Projeto Ashoka
Depoimento de Sebastião Rocha (Tião Rocha)
Entrevistado por José
Itatiba, 14/06/2005
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: Ashoka_CB001
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
Revisado por Luiza Gallo Favareto
2° Revisão: Nataniel Torres
P/1– Tião, bom dia. Vou começar a entrevista perguntando seu nome completo, data e local de nascimento.
R – O meu nome é Sebastião Rocha, o apelido é Tião. Eu nasci em Belo Horizonte, Minas Gerais, e tenho 56 anos.
P/1– Tião, você podia colocar algum momento marcante da sua infância? Você passou a infância em Belo Horizonte?
R – Passei em Belo Horizonte. Bom, eu falo que tenho uma coisa que talvez foi marcante pra minha vida, porque sou sobrinho de uma rainha, e tenho muito orgulho disso. Quando fui pra escola, aos sete anos, pela primeira vez, no primeiro dia de aula a professora nos recebeu na biblioteca, nos sentou no chão, abriu o livro: “As Mais Belas Histórias” da Dona Lúcia Casasanta e começou a ler: “Era uma vez, num lugar muito distante, havia um rei e uma rainha...” Eu levantei a mão e falei: “Professora, eu tenho uma tia que é uma rainha.” Ela falou assim: “Fica quieto, meu filho. Isto é história da carochinha. Fica quietinho, presta atenção na história.” E continuou com a história dela. Cada vez que ela falava em rainha lá na história eu levantava a mão. Lá pela terceira vez que eu levantei a mão, falei que tinha uma tia que era rainha, ela ficou brava: “Menino, isso não existe. Isso é de mentirinha”. No final da aula fui levado pra sala da diretora, que me passou logo um sabão: “O que é isso, menino? Presta atenção. Quer ir embora desta escola? Quer ser expulso? Quer que chame a sua mãe?” Eu calei a minha boca. Então isso foi muito marcante pra mim, deu nunca poder ter falado disso, nem no primário, nem no ginásio, nem em época nenhuma. E quando fui pro ginásio aconteceu o mesmo fato. Ousei falar disso numa...
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Depoimento de Sebastião Rocha (Tião Rocha)
Entrevistado por José
Itatiba, 14/06/2005
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: Ashoka_CB001
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
Revisado por Luiza Gallo Favareto
2° Revisão: Nataniel Torres
P/1– Tião, bom dia. Vou começar a entrevista perguntando seu nome completo, data e local de nascimento.
R – O meu nome é Sebastião Rocha, o apelido é Tião. Eu nasci em Belo Horizonte, Minas Gerais, e tenho 56 anos.
P/1– Tião, você podia colocar algum momento marcante da sua infância? Você passou a infância em Belo Horizonte?
R – Passei em Belo Horizonte. Bom, eu falo que tenho uma coisa que talvez foi marcante pra minha vida, porque sou sobrinho de uma rainha, e tenho muito orgulho disso. Quando fui pra escola, aos sete anos, pela primeira vez, no primeiro dia de aula a professora nos recebeu na biblioteca, nos sentou no chão, abriu o livro: “As Mais Belas Histórias” da Dona Lúcia Casasanta e começou a ler: “Era uma vez, num lugar muito distante, havia um rei e uma rainha...” Eu levantei a mão e falei: “Professora, eu tenho uma tia que é uma rainha.” Ela falou assim: “Fica quieto, meu filho. Isto é história da carochinha. Fica quietinho, presta atenção na história.” E continuou com a história dela. Cada vez que ela falava em rainha lá na história eu levantava a mão. Lá pela terceira vez que eu levantei a mão, falei que tinha uma tia que era rainha, ela ficou brava: “Menino, isso não existe. Isso é de mentirinha”. No final da aula fui levado pra sala da diretora, que me passou logo um sabão: “O que é isso, menino? Presta atenção. Quer ir embora desta escola? Quer ser expulso? Quer que chame a sua mãe?” Eu calei a minha boca. Então isso foi muito marcante pra mim, deu nunca poder ter falado disso, nem no primário, nem no ginásio, nem em época nenhuma. E quando fui pro ginásio aconteceu o mesmo fato. Ousei falar disso numa aula de história, o professor me gozou a cara e falou: “Meu filho, olha o seu nome, olha a sua cor. Não existe isso. Não me enche o saco”, aquelas coisas. E eu sei que por causa disso, depois já na época da universidade, eu estava em Ouro Preto, morando lá sem entender nada o que era a cidade de Ouro Preto, um dia me dei conta que eu estava num lugar que pra mim não fazia sentido. Eu estava lendo o livro de John Steinbeck, “Um Deus Desconhecido”, e comecei a refletir um pouco naquilo e lembrei da minha tia, da minha infância. Aí eu resolvi voltar pra Belo Horizonte, fazer universidade e entrar no curso de História. Passei quatro anos estudando História. Estudei a história dos reis e rainhas de tudo que você possa imaginar. No final do curso, chamei um professor e falei: “Olha, eu tinha uma tia que foi rainha, e ela não aparece aqui”. Ele falou: “Ah, meu filho, te enganaram, te passaram um trote aqui de quatro anos. Você tem que fazer outra coisa, talvez quem sabe a Antropologia te mostre o caminho”. E eu fui fazer Antropologia, me especializar em Cultura Popular, aprender sobre isso. E se eu estou aqui hoje talvez seja por culpa dela, de eu estar perseguindo um pouco dessa minha história. Essa tia foi Rainha Perpétua do Congado. E durante três meses, de agosto a outubro, todos os domingos, os ternos de congado, catopês, caboclinhos, marujo iam à casa dela. Ela saia com um manto vermelho, a coroa, o cetro debaixo de uma sombrinha, da umbrella, e saia para os festejos de Nossa Senhora do Rosário. E aquilo me dava muito orgulho de poder furar fila, entrar e chegar perto dela, ir pro colo. Era sobrinho, criança. E foi muito marcante pra mim, porque era muito verdadeiro. Nunca foi história da carochinha, sempre foi muito real. E eu acho que é por causa dela que eu segui a trilha que eu estou seguindo de estar correndo o mundo aí, querendo descobrir um pouco de dinastias e realezas nos meninos, nas crianças que não tiveram possibilidade de mostrar a sua realeza nesse país aí.
P/1– Que beleza. Qual era o nome dela?
R – Ela chamava Etelvina. A gente chamava ela de Tia Gorda. E foi uma mulher que faz parte do meu universo simbólico, existencial muito forte, e que pôde possibilitar aprender a conviver com a cultura popular tradicional brasileira como matéria prima de educação, de desenvolvimento, de afirmação da identidade, da cidadania. Então eu cultivo muito essa memória e essa identidade. E tem muitas rainhas por aí, né? Se a gente pensar no universo da cultura brasileira, é povoada dos folguedos, das folias, dos divinos, das folias de reis, as congadas, as rainhas de Escola de Samba, dos enredos, quer dizer, tem muita realeza aqui, tem muita majestade nesse país.
P/1– Precisamos descobrir e nomear.
R – Precisamos, precisamos nomeá-las, acho que é importante.
P/1– Tião, qual é o primeiro momento na sua vida que você se depara e toma consciência de uma injustiça social?
R – Eu acho que isso é desde muito pequeno. Eu acho que sentia muito isso. Não sei se a noção era de injustiça social, mas que era uma coisa injusta. O que eu percebia, por exemplo, na minha infância, como as pessoas eram tratadas em determinados eventos, como é que se valorizavam determinadas coisas. Então, é muito marcante pra mim os rituais do Natal, do Ano Novo. Isso me dava muita tristeza porque, enquanto tinha todo o discurso da fala, de uma humanidade, uma coisa bonita, eu via que era um negócio que se valorizava, dava presente pra um, todo mundo ganhava e tal. E como eu era daquele grupo que nunca tinha os presentes, não ganhava as coisas que eu gostaria, achava que havia um equívoco, havia uma coisa meio errada. Porque isso? Porque todos os meninos não podem ter acesso ao que querem, que necessitam pra brincar? E eu acho que, à partir daí, eu ia percebendo um pouco essas discriminações que eram feitas na escola. Quando eu fui pra escola eu sentia muito isso, comigo e com outros, muito. Uma escola que discriminava, até de uma certa forma tachava as pessoas de forma muito preconceituosa, os meninos. Por tudo, por seu poder econômico, por sua relação de família, por essas coisas que eu te falo, de tráfico de influências, de poder, de prestígio, de riqueza. Então isso me marcava muito, de cor, tudo isso afetava muito.
P/1– E em que momento da vida surgiu a ideia do seu projeto?
R – Bom, fui professor na minha vida. Quer dizer, eu fiz História, fiz Antropologia e tal e fui dar aula, porque era a opção que eu tinha. Mas eu dei aula em todos os níveis. Eu fui professor de pré-escola, fui trabalhar com os meninos ‘petitinhos’, fui trabalhar no primário, dei aula em ginásio. Depois eu fui subindo na hierarquia. Fui trabalhar no segundo grau, depois eu fui trabalhar na universidade, dei aula na graduação, na pós-graduação, no mestrado, no doutorado. Então eu fiz uma carreira toda. Em determinado momento, eu era professor nessa época, final de setenta, início de oitenta, eu era professor na Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais. E aí eu me dei conta, em determinado momento da convivência com essas realidades, com tudo, que eu não queria ser mais professor, mas que eu precisava ser educador. E eu comecei a falar sobre isso. E os meus companheiros de universidade achavam que era a mesma coisa. “Professor e educador é a mesma coisa, ganha o mesmo salário, a mesma porqueira, é igual”. Eu falo: “Não é. É diferente, porque o professor é aquele que ensina, o educador é aquele que aprende. Mais do que ensina ele aprende, porque ele só consegue ensinar o que ele aprendeu. Enquanto o professor, não precisa aprender nada não, basta citar os pés de páginas, fornecer uma boa bibliografia, ele pode falar entre aspas, ele não precisa falar daquilo como uma vivência. E o educador precisava vivenciar, precisava aprender isso, metabolizar no seu organismo. Então, nesse momento eu vi que havia uma incompatibilidade. Esse resultado dessas discussões, ao invés de favorecer uma aproximação minha com a universidade, foi distanciando, criando um vazio que chegou num momento que eu tive que tomar uma decisão, porque eu fui perdendo os espaços que eu tinha de aprendizagem, porque eu achava que não só eu individualmente, mas a instituição precisava aprender. E aí eu me demiti.
P/1– Pediu demissão?
P/1– Pedi demissão. E quando eu fui ao Departamento Pessoal, o Chefe do Departamento não queria me dar a demissão porque dizia que um professor Universitário não se demite, ele tem que se aposentar lá. Eu falei: “Ah, eu não acredito que eu tenho que morrer aqui, pé na cova”. Ele falou: “Não, aqui nunca saiu. Eu nem sei como é que faz”. Eu falei: “Eu assino o papel”. E fui e saí. Então saí. Quando eu saí, eu vi que eu precisava aprender, que eu precisava criar um espaço de aprendizagem. E aí, nós estamos falando de coisas de vinte anos atrás, mais de vinte anos. Eu precisava criar um guarda-chuva institucional, de aprendizagem. Foi aí que eu resolvi, com um grupo de amigos, criar uma instituição, que é o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, o CPCD, que era esse lugar para se fazer esse espaço de aprendizagem, onde eu pudesse colocar as minhas perguntas e correr atrás das respostas, que era o meu jeito de aprender. E aí que eu estou nesse processo exatamente há 21 anos, que foi a constituição do CPCD. E ele se formou basicamente com um monte de perguntas. Então nós nunca tivemos: “Vamos sair pra fazer um projeto de atuação na comunidade e tal”. Nós tínhamos um monte de perguntas, de dúvidas. A primeira pergunta que a gente se fez foi se era possível fazer educação sem escola, porque a gente via muito menino na rua querendo aprender, que ia pra escola e era expulso, era evasão, repetia um, dois anos e saía fora. Havia muito projeto de construção de escolas, ficavam salas vazias, e muito menino do lado de cá. Eu falei: “Bom, eu não sou consultor, não tenho dinheiro pra investir nisso. Tenho minhas dúvidas. Será que é preciso de escola pra fazer educação, ou é possível fazer uma educação, por exemplo, debaixo do pé de manga?” E eu fui trabalhar em Curvelo, Minas Gerais, que é a capital da literatura do Guimarães Rosa, a entrada do sertão. Dali que nós começamos a experiência de aprender a fazer uma escola debaixo do pé de manga.
P/1– Quer dizer, você começa a botar a ideia em prática ali?
R – Ali.
P/1– Em Curvelo?
R – Em Curvelo.
P/1– Você se lembra desse primeiro momento?
R – Lembro.
P/1– Era pé de manga mesmo?
R – Era. Na realidade tinha de tudo, pé de manga, tinha tudo quanto é árvore. Mas tinha muita mangueira na cidade. E eram uns meninos muito soltos. Então eu fui trabalhar ali e levantei essa questão. Como havia interlocução, eu fui pra rádio da cidade, Rádio Clube de Curvelo. Eu falei: “Olha, é o seguinte, vai ter uma reunião das pessoas interessadas pra discutir uma educação sem escola, uma escola debaixo do pé de manga. Os candidatos que compareçam tal dia na secretaria, no departamento de educação”. No primeiro dia que foi anunciado, no dia seguinte apareceram 26 pessoas. Aí eu mandei parar a divulgação, porque o que eu ia fazer com mais gente? E aí nós começamos sentar. Sentamos numa roda e começamos a falar disso, o que seria isso. E eu anotava, ia registrando no papel. Depois de uma semana de conversa eu fui tirar o sumo dessa conversa, eu vi que a gente não falava de uma escola que a gente gostaria de ter, a gente falava de uma escola que a gente gostaria de não ter. E aí eu transformei aquelas informações num negócio que eu chamei de Não Objetivos Educacionais. O que nós não queremos que aconteça? Então o primeiro projeto, na realidade, surgiu com não-objetivos. Transformei aquilo, dei uma informação e mandei pra um monte de gente. Eu mandei pra uma fundação em São Paulo, a Fundação Kellogg. O Marcos Kisil ouviu aquilo, me ligou e falou: “Eu recebi um projeto aqui meio estranho. Não tem objetivos, ele tem não-objetivos”. Eu falei: “Mas é isso mesmo, professor”. Ele falou assim: “Mas com não-objetivos você vai ter não-financiamento”. Eu falei: “E o senhor vai ter não-resultado e não vai dar certo”. Ele falou assim: “Isso é uma ideia muito maluca. Vou criar um banco de ideias, vou deixar isso cozinhando aqui pra ver se um dia a gente possa conversar”. Passado uns dois meses ele me chamou e falou assim: “Se você nos convencer que isso é interessante, nós vamos entrar com você nessa empreitada”. E aí acho que eu consegui convencê-los e montamos a nossa primeira experiência, 21 anos atrás, que chamava o Projeto Sementinha. É uma escola debaixo do pé de manga, era aprender a fazer isso.
P/1– E foi lá em Curvelo mesmo?
R – Começou em Curvelo, onde nós temos a nossa base de tudo que a gente vem aprendendo, fazendo, e depois produzindo, disseminando em escala nacional, internacional. Mas o nosso ponto tem sido Curvelo. A gente transformou aquilo num laboratório permanente de aprendizagem.
P/1– E o que aconteceu com a sua vida a partir daí? Porque ela muda. Você pede demissão, cai de cabeça nesse projeto, e aí?
R – Aí era uma viagem sem volta. Não dava, naquela altura do acontecimento eu já tinha 36 anos, 37 anos, não tá na hora de ficar brincando. Você está fazendo uma opção, tem que ser definitiva. E aí eu comecei a me dedicar a isso, e resultado, quer dizer, o CPCD começou a fazer sua aprendizagem, nós fomos buscando apoio pros projetos. E daí a pouco a gente começou a ter espaço e diálogo em várias instituições, e que foram dando condições da gente sobreviver e continuar investindo, e depois ampliar a equipe e consolidar um trabalho. Mas é um trabalho de dedicação, quer dizer, eu falo que é igual banco trinta horas, fica as 24 horas mais aquelas outras que você está dormindo e imaginando que você está trabalhando. Então isso tem que ser dedicação total, mas de forma muito prazerosa. Nesses 21 anos eu nunca precisei tirar férias, falar assim: “Eu estou cansado, eu tenho que parar, esquecer o que eu estou fazendo, ficar longe disso”. Não, porque sempre foi muito bom, um aprendizado permanente, fazendo o que eu gosto, o que eu acredito. Bom quando a gente consegue fazer isso e tem ainda o suporte pra sobreviver com dignidade fazendo essas coisas.
P/1– Tião, o que foi imprescindível pra que o projeto acontecesse?
R – Eu acho que primeiro foi a determinação, uma crença inabalável na capacidade que a gente tem de aprender as coisas. E depois, a gente aprendeu muito rápido. Quer dizer, a experiência do sementinha, ao final de um ano, a gente tinha muita clareza do tanto que a gente pôde aprender, que tinha nas mãos uma coisa muito importante, que pra fazer educação de qualidade não preciso escola. Mas eu não consigo fazer boa educação sem bons educadores. Somente bons educadores fazem boa educação. O problema é que o inverso também é verdadeiro, maus educadores fazem má educação. Então, nós precisávamos investir na formação desses bons educadores. Aí, como é que a gente forma esse cidadão? Como é que a gente busca isso? Ele está pronto no mercado? Ele está na universidade? Tem alguma forma que faz isso ou nós é que vamos ter que fazer isso? Então a gente começou a acreditar que nós é que precisávamos construir os educadores que precisávamos pra fazer a educação que a gente acreditava. Então acho que essa determinação na busca exigente da qualidade desse ser humano como ser humano na sua complexidade, mas também na sua completude, é que foi nos movendo a acreditar, e continuamos acreditando nisso e isso nos alimenta todos os dias. A gente vai continuar nos próximos anos, sem dúvida.
P/1– Você podia contar uma história do dia-a-dia aí, da sua experiência de ensinar, uma história que aconteceu entre você e um aluno?
R – Olha, a missão é essa em termos de milhares. Mas eu acho, por exemplo, que algumas são muito marcantes. E a gente tem, depois do Projeto Sementinha que pega meninos pequenos. Nós trabalhamos com meninos de quatro, cinco, seis anos. Aí os meninos foram crescendo, foram pra escola, começaram a ter um embate com a escola, e aí nós levantamos uma outra questão, se era possível ter uma escola prazerosa, se era possível os meninos aprenderem brincando. Então precisava fazer essa experiência, pra mostrar pra escola formal que ela pode ser alegre, gostosa, agradável, que não precisa ser o serviço militar obrigatório aos sete anos, pro menino ir lá fazer ordem unida, aquelas coisas assim ritualísticas e tal. E aí montamos um projeto que era em torno, a gente queria saber se era possível ficar só na brincadeira, no jogo, no lúdico. Aí sentamos com os meninos, chamamos a meninada, sentamos, e falamos: “Olha, o trabalho é esse, o projeto é esse. Aqui vai ser tudo na base do jogo e do brinquedo”. E aí um garoto virou pra mim e falou assim: “Mas cadê os brinquedos?” Eu falei: “Ih, rapaz, é verdade. Vamos fazer uma aposta? No dia que a gente não conseguir mais criar os nossos próprios brinquedos a gente começa a comprar. Topa?” Fechamos a aposta. Eu nunca comprei nada. E esse menino, ele sempre foi muito instigante porque nunca comprei mesmo. Nós queríamos jogar ping-pong, então vamos jogar ping-pong. Como é que joga? Precisa de uma mesa, vamos fazer a mesa. E a rede? A gente faz. E a raquete? A gente faz. Aí um dia ele falou assim: “Pois é, mas nós vamos ter que comprar a bolinha”. Eu falei: “Ih, é verdade”. Então eu comprei uma bolinha de ping-pong. Passado uma semana ele chegou com essas bolinhas dessas que vêm nesses tubos de desodorante, roll on, e falou assim: “Oh, bobo, não precisa comprar mais não. Eu já achei uma que substitui”. Ou seja, esse menino foi uma me mostrando coisas. Ele hoje é um dos membros da nossa equipe, um educador de mão cheia.
P/1– Como é que ele chama?
R – Robinho. E ele sempre foi muito desafiante comigo. Uma vez eu mostrei pra ele uma prensa de queijo, coisa de mineiro, gosta de fazer queijo, e ele falou assim: “Eu faço isso”. Eu falo: “Faz nada, Robinho”. Ele falou: “Claro que eu faço”. Eu falei assim: “Porque você faz?” Ele falou assim: “Porque eu sei fazer caminhãozinho. Quem faz caminhãozinho de madeira faz qualquer coisa de madeira, bobo. Presta atenção, porque é só colar, pregar e juntar”. Esse menino me ensinou uma coisa fundamental, que a gente não tem que criar produtos, a gente tem que criar formas. Então, quando você dá um pedaço de madeira pra um menino brincar de fazer um caminhãozinho, ele é capaz de fazer de tudo aquilo, caminhãozinho, aviãozinho. Um dia ele faz uma mesa, faz um armário. Então esse processo de aprender com eles, de ter esse espaço permanente de aprendizagem é que nos alimenta. Então isso é permanentemente. O que a gente desenvolveu foi, nesses anos todos acho que foram quatro grandes pedagogias. Uma que é a pedagogia da roda, tudo que a gente faz é numa roda redonda e todo mundo se vendo, sem fazer esforço, porque essa roda produz consensos e não eleições, a maioria vence. Não, tem que ser consenso. Nós priorizamos o que vamos fazer. A outra pedagogia é a do brinquedo, que é possível aprenderem Matemática, História, Geografia, Ética, generosidade, solidariedade, sexualidade, jogando, brincando, prazerosamente. Outra que é a pedagogia do abraço, que efetivamente são cursos de relações de autoestima e de solidariedade. E outra que é a pedagogia do sabão, quer dizer, do aproveitamento dos recursos, do conhecimento ancestral, pra construção de coisas, que é uma das linhas de trabalho do CPCD. Então essas quatro pedagogias é que geraram esse projeto. Cada uma delas foi construída e é construída diariamente com a meninada. Então tem que estar o tempo todo aberto pra aprender, porque eles são grandes mestres em filosofia, em pensar a vida de um outro jeito. Não tem a forma ainda de nós adultos. Ainda têm um espaço arejado. Então tem que abrir estas arestas pra que eles possam continuar pensando de forma largada pra gente poder também estar junto deles.
P/1– Tião, desde o início você percebia o poder de impacto social do projeto ou isso surgiu depois?
R – Eu acho que eu não percebia isso. Eu sempre percebia como um exercício de aprendizagem. Quer dizer, no início eu dizia que era uma atitude até muito egoísta. Eu queria aprender. Quanto mais eu aprendia mais eu vi que eu tinha que devolver. Então esse ciclo que você apreende as coisas, compreende, analisa, reflete, metaboliza, você devolve. Aí eu vi que isso foi crescendo, foi disseminado, o impacto nos conceitos das pessoas, na cabeça delas e tal. E as pessoas começaram a ver o projeto de forma diferenciada, quer dizer, ele servia como referência perante outros. Por exemplo, no Sementinha depois de uns seis meses de trabalho, de convivência diária com a comunidade, com as famílias, com os educadores, com os meninos, discutindo um outro jeito de fazer educação que não caísse na forma, que não caísse nos não-objetivos. Por exemplo, ao invés de fazer fila, a gente descobriu que fila não educa, fila só organiza. Então no projeto não podia ter fila, que lá não era lugar de organização, lá era lugar de educação. Então nós tínhamos que inventar seis jeitos diferentes de fazer a mesma coisa sem fazer fila, sem precisar criar essa normativa que se impõe. Como é que as pessoas podem respeitar o espaço do outro, o tempo do outro, sem precisar ficar aquela coisa hierarquizada. Então coisas desse tipo foram feitas com os meninos, com os educadores, com os pais. Um dia, na reunião da comunidade, uma mãe falou assim: “Tião, essa escola é diferente da outra”. Eu falei: “Por quê?” Ela falou: “Porque a gente vê”. Eu falo: “E a outra, você não vê?” Ela falou: “Não, não vejo”. Eu falo: “Você não vê por causa do muro?” Ela falou: “Não. É que o dia que eu vou lá dentro da escola não está tendo escola. É o dia da reunião, o dia da festa. Eu nunca vi o dia-a-dia de uma escola. E essa aqui eu vejo”. Aí a vizinha dela deu nela uma cutucada e falou assim: “Ô comadre, é verdade. A outra escola passou na minha porta três vezes”. Quer dizer, não era mais um bando de menino andando na rua, era uma escola que era andarilha. Então isso dá um impacto que as pessoas pensam que é um jeito novo de fazer educação. E aí você começa a perceber alguma coisa absolutamente diferente, quer dizer, desde essa época eu comecei a defender uma ideia que vai muito na contramão do discurso oficial que falava que lugar de menino é na escola. Aí eu botava, completando: “Só se for aprendendo, porque se não for aprendendo é chato demais. Lugar de menino é na rua, na praça, no coreto, no shopping”. Quer dizer, eu não tenho que tirar os meninos da rua, nós temos que mudar a rua num espaço de solidariedade. Pra nós solidariedade é construída, não é por decreto. As pessoas não nascem solidárias. Nós temos que criar a solidariedade, gerar relações solidárias. Então, isso pode ser na rua. Porque que tem que ser só dentro da escola, só dentro da igreja, só dentro da família, se a gente passa o maior tempo no convívio com as pessoas é no dia-a-dia da rua? Porque que a gente não vai pra lá, e aí nós começamos a pensar isso? Quer dizer, isso foi tendo impacto dentro dessas relações de convívio claro, de superação. E o projeto foi crescendo, o Sementinha hoje está presente em seis estados, em vinte cidades, já foi pro exterior, em Moçambique. Quer dizer, ele funciona. Ele é uma resposta eficiente. As pessoas, quando se apropriam dele o transformam num instrumento de educação, essas pedagogias. E essa coisa hoje é de domínio público, não é propriedade privada, nossa, do CPCD, nem minha. Isso aí a gente quer que seja disseminado. Mas nós temos uma série de indicadores. Uns são esses, a gente criar um espaço de solidariedade na rua. Outra, que é em relação à educação nas escolas, eu falo que esse é um indicador que está sempre na minha meta. Eu quero um dia conhecer uma escola tão boa, mas tão boa, que os professores, os alunos, os funcionários exijam aulas aos sábados, domingos e feriados. Esse vai ser o indicador que ela é boa. Não precisa nem ter, mas que as pessoas gostariam de ter seria ótimo. Mas enquanto falar assim: “Que dia é hoje?” Aí o cara falar assim: “Hoje é sexta feira, segunda feira é feriado”. Aí o menino fala: “Graças a Deus que eu vou ficar três dias fora dessa jararaca”. E a professora fala a mesma coisa: “Graças a Deus eu vou ficar longe desses meninos, que eu não aguento mais”. É um problema. Então ali tem um problema, tem uma relação que não é interação, não está se construindo relações de solidariedade. Então é uma coisa meio complicada. A gente precisa quebrar isso, porque é aí que está a possibilidade de aprendizagem. Aprendizagem é ocupação desses espaços vazios quando duas pessoas estabelecem relações plurais de aprendizagem. Então, onde é que isso vai acontecer? Em qualquer lugar. Pode acontecer dentro de casa, na rua. Tem que acontecer, a gente tem que construir espaços permanentes dentro da sua aprendizagem. Pelo menos é isso que me motiva a continuar nessa luta, nessa empreitada, na construção desse caminho.
P/1– Tião, em que momento você já se sente um empreendedor social?
R – Essa é uma palavra muito nova, quer dizer, eu nunca pensei como empreendedor não. Quer dizer, a gente escuta isso, é uma coisa que... Eu não sei, eu acho que eu nunca falei que eu sou um empreendedor social. Eu acho que eu sempre quis ser um educador popular. Mas eu acho que essa é uma questão de ser, todos nós somos empreendedores e todos nós contribuímos em uma pequena, média ou larga escala em impactos sociais e tal. Eu sinto que o meu trabalho e da instituição que eu dirijo, ela funciona. São espaços de aprendizagem. E isso pode ser denominado como um empreendimento, mas não é uma palavra que me atrai muito não.
P/1– Entendi. Tião, estamos chegando no fim da entrevista. Quais são os maiores desafios que você enfrenta hoje?
R – Tem sido um aprendizado permanente. Então, alguns desafios é de dar, de fazer esta perspectiva de futuro, pra onde que eu gostaria que a gente caminhasse com toda essa experiência. Eu falo que tem duas coisas que me motivam muito e que são os meus grandes desafios. A primeira que é a gente superar o discurso que ainda está muito preso, da gente ficar se sentindo parte de algum setor. Então nós, ONGs, somos ligados ao Terceiro Setor. Existe o Segundo Setor do empresariado, do setor econômico, produtivo, gerador de renda, e um outro Primeiro Setor de Estado, de Governo e tal. Esse lugar, essa dicotomia, essa tricotomia aí, que cada um tem um papel, eu acho que isso muitas vezes deixa alguns vazios. Então eu falo que eu gostaria, o meu desafio hoje seria criar, em vez de ser o primeiro, segundo e terceiro, é criar o Setor Zero. O Setor Zero é comandado pela ética. Então, se a gente pensar que nós não vamos admitir que nenhuma criança morra de fome nesse país, porque é um absurdo um país que tem tanta riqueza, tanta produção, tanto recurso, que algum menino morra de fome por falta de alimento. Isso é uma questão ética. Não é uma questão econômica, social, é ético. Se é ético, cabe a todos nós cuidar disso. Ou fazer com que não haja nenhuma criança analfabeta depois de quatro ou oito anos de escola, que é o caso que eu vi no Vale do Jequitinhonha, depois de oito anos de escola estão analfabetos. Quer dizer, não admitir isso por uma questão ética, vai precisar de todo mundo. Aí tem que trazer todos pra isso. O que a gente aprendeu em Moçambique foi um pouco disso. Os velhos moçambicanos ensinaram o seguinte, que pra você educar uma criança é necessário toda a aldeia. Você tem que convocar todos pra cuidar desse indivíduo, dessa pessoa, desse ser humano. Então como é que eu convoco isso? E a experiência que a gente está investindo e encaminhando em Minas Gerais, lá no Jequitinhonha, com um experimento de possibilidade de realização, é construir uma cidade educativa. Como é que eu penso em uma cidade, que é a experiência que a gente está fazendo em Araçuaí, como é que a gente pode estar trazendo toda a aldeia, pegar todas as pessoas e cada um disponibilizar o que tem de melhor, um ponto de luz, eu vou gerar um holofote, eu vou gerar uma fonte de calor, de energia e de luz. E disponibilizar isso pra todos. Então eu acho que são os dois grandes desafios, um dia a gente criar o Setor Zero da educação, da saúde, do meio ambiente, na segurança. Quais são do Setor Zero? O que é ético? Portanto, estamos todos. E a construção das cidades educativas, que são comunidades de aprendizagem, como eu posso amarrar as aprendizagens e criar esses nós que são uma teia, um tecido permanente de aprendizagem. Esse faz parte dos meus devaneios e da minha utopia.
P/1– Eu ia te perguntar qual é o seu maior sonho, mas você já está contando aí.
R – A utopia nesse sentido. Utopia não como sonho impossível, de Don Quixote. Utopia no sentido da palavra mesmo, de utópico, de não tópico, não feito ainda. O que não foi feito ainda? O que a gente pode fazer? Eu quero ver, quem sabe aí no tempo que me resta, quem sabe a gente consiga ainda vislumbrar e viver em cidades educativas e construir essa relação, todos por uma ética.
P/1– Tião, pra terminar, a última pergunta. Como você vê essa importância de, estão aí os fellows, os empreendedores contando as suas histórias para o grande público?
R – Eu acho que foi muito bom. Eu acho que a Ashoka é uma instituição que congrega experiências dos mais variados tipos. E a coisa mais difícil é tentar harmonizar e fazer com que isso avance e a própria Ashoka avance com isso, dê saltos transformadores e tal. Eu participo da Ashoka desde 1992. Eu nunca fui fellow, eu entrei como membro. Então os membros não recebem bolsa.
P/1– Você entrou como membro?
R – Eu entrei como membro. Mas sempre, quer dizer, acho que acreditei que era esse espaço. Nunca foi a questão da bolsa, do recurso financeiro e tal, mas era espaço na convivência com outras experiências. Eu acho que se de uma maneira isso é bom pra você poder estar convivendo e aprendendo, trocando figurinhas. O que eu acho que é o grande desafio da Ashoka, depois de 25 anos de investimento em pessoas, é fazer com que ela se retroalimente desses fellows, desses empreendedores, e ela pode possuir bandeiras. Essas bandeiras que eu gostaria, quem sabe... Eu adoraria pensar a Ashoka como baluarte no Setor Zero a nível mundial. Vamos cuidar disso tudo, da fome, da segurança, a paz no mundo, a não violência, o desarmamento em todos os níveis, como questões éticas. Eu acho que talvez esse seja o grande caldo que esta instituição pode e deveria, na minha opinião, ter pra se alimentar da base que ela mesma criou. Ela produziu sementes, criou uma sementeira, produziu frutos. Eu quero que ela dissemine isso em escala. Eu acho que a grande importância que ela tem pra nós e a gente pra ela nessa reciprocidade.
P/1– Legal, Tião. Muito obrigado. Foi bom conversar com você.
R – Imagine. Foi um prazer estar aqui. Boa sorte pra vocês aí, tá bom?
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