Projeto Ponto de Cultura
Depoimento de Márcia Souza de Matos
Entrevistada por Maíra Estrella e Luani Guarnieri
São Paulo, 03/07/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PC_MA_HV022
Transcrito por Regina Paula de Souza
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Márcia, nós gostar...Continuar leitura
Projeto Ponto de Cultura
Depoimento de Márcia Souza de Matos
Entrevistada por Maíra Estrella e Luani Guarnieri
São Paulo, 03/07/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PC_MA_HV022
Transcrito por Regina Paula de Souza
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Márcia, nós gostaríamos que você fizesse a sua identificação, qual o seu nome completo?
R – Eu me chamo Márcia Souza de Matos.
P/1 – O local e a data de nascimento?
R – Eu nasci em São Paulo, no dia 13 de outubro de 1978.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais e dos seus avós?
R – Meu pai, Marco Otavio de Matos, minha mãe, Roseli Souza de Matos. Meus avós paternos, Claudio Pereira Gomes e Remi da Conceição Gomes. Meus avós maternos, João Fernandes de Souza e Maria Aparecida Fernandes de Souza, os dois já falecidos.
P/1 – Quais são ou eram as atividades profissionais dos seus pais e avós?
R – A minha mãe, ela sempre foi dona do lar, doméstica. Ficava em casa e alguns anos, os últimos dez anos, ela começou a dar aula de Tai Chi Chuan, ela começou a praticar Tai Chi Chuan, virou professora, e hoje ela dá aula para um grupo de cinquenta idosos, ela dá aula pra terceira idade num parque lá em Pirituba. E o meu pai, ele sempre trabalhou como gerente financeiro. Os meus avós paternos, o Claudio, ele era padeiro e se aposentou na profissão, e a minha avó trabalhava numa secretaria de um colégio, também se aposentou na profissão. E os meus avós maternos, a minha avó, ela trabalhava como doméstica, ela trabalhava na casa de pessoas, cuidando, cozinhando, passando, lavando e o João, meu avô, ele trabalhou muitos anos numa metalúrgica e se aposentou, também, nessa profissão.
P/1 – Qual é a origem do nome da sua família?
R – A origem?
P/1 – Hum hum.
R – Nossa, até engraçado, porque... Na verdade, Matos é, eu acho que vou ter que contar isso... (risos)
P/1 – Conta, conta sim, conta. A gente quer ouvir.
R – É porque é assim, na verdade Matos não era nem pra ser o nosso nome, porque o meu avô Claudio, ele veio de Portugal com dezoito anos, ele é português e a minha avó também, só que ela veio aqui menorzinha, meu avô chegou com dezoito anos e... Ele veio pra morar com um primo, não, primo não, um tio, um tio dele, que era o João Matos. Ele foi morar com o meu tio. Esse meu tio, devia ter uns trinta anos, na época. E a minha avó tinha treze anos, então, ele de trinta morava com a minha avó de treze anos e... Só que ele bebia, saía pra trabalhar, voltava bêbado, voltava e batia nela. E o meu avô quando chegou de Portugal, ele tinha dezoito anos, então, ele passava a maior parte do tempo em casa com ela. Ele estava procurando emprego, trabalho e ajudava nas coisas do lar. E ele começou meio que proteger a minha avó. Viu que o que o tio dele fazia não era certo e começaram a namorar, começou a namorar a mulher do tio dele, que acolheu ele na casa dele. (risos) Como a minha avó sofria com aquela história dele beber, eles combinaram então que seria melhor eles se afastarem, eles fugirem e deixar aquela situação assim. E... Foi o que ele fez... Eles fizeram, só que a minha avó foi passan..., ____________ essa situação ficou, assim, alguns anos e a minha avó já tinha tido três filhos. Acho que ela já estava com dezessete anos, essa situação durou algum tempo até eles decidirem: “Não, é isso que a gente quer, a gente se gosta, vamos fugir e parar com essa situação”, tanto é, que o quarto filho que estava na barriga dela quando eles saíram, eles fugiram, já era do meu avô Claudio, os outros três eram do João. Só que... Como ela já tinha batizado três com o sobrenome Matos, o quarto que estava na barriga ela acabou batizando, registrando também como Matos, pelo período que ela estava morando, pra não dar muita encrenca, e pro meu tio, o tal João Matos, não achar que eles traíram ele estando lá, morando junto. Era pra eles desaparecerem e nem saber que foram juntos.
P/1 – Hum hum. Certo.
R – E acabaram fugindo. Então, a gente foi registrado como Matos, meu pai é Matos, mas não é Matos... (risos). E o nome ficou na família assim.
P/1 – Quantos irmãos você tem? Como é a sua família?
R – Eu sou a do meio, eu tenho um irmão dois anos mais velho, com trinta anos, uma irmã dois anos mais nova, é a Marcela, com 26. Meu irmão é Marco Otavio Junior.
P/1 – A sua infância Márcia... Conta pra gente um pouco da rua, do bairro em que você morava, a casa.
R – Bom, eu nasci em um bairro que chamava Jardim da Felicidade... (risos) Chama ainda.
P/1 – Que bom.
R – (risos) Só que assim, meu pai era sempre muito rígido, muito bravo, muito rigoroso, não deixava a gente sair na rua. Minha mãe também, ela ficava em casa cuidando da gente, e a gente não podia nem ir na calçada. Eu lembro que um dia o meu pai estava lavando o carro, todo... Todo sábado ele lavava o carro, e a gente ficava sentado na calçada vendo a criançada correr pra lá e pra cá e a gente não podia. Aí, ficava sentado, assim, na calçada e bem em frente a minha casa tinha um parque, olha só, um parque e não podia ir lá... (risos) O meu pai, às vezes, ele pegava, ia torcer o pano, subia uma escadaria pra lavar os... Enxaguar os panos do carro. Em um dia desses, eu peguei, atravessei a rua correndo pra entrar no parque, era um grande barrancão de grama e as crianças escorregavam ali, colocavam uns papelões, faziam um grande caminhão, montavam uma atrás da outra e vruuuu! Descia aquilo lá pra baixo. Eu tinha vontade de fazer aquilo. Aí o meu pai subiu pra torcer os panos, eu falei assim: “Ah...”, eu vi um papelão que jogaram na calçada, falei: “Agora eu vou correr, catar aquele, sentar, voltar e vir pro lugar antes dele lavar o pano”. (risos) Eu fiz isso, só que estava cheio, as crianças faziam fila. E não tinha nada. Um cantinho de grama, falei: “Nossa, tá vazio, ninguém vai lá, vou eu. Aproveitar que tá vazio”, fui lá... Vruuuu... Escorreguei, quando cheguei lá embaixo eu atolei até o pescoço. (risos) Falei: “Ah, eu não entendi porque que estava vazio.” Lá era um barro, lodo, eu fiquei atolada até o pescoço, gritando que nem uma doida. (risos) E as crianças começaram a gritar, chamaram meu pai... Tive que sair da grama catando mato, arrastando aquilo, cheio de girino e sapinho e tudo quanto é coisa que vocês imaginassem dentro da roupa
(risos) _________ que meu pai ainda atravessou a rua aos tapas, me batendo. Eu tomei banho dentro do tanque aquele dia, apanhei dentro do tanque. (risos)
P/1 – Quais eram as suas brincadeiras favoritas?
R – Eu brincava sempre na laje da minha casa olhando a rua, que não podia sair na rua, então, eu brincava com as nuvens. Brincadeira de criança... (risos) Ficava rodando, rodando, rodando de braço aberto na laje, eu caía no chão e ficava olhando para as nuvens, vendo elas rodarem até parar. E depois ficava horas lá, vendo os bichinhos que se formavam e às vezes conversava com umas colegas que vinham pra laje, quando elas cansavam de correr na rua... (risos) Elas iam pra laje do lado e a gente ficava dançando, fazendo coreografia, numa laje e a outra assim.
P/1 – Como era a casa, você falou da laje... Conta como era?
R – Era uma laje de ladrilho, acho que eu mais brinquei foi naquela laje, que era umas lajes de ladrilhos, retalho de piso vermelho, que a minha mãe encerava até, ali era o quintal, mas ela encerava o quintal. (risos) Eu lembro que a gente podia cair, escorregar ali, que era lisinho, a gente sempre deslizava, escorregava de barriga ali, quando... Eu gostava de lavar: “Mãe, deixa eu lavar a laje”, porque daí a gen... Ensaboava tudo e ficava patinando. (risos) E na lateral da casa tinha um corredor, que era de cimento, que foi ali, inclusive, que eu fiz os meus primeiros ensaios pra andar de bicicleta e eu vivia com o cotovelo ralado, porque o muro tinha... (risos) Um cimento chapiscado, eu caía e ralava o braço, ralava, ralava, aí quando eu não aguentava mais ralar o braço – já estava sangrando –, eu parava (risos), porque não podia sair na rua também.
P/1 – Como era o cotidiano da sua casa, como que vocês viviam lá?
R – Ah... A gente acordava, meu pai acordava muito cedo, nunca vi ele saindo de casa. Eu só sentia o cheiro do café, acordava com o cheiro do café, minha mãe preparando e aí eu voltava, levantava pra fazer xixi nessa hora e voltava pra cama. Quando eu levantava tinha que arrumar a cama, ajudar a minha mãe a fazer os deveres de casa, lavar uma louça, a guardar alguma... A mesa do café; depois, minha mãe ia lavar roupa, eu ficava sempre assistindo a minha mãe fazer os trabalhos domésticos. Eu gostava, eu gostava de ver ela mexendo na roupa, ela sempre foi de bordar, pintar, fazer croché, essas coisas. Eu gostava de ver ela trabalhar com as mãos, sempre achei bonito ela... Mexer com as mãos, até pra lavar roupa eu achava bonito. É, assistia o trabalho dela, aí quando era à tarde, a gente almoçava, era sempre eu e meus irmãos; isso quando era mais pequeninos, antes de entrar na escola. Meu irmão mais velho __________ estudar, quando ele chegava todos nós três almoçávamos juntos. Às vezes, não tinha muita comida, aí ela fazia comida tudo em uma única panela, colocava no colo e todo mundo comia na mesma colher, na mesma panela. Era um ritual, e depois disso, acabava a comida, a gente ficava horas na cozinha conversando, ela ficava contando histórias pra gente. Isso eu lembro que era muito bom. (risos)
P/1 – Muito bom mesmo.
R – Meu pai chegava mais à noite, chegava umas sete da noite, já estava começando a escurecer; a gente ia buscar o pão, pra abrir a porta pra ele, pegava o pão, colocava em cima da mesa correndo, ia buscar os chinelos dele, colocava na porta, aí ele tirava os sapatos na porta, calçava o chinelo... (risos) E ia tirar a roupa tá tá tá, a gente que levava o chinelo na porta pra ele. Era até engraçado, a gente falava: “Ih, chegou o general da banda”, porque quando ele chegava a casa já estava toda limpinha, arrumadinha, a gente já de banho tomado, que era meio chato isso, mas a gente lembra até engraçado. Mas era um ritual, todo dia.
P/1 – Como foram seus estudos na época da infância, como era a escola?
R – Eu sempre namorei os livros, porque como não tinha, não podia sair pra brincar com as crianças, eram poucas as oportunidades, quando estava maiorzinho é que começou a minha mãe deixar a gente sair, então, as nossas brincadeiras eram com papel, com pintar, riscar, inventar brinquedo no quintal, com sucata. Eu lembro que fazia uns tamancos com lata. Amarrava fio em lata, fazia tamanco, ficava... Criando olimpíadas com obstáculos no corredor, dentro lá de casa, pra pular balde, abaixar na vassoura e ficava cronometrando. Eu, meu irmão e minha irmã (risos) fazíamos olimpíadas no corredor de casa e ficava cronometrando pra ver quem que ia mais rápido, quem que era mais ágil nisso, ficava inventando os jogos. E o meu irmão entrou na escola primeiro e eu era muito mais grudada com ele, que ele era o mais velho. Eu não via muita graça em brincar com a minha irmã, porque era a menorzinha, eu não aprendia com ela... (risos) Mas eu era chata com ela até. Então, quando o meu irmão entrou na escola, eu ficava morrendo de inveja, aquele monte de livros dele, eu sempre ficava namorando, mexendo nos livros dele. Quando eu entrei na escola, eu entrei mais cedo, eu entrei com seis anos, eu já sabia ler, já sabia contar, fazer conta, porque eu ficava muito colado nele querendo aprender. Mas depois que eu entrei na escola, eu sempre aprendi tudo muito sozinha, inclusive, andar de bicicleta. Nesse corredor que eu ficava esfolando os braços, eu lembro que a primeira vez que eu consegui andar eu tive que pegar a chave escondida; minha mãe, ela sempre dormia de tarde, ela limpava a casa toda de manhã, fazia o almoço, contava as histórias e ia deitar e a gente ficava brincando baixinho, sem fazer barulho. E um dia eu estava com a bicicleta, já cansada de ralar os braços, peguei e fui deitar também, aí deitei na cama, acho que eu cochilei o quê? Uma hora, eu não sei, eu não lembro até hoje que sonho que eu tive, eu sei que eu entendi como é que andava de bicicleta... (risos) Eu falei: “Ah... Eu já sei o que falta”. Eu sentia na perna, engraçado, uma sensação nas pernas de como é que andava de bicicleta, eu não tive dúvida, eu catei a bicicleta, abri o portão, saí na calçada, montei e saí andando. Como eu só aprendi a fazer isso sozinha, então todo o resto dos meus estudos sempre foi assim, uma coisa de: “Eu tenho que achar aquele jeito de andar de bicicleta”, então, tudo eu fui fazendo muito por intuição, ouvindo alguma outra coisa comigo mesma. E sempre mais sozinha, eu sempre fui de ter poucos amigos, tipo uma grande amiga de muitos anos, com quem eu confidenciava tudo, ela faltava na escola eu passava o recreio sozinha, sabe?
P/1 – Ah, sei, sei.
R – Essas coisas.
P/1 – Quais são as outras lembranças que você tem do período escolar?
R – Ai, o primeiro dia de aula... (risos) Que eu queria tanto ir pra escola, mas eu lembro que quando cheguei na escola eu fiquei completamente apavorada, porque eu vi que eu nunca tinha estado com tantas crianças, ah... Aquela gritaria, criança correndo pra todo lado, eu falei: “E agora? Eu não sei estar no meio de tanta criança”. Esse foi meu pânico, aí a minha mãe me deu tchau, foi me dando as costas e foi me dando um gelo. “Eu vou ficar aqui sozinha”, aí veio a minha professora, eu lembro que era muito grande (risos), e ela usava um tamanco enorme; ela veio pra perto de mim, a Dona Elisa, ela pegou, me encostou, assim, na perna dela, eu lembro de ter segurado no joelho dela. (risos) Ela: “Não chora”, aquele jeito, batendo aquela mãozona enorme em mim: “Não chora”, parecia um tapa aquilo. Eu abria a boca, mas eu gritei, gritei, gritei, que eu... Eu só ouvia eu gritando, eu deixei de ouvir todas as crianças no pátio, só ouvia o meu grito. Quando eu fui pra dentro da sala eu me acalmei, porque ela começou a passar os exercícios na lousa, era o que eu sabia fazer, eu falei: “Ah, isso eu gosto, isso eu sei fazer”. E eu me empolguei com as atividades da sala de aula, mas eu lembro que eu chorei muito e que custou... Eu pensei que eu ia morrer aquele dia, falei: “Eu vou morrer do lado dessa mulher aqui” (risos). Foi ruim o meu primeiro dia de aula, até entrar na sala de aula, eu cheguei na classe e ficou tudo bem. E essa professora pegava no meu pé, porque eu já sabia fazer as coisas, eu já sabia ler, sabia fazer as contas, então, virava ajudante dela e... Mas eu lembro que no começo eu não conseguia pronunciar algumas palavras, por exemplo, “três”, eu não conseguia falar “três”, eu falava “cleis”, “atleta”, eu falava “acleta”... (risos) E ela falava assim: “Mas como assim, você sabe escrever, você sabe contar, você sabe não sei o quê, você ensina os seus colegas a ler e você não sabe falar não?”. Ela me mandava lá na frente, aquelas coisas: “Fala ‘atleta’”, aí eu ficava lá: “aaa...”, que raiva, e eu ficava engasgando e a sala inteira dando risada. Aí ela: “Fale”. Ela ria, ela gargalhava: “Não, como que pode, tão inteligente e não sabe falar, vai aprender a falar”, até eu pronunciar a palavra, tinha que pronunciar, eu falava: “Atleta”, aí ela: “Ah...”, e todo mundo batia palma e eu ia sentar. (risos)
Engraçado é que alguns anos mais tarde, quando eu estava na 4ª série, não, acho que na 5ª já, já passou o primário, eu já não tinha mais aula com ela, eu já não encontrava mais ela na escola, e ela morava na rua de cima da escola e da quadra dava pra ver os fundos da casa dela, e um dia, eu estava na quadra da escola, tinha acabado de jogar vôlei, eu tinha parado pra sentar pra descansar, que não era a minha rodada, e eu olhei pra casa da professora e via a janela saindo uma fumaça preta, negra. Eu falei: “Nossa, aquela fumaça ali não parece que tá pegando fogo?”. Ela assim: “É, parece”, a gente ficou olhando, “aquela não é a casa da Dona Elisa?”, “é, vamos avisar a diretora, meu Deus! Vamos avisar a diretora!”. E aí, imagina. A gente chegou na diretora, todo mundo falou assim: “Imagina, já devem ter avisado do incêndio. Imagina, um incêndio tão grande assim”. E ninguém tinha percebido, porque essa janela dava para os fundos da casa e ficava numa ladeira alta, então só quem estava na rua de baixo é que via, lá na frente da casa ninguém via. E a professora estava dentro de casa, ela estava passando roupa na cama e ela ficou cansada, cochilou e o ferro começou a pegar fogo, e ela, acho, que estava intoxicada com a fumaça não se deu conta, ela estava dormindo. E foi a diretora quem chamou o bombeiro. Inclusive, quando o caminhão do bombeiro chegou, ninguém na rua entendeu o que estava acontecendo, porque ninguém tinha percebido o incêndio e a gente que conseguiu dar o aviso. E ela não morreu por causa disso. (risos)
P/1 – Que bom! (risos)
R – Ela falou assim: “Nossa, a gente salvou a Dona Elisa”, a gente não tinha noção do que era isso na época, a gente só achou legal. “Ai, que bom que a Dona Elisa não morreu”. Mas agora pensando, nossa que sério. Mas foi legal. (risos)
P/1 – Foi providencial, não?
R – É, é.
P/1 – Providencial. Você acredita que os estudos que você fez teriam influenciado a sua vida profissional, suas escolhas de trabalho? O que você pensa a respeito disso?
R – Eu acho que as minhas escolhas foram de tudo que eu não tive na escola... (risos) Isso foi muito engraçado, eu sempre achava muito engraçado, porque que não se fazia tal coisa na escola, porque... Poxa... “Era tudo isso pra se querer me explicar isso, por que ela não fazia assim? Por que não faziam assado?”. Eu achava o cúmulo, eu achava muito engraçado. Então, na verdade, as minhas escolhas foram... Porque eu ficava abismada de porque que não se faziam assim, porque não tinha, as minhas escolhas sempre pelo que não tinha. Ah, eu ia falar uma coisa, agora fugiu.
P/1 – Não tem problema, depois você lembra. Você falou, Márcia, que tinha sempre uma amiga muito próxima, muito querida. E você disse que não tinha um grande número de amigos...
R – Não eram turmas, é. Eram sempre amigas...
P/1 – Isso, é. Mas você tinha algum grupo de amigos quando ficou mais velha?
R – É, na verdade, os meus amigos...
P/1 – Você já está no antigo ginásio, não é?
R – É. Na verdade os meus amigos até hoje são esses amigos de quando eu era criança mesmo, porque eram poucos, mas eram amigos mesmo. Quando eu entrei na escola... Acho que na 1ª e 2ª série eu ficava mais grudada com a Vânia, ela me pediu a borracha emprestada (risos), eu emprestei a borracha, ela ficou toda feliz, aí eu: “Vamos ficar no recreio juntas”; “Vamos”. A gente nunca mais deixou de passar o recreio juntas. Só que na 3ª série ela mudou de sala e eu falei: “E agora?”. Eu comecei a fazer amizade com a Patrícia. Da 3ª, 4ª série eu fiquei grudada com a Patrícia. Ela mudou de turma, mudou de sala, outros amigos, outras pessoas, ficou com outras pessoas, mas hoje ela me conta que ela ficou morrendo de ciúme... (risos) E ela fez outras amizades lá. Quando voltamos na 5ª série, no ginásio, a gente voltou nas mesmas turmas e fomos até o terceiro colegial, com a Vânia de novo, então, a gente é amiga até hoje. Hoje ela já casou, mora lá com o Cris e a gente se fala até hoje.
P/ 1 – E o que vocês faziam nessa fase da adolescência? Do antigo ginásio, colégio, quais eram os divertimentos, os programas que vocês faziam juntos, os locais que frequentavam? Vocês praticavam esportes? Como que se vestiam?
R – Olha, na escola a gente go... Como é... O pai dela também era meio bravo, então as nossas diversões eram na escola, tudo que tinha na escola a gente fazia e fazia muito bem, porque a gente se divertia pra fazer: “É o lugar que a gente tem pra se divertir, então, vai ser aqui mesmo”. (risos) Então, o que tinha de atividade de física a gente fazia e curtia de jogar vôlei, aprender basquete, handebol. A professora de educação física teve uma época, que entrou uma professora nova e ela cismou de dar dança pra todo mundo, todo mundo detestava, a gente: “Ah, que legal, uma coisa diferente”. A gente dançava, fazia ensaio de cancan, de dança cigana, de dança baiana, montava a coreografia, tudo que tinha de diferente a gente fazia e acabava embalando a turma. A gente embalava a turma, porque a gente se empolgava e empolgava os outros. E sempre fazíamos apresentações de chamar o bairro, todas as salas do colégio pra assistir, fazíamos teatro, isso... A gente escrevia texto de teatro, a professora dava um trabalho, era pra seminário: “Ah, pode ser em forma de teatro?”; “Pode”. A gente fazia teatro, que era pra ficar mais emocionante, porque era um motivo que a gente tinha pra se encontrar em casa à tarde: “A gente vai se encontrar pra quê?”; “Pra fazer um trabalho”. Então, quanto mais elaborado fosse, eu acho que a gente ficava elaborando, porque tinha mais tempo pra sair de casa e ficar juntas. Aí eu podia ir na casa dela e passar a tarde na casa dela fazendo trabalho, raras vezes elas vinham na minha casa, porque na minha casa não podia fazer mu... A gente ia falar alto, não podia fazer muita coisa. O pai dela era muito bravo, mas ele trabalhava fora e ela não tinha mãe, então ela é que era a dona de casa, da casa dela; ela tinha que arrumar tudo de manhã, aí quando chegava na casa dela a gente tinha a tarde toda pra ficar sozinhas lá aprontando, fazendo as coisas. A gente estudava mesmo, mas estudava se divertindo. (risos)
P/1 – E como era a moda de vocês?
R – (risos) A gente vê isso por foto, imagina: “Que trash, que ridículo” (risos). Aquelas calças “santropeito”, que a gente fala (risos), acinturadas, vinham até aqui em cima, com a camiseta do colégio. Todo mundo tinha que usar uniforme, então a gente ficava inventando, a gente enrolava a manga do uniforme, amarrar na barriga não podia. Ah, eu lembro que tinha uma época, que é que eu inventava de usar lencinho no pescoço pra ficar diferente, eu amarrava uns lencinhos no pescoço e ficava dando uns nós diferentes, aí as meninas começaram a usar lencinho também, a gente parou de usar lencinho, eu arrumei uma boina, usava boina, aí todo mundo começou a usar chapéu, peguei e tirei o chapéu, comecei a usar suspensório (risos). Ah, tinha uma outra coisa também, a gente enrolava as calças, fosse calça jeans ou se fosse calça de moletom, calça jeans, a gente fazia aquela coisa de amarrar, deixar aquela... A gente achava lindo (risos). Aquele bolo de calça... Acho que as coisas mais trash que a gente lembra, de como que a gente tentava improvisar pra ficar legal o uniforme. A gente não saía muito, então, quando começamos a sair, sei lá, pra ir ao cinema juntas, a primeira vez que a gente foi assistir cinema, inclusive, uma sessão proibida pra menores, todo mundo passou batom (risos), soltou o cabelo, parecendo três Marias; nessa época, entrou mais uma pra turma, que era a Pit, a Ana Paula. Nessa já estava no colegial, aí a turma era maior: era eu, a Vânia, a Ana Paula, a Flavia, que era muito engraçada, que eu tenho amizade até hoje também, e a Gleice, então eram cinco e a gente... Como que a gente? A gente tinha um nome... As Lazinha. (risos) Não me pergunte o que é isso... (risos) Lazinha era o nome, eu acho que era uma sigla de alguma coisa, mas eu não sou capaz de lembrar o que era. Aí juntamos nós e fomos para o shopping assistir um filme proibido pra menor, pra ver se a gente entrava. E eu lembro que a gente foi assistir “Invasão de privacidade”. (risos) E deixaram a gente entrar, era matinê. Acho que o cara deu risada, a gente achou que ele tava paquerando a gente, mas eu acho que ele tinha sacado que eram menores de idade. A gente nunca foi alta também. E a gente entrou e assistiu. E isso os nossos pais nunca ficaram sabendo, a gente assistiu um filme proibido pra me... Todo mundo tinha, acho que entre treze anos pra fazer quatorze, a gente assistiu um filme proibido pra menor de dezesseis anos. Isso foi abusado pra gente (risos)
P/1 – E como que foram os namoros?
R – Ah, eu comecei a namorar cedo... Comecei a namorar eu tinha doze anos, que foi com um menino na escola que era mais novo que eu; na verdade eu estava na 7ª, ele estava na 5ª série, mas a gente tinha a mesma idade, ele tinha vindo de outra cidade, então ele repetiu alguns anos, mas eu lembro que ele era lindo, ele tinha o cabelo comprido, o único menino do colégio que tinha cabelo no ombro, bem preto, de olho azul, ele chamava Clovis. Eu lembro que todo mundo falava: “Ai, o tal menino novo que chegou na escola, o menino novo”, e eu falava: “Ai, vocês também, só porque chegou um menino novo, né? Ai, gaaa”. E eu nem tinha visto a cara do menino. Um dia, eu pedi pra professora pra ir ao banheiro, saí da sala, o pátio estava vazio e eu estava saindo de um dos pilares pra cruzar a escadaria pra ir pra sala e ele estava vindo de cá, eu estava vindo de cá e a gente deu de cara ali no canto do pilar, eu trombei de cara com ele. Eu não tive... Nem olhei no colégio, a gente quase que deu um beijo, assim, de supetão (risos). Tomei um susto, fiquei sem graça, falei: “Nossa, quase que eu dei um beijo na cara do menino”. Ele pegou e riu, eu peguei e fiquei sem graça. Olhei pra trás e ele estava de costas parado e olhando pra mim, aí fiquei mais sem graça ainda, subi a escadaria correndo. O meu coração disparou, cheguei na sala, falei: “Nossa, eu dei de cara com um menino tão bonito lá embaixo, não sei quem que é, eu nunca vi ele aqui no colégio”; “Como que ele era?”; “Assim, assim”; “Ah, é o Clovis”; “Ah, é esse aí que vocês estão falando?”; Ela falou assim: “Nossa, ele é bonito” (risos). Dali, eu acho... Um mês a gente começou a namorar; ele era da sala da minha irmã, e quando ele ficou sabendo que uma amiga da sala dele era minha irmã, começou a mexer os pauzinhos, a gente começou a namorar no colégio, mas assim, só podia dar um beijo por dia, eu não queria mais que isso (risos). A gente deu um beijo e o engraçado que o primeiro beijo, é... Uma outra menina da turma, que na verdade nem era da nossa turma, que ela era mais experiente, já tinha namorado, e a nossa turma ninguém tinha namorado ainda. E elas ficavam me ensinando, porque assim, ele me pediu em namoro em um dia, no dia seguinte, então, a gente começou a namorar (risos), no dia seguinte. Eu falei: “Como é que eu vou fazer pra dar um beijo agora? Eu nunca beijei”. Aí eu fiquei fazendo um... É engraçado, a gente faz uma consultoria: “Como é que é a técnica do beijo?”. Uma ensina a técnica de uma laranja. Eu lembro que a Ana ensinou na laranja, a outra ensinou a beijar na mão, a outra ensinou a beijar com o espelho: “Ah, você treina assim, você treina assado”. Sei que no final das contas, a Daniele é que ajudou. Estava os dois sentados, um do lado do outro em uma escadaria que tem lá no colégio e eu sentada do lado dele, e a gente esperando acontecer alguma coisa pra gente se beijar. Os dois em silêncio. Vermelhos, sem graça, porque os dois tinham doze anos. A Daniele veio do nosso lado e falou assim: “Posso ___________ eu vou chamar a prima do Clovis então”, que era uma menina mais velha também. Aí ficou a prima do Clovis, a Ana Paula e a Daniele, uma de cada lado: “Poxa!”, e ficavam lá batendo o maior papo e a gente foi ficando com raiva: “Vocês querem saber, saiam vocês duas daqui e deixem a gente sozinho”. Elas saíram, ficaram uns metros da gente, esperando o beijo, todo mundo lá esperando (risos). Não ia sair nada. Teve uma hora, a Ana Paula voltou, a prima dele, e falou assim: “Faz o seguinte, vamos fazer esse beijo sair? Os dois me obedeçam. Não, não vou sair daqui. É o seguinte, olha pra esquerda os dois. Olha pra direita os dois. Olha pra cima os dois. Olha pra baixo os dois. Agora olha pra cara do outro”. Aí a gente... Ela pegou, fez assim na nossa cara (risos), e a gente se beijou. Até foi um beijo... Adulto até. O primeiro beijo foi muito bom, dos melhores beijos que eu já dei (risos), que demorou muito pra acontecer, mas... Mas ele beijava bem. (risos)
P/1 – Fala um pouco sobre essa técnica da laranja?
R – (risos)
P/1 – Você quer falar um pouco sobre essa técnica?
R – Ela me ensinou o seguinte: descascar a laranja pra não queimar a boca. Então, ficava em um bagaço, branquinha, descascada, aí fazia um buraquinho, tirava uma tampinha da laranja em cima, um reloginho, e você colocava a boca na... Ali, naquela... (risos), ali, em cima daquele buraco ficava a língua, ficava chupando a laranja, mas eu não... Eu achei muito besta isso: “Ai, eu vou ficar chupando? Não, beijo não é isso” (risos). Não gostei dessa técnica.
P/1 – Muito divertida pelo menos. E, fala pra gente, como você conheceu o pai do seu filho?
R – Nossa! Deu um salto agora, não é? Como é que eu conheci?
P/1 – Como foram os seus namoros, foi indo pra um namoro mais...?
R – Pois é. Como eu estava sempre sozinha em casa... A história começou assim, quando eu era bem criança. É... A gente é muito amigo, a gente começou a sair na rua pra brincar já estava com uns dez anos, assim que a gente começou a poder ficar na calçada de casa, aí fazia brincadeiras de rua, pulava elástico, pulava corda, quando eu cismava de jogar futebol com os meninos era colocada pra dentro de casa, era à tapa. Não podia misturar menino com menina, eu sempre gostei de brincar com moleques, misturar a turma, porque as brincadeiras ficavam, no geral, mais agitadas. Eu já ficava em casa tão parada, não queria sair na calçada pra ficar brincando só de boneca. Imagina, aí que eu entrava apanhando mesmo, por misturar com os meninos, então muitas vezes eu ficava na laje, que nem eu falei. Eu ficava imaginando: “Será que o pai dos meus filhos...”, eu sempre imaginava que o meu grande amigo, meu grande companheiro iria ser o meu marido, e eu ficava sonhando. Eu ficava imaginando “onde será que ele está agora? Será que os pais dele também são chatos? Será que ele também fica em uma laje sem fazer nada? Olhando pra cima?”. Eu lembro que eu acreditava a minha... Teve uma época na minha família, que uma avó minha morreu e a minha mãe falou que ela virou uma estrela e tinha ido pro céu, e que eu podia olhar pra cima e falar com ela, então, eu falei assim: “Bom, se a minha avó está lá, está ouvindo, eu posso falar, não?”. Eu começava a mandar recados: “Se o meu namorado, se o pai dos meus filhos, o meu companheiro estiver em uma laje assim, numa chatice, meio chateado”. Eu mandava um monte de recado, eu ficava imaginando um monte de coisa bonita, eu recolhia folhinhas bonitinhas. Brinquedos que eu gostava e ficava em volta, olhando, mexendo, limpando, arrumando. Eu pegava, olhava bem pra aquilo, ficava de braço, assim, pra cima e mandava a sensação pra aquilo que eu gostava. E acreditava que a minha avó ia colocar aquilo tudo em cima de uma nuvem e ia mandar pra ele, ia fazer chover em cima dele (risos).
As ideias, mas eu sempre pensei isso, desde criança eu falava com esse pai do meu filho, eu não sabia quem era ele. Eu sabia que o dia que eu olhasse pra ele eu ia saber quem era, olha a mágica (risos). Isso eu tinha certeza: “Não, eu vou reconhecer ele”. Quando eu estava com uns dez anos já, eu lembro que uma vez eu saí da escola, do colégio, estava um pôr-do-sol lindo e nesse dia a Vânia não tinha ido, então a gente não ia voltar sozinha, não ia voltar conversando, eu estava sozinha; aí eu comprei um saco de salgadinho de palitinho de isopor, pra voltar bem acompanhada. (risos) A gente colecionava papel de carta naquela época, eu passei em frente a uma lojinha e fui escolher um papel de carta bonitinho. Falei: “Vou comprar um bonitinho e vou dar um pra Vânia também”. Eu cheguei lá e vi um monte de cartão. Me chamou a atenção os cartões, falei: “Quer saber? Em vez de eu gastar o meu dinheirinho com papel de carta, acho que eu vou comprar um cartão pro meu companheiro, quando eu estiver grande e encontrar com ele eu vou entregar”. E eu estava com dez, nove anos, quase dez, comprei esse cartão e guardei, até pouco tempo eu tinha ele, eu entreguei ele no último dia 12 de junho.
P/1 – Nossa, que lindo.
R – Estava guardado, acho que uns... Por volta de uns dezoito anos isso. E eu lembro que eu ainda não... Falei: “Não vou escrever nada, porque quando eu for maior, qualquer coisa que eu escreva agora vai parecer babaca. Então, quando eu estiver grande eu decido o que eu escrevo”. E era um cartãozinho com um monte de rosinhas, com um negócio dourado, meio brega, mas na época, chique, aquilo era maduro (risos). E eu guardei, e eu já tive, já tinha tido vários namorados, já tinha sido noiva, mas eu nunca me lembrei desse cartão. Engraçado, eu já tinha tido outros relacionamentos bem sérios e de ter pensado em me casar, e eu não me lembrava do cartão, estava lá guardado e eu não... Não me ______ por ele.
Então eu estava namorando há cinco anos com um argentino (risos), que também foi uma história bem importante na minha vida, que eu achei que fosse casar com ele e tudo, achei até que era ele o grande homem. Mas ele não estava a fim de casar, de ter filhos, não tinha essa história, não tinha esse planejamento. Então, eu falei assim: “Acho que estou no lugar errado, acho que não é ele, acho que estou enganada, acho que não é ele”. A gente estava cinco anos juntos, mas assim, a gente se apegou muito e... Eu tentava... A gente virou muito amigo na verdade, acabou virando mais amigos. Eu tentava me afastar dele, aí acabava voltando, voltava, voltava, voltava, fiquei cinco anos assim, nesse vai e volta, mas eu já sabia que não ia dar certo, quando a gente é muito amigo e eu não estava apaixonada por ninguém, então, a gente ia ficando. Mas ele é uma pessoa muito importante, pela amizade que a gente criou, pessoa que eu sei que eu posso contar pra qualquer coisa, se eu precisar dele pra qualquer coisa, em qualquer momento, é uma pessoa que eu sei que posso confiar.
Um dia, eu decidi que ia cantar (risos), sempre gostei de cantar, aí eu falei: “Quer saber? Eu vou levar isso a sério. Eu vou me inscrever na OLM [?] e vou começar a fazer um curso de canto”. Eu escolhi uma música, inclusive, que eu me lembrava que achava linda, linda, que era a da “Gabriela”, que de tarde, estava em casa, era criança, e assistia “Vale a Pena Ver de Novo”, (risos) e a “Sessão da Tarde”. Na verdade, as novelas a gente não entendia na época, eu lembro que eu tinha que ficar assistindo o “Vale a Pena Ver de Novo”, que é pra acompanhar a minha mãe, porque logo na sequência tinha a “Sessão da Tarde”. Eu nem me lembro muito da novela que passava, que era “Gabriela”, mas eu adorava a trilha, eu gostava das músicas. E eu não sei por que, nessa época, que eu decidi cantar na OLM, eu ouvi de novo essa música que era super antiga, que era rara de se ouvir, e eu encontrei a música de novo.
P/1 – A gente vai precisar trocar...
(TROCA DE FITA)
R – Então, às tardes sempre tinha o “Vale a Pena Ver de Novo”, que a gente assistia com a minha mãe, pra esperar acabar, pra depois ver a “Sessão da Tarde”. E eu não entendia muito bem as novelas, mas eu lembro que as trilhas sonoras eu adorava. Tinha uma música linda da “Gabriela”, que eu nem sabia que eu gostava tanto assim da música, porque... (risos) Quando eu ouvi ela, recentemente, uns anos aí, tem o quê? Um ano e pouco, um ano e meio, eu falei: “Nossa!”, me emocionou a música, falei: “Gente, há quanto tempo que eu não ouço isso, como isso é lindo”. E eu comecei a cantar muito aquela música, eu aprendi a tocar violão pra poder tirar essa música no violão (risos), porque ela é linda, eu falei assim: “Não, só cantar ela não tem graça, ela tem que ter um acompanhamento”. O meu irmão tinha um violão em casa, que ninguém tocava, eu catei o violão e fui tirar a música pra aprender a tocar. Aí que eu me empolguei, falei: “Não, vou aprender a cantar, vou entrar na OLM”. E... Por causa da música “Gabriela”, que era o tema que o Tom Jobim canta, tem aquele ______ que falava: “Chega mais perto moço bonito, chega mais perto meu raio de sol, a minha casa é um escuro deserto, mas com você ela é cheia de sol”. Eu ouvi essa música e fiquei muito emocionada, falei: “Não, eu vou...”. Aprendi a tocar violão, me inscrevi na OLM.
Eu fiquei sabendo que na OLM tinha que gravar um CD pra participar da seleção e tinha que gravar em um estúdio, eu falei: “E agora? Não tenho ‘grana’ pra pagar um estúdio, fazer um CD”. (risos) Aí eu fui atrás de um lugar: “Bom, eu vou ter que arrumar dinheiro pra fazer isso, porque tem que ficar bom, porque eu tenho que passar na prova”, que não era fácil entrar lá, é um lugar público, não é pago.
Sempre que eu era criança eu passava ali na Rua Clélia e tinha uma loja de piano, e conserta pianos, sempre via aqueles pianos pra fora na calçada, eu era apaixonada por piano. Os meus pais também eram crentes, a Congregação Cristã, então na Congregação tem orquestra de músicos e eu era apaixonada (risos), ficar vendo os músicos tocar, mexendo com as mãos, sempre gostei de ver gente trabalhando com mão. Minha mãe ficava mexendo com as mãos, músico, padeiro, o meu avô. E eu achava lindo. Ah... Organista então, eu sentava no cantinho da pedaleira do organista e ficava vendo ela tatatatatata, achava lindo. Quando eu estava com uns 12 anos eu fui aprender a tocar órgão. Aprendi rápido, eu lembro que normalmente se você progredir em três anos... Eu fiz em um ano e dois meses, eu fui muito rápida, aprendia muito rápido as lições, e ela assim: “Nossa, você vai muito bem”, eu falei: “Ah, eu já tô boa”. Eu já estava pegando os dois teclados. Clave de sol, clave de fá e já estava na pedaleira, tocando os três juntos. Me empolguei: “Ah, que legal! Agora eu vou poder tocar o que eu quero”, porque os métodos eram os hinos. Aí eu levei uma música de Tom Jobim, ainda não era “Gabriela”, era “Eu sei que vou te amar” (risos). Eu ouvi meia hora de sermão na casa dela, dizendo que no órgão de Deus não toca música do mundo, que não sei o quê, fiquei ouvindo aquilo. Fiquei totalmente frustrada, porque eu estava querendo aprender toda aquela técnica pra poder tocar as músicas que eu achava bonitas, aí ela vem e me diz que eu não podia tocar, aí eu falei: “Tá bom, professora, então...”, eu peguei e fechei os meus livros, falei assim: “Então, eu descobri que eu sou do mundo”, mas falei muito calma. Pra mim ficou muito claro: “Então não é na Igreja que eu vou tocar, não vou poder ser organista de Igreja. Se ser organista de Igreja significa não tocar outras músicas, então eu não vou tocar em Igreja nenhuma”. Aí eu falei: “Então tá bom professora, desculpa, eu acho que sou do mundo, então eu não posso misturar as músicas, eu vou tocar outra música”. Ela foi em casa depois de uns quinze dias conversar com a minha mãe, com meu pai: “Não, volta, volta”, eu não voltei. E eu parei de estudar, eu tinha um órgão em casa e ficava treinando sozinha, isso me desestimulou um pouco, mas ainda fiquei com o órgão uns bons anos em casa e acabei só dando pra uma amiga, que é uma outra amiga que eu tinha, quando eu... Eu ia pra casa de praia em Mongaguá, que era amiga, que também conhecia desde os nove anos, que era a Nalva; a Nalva também é uma pessoa querida, que já casou, que já tem neném também. E com o tempo, depois de muitos anos, ela... Ela era católica até, e sei lá o que deu na família dela, viraram crente e ela me ligou contando a novidade, que ela queria virar organista, mas não tinha grana pra ter um órgão, aí eu falei assim: “Ah, então leva o meu que tá aqui em casa, eu já quase não estudo nele”, e peguei e mandei o órgão, a gente transportou o órgão lá pra Mongaguá e ela ficou com o órgão.
Bom, voltando pra história da “Gabriela”. Eu tinha decidido que ia entrar na OLM, por causa da música da “Gabriela”, ensaiei. Como eu namorava piano, teclas, eu sempre passava na Rua Clélia de carro e via ali que tinha uma lojinha de pianos, aí eu falei assim: “Ah, o único lugar de referência que eu conheço de piano é ali. Eu vou lá e perguntar se o moço que arruma pianos, que conserta pianos, ele deve ser um ótimo pianista, se ele concerta, de repente, ele faz o meu acompanhamento”, porque eu tinha que cantar em um estúdio com acompanhamento pra piano, porque essa música só acompanha com piano, poderia ser com o violão, mas eu tentei com uns amigos, ficou muito fraquinho. A música é muito bonita pra ser tocada no violão, eu falei: “Não, tem que ser piano”. Eu fui lá conhecer o tal do seu Janos, que está ali naquele ponto há muitos anos, que é uma referência pra todos os pianistas, eu não sabia disso também, conheci ele, é uma figura, muito atencioso, um velhinho de cabelo branco, que ficou muito alegre, eu contei a história que eu queria me inscrever na OLM, precisava de alguém pra me acompanhar, se ele sabia me indicar, que eu tinha que gravar no estúdio, onde que ele me dava as referências. Ele falou assim: “Ah, infelizmente eu não vou poder fazer isso, porque eu já não treino há muito tempo, os dedos vão ficando meio enferrujados, mas eu vou te indicar quem foi o meu professor”. Eu falei: “Nossa! Esse homem de cabelo branco vai me indicar o professor dele (risos), o cara deve ser fera”; “Ele tem um conservatório que é super conceituado, o conservatório da Santa Cecília”. Eu falei: “Ah, o que será isso?”, que fica na Pompéia, na Avenida Pompéia e também disse que é super conceituado, antigo; não conhecia também, eu fui atrás de uma referência feliz, porque o cara era muito bom e me indicou um ótimo conservatório. Então fui lá, pra conhecer o seu Nino, disse que o seu Nino que tinha sido o professor dele. Cheguei lá, outra figura também, de cabelinho branco, todo carequinha, alto, com os olhos azuis, mas muito engraçado, super simpático. Eu falei que fui indicada pelo seu Janos, nossa! Aí os olhinhos dele brilharam: “Nossa!”, disse que não via... Tinha sido aluno dele há uns vinte anos atrás. Ele ficou todo contente: “Nossa, você falou com o seu Janos, ele me indicou, ele ainda lembra de mim?”. Ele entrou, me apresentou a escola inteira e me mostrou aqueles quadros de formatura de turmas e me mostrou o seu Janos novinho lá, e eu: “Olha, que legal!”. Ele contou toda a história dele e ficou conversando comigo um “tempão”, tocou pra mim: “Não, canta aí, que música você quer cantar?”, tocou pra mim “Gabriela”, tocou outras músicas: “Que música mais você conhece?”, ele se empolgou, e disse que ele mesmo não tocava há muito tempo, ele é dono do conservatório, mas ele não dá aula mais. Ele falou a mesma coisa: “Por causa de técnica, que meus dedos já estão enferrujados eu não vou poder acompanhar você nessa prova, mas eu vou te indicar um dos nossos melhores professores”, e eu: “Ai meu Deus, quem que finalmente vai me acompanhar nessa música?”. Ele deu o telefone do professor José Luiz de Carvalho. Aí está... (risos) Aí, eu peguei e liguei, ele ligou pra ele na hora, na verdade, de lá de dentro da escola, o professor não estava na escola naquela hora, ele ligou e falou: “Ah, seu Zé Luiz, tem uma menina aqui, quer fazer uma prova, ela é super afinada, eu acabei de passar aqui com ela, não sei o quê. Ela quer fazer uma gravação de um CD pra prova na OLM, você acompanha? Então tá”. Marcamos o dia de eu conhecer ele, já pra fazer o ensaio. Eu comprei a partitura do Tom Jobim. Ele já fez exigência: “Não, mas ela tem que já levar tudo a partitura, tem que estar de cor, tem que ter ensaiado”, falei: “Ah, tá bom. Nossa, o cara é rígido. Mas pelo menos ele deve ser bom” (risos). Aí eu comprei a partitura... E fui.
Eu lembro que o dia que eu estava na sala com o seu Nino esperando chegar o professor, ele estava conversando comigo e de repente bateram na porta, ele abriu... (risos) Ele entrou e deu de cara comigo e eu: “Não acredito!”, sei lá, tive um déjà vu, não sei, sabe a sensação de... Que coisa estranha, como é que um desconhecido parece tão conhecido pra você? Tive a sensação de que é uma pessoa conhecida, a cara dele, o olho dele, o jeito dele. Eu lembro que ele entrou, olhou e deu de cara comigo, ele pegou, abaixou a cara, sério. (risos) Começou a falar com o seu Nino e nem deu bola pra mim. Aí ele falou: “Ah, essa aqui que é a aluna que eu te falei”, ele: “Ah, prazer”, levantou a cabeça, pegou na minha mão e continuou falando com o seu Nino. E eu nem lembro o que eles falaram, eu sei que eu fiquei viajando: “Gente, o que tem esse cara que parece tão familiar?”, eu fiquei olhando o jeito dele... Achei ele engraçado, porque ele era meio sério, mas eu sabia que ele não era sério (risos). Aquele dia ele estava nervoso, ele “trupicava” também, errou um monte de nota, aí eu falei: “Esse cara é bom mesmo?”, e ele estava meio nervoso. Depois de muito tempo, a gente conversando sobre essa hora, ele disse que ele entrou sério, eu falei: “Como que você entrou tão sério daquele jeito se você não é sério assim?”, aí ele falou: “Sei lá, eu levei um susto quando eu vi você”, eu falei: “Caramba, que droga. Nossa, por quê?”, aí ele falou: “Nossa, que menina bonita, agora estou ferrado”, porque na hora, na época, ele estava namorando, tinha até aliança no dedo, não era casado, mas ele namorava sério. Eu achava tudo isso, mesmo, muito engraçado, porque no decorrer dos ensaios, acho que a gente fez o quê? Uns oito ensaios só e já fez a gravação. Ele chegou a comentar de alguma menina, eu não lembro como, se foi um telefonema que ele recebeu, ele falou: “Ah, não sei o que, minha namorada”, algum comentário, assim, rápido, que eu falei: “Ah não, mentira”. Foi no dia que a filha dele ligou, ele já tinha uma filha. A filha dele ligou e eu achei que era a namorada e fiquei na dúvida: “Será que ele tem compromisso? Será que não?”, porque ele tinha uma aliança, mas é uma aliança toda estilizada, que parecia tanto um anel bonito, como podia ser uma aliança.
No final dos ensaios ele começou a me dar carona, ele me oferecia carona, só que assim, Avenida Pompéia, ele tinha que me dar uma carona até o final da Avenida, que eu pegava a Avenida Matarazzo, então ele descia três quarteirões, era uma carona de três quarteirões. Eu comecei a achar engraçado, falei assim: “Imagina, uma carona de três quarteirões?”. Depois, outro dia, ele me deu uma carona de quatro quarteirões, pegou um pedacinho da Matarazzo e, no último dia de ensaio, a gente acabou ficando até quase meia-noite lá no estúdio, porque teve que passar várias vezes e ele acabou me levando em casa. Aí, no último dia ele entrou em casa, a gente ficou conversando no escritório da minha casa e, nesse dia, quem ficou tendo um monte de déjà vu foi ele, porque tinha uma coleçãozinha de livrinhos na minha estante da minha casa, que eu brincava quando eu era criança, que eram uns livrinhos de filósofos. Um de capa azul, vermelho, amarelo, verde, é uma coleçãozinha, ficava numa estantezinha de madeirinha e... A gente ria, não sabia “lê” tinha cara, né? Chamava até “Vultos do Mundo”, a coleção, e tinha a cara de Shakespeare, de Napoleão Bonaparte, tudo quanto era figura importante tinha aquelas caras horrorosas. (risos) E a gente abria aleatoriamente e olhava, cá cá cá cá cá, e ficava rindo daquilo, e... Estava todo rabiscado até, as caras, e era do meu pai, e quando o meu pai descobriu que estava tudo rabiscado a gente apanhou por causa daquilo, mas era a nossa diversão, era rir daquelas caras horrorosas. (risos) Era uma coleção de caretas pra gente e estava na estante da minha casa, e ele viu aquilo e falou que ele brincava com aquilo também, e que ele tinha aquilo.
Tinha um dos móveis da minha casa, que tinha uma mesa, que tinha um folder, um monte de baleia e eram uns peixes no fundo do mar, e o vidro em cima, que o meu irmão é biólogo. E o Luiz, ele também é apaixonado por bichos de todo tipo. Ele achou lindo aquilo, então, ele ficou olhando. Eu lembro dele ter pedido pra eu abrir o computador, eu abri o computador, entrar no word, na minha pasta e ele começou a fuçar, como se ele me conhecesse, com uma intimidade começou a entrar e começamos a rir, engraçado, a gente qualquer coisa ficava rindo, e ele ia lendo as coisas, porque eu escrevia, desde criança, eu sempre escrevi também. E eu fui ficando maior e pra não jogar aquele monte de coisa fora, algumas coisas que eu mais gostava eu colocava no computador em arquivo e dava título. Ele entrou e começou a ler um monte, e eu deixei, engraçado, eu não me senti... Eu nunca tinha mostrado nada daquilo que estava lá pra ninguém. E ele leu e eu gostei dele estar lendo. Ele estava achando super divertido e eu também. Na hora de ir embora, eu lembro que eu estava com tosse, que a gente estava até preocupado, como é que ia sair o resultado da fita... Porque eu estava com a garganta inflamando; minha mãe tinha feito um xarope, eu saí na cozinha pra buscar o xarope, quando voltei: “Ah, você tomou o xarope? Me dá um pouco que eu gosto de xarope feito em casa”, eu falei: “Mas você tá com tosse?” (risos), ele falou: “Não, mas é que a minha mãe sempre fazia desse xarope caseiro, eu acho gostoso”. Eu voltei lá, catei o xarope, a gente ficou tomando o xarope como se fosse licor (risos). São umas coisas bobas assim, mas que fez a gente rir muito, que fez parecer que a gente se conhecia há muito tempo, e ele saiu com essa mesma sensação.
A gente ficou conversando até quatro da manhã, quando a gente olhou no relógio ele tomou um susto, ele chegou em casa quase uma meia-noite, né? E nisso, os meus pais, já estava todo mundo dormindo lá em cima nos quartos, eu só ia entrar e subir também. E eu acabei ficando com ele ali no escritório, conversando, conversando, conversando, conversando, conversando, falei: “Nossa, é melhor você ir embora. Meus pais acordam e você tá aqui” (risos). E ele saiu, foi embora. Na hora de ir embora a gente teve aquele clima de beijo, mas ele fez assim: “Ah, eu tenho que ir embora”, e saiu, andando até de costas, me deu um tchau, me mandou um beijo e eu falei assim: “Como que esse cara sai assim?”. Saiu, foi embora todo alegre, rindo, mandando beijos, mas a gente não se beijou. No dia seguinte me mandou torpedo no meio do caminho, disse que tinha adorado me conhecer, que tinha acontecido muita coisa na cabeça dele, que ele estava com medo, e eu falei: “Medo por quê?”, e ele falou assim: “Ah, eu tenho até medo de falar”; “Mas você não tá falando, você tá escrevendo” (risos), aí ele deixou três pontinhos e, no dia seguinte de manhã, ele me mandou um torpedo assim: “Não, sabe o que é? É que eu tenho uma namorada”, eu peguei e liguei pra ele: “Como assim?”; “É, eu namoro e já estou um certo tempo com ela. A gente trocou até anel”; “Ah, esse anel aí é uma aliança?”. Eu fiquei sem entender nada. Falei: “Como assim, é esse cara? A hora que eu encontro ele, ele tem namorada? Não, não é possível, o que vai acontecer?”. Eu não tive dúvida, no primeiro dia que eu conheci ele no conservatório, eu terminei definitivamente com o (Nicolai?), a gente ________ que eu tava ficando. A gente estava mais amigo, mas ainda tinha um vínculo com ele, eu falei: “Olha, acabou agora a brincadeira, porque eu conheci quem vai ser o pai dos meus filhos”, ele deu risada: “Ah, para de me encher o saco”, eu falei: “Não, eu tô falando sério”, ele não levou a sério, mas a gente parou de se falar, de se tocar, de se beijar aquele dia. Eu não tinha nem falado nada com o Luiz. No dia seguinte eu falei pro (Nicolai?), eu já tinha decidido por mim.
Depois de todo esse tempo, esses ensaios, no último dia do ensaio ele foi em casa, ficou esse clima, no dia seguinte ele me conta: “Ah, eu tenho uma namorada”, e eu falei: “E aí?”; “Ah, e aí que a gente não pode ter uma vida dupla. Eu não posso ficar com as duas”; “Como assim ficar com as duas? Você não pensou em ficar com uma só?”; “É que eu tô com ela há mais tempo. A gente se conheceu agora, não sabe nem o que é isso”; “Ah... Tá bom”, se ele não tem toda a certeza que eu tenho, não é ele. Mas fiquei assim: “Caramba, de onde que vem essa sensação? Tá bom, o que eu vou fazer?”. Diante disso, fiquei triste pra caramba. Nisso, faltava o quê? Uma semana pro dia da prova, que ele ia tocar comigo, ele ia me acompanhar. Acredita que na véspera ele me liga e disse que não ia me acompanhar? Porque ele disse que se ele me visse mais uma vez, ele ia fazer uma besteira, ele não queria fazer uma besteira na vida dele. Falei: “Uma besteira?”; “É, porque eu sou comprometido e você mexeu muito comigo, e eu acho melhor a gente não se ver mais”; “Eu mexi muito com você e você não quer me ver mais? Eu acho um absurdo! Que cara covarde!”. Fiquei revoltada, eu falei: “É um palhaço! É um Zé Mané!”, eu comecei a chamar ele de Zé Mané, eu falei: “É um Zé Mané!”, chamava José Luiz, né? “É um Zé Mané!”.
Ele não foi na prova, eu fui na prova sozinha, tive que pegar um dos professores lá na hora, da OLM, que deixaram à disposição, tinha essa alternativa de você levar uma pessoa que você já conhecia, com quem você ensaiou, e você conhecer uma pessoa na hora: “Ah, tudo bom?”; “Tudo bom”, “Vamos dar uma passadinha aí?”; “Ah... lá lá lá lá lá, vamos lá”, foi assim que eu fui pra prova. E ainda você tinha que fazer a gravação de duas músicas, uma do Gil e uma do Tom Jobim. A do Tom Jobim eu escolhi a “Gabriela” e a do Gil, que eram as que tinham lá à disposição, “Domingo no parque”, que é a história de uma tragédia. E no dia eles decidem pra você que música que você canta: “Qual que você gravou? ‘Gabriela’ e ‘Domingo no parque’? Então tá, você vai fazer a prova do ‘Domingo no parque’”, e eu: “Ah, só me faltava essa”. Eu gostava tanto da “Gabriela”, eu nem cantei a “Gabriela”, ele não estava lá. Eu não passei na prova. Eu lembro que fiquei muito emocionada, que eu coloquei tudo de mim, mas eu desafinei. Não fui bem na prova, não passei. Passou...
Dali uns três meses, eu fiquei sabendo de um coral que tinha aberto na Aliança Francesa, mas um mês atrás eu tinha acabado de trancar o francês por causa de “grana”, fiz um semestre de francês e parei, falei: “Oba, estão fazendo o coral lá na Aliança Francesa, vou matar dois coelhos com uma cajadada só, eu gosto de cantar...”, eu já tinha participado em corais outros anos. Eu falei: “Eu vou entrar num novo coral e eu vou treinar o meu francês”. Quem
é o regente do coral? (risos). Era ele. Chego lá e dou de cara com ele, aí ele ficou sério. Falei: “Com quem eu faço teste pra fazer o coral?”; “Ah, é comigo mesmo”; “E que horas é?”; “Ah, daqui quinze minutinhos, eu só vou tomar um café, aí a gente já vai pra sala, eu já passo você”; “Já entrou muita gente no coral?”; “Ainda não, só tem umas cinco pessoas por enquanto, mas a gente vai fazer o teste já, eu vou tomar um café”, e eu bem quieta, bem na minha, eu estava furiosa com ele (risos).
Deixa eu contar detalhes. Passaram três meses, eu já não estava com o (Nicolai?). Eu decidi fazer o quê? Uma festa. Eu tinha ido mal na prova da OLM, falei: “Quer saber? Eu vou fazer uma festa em casa e vou reunir todos os meus amigos de infância, do colégio”. Aproveitei a história do Orkut, mandei mensagem pra todo mundo, fiz um convite: “Vou fazer um churrasco na minha casa, cada um leva isso, tu leva aquilo, tu leva aquilo” e montamos uma festa em casa, e reencontrei gente que eu não via há muito tempo, alguns amigos já com neném no colo, uns casados. Revemos um monte de álbum, foi muito legal. Nesse dia perguntaram: “Nossa Márcia, e você, tal tal tal?”, e eu chateada com essa história, “poxa, a gente achou que você ia casar com o (Nicolai?)”, falei: “Não, eu terminei com ele, ele não queria casar. A onda dele era outra”. Então eu contei a história do _________: “Ah, estou chateada, porque eu conheci um cara tão legal, achei que era ele. Nossa, mas foi só uma zica atrás da outra”. Contei o que tinha acontecido. “Pior que eu tô meio em suspense, porque sabe quando você tem certeza que é a pessoa e a pessoa fala ‘estou ocupado’?”, então, eu estava meio entalada, meio sem saber o que era aquilo. Aí, um amigo que estudou comigo desde a 4ª série, que era um “CDFssíssimo” da turma (risos), deu o maior xaveco em cima de mim e ele estava lindo (risos). Depois de tanto tempo, ele estava lindo, e: “Não, vamos sair, pra você não ficar chateada”, e começou a chamar eu, fulana, ciclana e beltrano e mais uma turminha, porque se me chamasse sozinha sabia que eu não ia. Começamos a sair em turma, algumas semanas, até que começou a me xavecar, xavecar... Me tratando que nem uma princesa e nessa de “que eu vou fazer você esquecer esse cara”. E eu contei a história pra ele, ele sabia: “Vamos sair, você não pode ficar assim”. E aí eu estava saindo com ele quando eu entrei no coral da Aliança Francesa, eu estava saindo com o Arquimedes, estávamos com um namorico. Mas eu sabia que aquele negócio não ia longe, mas a gente saia, se divertia, passava bons tempos juntos, eu gostava de muita coisa em comum.
E eu reencontro lá o Luiz. Fiz o teste da OLM... Já tinha feito, né? Aí fiz o teste do coral, ele falou assim: “É, eu já sei qual é a sua afinação, já sei qual o seu tom de voz, mas eu vou tratar como se fosse uma aluna normal”, eu: “Hum hum”, e ele falou assim: “Eu tenho que fazer esse teste”; “Hum hum”; “Eu vou preencher os seus dados de novo, tá?”; “Hum hum”; “Nome, idade, profissão, endereço, que bairro é lá mesmo?”; “É, Pirituba”; “Qual é o nome da rua?; “É Maria Pereira Pinto”; “Que número que é mesmo?”, eu: “55”; “Ah”, todo sério, sem graça, ele estava sem graça.
Passaram alguns meses de ensaio, ele não olhava pra minha cara, ele não me fitava nos olhos. Ele falava com todo mundo, ele era divertido, brincava com todo mundo, quando era pra falar comigo ele falava sério e olhava meio pra baixo, meio pro lado. Ele nunca (risos) olhava pra mim, pro meu olho. Então eu falei: “Aí tem alguma coisa, por que ele não me olha na cara. Tá fugindo de quê? Já passou 3 meses”. E nisso quem vem me buscar era o Arquimedes. Acabava o ensaio, e aquela cena, aquela turma em direção ao metrô. Aí ele vinha puxando papo: “E aí? Nossa, que legal te ver de novo, que legal te reencontrar. Nossa, que bom que você veio pro coral”, e tocava o meu celular: “Ah... Tchau gente, eu vou de carona, eu vou embora”. Passou uns meses assim. Eu sei que o coral da Aliança Francesa não deu certo, porque só tinha aqueles seis gatos pingados, não apareceu mais ninguém e a Aliança não queria bancar isso, o coral terminou, durou três meses, acabou o coral. “Tchau, tchau”, cada um foi pra um lado, falei: “Agora eu não vejo ele mais”, e eu já estava com o Arquimedes, falei: “Acho que eu estava enganada”, mas a sensação não saia: “Que coisa esquisita. Vai ver que é coisa da minha cabeça de ficar sonhando tanto tempo”. Você impregna com uma ideia.
Depois de uns meses eu continuei com os meus trabalhos de projeto de arte e educação e me perguntaram se eu não conhecia um maestro, regente de coral, que estava precisando de uma vaga, eu falei assim: “Ah, vou mandar um e-mail pra ele” (risos), peguei e mandei um e-mail: “Olha, estão precisando de um regente de coral, não sei mais...”, mas falei assim: “Senhor José Luiz, estão precisando de um regente de coral, o senhor tem interesse em dar aula, oficina, pra uma turma assim, assim, assim? Entre em contato com a ONG tal, tal, tal, tal”. Ele me respondeu: “Puxa, que legal que você me mandou o recado. Nossa, obrigado por ter lembrado, como é que você está?” e começou a puxar papo no e-mail. A gente ficou se correspondendo por e-mail, nisso eu já tinha terminado com o Arquimedes, porque o negócio não ia pra frente. E começou a trocar e-mails comigo até que ele me convidou pra sair, e eu falei assim: “______ pra sair, o que ele tá querendo?” (risos). Ele me chamou como quem não quer nada, me ligou em casa e falou assim: “Ah, eu tô indo dar uma volta na Fnac, preciso comprar uns livros, você não quer dar uma volta? A gente sai pra tomar um café, conversar um pouco”, eu: “Conversar um pouco, não, amanhã eu acordo cedo”; “Não, mas vai ser rápido!” e insistiu. Eu falei: “Pra dar uma volta na Fnac?”. Ah, isso porque ele já tinha me mandado por e-mail: “Ah, você não quer passar um dia lá no conservatório? Eu acabo de sair do trabalho e a gente vai jogar sinuca ali perto”, que convite! (risos) Eu respondi: “Não, obrigada, estou ocupada”. Aí depois foi a outra que ele me perguntou se eu sabia dançar forró, que ia me levar num lugar pra dançar forró. Falei: “Esse cara tá louco”, respondi: “Não, obrigada, eu não sei dançar forró”; “Ah, mas eu ensino”; “Obrigada, eu não estou a fim de conhecer um salão de forró”. Gente, cada convite estapafúrdio. Até que ele me ligou, pessoalmente, e me convidou pra ir à Fnac: “Ah, eu passo aí na sua casa”; “Ah...”; “Eu passo aí na sua casa e a gente vai dar uma volta”. Fomos na Fnac e eu vi que ele estava gentil demais, doce demais, puxando conversa, ficava olhando CDs assim, sabe? A pessoa vai mexendo no CD e tromba, vem encostando, (risos). Eu não falava nada, estava séria ali, “se agora ele estiver querendo alguma coisa, ele vai ter que falar, depois da última que ele fez eu passar...”. Sei que saímos e não rolou nada.
Ele me chamou pra sair de novo, na mesma semana, no dia seguinte, falou: “Ah, você não quer...?”; “Ah, hoje estou ocupada”; “Ah, então na noite seguinte?”; “Tudo bem”. No outro dia, fomos comer num barzinho na Vila Madalena, aí ele começou, ele bebeu uma cerveja, levou um CD da banda dele – ele tem uma banda de música medieval – e pediu para colocarem o CD dentro da lanchonete pra ficar de fundo musical a música dele (risos). Falando, falando e vindo pegar na minha mão, e eu fazendo de desentendida. Não rolou nada de novo. Na terceira vez ele me convidou pra ir ao cinema, fomos assistir “Café da manhã em Plutão” (risos), marcamos de ir assistir na Paulista. Eu cheguei atrasada, quase perdemos a sessão, peguei um trânsito danado, que eu ia sair do serviço e ir direto pra lá, e ele também, ia sair do serviço direto pra lá no fim do dia. E ele me recebeu com um sorriso daqui aqui, de orelha a orelha: “Oi, tudo bom?”, me deu um abraço, eu fiquei, assim, a gente nunca tinha se tocado. Ele me deu um abraço, me deu um beijo todo contente, rindo, feliz: “Ai, que bom que você veio”, eu: “É”. A gente assistiu o filme, na metade do filme eu já estava derretendo... (risos) Nós saímos e fomos tomar um café em uma lanchonete ali perto mesmo, na Augusta. Aí aconteceu o nosso primeiro beijo. E ele me contou, na verdade assim, a gente ficou junto e eu fiquei só vendo o jeito dele, falei: “Alguma coisa mudou, vou esperar ele dizer o quê”. Aí ele contou que ele tinha terminado com aquele namoro dele, que não tinha dado certo: “Ah, se eu soubesse que ia acontecer...” (risos); que ele gostou muito de ter me reencontrado, que a sensação que ele tinha sentido no começo tinha continuado, que foi até muito bom a gente ter se reencontrado lá no coral da Aliança Francesa, que foi num outro momento e que ele estava arrasado, porque ele tinha visto que eu estava com outra pessoa. E eu falei: “É, eu não tô mais”, ele: “Ai que bom, fico feliz”. A gente começou a namorar (risos) e estamos juntos até hoje. E agora, no dia 12 de junho, que eu dei aquele cartão amarelinho, cheio de estrelinhas, porque eu tinha essa ideia também, que ia ser junto com estrelinhas.
Uma vez eu li num livro do Ganymédes José, que agora eu não sei se eu vou lembrar o nome, que falava da Vivinha, que tinha na janela dela um girassol, “Um girassol na janela”, e ela recebe a carta de uma pessoa muito querida. Ela abre a carta e chove estrelinha no colo dela, aí eu falei: “Ai que legal, quando eu entregar o meu cartão eu vou fazer isso”. E eu fiz isso. Comprei um pacote de lantejoulas de estrelinhas, coloquei dentro do cartão. Ele abriu e choveu estrelinha no colo dele (risos). Ele ficou contente, emocionado... Eu vi que ele gostou, ele ficou sem palavras, ficou rindo muito, me abraçou muito, mas ele não fez um comentário, eu escrevi, contei que o cartão estava guardado há tanto tempo e não sei quê. E... Tá fazendo uns dias, eu decidi que ia sair de casa; hoje eu levei quase todas as minhas roupas pra lá, pra casa dele, a gente tá bolando como que vamos fazer o nosso ritual de casamento (risos). Eu falei da história de ter um bebê, ele ficou assim: “Nossa! Mas já? Não é um pouco cedo? Vamos viajar um pouco primeiro”, porque nos desfizemos de uma série de contratos de trabalho, a gente tá pegando novos trabalhos agora, que a gente tá meio que economicamente desestabilizados, a gente tem que acertar algumas coisas, mas eu continuo com a ideia de que eu vou fazer esse filho, que ele vai ser o pai e eu vou achar um momento. Eu já fui no ginecologista (risos), já solicitei aquela bateria de exames, o que é necessário, já estou com todos os documentos, vou começar a fazer a bateria de exames essa semana, porque disse que tem que preparar o organismo. Nossa, tem um monte de coisa complicada pra ter um filho (risos), não é simplesmente ir lá e fazer. Nossa! Tem que tomar uma série de vitaminas pra ajudar, aqueles exames todos de pré-natal, e já estão todos marcadinhos, agendados e vou começar a fazer essa semana.
P/1 – Há quanto tempo vocês estão juntos?
R – Agora no final de agosto vai fazer um ano (risos), bem rápido.
P/1 – Como você vê a decisão de ter filho em relação a sua vida profissional e outras esferas da sua vida?
R – Pois é, eu sempre tive essa preocupação, porque eu falava assim: “Como que é... Eu vou ter filho”, porque assim, filho exige um tempo, um certo gasto, dinheiro. Eu fico assim: “Gente, se eu for esperar a situação adequada e ideal eu não vou fazer filho”, e eu já tinha ouvido isso de outras pessoas: “Ah, se você ficar pensando muito você não tem filho nunca” (risos). Você, primeiro, quando quer alguma coisa, você tem que ir atrás dela, agarra ela, o resto você dá um jeito; se você está agarrada no que você quer, o que tiver em volta você sacode, assim, e se apruma, mas você tem que estar certa naquilo que você quer, o resto você resolve. Então, estou acreditando nisso, que eu vou dar um jeito (risos), eu não sei que jeito ainda, mas estou certa que eu vou dar ele, não sei pra que lado vai ser.
P/1 –Como é a sua vida profissional?
R – Profissional? Bom, eu me formei em psicologia, só que eu já saquei que ficar em consultório não rola, eu não ia aguentar ficar horas em um consultório só falando com a pessoa, ouvindo. Para mim, a terapia funciona muito mais você fazendo alguma coisa na rua, você fazendo alguma atividade, por isso que eu comecei a trabalhar em escola, fazer projetos de arte e educação, você trabalha psiquicamente a pessoa, você trabalha a estruturação, desequilíbrio, até psicóticos às vezes... Tem, na verdade, tratamentos que você faz em consultório, nem é bom. Atender as vezes psicótico em lugar muito fechado, porque você acaba facilitando a doença, o processo da doença, porque já tende pra isso, pra um não contato com outro, pra um não contato com o mundo, então, quanto mais você propícia a pessoa em situação de relação com o outro e com o mundo, melhor pra ela. E eu me sinto mais a vontade fazendo isso, então estou atrás de trabalhar é na área da educação, mas não pra dar aula de psicologia, que é péssimo dar aula de psicologia em escola, não funciona também, porque entra na grade curricular como aquela coisa obrigatória e eles vão lá e faz como se fosse decorar a tabuada. Isso não ensina nada, então, eu criava projetos de experiências com a arte, que propiciasse a exposição deles, então, trabalhar a questão de identidade, de sexualidade, de relacionamento, de amizade, de problemas familiares, todas essas questões, através de projetos em grupo. A última ONG que eu trabalhei, era com cinema, era produção de filmes deles, que faziam eles, primeiro, estimular a escrita, a criação escrita, para que eles criassem a sua própria história, aprendessem então a fazer um roteiro de uma história, criar os seus personagens, criar a sua trilha sonora, quer dizer, que eles trouxessem o repertório da vida deles, que era uma forma deles se conhecerem e conhecer a história deles, também, pra colocar num filme. Só que com isso eles poderiam inventar. Não precisava repetir a história: “Ah, sua história assim...”, você pode inventar a sua história. Você não gosta da sua? Então inventa ela, põe num filme, e agora põe na sua vida, que sua vida também é um filme que você que tá compondo. Então, era uma história... Um jeito bacana de trabalhar com adolescente, com criança, também produzimos filme com criança. Muita criança fica mais com coisa de repetir o conto de fada. Mas assim, como trabalho em grupo é muito bacana.
P/1 – Como você elaborou essa interface entre a sua formação como psicóloga e o seu trabalho como arte-educadora?
R – Bom, eu acho que, como eu falei, na parte de estudo eu aprendi as coisas muito sozinha. Acho que por intuição, de andar por biblioteca, eu gostava de andar por meio dos livros e olhar o livro pela capa que eu achasse bonito, um livro gostoso de pegar, um livro que eu abrisse e achasse uma coisa interessante: “Ah, esse não. Ah, esse é legal”, aí eu catava e começava a ler, sozinha. E de escrever, eu sempre escrevi em cadernos, eu não mostrava pra ninguém, mas não era um diário, eu não escrevia diários, eram momentos que me dava vontade de escrever, coisas que eu não podia dizer, mas eu também não podia deixar de contar, de expressar, eu não sei, eu escrevia, escrevia, escrevia. E eu sentia falta de um espaço na escola, inclusive, pra essa outra coisa, a experiência que a gente não vive através da matemática, no que a gente vive através... Na verdade, aquela coisa que se discute muito hoje em dia. Eu sentia falta disso quando eu era criança, eu acho que todo mundo devia sentir. De alguma forma, é como pegar todo aquele conhecimento da escola e fazer conexão com a nossa vida. E parece que a nossa vida era uma coisa muito à parte da rotina da escola, como se não tivesse uma coisa a ver com a outra, então eu sentia falta de falar das minhas coisas na escola, de ter um lugar na escola pra discutir.
Curiosidade, eu li no primeiro dia de aula também. O que a Dona Elisa deu pra gente? Ela distribuiu um monte de cachorrinhos poodles no mimeógrafo, aquele cheirinho gostoso, pra gente colorir, aí a minha caixa de lápis de cor, que eu ia estrear, se acha que eu ia estrear a minha cor preferida, eu ficava olhando para o céu, eu ia estrear o meu azul, pintei o meu cachorro de azul, pra quê? Aquilo foi um “bafafá” na escola, a professora olhou com uma cara estranhíssima: “Mas você não sabe que cor tem um cachorro?”, e saiu da sala, eu não respondi nada, falei: “Era pra responder?”; eu nunca entendi a pergunta de um professor na escola, até a 3ª série eu não entendia a pergunta dos professores. Ele escrevia: Joãozinho foi na feira, comprou tomate. “Fulano, o que você entendeu dessa frase?”. Eu ficava assim: “Sei lá, você quer que eu leia de novo?”. O que deu pra entender, que João foi na feira e comprou tomate. João foi na feira e comprou tomate! Aí, eu falava: “Não pode ser isso que ela está querendo ouvir de mim, eu vou repetir de novo, ela vai achar que estou gozando com ela”; porque o meu pai, se fizesse uma pergunta e eu respondesse, ele ia sentir como um desafio e batia na gente, então ficava calada se fosse uma resposta idiota, tinha que ser uma resposta boa. Aí eu pensava... Repetir o que ela acabou de ler, não deve ser uma resposta boa (risos), eu não respondia nada (risos). Eu nunca entendia o que elas estavam perguntando. E a pergunta era essa mesmo. O que você entendeu? Que o Joãozinho foi na feira comprar tomate. Então, tinha esse tipo de coisa. Poxa, era isso que ela queria saber, se a gente entendeu a frase, porque não põe uma frase que tenha sentido com a vida da gente, porque que não faz uma brincadeira, um jogo? Sei lá, cria alguma situação pra gente participar, elas queriam que a gente participasse, mas de com métodos esquisitíssimos. E eu sempre achei isso muito engraçado e escrevia sobre essas coisas, eu escrevia essas coisas que eu sentia falta. E as minhas professoras de português gostavam das minhas redações (risos). Eu lembro... Mas eu nunca botava fé, porque o meu cachorro azul foi recriminado. Então, eu achava que nada que eu fizesse, porque eu gostasse muito, era bem visto na escola. Então, as coisas que eu gostava muito eu não mostrava pra professora.
Teve alguns poucos professores que deixava um pouco de liberdade pra eu escrever coisas malucas nas redações, criar histórias. Eu adorava metáfora, ficava inventando metáforas. E eu tinha uma professora até no 1º colegial, que ela era bem novinha, ela era recém-formada, a professora mais nova que a gente tinha tido, e ela me falou: “Nossa, você devia escrever um livro, você nunca pensou em reunir histórias e escrever livro?”, eu achei que ela tivesse, sinceramente, “zoando” comigo, porque eu falei: “Não é possível que um professor vai dizer isso pra mim”, porque do jeito que era o ensino que eu tive na escola do Estado, aquilo era estranhíssimo, eu não levei a sério, eu devia ter levado a sério. Ela disse que estava disposta a me ajudar a organizar um livro, que depois eu fui parar pra pensar nisso, alguns anos mais tarde, e bem mais tarde. Eu acho que já teria me adiantado uma série de tropeços.
Quando eu me formei. Ah, na época quando eu fui prestar vestibular, eu fiquei em dúvida entre jornalismo, política, assistência social (risos) e psicologia. O único desses quatro que eu achei que tinha mais a ver com as coisas que eu queria, que reunia um pouco de cada um desses, era a psicologia. Só que eu terminei a faculdade frustrada, porque o que eu achava que era psicologia, o estudo do homem, eu vi que não era, exatamente, o estudo do homem, era a criação de uma tabela para o homem, e eu discutia muito com as professoras na escola e na faculdade por causa disso, elas vinham e falavam das teorias, e explicavam as teorias pra gente como se fossem as verdades, essas são as verdades. E ensinava a gente a reproduzir, não ensinava a gente a pensar as teorias, não ensinava a gente a criar teorias, não ensinava a gente a... De onde veio essa teoria, porque havia essa teoria e questionar: “Será que ela tem fundamento?” ou “será que ela ainda serve pra cidade de hoje?”, mas uma coisa óbvia. Mas isso não tinha na faculdade, eu não tive isso na faculdade. E quando eu trazia essas discussões pra faculdade tinham professores que gostavam muito, outros achavam uma amolação, mas enfim, até os que gostavam muito não tinham espaço pra isso na faculdade, a grade curricular era outra, era passar a matéria, você dizer que compreendeu aquela teoria e ok, não era saber se ela servia, se ela era aplicável ou não, então, eu estava meio frustrada: “Ah, psicologia é isso então? É aprender qual que é o padrão de normalidade, esse está fora, esse está dentro e ficar adaptando as pessoas nesse padrão aqui? Não, não é isso”. E eu vi, mas tem tanta coisa boa que eles falam, como é que eles podem chegar a essa conclusão? Tem tanta teoria interessante, como a teoria vai dar nisso? Se ela começou por outro lado de pesquisa tão mais curioso, mais instigante, como é que vai parar nisso? Aí eu comecei a estudar psicanálise e conheci o Lacan, porque eu começava a fazer umas provocações e um amigo meu falou assim: “Nossa, você é Lacaniana”, eu falei: “Eu sou Lacaniana?”; “É, você faz umas perguntas que Lacan ia achar interessante. Você questiona coisas que são questões de Lacan”. Então eu fui atrás de saber quem que era Lacan e quais são as teorias dele. Ele tem um olhar totalmente diverso mesmo, nessa coisa da psicologia, é... Não existe padrão de atendimento, não existe norma, não existe regra, cada sujeito é único, por isso não existe, é... Psicanalista familiar ou psicanalista infantil, você atende o sujeito, um sujeito de três anos, um sujeito de 53 anos, é sempre um sujeito que você está atendendo, é um sujeito em formação, enquanto ele morre, ele ainda está em formação. E você não usa padrões, não existem padrões para o homem, se o homem está em formação, como é que você vai colocar ele em um padrão? Se a gente está sempre se inventando. E os trabalhos dele são vastíssimos, são 21 seminários e nada do que ele ensinou ele deixou escrito, toda a teoria dele, todo trabalho foi prático, ele trabalhou a vida inteira até o último ano da vida dele atendendo oito horas por dia, era meio fanático, nesse sentido. E ele só parava às vezes para dar os seminários, o tempo que ele parava era pra fazer seminário, toda aula e teoria dele eram pensadas junto com as pessoas, junto com os analistas, formando de analista, formando de medicina. Ele dava aula para psiquiatras também, porque na verdade, todo trabalho dele foi uma grande pesquisa, ele estava constantemente pesquisando, o trabalho dele cotidianamente era pesquisar.
Então, cada sujeito que entra no consultório é um sujeito novo, então, você não pode aplicar uma teoria nele, você tem que fazer uma pesquisa sobre esse novo sujeito que está chegando e ajudar ele no que ele está dizendo que incomoda ele; você não vai arrancar o incômodo dele, porque isso também é impossível, não é arrancar um sintoma dele, é fazer, tentar entender porque ele produziu aquele sintoma, porque que ele vive naquele círculo que ele não gosta. Ora, se é ele que cria a vida dele, ele está reclamando da vida dele, por que você está criando essa vida que você não gosta? Essa é a pergunta do Lacan. Onde está o seu desejo?
O seu desejo é esse? Então, por que você está indo para lá? Entender porque o caminho está desvirtuado é uma coisa muito única, muito específica, independe do lugar que você está, se é um consultório, se é um hospital, se é uma rua, se é uma praça. O que depende é o sujeito, do desejo desse sujeito e pra onde que ele está caminhando. Eu acho isso muito mais interessante, é um negócio complexo, mais difícil, porque exige muito mais do profissional, porque você não sabe exatamente nada do que você vai dizer pra esse paciente. Você não sabe nada sobre ele, você nunca sabe o que vai responder pra ele, porque ele é sempre novo. Isso requer um feeling, um tato muito mais atencioso do analista, que é muito mais complicado, é você estudar as estruturas. Como que se fala com um sujeito neurótico, como é que se fala com um sujeito histérico, como é que se fala com o sujeito obsessivo, um psicótico e um perverso. Você estuda as estruturas, os mecanismos, como funciona, ainda que existam “trocentas” fórmulas de... “Trocentos” sujeitos neuróticos, nenhum neurótico é igual ao outro, a neurose é uma coisa, mas cada um vai utilizar a neurose de uma forma na vida e é essas formas que ele está interessado. Então, a gente estuda técnica, agora, as formas de intervenções se requer um estudo absolutamente inconstante. Você tem que fazer sempre a sua autoanálise, sempre estar com a sua análise em dia, pra poder lidar com esses imprevistos inesperados diários do paciente.
P/1 – Então você partiu de Lacan pra elaborar essa interface?
R – É. Eu acabei juntando, porque enquanto eu fui estudando Lacan, eu fui vendo que as coisas que eu gostava dava pra eu juntar, por quê? Eu sempre gostei de escrever, eu sempre gostei de pintar, eu sempre gostei... Eu fiz escultura, eu fiz música, estudei música, fucei no violão (risos), eu gosto de trabalhar com papel de marchetaria, trabalhos artesanais; vi minha mãe fazendo isso a vida toda, sempre fiz com ela, aprendi a fazer filmes de cinema, roteirização, edição, tra lá lá, fiz teatro, fiz dança. Mas isso porque eu sentia necessidade, eu fazia não é porque eu queria ser dançarina. Não, eu sentia necessidade de ter um lugar pra dançar e me soltar não sei de que jeito: “Ah, onde que tem isso?”; “Ah, lá”, então eu ia lá e fazia: “Eu tenho vontade de cantar, onde que tem um coro?”, eu ia lá, entrava num coro e ficava cantando anos e anos, fazia apresentações: “Ah, mas eu vou...”, aí eu descobria que era divertido mexer com o corpo: “Então eu vou fazer um pouco de teatro”, eu fiz teatro, fiz (Clau?). Só que isso não dá dinheiro. Então, são sempre coisas que eu fazia como hobby, que as pessoas falam que são hobby, são coisas que me davam prazer. E o que dava dinheiro? Aí eu saí da faculdade frustrada, porque eu não acreditava naquilo, fui montar um consultório. Não deu certo, primeiro, por causa de coisas de sociedade, e porque eu não estava acreditando muito naquilo mesmo, não era aquilo que eu queria, mas ainda não tinha descoberto o Lacan. Aí, ficou o quê? Um mês com o consultório, não foi pra frente, eu fechei.
Durante a faculdade eu estava trabalhando em um banco. No banco eu ganhava muito bem, podia subir de cargo, ficar efetiva, trabalho garantido, essas coisas todas. E eu pensei assim: eu trabalhei dois anos no banco, eu ganhei gastrite, tendinite (risos), dor de cabeça, falta de tempo pra fazer o que eu queria, eu falei: “Eu não vou aguentar ficar aqui” (risos). No último ano da faculdade, que era a oportunidade dos estágios, eu falei assim: “Eu não vou deixar de fazer os meus estágios pra ficar aqui me desgastando, gastando dinheiro com remédio”. Eu peguei e pedi demissão no banco pra me dedicar só aos estágios.
Eu fiz estágio no hospital, fiz estágio em escola, fiz estágio em presídio, fiz estágio em empresa, eu fiz todos os estágios que eu tinha direito, desenvolvi projeto de estágio, tudo no último ano da faculdade, acreditando que esses estágios iam me dar experiência pra eu conseguir um trabalho legal quando eu saísse da faculdade. Estágio não é significado de experiência profissional, isso não conta em nada no seu currículo. Fiquei bem decepcionada: “Que droga”. Aí fui tentar abrir o consultório junto, o meu pai me deu dinheiro para os móveis, essa minha outra colega, ela tinha um espaço já pra locação, então ela entrava com a locação e o telefone e eu entrava com os móveis. Não deu certo, ela tentou me passar a perna (risos). É, uma colega de faculdade. E eu deixei quieto, terminei o consultório, fiquei pensando: “O que eu vou fazer?”. Aí eu fui começar a dar aula no estado de psicologia, descobri que dar aula de psicologia também não dá certo, porque é tudo uma regra, você tem um regime que não funciona. Eu ficava assim: “Bom, não dá pra dar aula de psicologia, porque não funciona”; “Não, mas dá, você consegue dar, nossa! Os professores ficam dentro da sala”; “Mas isso não serve, porque eles não estão aprendendo nada do que eu estou dando, eles estão decorando e respondendo. Isso não é ensinar. Eu não vou acordar cedo todo dia pra fazer isso.” Aí comecei a levar proposta, que depois eu vim saber, que aquilo chamava arte-educação, eu comecei a levar proposta de projetos, desenvolvi projetos de identidade. Eu trabalhava máscaras com eles, eu trabalhava artes plásticas, desenho, pintura, música. Mas o princípio pressuposto era despertar a interpretação dessas outras linguagens, através da música, que eles falassem deles e que eles construíssem alguma coisa através da pintura, através das artes plásticas, através da confecção de figurino, através da criação de uma história de teatro, que eles trouxessem repertório deles pra trabalhar eles. E quando eles iam trazendo as picuinhas, os rolos que iam acontecendo, eu ia mostrando o que é a psicologia: “Olha...”. Aí eu fazia a autoria de um, a explicação de outro, e usava um método na prática. Depois explicava o que era aquilo, a verdade, dava referência de leitura pra eles lerem, que são muito mais dinâmicos. Só que também não dava dinheiro (risos). O salário de professora é uma droga, por quê? Eu não fiz a minha licenciatura, eu não terminei a minha licenciatura na faculdade, embora eu adorasse, indo fazer os meus estágios na escola, eu fiz estágio com colegas que não estavam lá pra estudar, estavam afim de pegar um diploma! Tá, uma necessidade deles, tudo bem! E eu achava assim: “Bom, a professora vai saber mensurar isso. Eu acho que esse pessoal não está capacitado ainda pra passar. Tem que ficar, ainda, mais um tempo pra aprender a levar a sério aquilo que ele está fazendo”. Aí a professora deu nove. Eu cheguei assim, em off com a professora: “Professora, a senhora não viu que o grupo fez assim, assim, assim, assim, assim? Dá pra ver que foi assim, assim, assado, e não assim, assim, cozido”; “Sim, sim, mas isso ainda é durante a faculdade, depois vocês quando pegam prática, pegam o jeito, a coisa vai”. Fiquei assim: “Ah, a senhora acha?”; “Ah sim, uma experiência faz isso”; “Você não acha que a gente devia ficar aqui e só sair quando estivesse apto a atender, porque a gente ainda vai sair com um canudo podendo assinar termos, assinar vida de pessoas, laudos, pelo menos tem esse direito, né? De sair dando laudos. E você acha que a prática vai ensinar a gente a dar laudo? A faculdade não é pra isso?”; “Não, não seja tão rígida, não seja...”. Eu achei aquilo um absurdo, eu não falei nada, ela parecia que estava sendo muito gentil, na verdade, ela estava sendo muito maternal, querendo que eu compreendesse, não queria... “Um aluno tem muita dificuldade, é melhor a gente deixar ele”, aí eu falei pra mim: “Eu não quero ser avaliada por essa mulher”. Eu fiz todas as matérias, todas as disciplinas e na última prova eu não entrei, eu não fiz a prova. Aí eu não recebi o meu diploma... Pensei: “Eu devia ter feito a prova”, porque eu precisava daquele maldito papel pra poder ganhar um salário decente, porque eu trabalhava como professora eventual, com esses projetos. Se você trabalha com a licenciatura, você presta concurso, tem o seu cargo efetivo e você ganha um pouquinho melhor. Então, eu não ganho um pouquinho melhor, porque eu não quis receber a nota daquela mulher, daquela professora, que era uma pessoa excelente, mas uma profissional a desejar. Eu não sei como as pessoas separam uma coisa da outra, não conseguem... Eu acho isso sério. Como que uma pessoa tão legal não para pra pensar que aquilo que ela acha que está sendo legal, na verdade está prejudicando pessoas? Ela acha que está sendo legal.
Então, os projetos que eu fui... Fui fazer um negócio de trabalhar com ONG. Fiquei sabendo de um projeto pra prefeitura: “São Paulo é uma escola”, que maravilha, o governo novo, vão lançar projetos bacanas pra divulgar, o partido. E começou a abrir uma oportunidade de coisas legais, chamaram ONGs pra fazer triagem de pessoal pra trabalhar na área de educação, com vários projetos bacanas, então eu fiz a musicalização com crianças, trabalhei com teatro, com cinema, com máscaras, montagem de figurino, roteiro, com dança, tudo quanto é forma de expressão. A alegria durou dois anos, mudou o governo. Aí eles colocaram um cara da economia pra cuidar da área de educação... (risos) A oficina, que era de duas horas, passou para 45 minutos, ao invés de abrir a oficina para os alunos que tivessem interesse, você tinha que dar aula para a sala inteira, então, quarenta alunos que querem e que não querem fazer, em 45 minutos, pra desenvolver um projeto, pra montar uma peça de teatro, pra fazer um filme, pra fazer um espetáculo de dança, pra fazer... Eu aguentei três meses (risos), os meus nervos em frangalhos, não saía nada, quando você termina a chamada e consegue explicar pra pessoa qual que é a proposta bate o sinal e dá tudo errado, aí eu falei assim: “Eu não vou acordar cedo pra vir fazer isso”.
Fui trabalhar em uma Academia, que é onde estou hoje, a Academia Internacional de Cinema. Fiquei sabendo que lá eles fazem formação pra escritor e que tem formação de cineastas também. Mas eu fiquei sabendo de lá porque tem um sarau que eu assisti com Marcelino Freire, que eu conheci, eu já tinha visto os contos dele e achei maravilhoso. Quando eu vi o cara pessoalmente, eu falei: “Nossa, que legal, que maravilhoso”. Aí eu fiquei sabendo que ele dava aula nesse lugar, eu falei: “Eu vou estudar lá de qualquer jeito. Eu quero ter aula com esse cara”. Cheguei lá, vi que o preço do curso era bem razoável, e eu sem trabalhar, tinha acabado de largar as oficinas, falei: “O que eu vou fazer?”. Pleiteei uma bolsa. Me ofereci pra trabalhar na instituição pra poder fazer o curso. E é o que eu estou fazendo, estou organizando a biblioteca da Academia, estou fazendo o curso noturno, nesse semestre a gente começa a desenvolver o projeto de um livro, quer dizer, eu juntei todas as outras coisas (risos) pra fazer o livro. E paralelo a isso, eu fiquei fazendo as oficinas de poesia, porque enquanto tudo isso acontecia, eu ia com amigos à saraus. Um amigo uma vez me falou de um sarau: “Sarau? O que é isso?”; “Ah, um lugar... Acho que você vai gostar, você gosta de ler, né?”. Ele não sabia nem que eu escrevia, eu nunca tinha mostrado meus escritos pra ninguém: “Ah, como é que é?”; “Ah, você vai lá, lê alguma coisa legal, tem gente que dança, tem gente que pinta, tem gente que toca, tem gente que lê coisas, mas você pode, simplesmente, levar um poema, que de repente você ache bonito pra ler, pra homenagear o escritor”; “Ah, legal”. Eu decidi levar um conto que eu gostava do Jairo Camilo. Peguei e fui ler um poema meu, falei assim: “Ah, vou ler uma coisa minha e dizer que é anônimo Não preciso dar o nome”. Cheguei lá, mas eu me senti tão bem dizendo uma coisa que eu acreditava, ter posto voz naquilo que eu não tinha mostrado nunca pra ninguém, aí quando chegou no final do poema eu não vi a cara de ninguém (risos), eu li e gostei muito da sensação de ter lido aquilo. E eu não conhecia ninguém, porque era até em outra cidade, esse meu amigo é de São Bernardo do Campo, ele me convidou pra ir lá, eu fui pra lá, não conhecia ninguém, só ele. Aí eu li o poema e senti muito bem, eu falei: “Ah, eu vou por o meu nome, inclusive”, falei: “Esse poema é meu”, quando eu disse veio um monte de gente atrás de mim: “Nossa, mas eu quero uma cópia, me dá o seu e-mail, você tem mais?”. Eu achei estranhíssimo (risos), fiquei assustada: “Nossa!”, assustada, mas feliz, “nossa, que legal”.
Uma coisa que você faz escondida, de repente, conversa com outras pessoas? Porque até então eu usava outras coisas. Eu nunca tinha usado os meus escritos pra trabalho nenhum. E começaram a me pedir, me pedir, me pedir, e aí a secretária, uma das pessoas que coordena a Secretaria de Cultura de lá, me assistiu lendo os meus poemas em vários saraus, e ela me convidou a dar oficina de poesia lá. E na verdade, esses meses todos estou sobrevivendo das oficinas de poesia de São Bernardo do Campo (risos). E agora, estou procurando outros espaços pra trabalhar em escolas, escrevendo projetos pra trabalhar, de repente, em escola particular. E quando tem algum paciente, eu divido, às vezes, espaço de consultório com um amigo em Santana. Então, quando tem algum caso lá que é mais psicanalítico, que não é mais psicoterapêutico... Esse meu amigo trabalha com psicoterapia, e ele falou: “Mas quando é caso de psicanálise eu acho que são os casos mais complicados, isso eu não atendo, você não quer vir atender?”. Aí eu me arrisco e vou lá. Às vezes dá certo, às vezes nem sempre.
P/1 – Tá ótimo. Márcia, que mensagens que você tenha da sua vida que você gostaria de mencionar? Qual é o sentido dessa sua trajetória de vida?
R – Eu estava sempre me sentindo estagiária na vida, estou sempre me preparando para começar de fato, enfim, a grande coisa que eu ia fazer. Eu já fiz tanto curso, mas tudo era a nível de curso, tudo curso, me preparando para, montando um projeto para, sabe-se lá quando, inclusive, ter um filho. Eu não lembro quem foi que me disse que falou assim pra mim: “Você vai ficar ensaiando até que dia pra viver a tua vida?”; “Ensaiando?”. Eu acho que foi a minha analista (risos), a doutora Marta: “Você vai ficar ensaiando até que dia pra viver a tua vida?”, aí eu falei: “Mas como assim ensaiando?”; “É, parece que você está sempre ensaiando, você não está fazendo”; “Nossa, é verdade, estou sempre ensaiando”, ainda morando com os meus pais, sempre achan... Saí do banco, as garantias. E sempre arriscando, arriscando, mas arriscando pela metade, arriscando um pouquinho. E as condições perfeitas não aparecem e eu não avanço, falei: “As condições perfeitas não vão aparecer nunca. Então, eu tenho que começar por algum lugar” Aí, o que eu fiz? Eu falei assim: “Bom, eu não vou ficar esperando o salário perfeito pra fazer o que eu gosto”. Então, toda essa minha história com arte e educação começou daí, eu às vezes ia dormir e ficava assim: “Nossa, que saco”, eu ficava lendo, “que coisa legal que estou lendo”, tudo que eu leio e que eu acho muito legal, tem livros que já li cinco, seis vezes, o mesmo livro, pra pessoas diferentes, porque aquilo que eu acho muito legal eu quero compartilhar com quem eu gosto: “Ai, eu gosto de ler”; “Ah, então, eu te aconselho...”, você ouve. Muita gente que não gostava de ler começou a ler por causa dessas minhas histórias, de ficar contando, de ficar lendo pra pessoa. A pessoa entende que o livro tem um fôlego, tem um ritmo, aí entra na onda e: “Ai, é legal ler”; “É, é legal ler”. Aí eu ia dormir e ficava naquilo sozinha: “Nossa, se eu pudesse contar isso pra todas as pessoas”, já ficava imaginando, me dá vontade de entrar num orfanato, onde tivessem crianças na hora de dormir e ficasse lendo. Eu tenho o maior prazer de fazer isso, aí eu falei: “Mas eu vou chegar, assim, à toa, nua, crua. Eu vou começar, eu vou ver um monte de problema lá, eu vou me apegar, eu vou ter que resolvê-los, eu vou ter que fazer alguma coisa, eu não vou poder entrar lá, contar história e sair. Não, eu não vou fazer isso em orfanato que é muito complicado”.
No dia seguinte, levantei e fui em uma biblioteca, perguntei pra bibliotecária se eu podia fazer contação de história no espaço infantil da biblioteca, pra chamar pessoas, público pra biblioteca. Ela me mostrou um lugar lindo, ela adorou e falou: “Que legal, você tem vontade de fazer isso?”; “É”; “Ah, mas a gente não tem vaga pra isso, não paga...”; “Não, não é pra pagar nada, eu quero vir aqui aos sábados a tarde, que é até perto de casa, eu venho aqui aos sábados e faço isso, eu quero contar histórias, você só me cede o espaço, deixa os livros à disposição e eu faço a contação para as crianças. Chama as crianças daqui de volta da região. E elas vão tomando gosto pela leitura”. Ah, mas a senhora adorou, a Dona Cecília, achou uma maravilha: “Não, que não sei o quê”. E me mostrou o espaço da biblioteca, lindo, abre uma sala trancada com umas poltroninhas deste tamaninho, umas cortininhas tudo na metade da parede, umas almofadinhas, a sala é linda, uma tetéia, com bichinhos, com almofadinhas, com tapetinhos, eu falei: “Nossa, que sala linda, eu venho nessa biblioteca há mais de quinze anos, eu nunca vi esse espaço”; “Ah, mas é que esse espaço não fica aberto, porque se não as crianças estragam”; “Como assim, isso não é pra criança?”; “Ah, mas é, mas...”. E ela era nova nessa biblioteca, ela falou assim: “Ah, eu cheguei há pouco tempo aqui, eu também não estou entendendo muita coisa, mas o pessoal aqui diz que não abre esse espaço, pra não estragar”; “Isso é sério?”; “É, isso é sério”; “O que eu te sugiro...”, aí ela me deu os caminhos assim: “Escreve o teu projeto que eu entrego na mão da pessoa certa, porque você vai fazer esse trabalho sim e você vai ganhar por isso. Você não vai ficar fazendo esse trabalho de graça, porque é uma proposta muito legal”. Ela mesma ali, também, já estava com uma ideia de implantar vários projetos, não ficou na biblioteca, porque tinha muita gente lá há muito mais tempo, acabou não casando as ideias, ela foi transferida para outra regional, para outra biblioteca.
Afinal, o meu trabalho também não funcionou ali na biblioteca, gostaram do meu projeto, mas me chamaram pra trabalhar com outras coisas em escolas, e aí que eu comecei o meu trabalho em arte e educação, a minha passagem foi como contadora de histórias, eu entrei como contadora de histórias. Fiz recreio nas férias, sabe? Fazer recreação pra criança, eu comecei por aí. E eles viram que meu trabalho é legal: “Não, você não pode fazer só recreio. Não, escreve um projeto maior, uma coisa legal”. Aí, fazendo contato com ONGs, foi por aí. Agora, a mensagem que você tinha perguntado, né?
P/1 – É.
R – Ah, por isso que eu comecei falar, não? Eu ficava sempre procurando uma situação perfeita pra começar a fazer as coisas que eu gostava. E a situação perfeita não vai ter nunca, acho que a mensagem é que eu... Até já tinha comentado em outro momento, que o importante é você saber bem o que você quer pra se agarrar naquilo, apostar as suas fichas todas que você tem naquilo. E o resto, não olha em volta, o resto é um resto, você se agarra naquilo e o resto você chacoalha (risos), você dá um jeito, o resto se apruma, porque se você sabe aquilo que você quer, as suas forças têm que estar voltada para aquilo. E o resto você enfrenta, o resto você consegue passar por cima; agora, se você for querer reunir todas as coisas pequenininhas, pelo menos é o que estou me lançando a fazer, se vai dar certo, eu também não sei, eu acabei de sair de casa, eu não sei se vai dar certo, eu não estou com trabalho certo, meu contrato das oficinas de poesias acabaram no sábado passado, eu não sei se vai ser renovado, eu não sei de nada (risos). Eu sei que eu vou ter um filho, que eu vou morar com esse cara, que eu acho que é o cara do meu bilhete, que eu já entreguei... (risos) Estou apostando todas as minhas fichas nisso, que vai dar certo, que eu vou achar um jeito.
P/1 – Como é que você se sentiu fazendo o seu depoimento aqui pro Museu da Pessoa?
R – Ainda não deu pra entender o que é, eu acho que quando eu sair daqui é que eu vou ter uma noção, porque quando eu comecei a falar, eu comecei a viajar aqui, lembrando todo o percurso. A sensação é de... Sei lá.
P/1 – Sentimento.
R – É de tecer uma colcha de retalhos, sentar pra juntar as peças mais bonitas pra fazer uma colcha (risos). A sensação de que eu fiz uma colcha aqui; agora, se vai dar pra fazer uma rede, se vai fazer um cobertor, um tapete, eu não sei (risos), mas a sensação é boa.
P/1 – Nós temos muito que agradecer a sua participação.
R – (risos) Obrigada.
P/1 – Foi muito bom ficar com você durante a sua entrevista, foi muito bom.Recolher