro que ficou em casa e a minha mãe ficou tomando conta porque ela queria sair de carro sozinha. Minha mãe ficou sentada embaixo da escada, quer dizer, na subida da minha escada pra tomar conta dela e ela desceu pela janela. Tinha uma escada de pedreiro lá e ela desceu pela escada de pedreiro, pegou o carro e saiu. Essa foi famosa (riso), ela fugiu pela escada de pedreiro. Nós tivemos uma longa conversa, uma briga mesmo, pra dizer que não podia e tal. O negócio era difícil de estabelecer, mas aos poucos as coisas vão se acomodando, né? Depois tinha os períodos de namoro delas, de noivado de casamento. Moramos 35 anos nessa casa no Pacaembu, então elas passaram a adolescência, depois traziam os filhos.
P/1 – E o caçula acompanhava as duas...
R – Não, ele não acompanhava muito, não. Ele também fez as dele. Ele fez uma viagem de motocicleta, isso você pede pra Antônia te contar, uma viagem de motocicleta. Aquele roteiro do Che Guevara, mas foi antes do Che Guevara. Aquele roteiro pelos Andes, foi dar nos Estados Unidos. Tinha um primo morando lá e ele foi.
P/1 – Vocês deixaram ou ele simplesmente foi?
R – Ah, ele foi, ele tinha uma motocicleta e nós sabíamos que ele ia. Nós mandávamos um dinheirinho por mês por algum banco. De vez em quando ele sumia, não dava notícia, a gente ficava que nem louco aqui. Mas sei que ele foi, foi dá em Houston. A motocicleta “pifou”, graças a Deus quebrou a motocicleta e não pode voltar de moto. Mandou a motocicleta embarcada. Essa motocicleta ficou trinta e tantos anos na minha casa.
P/1 – E como foi a escolha profissional deles? Você ajudou?
R – Ah, não. Cada um tinha inteira liberdade, o que eles quiseram eles fizeram. A minha filha mais velha é arquiteta, mas ela fez primeiro Ciências Sociais, depois é que ela fez Arquitetura. A Suzana, a do meio, ela é psicóloga. E (Ulisses?) é arquiteto também, o pai da Antônia. Tem dois arquitetos e uma psicóloga. Ninguém quis ser professor nem advogado, que meu marido era advogado. É interessante que nenhum seguiu a profissão dos pais.
P/1 – E o seu marido foi advogado a vida inteira?
R – Foi. Ele teve alguns cargos políticos, foi vereador, presidente da Câmara e depois ele foi membro do Tribunal de Contas do Município. Mas cargos todos de magistrado, de advogado. E eu trabalhei 35 anos aqui na faculdade. Depois, os últimos 15 anos, eu fui para Campinas. O professor Zeferino Vaz me convidou. Era uma escola nova, interessante, eu gostei muito de ir para lá. Eu tinha me aborrecido aqui, então quando eu fui convidada para ir pra lá eu gostei muito. Eu tinha direito à aposentadoria, mas a minha formação, o meu trabalho maior foi aqui na Faculdade de Educação, que foi a continuidade da Filosofia. [Tem] um episódio também que a gente tem que notar que é o seguinte: num dado momento houve uma reforma da Universidade de São Paulo, aliás, na maior parte das universidades. Elas deixaram de ser Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e seus aglutinados de sessões e elas se separaram. Então a Faculdade de Filosofia se tornou uma unidade; a Geografia e História, o Instituto de Geografia e História; Letras também se tornou independente; depois tiveram os Instituto de Física, Instituto de Matemática e a Faculdade de Educação. A Educação continuou com o nome de faculdade. Foi em 1970, é em 70, que a Faculdade de Educação ficou independente e eu continuei trabalhando na Faculdade de Educação mais seis anos, depois é que eu fui pra Campinas.
P/1 – Como é que foi essa transição? Para Campinas você foi dar aula também?
R – É, eu fui. Em Campinas eu trabalhava quase que só no pós graduado. Dava alguns outros cursos, mas tinha um problema que começou a me interessar muito que foi didática do ensino superior. As pessoas acham que o professor do ensino superior basta saber, ter o conhecimento que ele ensinará bem. E não é bem assim, não é? Ele precisa saber como o adulto aprende, como é que ele vai conseguir que o adulto aprenda. Ensinar não é mais do que facilitar a aprendizagem do outro. Então esse era um desafio interessante que eu já tinha enfrentado na Faculdade de Filosofia, mas principalmente na Faculdade de Educação, porque nós tínhamos sido chamados para trabalhar nas faculdades de Medicina e Odontologia em didática do ensino superior, que é um trabalho desafiante, não é? Porque o médico que está se formando, está fazendo residência, alguém deve ensiná-lo a ensinar, ele não acha bom. O dentista no último ano, que já está fazendo também o seu estágio e está ganhando o seu dinheirinho: ninguém tem nada para me ensinar, eu sei tudo. É difícil você trabalhar essa mentalidade. Nós começamos aqui esse trabalho interessante, de sacudir essa mentalidade antiga das pessoas para que elas reconhecessem que podem aprender uma coisa a mais. Quando eu fui para Campinas eu tive também essa oportunidade que eu trabalhei...
P/1 – E você mudou para Campinas?
R – Não, eu ia duas vezes ou uma porque lá eu não tinha tempo integral. Eu escolhi ficar com um turno parcial. Tinha semana que eu ia duas vezes e tinha semana que eu ia uma. Na semana que eu ia duas, uma das vezes era só para trabalhar com pós graduação e orientação de alunos. Porque aí começou o problema de você... Isso desde 1970, 68, 70 que começaram os cursos de doutorado. O doutorado não era apenas um concurso, era um curso. Dei também aulas e a gente recebia os alunos para orientar, orientação de teses de mestrado e doutorado. Houve um período que eu fiquei realmente sobrecarregada porque era muita gente e poucos os que tinham os títulos e podiam dar essas aulas. Mas deu tudo certo, eu me orgulho muito dos meus orientandos, foi gente que fez muitas coisas boas e bonitas. Eu tive um episódio também que me interessou muito profissionalmente, foi quando nós conseguimos instalar um Colégio de Aplicação, isso foi bem antes, mas eu quero dar um destaque aqui porque foi, talvez, a experiência que mais me marcou. Foi em 57, a lei pedia que as faculdades que formavam professores tivessem um ginásio de aplicação. Quer dizer, era uma escola onde os alunos pudessem praticar e conhecessem uma experiência renovadora. Nós conseguimos, esse professor com quem eu trabalhei, o professor Onofre de Arruda Penteado Júnior. Sempre dou muito valor a essa pessoa, essa personalidade que lutou muito por isso, por nós termos um colégio de aplicação, para nós colocarmos na prática aquilo que a gente falava para os alunos. Porque veja, eu digo "faça isto", mas eu não tenho como fazer “isto”, porque eu não tenho um lugar em que eu possa demonstrar que isso dará certo. Houve uma época também muito fecunda em São Paulo de experiências educacionais. Foram os ginásios vocacionais, talvez vocês tenham ouvido falar, foram os GEP da Terezinha Franco, o Ginásio Experimental da Lapa, foi o nosso Colégio de Aplicação, foram outros colégios de aplicação de outras faculdades particulares. Nós tínhamos uma série de outras experiências sendo feitas e nós fizemos a nossa. Foi aí que nós descobrimos toda uma área de apoio que era a psicologia genética, de Jean Piaget, que estava aparecendo como sendo alguma coisa que se relacionava muito bem com o ensino.
P/1 – (Pausa) A senhora estava contando da escola de aplicação e da influência de Piaget.
R – É, estava contando justamente que foi um episódio muito importante da minha vida profissional o episódio do Colégio de Aplicação, foi graças aos esforços do professor Onofre de Arruda Penteado Júnior, que foi instalado. Era uma escola emprestada pela Secretaria de Educação, onde o secretário de educação, era muito nosso amigo, (Solon Borges dos Reis?), nos facilitou isso. Ele não era o secretário, ele era chefe do departamento de educação. Nós assumimos aquele colégio, fazíamos uma experiência pedagógica, quer dizer, no modo de ensinar, no modo de organizar o currículo, no relacionamento entre as matérias, no tratamento com as famílias, sabe? Foi uma experiência muito interessante.
No trabalho também, uma coisa que mais nos marcou foi que nós fazíamos um segundo concurso para professores concursados pela Secretaria de Educação. Esses professores vinham muitas vezes do interior e sabiam que estavam sendo recrutados para participar de uma experiência nova. Foi assim que nós tivemos professores maravilhosos: professor Scipione di Pierro Netto, infelizmente faleceu há pouco tempo, esse foi um de nossos expoentes. A professora Silvia (Margot?), a professora Julieta Ribeiro Leite, que foi coordenadora das classes experimentais. Nós tivemos uma experiência fascinante por poder testar as novidades e testar, assim, de coração aberto. Quer dizer: isto dá certo e isto não dá; isto pode ser utilizado e é um caminho bom e o outro não é. Nós tivemos quase dez anos de Colégio de Aplicação, sendo que era interessante também porque o governo do colégio, digamos assim, era um colegiado, várias cadeiras da Faculdade de Educação, desde Filosofia da Educação, Psicologia da Educação, Administração Escolar. Todos tinham um diretor e as orientações: orientação pedagógica, que era a minha parte; orientação psicológica, apoio psicológico, que era de outra cadeira. Nós fazíamos também as reuniões com os professores e que não eram reuniões pra dizer se o aluno foi bem ou mal; era pra discutir o que ele estava fazendo, o que ele estava achando de bom, o que ele estava fazendo de ruim, o que ele tinha apoio e o que não tinha apoio, as inovações feitas introduzidas pelos nossos professores. Foi um período assim, a gente passava mais tempo na escola do que na faculdade. Dava as aulas na faculdade e ficava muito tempo no colégio. Tínhamos professores interessados também em já pesquisar o que estava acontecendo de novo, porque faziam teses de doutorado sobre isso. Foi um período extremamente estimulante. O nosso... O fim do colégio foi um fim político, porque o colégio ia indo muito bem, de vento em popa, mas pegou a época de 68, onde nós tivemos toda uma problemática política de pessoas que estavam interessados em introduzir uma posição política no colégio, de modo que os meninos fizeram lá uma espécie de sublevação. Todos os colégios experimentais ficaram mal vistos ao mesmo tempo, porque eles eram inovadores, porque a regressão da época da ditadura não suportava colégios abertos, inovadores, democráticos em que todos os assuntos pudessem ser discutidos, não é? De modo que todos eles foram... Não foi só o nosso. Infelizmente o nosso foi de (rodão?), como foram todas essas experiências. Um foi vocacional, que orienta, era o nosso de aplicação, e fecharam o colégio. Já na Cidade Universitária uma outra escola de aplicação foi aberta, completamente diferente. A escola de hoje é uma ótima escola, excelente, mas não tem aquele aspecto pioneiro e inovador que nós tivemos há dez anos. Achamos que todos aqueles que passaram pelo Colégio Aplicação mudaram de algum modo, foram pessoas que se tornaram muito mais... Eu tenho uma imagem delas como pessoas que tiveram os olhos muito mais abertos para ver a realidade do ensino, pessoas que tiveram a idéia de que é possível mudar, inovar; você não fica preso a certos procedimentos que já não sabe nem porque faz. Isso foi muito bom para todos nós, é esse episódio que eu queria contar para vocês, que foi muito bom.
P/1 – E como é que foi dar aula nesse período pós 68? Como foi esse período?
R – Foi difícil para todos. Foi difícil porque havia medo de que você pudesse se comprometer ou comprometer algum colega, então você tinha (longo silêncio)... Foi muito difícil. Foi um período, e não foi só no Colégio Aplicação, mas na faculdade também vivemos uma série de greves de ocupação da faculdade e tal. Era um problema muito sério porque de um lado você ficava "eu não posso concordar com o regime militar, mas eu também não posso concordar com que os alunos façam uma sublevação, um desastre total, que ponham tudo de pernas pro ar, eles resolvam coisas que não estão em jogo, resolvam sobre assuntos que não estão em jogo, que não têm sentido que eles façam". Então...
P/1 – O que, por exemplo?
R – O que, por exemplo? Mudanças de currículo. Mudanças de currículo podiam ser discutidas, mas não podiam ser decididas sem que tivesse a presença de especialistas, não é? Os alunos queriam... Como é que era? Era um negócio onde eles só queriam estudar o Brasil, o Brasil aqui, o Brasil lá. "Sim, gente, mas o Brasil não surgiu do nada. O Brasil faz parte de um mundo com o qual se relaciona, você não pode pensar só em Brasil. Tem de pensar o Brasil dentro do contexto." As coisas eram assim, eu dei esse exemplo porque essa foi uma discussão muito brava que nós tivemos. Mas não foi possível... Era uma posição muito difícil porque de um lado você, de jeito nenhum, você cooptava com as violências do regime militar. Você tinha alunos, colegas que tinham sumido, desaparecido e você ficava desesperado. Por outro lado você sabia que o caminho não era aquele de demolir tudo que se tinha construído a duras penas. Então foram anos muito difíceis, anos de chumbo.
P/1 – Os seus filhos não se envolveram?
R – Não, mas amigos deles se envolveram. Amigos deles, pessoas muito queridas se envolveram e nós sofremos muito com isso, parentes nossos e nós sofremos muito com isso.
P/1 – E depois o processo de retomada, de volta?
R – Depois tivemos a retomada, foi voltando tudo, uma normalização parcial primeiro. Depois as coisas foram sendo mais comuns no Brasil inteiro, né? Nós sofremos a... Você ver as escolas, as universidades estão muito inseridas num contexto social, em todo o contexto político e social do país, então elas sofrem muito com as mudanças, abruptas, que custam para voltar ao normal. E nunca mais é o mesmo normal. Você já galgou um degrau, porque certas crises também obrigam você a uma revisão de valores. Não é como se você pusesse na balança todos os seus valores para aferir de novo, [para ver se] eles são mesmo poderosos ou não e partir para uma nova etapa.
P/1 – E hoje?
R – Eu estou aposentada há muito tempo.
P/1 – Há bastante tempo?
R – Há muito tempo. Eu me aposentei em 90, com 70 anos. Em 1990, acontece que eu ainda fiquei dois anos dando aula, eu ainda estava em Campinas e fiquei dois anos dando aulas porque eu estava orientando alunos. Mas era muito penoso ir, houve os anos que meu marido estava doente. Quando o meu marido faleceu, mudei daqui onde eu morava e fui morar lá no Real Parque, perto das minhas filhas. Houve muita mudança na minha vida, então eu... Durante alguns anos eu passei de muitas bancas de concurso, ia muito para Campinas, pro interior e aqui mesmo participando de bancas. Mas depois, inclusive estou com um problema de vista desagradável de modo que eu não posso ler muito. É difícil, tenho uns óculos especiais que eu levo para ler de perto. Aí não posso ler uma tese, não aceitei mais. Uma tese vai me levar, sei lá, três meses para ler, porque eu tenho que ler muito de perto. Computador é bom porque tem uma letra maior, iluminado, então eu posso. Mas para ler tese, não participei mais.
P/1 – O seu cotidiano deve ter mudado muito depois que você se aposentou.
R – É, ainda mais com seis bisnetos (risos)! É uma delícia, a maiorzinha vai fazer oito anos, é a minha única bisneta, depois são cinco meninos. São levados da breca! Tem dois que ainda são bebês, mas os três maiores fazem (risos) realmente um barulho que é uma delícia.
P/1 – E como é essa coisa com livros e as crianças?
R – Pois é, eu sempre li muito. Aí que está, esse é um grande problema para mim. É que eu só posso ler pouco. Ainda bem que eu gosto muito de música também, vou a muitos concertos e aos poucos vou substituindo a leitura pela música porque a leitura é difícil. Gosto muito de história e agora vou lendo aos pouquíssimos sobre a vinda da família real, 1808, do Laurentino, é muito interessante. Vou lendo só o que me interessa muito. Porque como é difícil, eu vou aos poucos.
P/1 – Então, muito bom. Super obrigada! Eu queria perguntar se tem mais alguma coisa que a senhora gostaria de contar, se pulamos algum pedaço.
R – Não, se eu lembrar de mais alguma coisa eu falo para vocês, de alguma coisa que possa ser interessante.
P/2 - Como você se sentiu dando a entrevista, contando a sua história de vida aqui pra gente?
R – Ah, muito bem. Vocês me deixaram muito à vontade. Eu acho que eu gosto muito de falar, sabe? Acho que todo professor gosta muito de falar, a gente começa a falar e não acaba mais, é terrível. Vocês não têm casos de precisar parar o entrevistado? Eu acho que professor precisa.
P/1 – Muito obrigada pela sua entrevista e, por favor, venha de novo se lembrar de mais alguma coisa.
R – Então depois eu vou procurar para vocês algumas fotos.Recolher