Plano Anual de Atividades 2013
Projeto Nestlé - Ouvir o outro compartilhando valores – Pronac 128976
Depoimento de Aline França Paschoalino
Entrevistada por Tereza Ruiz
São Paulo, 25/08/2014
Realização Museu da Pessoa
NCV_HV53_ Aline França Paschoalino
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 ...Continuar leitura
Plano Anual de Atividades 2013
Projeto Nestlé - Ouvir o outro compartilhando valores – Pronac 128976
Depoimento de Aline França Paschoalino
Entrevistada por Tereza Ruiz
São Paulo, 25/08/2014
Realização Museu da Pessoa
NCV_HV53_ Aline França Paschoalino
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então primeiro, Aline, eu vou pedir pra você falar seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Aline França Paschoalino, eu nasci no dia três de novembro de 1986, na cidade de São José do Rio Preto.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe, e se você souber, data e local de nascimento dos dois também.
R – Os meus pais, o meu pai é Ângelo Germano Paschoalino, nasceu no dia 25 de junho, o ano eu não me recordo. Minha mãe, Maria de Fátima França Paschoalino, nasceu no dia 17 de novembro, também não tenho certeza do ano.
P/1 – O local onde eles nasceram, você sabe?
R – Minha mãe nasceu na cidade de Catanduva, também interior de São Paulo, meu pai nasceu em São José do Rio Preto, também interior de São Paulo.
P/1 – E o que seus pais faziam ou fazem profissionalmente?
R – Meu pai conheceu a minha mãe depois que ele desistiu de jogar futebol, que ele jogou futebol uma época, e aí virou comerciante autônomo. Ele vende materiais para confecções, então linha, agulha, etiquetas de composição, 100% algodão, ou se é outro tipo de tecido, tamanho P, M, G. Então ele vende na região de Rio Preto para essas confecções. E minha mãe, depois que eu nasci também, acabou escolhendo por cuidar dos filhos e cuidar da casa, então ela é dona de casa.
P/1 – E seu pai, você falou que ele jogou futebol.
R – Sim.
P/1 – Ele jogava em algum time? Como é essa história?
R – No interior de São Paulo teve a época áurea da Ferroviária, que era bastante conhecida, depois de lá, foi quando ele começou, ele jogou no Espírito Santo, num clube de lá, aí o Palmeiras comprou o passe dele. Ele não chegou a jogar pelo Palmeiras, porque o emprestaram pra um time de São Fernando, se não me engano, na região ali de Santiago, no Chile. Aí ele jogou dois anos lá na época do Pinochet, que não podia conversar em grupinhos na rua, nada disso, mas logo depois ele teve um problema no joelho e voltou para o Brasil, e já também conheceu minha mãe, casou, e tudo mais.
P/1 – Ele parou então de jogar por causa desse problema?
R – Sim. É.
P/1 – Você sabe qual a origem da sua família?
R – Eu sei que por parte de pai tem bisavô que veio de Trento, que é no norte da Itália. Meu bisavô chamava Germano também, minha bisavó, Carolina. E por parte de mãe, eu nunca cheguei a pesquisar mais, mas tem uma mistura boa.
P/1 – Sobre o seus bisavós italianos, você sabe por que eles vieram para o Brasil?
R – Eu cheguei a procurar alguns documentos, mas muita coisa se perdeu devido à guerra. Eu creio que foi por isso também, por épocas de dificuldades na Itália, acabaram na mesma leva, que veio muita gente para o Brasil, para o estado de São Paulo, eles vieram pra cá também.
P/1 – E você sabe com quê eles vieram trabalhar quando eles chegaram?
R – Não tenho certeza também, se foi para o campo... Eu creio que foi, porque interior de São Paulo, região de Araraquara, Rio Preto, então eu creio que tenha sido alguma coisa em relação a campo mesmo.
P/1 – Descreva um pouco como sua mãe e seu pai eram na sua infância, como eles são hoje, de personalidade mesmo, temperamentos. Como você descreveria os dois?
R – Nossa, eu consigo me identificar muito. Hoje em dia eu vejo que eu realmente sou filha, fruto da mistura mesmo dos dois, que eu herdei muitas características mesmo deles. Meu pai, eu acho que é mais doce, mais bondoso de coração, só que também é muito desligado, não é tão próximo, talvez porque a relação homem na família com uma filha mulher pode ser um pouco difícil. Eu sou bem mais próxima da minha mãe. Minha mãe já é mais enérgica, já é mais alvoroçada, de falar alto. Então o tempo inteiro os dois estão muito juntos. Eu me lembro da minha infância inteira de eles caminhando de mãos dadas, sempre conversando à noite sobre o dia, como foi o dia, como vai ser o dia seguinte. Então essa é uma boa lembrança que eu tenho da minha infância, de os meus pais bem unidos. Ah, a minha mãe contava bastante história pra mim quando eu era criança. Antes de eu saber ler, ela lia gibizinho, fazia as vozes dos personagens. O que mais?
P/1 – Que histórias ela contava? Você lembra o que ela lia de história ou de gibi?
R – Então, tinha os gibis da Turma da Mônica, que eu gostava muito, da Magali, do Chico Bento. Então ela fazia as vozes e lia pra mim. Mas tinha vários livros, assim, um pouquinho de conto de fadas, que eu acho que pode ter me estragado um pouco (risos), mas sempre também tive muito contato com o Atlas, com livros, acho que é por isso que eu também me tornei geógrafa, eu gostava muito de ver os mapas e me imaginar nos outros continentes.
P/1 – Seus pais incentivavam isso? Como você tinha acesso ao Atlas, ou era escola?
R – Não, eles incentivavam a leitura, sempre incentivavam a ler. Tinha um quarto de brinquedos com os livros, então tinha bastante espaço. Tinha quintal, cachorro, era uma casa grande de interior. Então brincava muito com o meu irmão também, que a diferença é de um ano e nove meses apenas, então a gente tinha bastante liberdade pra brincar, pra criar, assim. Lembro que a minha mãe também ensinava durante o dia em casa a dançar. A gente tinha tempo livre pra essas coisas. Então ela cuidava, me ensinava a cantar, me ensinava a dançar, nas brincadeiras do dia a dia, de colocar a meia no pé e brincar de lustrar o chão, de limpar a sala, organizar as coisas, mas era uma convivência bacana. Ela me levava a pé pra escola, então a gente conversava bastante, era bem gostoso. E o meu pai, eu esperava sempre ele voltar pra casa no final do dia com alguma surpresa, alguma coisa assim, mas já era realmente mais distante, que eu acho que é normal. E hoje em dia se mantém assim. Eu falo todo o dia com a minha mãe, a gente se liga sempre que tem alguma novidade, alguma notícia. Eles continuam no interior, eu vim pra São Paulo há oito anos, e eu volto sempre que é possível, praticamente todo mês, quando tem feriado, pra poder aproveitar mesmo esse tempo com eles. Eu tento ser o mais presente possível, mas é um pouco difícil, questão de distância. Com o meu pai eu falo normalmente, mas não chego a ligar todos os dias, então eu falo mais sobre a minha vida mesmo tudo com a minha mãe. Então é isso assim, a relação é tranquila e hoje em dia eu me sinto um pouco mais mãe e pai deles do que eles de mim. Acho que é um processo que começa a se inverter agora. Meu pai teve um câncer muito sério também recentemente, uma doença difícil então a preocupação agora acho que é muito maior da minha parte do que da parte deles.
P/1 – Como é que é o nome do seu irmão?
R – Meu irmão chama Alan.
P/1 – Com o que ele trabalha? Ele trabalha?
R – Sim. Meu irmão estudou Administração, aí chegou a trabalhar um pouco com carros, automóveis, algumas empresas grandes, porque a paixão dele sempre foi carros assim. Desde criança eu me lembro dele com revistas me falando dos modelos e marcas de carros, e eu não me interessava muito, porque era aquela coisa de interesse diferente, eu gostava de dança, ele gostava de carros. Aí ele foi trabalhar com isso, mas depois ele começou a estudar pra concurso, essas coisas, agora tá morando em Brasília, recentemente mudou pra lá e tá superfeliz também. E acho até que essa distância ajuda a gente a se reaproximar no final, a gente tenta de alguma forma se ver quando dá, então é bom.
P/1 – Vocês tentam compensar.
R – Sim. É.
P/1 – Você falou um pouquinho da casa em que você passou a infância, queria que você descrevesse pra gente com um pouco mais de detalhe. Como é que era a casa em que você passou a infância? Como é que era o bairro, a cidade na época?
R – Então, a cidade hoje em dia tá bem desenvolvida, já tem quase 480 mil habitantes. Eu lembro que o bairro que eu cresci ainda estava em desenvolvimento, então tinha muitos terrenos vagos, mas morei numa rua que morava a minha avó muito perto, tinha a tia, tinha família. Acho que é um pouco do costume também ainda no Brasil, cidades do interior, quando o pessoal pode, eles compram terrenos próximos, mora todo mundo junto praticamente. Então eu conseguia ir todo dia à casa da minha avó, andava de bicicleta, jogava bola queimada na rua, brincava de pular elástico, amarelinha. Então eu consegui curtir muito isso de andar a pé, ir pra escola a pé, ter um quintal grande pra chamar os amigos, sempre estar na casa dos vizinhos também. Então foi uma infância ótima, assim, porque a gente tinha essa liberdade. Minha mãe controlava muito, tinha toda uma postura de medo também, as lendas do homem do saco (riso), de um monte de coisa, mas eu me lembro de visitar com frequência os meus avós, de curtir assim o espaço que era praticamente da minha avó principalmente, quase como uma chácara, com pé de manga, com galinhas, com porcos, com horta, com espantalho. Então era muito legal assim. Fazia brigadeiro na terra, brincar que era um brigadeiro. E na minha casa era legal, tinha o quarto, quarto de brinquedos, a cozinha. Eu me lembro de ter mudado poucas vezes até chegar a essa casa atual onde os meus pais moram agora, que também é uma casa... Sempre tive cachorro, já cheguei a ter cinco cães no mesmo... Quatro agora. Então assim, isso é uma das coisas que eu sinto mais saudade em São Paulo, é isso, que a gente não tem mais tanto espaço, penso que nem todas as crianças, infelizmente, podem ter vizinhos, brincar com outras crianças ou conhecer animais mesmo.
P/1 – Você comentou também que a sua mãe brincava muito de dançar contigo e de cantar. Ela gostava de cantar? Vocês gostavam de música na sua casa? Como é que era essa relação com a música?
R – Na verdade, acho que é tudo muito informal, porque os meus pais não estudaram música nunca, nada. Nem mesmo eu, na verdade, mas ela me ensinava a cantar. Eu me lembro das primeiras músicas que ela me ensinou a cantar, eu acho até que eu não canto bem, nem ela, mas a gente brincava de cantar juntas assim. Então eu me lembro de antes de dormir a gente sempre se falava, tem uma coisa de carinho nessa transmissão da cultura, das músicas que eu aprendi na infância. Era mais por ela mesmo, assim.
P/1 – E quais eram essas músicas que você lembra?
R – Eu lembro que uma das primeiras foi Frère Jacques (cantarola): “Frère Jacques, Frère Jacques...”. A outra também que eu lembro bastante é: “Jogue suas mãos para o céu e agradeça se acaso...”. Não lembro o nome, “na chuva, na fazenda”, uma coisa assim. A gente cantava sempre no carro essa, a família toda junta. Aí tinha algumas modas sertanejas também, porque era interior, então era muito comum moda de viola, tinha festa folclórica de Folia de Reis, essas coisas. Então algumas coisas também eu presenciei assim na minha infância. Festa junina de verdade com a fogueira, sanfona. Então isso era gostoso, assim.
P/1 – Como é que eram essas festas? A festa junina e a de folia de reis. Descreve um pouco assim o que você lembra, quais são as suas lembranças.
R – Folia de reis, eu me lembro deles passando na casa das minhas avós, mais essencialmente, com bastante roupa colorida, o pessoal preparava a casa, separava alguns quitutes pra oferecer pra eles. Mas festa junina era a minha favorita e até hoje é. A gente fechava a rua, cada vizinho levava um prato e geralmente eram pratos bons de verdade, o pessoal sabia cozinhar. Então muitos doces, fogueira, sanfoneiro, bandeirinha na rua a noite toda. Era muito legal, eu me divertia bastante, me vestia, me fantasiava. Eu curto muito. Minha festa favorita é a festa junina. E eu gosto muito de paçoquinha, até hoje aprendi a comer com o meu avô, com o meu pai, e é um doce típico assim que eu gosto muito.
P/1 – Você falou de música, de moda de viola, o que vocês escutavam? Tinha um cantor, um compositor favorito ou uma canção que tenha marcado?
R – Olha, acho que realmente a gente tem essa parte por ser interior, de moda de viola, mas nunca a gente foi muito ligada essencialmente ao estilo, só um cantor. Era bem mais neutro, o que tava tocando na rádio no momento, era bem despretensioso assim, sabe? Era mais por parte de tias e avós que eu me lembro delas curtirem mais, serem fãs de verdade de alguém. A gente nunca teve essa cultura de ser fã, não. Depois, na minha adolescência, mais tarde, eu comecei a ter um gosto mais próprio assim, mas em geral a gente ouvia de tudo.
P/1 – Não era nada específico, em particular.
R – Não.
P/1 – E as brincadeiras dessa fase de infância? Você citou algumas também, mas queria que você contasse do que você brincava, com quem que você brincava.
R – Na minha primeira infância tinha o jardim de infância muito próximo, então tinha essas coisas, era bem separado: as meninas, os meninos, então não podia rodar pneu, essas coisas, porque era brincadeira de moleque. Até uma das minhas lembranças mais traumáticas é essa no jardim de infância de um dia tentar desafiar e rodar pneu e realmente me machucar, tinha gente que tinha feito coco dentro do pneu, então me sujei, foi muito ruim assim. Mas andava muito de bicicleta e brincava na rua com o meu irmão, com os meus vizinhos. Então tinha a brincadeira de Barbie, de boneca, tinha principalmente pular elástico e amarelinha, que era uma coisa que eu gostava bastante, e eu era muito boa na bola queimada. Eu arrasava realmente assim, nunca ninguém conseguia me queimar.
P/1 – Tinha uma preferida?
R – Sim. Era ela, bola queimada.
P/1 – E você falou dessa coisa bem separada de menina e menino, e você tinha mencionado que sua mãe lia pra você contos de fadas também, que talvez tenha influenciado na sua formação. Você tinha alguma história favorita? Você se lembra de alguma assim?
R – Pois é, então, minha mãe lia, lia um pouquinho de tudo também, mas em geral eu cresci muito com essa coisa de A Bela e a Fera, de ter que realmente descobrir a beleza interior da pessoa e tudo mais. Até hoje eu gosto muito de A Bela e a Fera. Eu gosto de musicais, filmes, então eu gosto, mas talvez hoje em dia tentasse não influenciar tanto as pessoas por contos de fadas assim. Eu lembro que era muito separado mesmo. A gente foi criado no interior com essa coisa bem machista: do que é homem, pra homem; do que é mulher, pra mulher, e tal, as brincadeiras, as histórias. Mas é uma coisa que a gente reproduz, não é culpa dos meus pais também. Hoje em dia eu meio que cutuco, mas tento não questionar tanto porque pra eles era o que era certo no momento, então é isso.
P/1 – E tem algum, fora essa história do pneu que você contou que foi uma coisa que marcou dessa fase, tem alguma outra lembrança de infância que tenha ficado na memória até hoje? Essas histórias assim que a família lembra, você lembra.
R – Tem os Natais em família que eram gostosos assim com os primos, todo mundo sempre se reunia e tem os pratos típicos de Natal. Eu só sei fazer rabanada e a farofa, até hoje eu faço com a minha mãe, também que era bem gostoso, a parte de sobremesas assim, mas a mãe fazia o peru. Eu lembro também de outro acidente que eu tive, que talvez uma das únicas cicatrizes que eu tenho é de bicicleta também, de descer uma rua bem íngreme com uma velocidade alta e achar que eu ia conseguir parar a bicicleta, e não consegui e bati de frente com um muro assim. E das ideias de tentar fugir de casa, porque a gente tenta às vezes com os amigos fazer um grupo e tentar morar de uma forma independente assim. Então a gente tentou uma vez acampar num terreno achando que a gente ia conseguir sobreviver, passar um, dois dias fora de casa. Então a gente fez altos planos pra sair de casa, cinco, seis crianças na faixa de seis anos de idade, achando que ia conseguir viver longe dos pais, das vistas dos familiares assim. Nunca deu certo, mas a gente armou esse plano umas três, quatro vezes na época.
P/1 – Mas vocês chegavam a organizar a coisa, fazer uma malinha?
R – A gente falava quem que ia levar os ovos pra comer, que era mais fácil pra fritar, quem que ia ceder o terreno. Assim, porque no geral sempre tinha alguém que o pai tinha um terreno e que não ia nunca, que a gente poderia ficar escondido lá por um tempo, mas nunca cheguei a fugir, não.
P/1 – Nunca fez a tentativa de fato?
R – Não. A gente só fazia os planos, sonhava, mas não concretizava.
P/1 – E da escola? Quais são as primeiras lembranças que você tem da escola?
R – Escola... Estudei em um colégio, Noemia Bueno do Valle, da primeira a quarta série. Eu gostava do uniforme, eu ia de rabo de cavalo pra escola, era considerada boa aluna, toda “caxias”, assim.
P/1 – Como é que era o uniforme que você gostava?
R – Era um azul escuro a camiseta com uma faixa escrita Noemia Bueno do Valle e eu ia sempre de bermudinha jeans e tênis. Era legal, tinha a hora do intervalo, eu comia os salgados, meu pai me dava dinheiro pra comer o lanche ou então eu levava de casa também. Tinha merenda, eu gostava muito de tomar uma sopa de fubá que eles faziam, que era bem gostosa. Tinha sopa de fubá que eu comia, tinha as brincadeiras. E foi nessa escola que eu conheci as minhas principais amigas que eu já conheço, que eu mantenho até hoje. Então são três grandes amigas que continuam em Rio Preto, moram lá, algumas já se casaram, mas foi nessa escola na minha infância que a gente fez essa amizade, o grupinho. De lá a gente mudou, a maioria, nós fomos pra outra escola, que era o Victor Britto Bastos, que eu estudei até a oitava série. Aí já foi adolescência, já tinha as festinhas, as primeiras paqueras, os rolinhos assim. A gente manteve o grupo de amizade, fizemos outras amigas. Depois disso eu estudei no Ensino Médio, eu mudei de escola, porque eu queria prestar vestibular, aí estudei num colégio particular em Rio Preto e era bastante puxado, estudava bastante, tinha aula de sábado, aí tinha os simulados. Conheci outras duas amigas também bastantes importantes. Até que eu cheguei no cursinho e vim pra São Paulo.
P/1 – E nessa fase assim de vida escolar do ensino básico, teve algum professor marcante?
R – Ah, sempre tem, principalmente os de humanidades. Eu acho que eu me tornei principalmente geógrafa também por influência deles, não só dos livros, Atlas. O bom assim, meus pais nunca influenciaram, nunca determinaram o que eu tinha que fazer. Talvez justamente seja até bom o grau de estudo que eles tiveram pra não ter aquela coisa de família, de forçar nada. Mas sempre que eles puderam na possibilidade me incentivar a estudar. E aí meus professores, eu conheci um que chamava Eduardo, que era de História e ele realmente envolvia a gente nas aulas. Então era incrível, adorava as aulas de História dele. Depois no Ensino Médio também teve outro de História, que era o Vagner, que também era muito bacana. Eu me encantava, viajava nas aulas de História, Geografia, me sentia realmente parte do todo, então eram bem legais essas aulas. Eu sempre fui de humanidades, não adianta. Eu gostava de literatura, sempre li bastante. E aí eu sofria um pouquinho. Eu tentava me interessar por Ciências, nas aulas de Química Orgânica eu era boa, mas Matemática nem tanto, Física também era um pouco mais... Tem que ver uma aplicação maior no dia a dia, então hoje eu sou humanidades por causa disso.
P/1 – E nessa fase ainda de infância, adolescência, como é que eram as refeições na sua casa? Quem cozinhava? O que vocês comiam?
R – Minha mãe sempre cozinhava. Ela cozinha bem, ela se arrisca numa feijoada, uma lasanha boa de vez em quando, mas é mais o trivial, normal de salada, carne, o arroz, o feijão. Eu lembro uma coisa traumática também dela tentar me fazer tomar sempre umas misturas mirabolantes, porque achava que eu era muito pequena, então estava sempre anêmica. Mas eu acho que era um exagero. Eu não comia arroz, então eu ainda não como arroz, porque eu acho que eu não gosto da cor, do cheiro, alguma coisa me traumatizou, até que ela desistiu de tentar me fazer comer. Então só feijão com as farofinhas, carninhas e tal, mas no geral ela fazia uma mistura de ovo de pata com fígado cru, biotônico e um monte de coisa e me fazia tomar aquilo. Então não como fígado também até hoje por isso. Mas agora comecei a cuidar mais, tento comer mais vegetais, legumes. Depois que eu vim morar sozinha em São Paulo, eu comecei a dar valor à alimentação, mas no geral, ela tinha medo que eu ficasse subnutrida e me forçava a tomar umas coisas muito ruins. Eu acho que é coisa de mãe mesmo. Mas a gente almoçava em casa, era uma coisa boa. Sempre tive tempo, por mais que eu estudasse, fizesse aulas de balé, não sei, sempre voltava pra casa, a gente almoçava. No geral, meu pai também conseguia voltar pra casa, então a gente almoçava, jantava todo mundo junto. Era legal, uma coisa que a gente hoje em dia não tem mais tempo pra fazer. Principalmente na capital, numa metrópole, se perde bastante isso. Eu acho que eu só como em restaurante por quilo hoje em dia. E também não aprendi a cozinhar, é meio que contraditório. Tem toda essa coisa do interior, mas eu fui criada pra estudar e trabalhar e não pra ser dona de casa. Então é bem contraditório, mas é isso.
P/1 – Você mencionou essa questão de gostar de dança desde pequena, essa coisa de dançar com a sua mãe. Eu queria que você falasse um pouco disso, desse gosto, quando você acha que despertou, se você chegou a fazer aula.
R – Eu lembro que... Eu não sei, eu acho que a minha mãe me via dançando muito sozinha no quarto, na sala, em frente a televisão, então quando passava essas coisas do nordeste, de frevo em Recife e tal, eu brinco que eu fui autodidata em frevo, eu aprendi a dançar sozinha. Um dia ela me viu dançando frevo na sala, ela perguntou se eu não queria fazer aulas mesmo, porque estavam abrindo uma academia ali no bairro, ali perto. Mas eu nunca pedi pra ela. Ela que falou: “Vai ter gente que vai fazer, suas amigas, tal, você não quer?”. Falei: “Ai, quero”. Aceitei na hora. Devia ter uns sete anos, oito anos, foi a primeira academia que eu fiz, mas logo fechou. Aí fiquei muito triste, ela me encaminhou pra outra escola de balé mesmo. Fui fazendo balé por muito tempo, gostava muito, mas no final eu tinha que... Meus pais apoiavam, mas também não incentivavam tanto. Então assim, para o meu pai, ser bailarina não é profissão, então eu nunca pensei... Cheguei a pensar em estudar dança, mas no geral eu tinha que escolher uma faculdade que eu achava que eu pudesse trabalhar até ter uma carreira longa, até os 80, 90 anos de idade. Aí acabei optando pela Geografia mesmo. E depois que eu vim pra cá é difícil conciliar, não consegui mais fazer aula. Já me arrisquei em dança de salão, zouk, salsa. Então eu gosto, assim, minha paixão é a dança, mas eu to feliz como geógrafa.
P/1 – Quantos anos você fez balé?
R – Eu fiz quase dez anos... Ah, direto assim uns oito anos. Depois fui, voltei, fiz um tempo em São Paulo, um semestre no Ballet Stagium. A gente vai ficando velhinha, perde a habilidade, engorda, aí é difícil. Então com a idade atual, o auge das bailarinas é bem mais jovem, então agora é só hobby mesmo.
P/1 – Mas você chegou a viajar dançando, mesmo que seja só pela escola?
R – Sim. Uma vez no Ensino Médio eu viajei pra Rio Claro, um festival que tava tendo lá. Dancei no espetáculo também de final de ano das academias, mas também da própria escola, do Ensino Médio. A gente fez Ópera do Malandro, uma montagem lá. Foi bem legal, tenho boas lembranças desses ensaios, de tudo mais.
P/1 – Tem alguma dessas viagens, ou de dançar em festival, ou no espetáculo da academia, você tem alguma história que você tenha vivido que tenha sido mais marcante, significativo, um momento especial?
R – É estranho, porque eu acho, assim, por mais que eu gostasse, eu não tinha real dimensão do que era, do que estava acontecendo. Então minha família também é mais simples, nunca teve aquela coisa de entregar flores pra bailarino, nada desse rebuscamento assim, sabe? Então eles me levavam para as aulas, assistiam aos espetáculos, prestigiavam, mas nada que supervalorizasse ou que eu tivesse um momento superemocionante. Eu gostava de dançar, tava vivendo, era feliz, tinha o vídeo no final e tal, que entregavam em casa pra família. Mas foi uma fase, passou, talvez se um dia eu tiver filhos eu vou querer que eles dancem também. Mas, assim, talvez eu pudesse ter aproveitado mais. Mas é sempre assim, a gente sempre acha que poderia ter sido melhor. Mas tenho lembranças de bons professores de dança, professores que eu gostava bastante. Então é isso. Mas meio que se perde no tempo, não tenho mais contato, não conheço mais ninguém. Às vezes rola um ressentimento de pensar: “Nossa, poderia ter sido bailarina. Poderia”. Então fica sempre um “poderia”, então eu tento não pensar muito. E uma coisa que lembra muito é da rivalidade das meninas. Isso é um pouco chato, porque ao em vez de todas nós sermos unidas, amigas, ainda mais não sei se é porque é interior ou qual a razão de tudo isso, mas a gente era muito estimulada à competição. Eu acho que eu não tenho nenhuma amiga de verdade da época do balé justamente por isso, porque cada uma queria fazer o solo, queria ser mais magra, queria parecer mais bonita. Então amiga de verdade daquela época, acho que eu não tenho.
P/1 – Você dançou bastante, dançou a adolescência toda, né? Mas a passagem da infância pra adolescência, o que mudou na sua vida em termos de lazer, de amizade, o que você fazia pra se divertir? Quais foram as mudanças?
R – Então, acho que as amizades que eu fiz na infância, algumas, como as das meninas mais próximas, realmente se fortaleceram, a gente se uniu mais. Mas eu lembro que eu saía muito pouco, meus pais eram bastante rigorosos, não me deixavam sair enquanto eu não tivesse idade. E aí no final eu ficava muito na minha mesmo quieta, lia. Meu passeio era mais ir ao cinema, shopping, aquela coisa de no final de semana clube. Eu lembro muito assim que o Sesc foi fundamental na minha vida, os melhores shows que eu assisti na época foram no Sesc. Tinha aquela colônia de férias, Super Férias, então assim, todo ano, a cada seis meses... A gente era sócio do Sesc, então minha mãe ia com a gente na piscina, aprendi a nadar lá e se não fosse o Sesc, talvez tivesse sido realmente mais chato. Assisti shows, lembro-me de uma contadora de histórias que era fantástica, eu gostava muito. Tinha aquelas palestras sobre o fundo do mar. Então tinha muita coisa instigante, eu gostava muito de ir para o Sesc. Mas baladinha, essas coisas de matinê assim nunca fui. Nunca tinha pulado carnaval, nada, era uma infância bem mais próxima, uma coisa mais família, cultura, algumas amigas de final de semana, mas nunca fui voltada... Eu gostava de dançar, mas em escola de dança, não em matinê ou pular carnaval. E depois eu me envolvi muito com questões religiosas de grupo pra apoiar asilo, orfanato, grupo de jovens. É também bastante comum ainda lá. Então tinha toda uma questão religiosa também de fundo.
P/1 – Essa fase de adolescência e de infância, antes de você decidir que queria ser geógrafa, você lembra o que você queria ser quando crescesse?
R – Lembro. No início, a primeira coisa era uma coisa que tivesse a ver com animais. Então eu pensei em bióloga, a gente falava de Biologia Marinha por causa das palestras do Sesc, eu me encantei pelo fundo do mar numa época, e veterinária, porque meu pai sempre falava de veterinário, ele tinha um cliente veterinário e tal. Então eu pensava em Veterinária e Biologia. Depois, por um momento, até os meus 15 anos, talvez por causa da igreja, pensei em ser freira, mas franciscana, aquela de desapegar total de tudo, assim. Aí eu fiz alguns acampamentos, tal, percebi que não ia dar certo e aí comecei a pensar, já com 16 anos, quando eu fui fazer o Ensino Médio, em algo mais voltado pra literatura, humanidades. Então teve uma fase de biológica, teve uma fase mais religiosa, depois essa fase das humanidades. Acho que no final teve poucas... Nunca quis ser médica, nunca gostei de sangue, nunca pensei também em ser engenheira, nada dessas coisas muito tradicionais assim que o pessoal realmente valoriza, das profissões mais clássicas. E os meus pais também nunca questionaram, então isso é bom.
P/1 – E você falou mais de uma vez assim de literatura, dos shows do Sesc que te marcaram. Nessa parte de cultura na adolescência, você tinha um grupo preferido? Ou o que você escutava? O que você lia? Como é que era seu contato assim com esse universo cultural?
R – Eu lia tudo que chegava à minha mão: revista, jornal. Lia aquelas revistas para adolescentes, lia os livros da escola, tem muitos livros bacanas, assim, de adolescência que eu gostava bastante.
P/1 – Tem algum que tenha te marcado?
R – Sim. Tem uns bobinhos assim. Tem um que chamava A Montanha Encantada, já era menorzinha, mas falava de um grupo de anões, uma coisa meio mágica, que encontrava uma montanha, e eu lembro que eu me encantei muito com essa história, devia ter uns 12, 13 anos. Depois eu li um que chamava Balança Coração, que era uma história de amor meio que impossível entre uma vegetariana que fazia ioga e um cara que era dono de churrascaria, então tinha esse contratempo. Eu li algumas coisas depois no Ensino Médio, os romances, gostava muito de Capitu como personagem. Que mais?
P/1 – E desses shows do Sesc, teve algum?
R – Então, nossa, teve uma fase que era muito de forró, então eu ouvia Fala Mansa, teve o show do Fala Mansa; ouvia Ana Carolina, teve o show da Ana Carolina. Mas eu gostei muito na época de Alanis Morissette, e até eu acho que a inspiração dos cabelos longos foi um pouco da Alanis. Depois Shakira, aquela época que ela cantava espanhol e era morena ainda. Depois ela traiu o movimento ficando loira e cantando em inglês, mas gostava também da Shakira. Teve a fase também de Sandy e Junior junto com as amigas, nos dez, 11 anos de idade. Nossa, eu ouvia um pouquinho de tudo e gostava muito... As festas, quando tinha festas de 14, 15 anos, que a gente se reunia mesmo na casa dos amigos, aí tinha as dancinhas das coreografias da Britney, Spice Girls, Backstreet Boys. Peguei bem essa fase que era das boybands, então era legal.
P/1 – E tem algum desses grupos ou alguma música com a qual você tenha uma história marcante ou você se identifique em particular? Uma canção que você identifique como sua, essa é minha música?
R – Não. Eu acho que é muito de fase assim, praticamente todo ano mudava a preferência, a predileção. Mas eu lembro que eu ficava muito sozinha no meu quarto e ouvia muito Adriana Calcanhoto e Marisa Monte. Eu aprendi a gostar de Marisa Monte com a minha tia e até hoje é uma das minhas prediletas. Mas tinha umas músicas mais sofridinhas assim, mais tristinhas, que eu com 12, 13 anos, achava que tava curtindo uma fossa assim, horrores. Mas gosto bastante até hoje delas, mas não tem uma música única, nada.
P/1 – E nesse aspecto mais amoroso quando entrou na adolescência, teve alguém marcante, uma primeira paixão?
R – Ah, já teve por volta da sétima, oitava série, teve um mocinho. Coincidiu que minha amiga também gostava, então tem que saber lidar com isso. Depois comecei a namorar muito sério já com 16 anos, foi meu primeiro namorado e durou oito anos, até eu vir pra São Paulo. Acabei vindo meio que por causa dele, porque eu passei na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), na Unesp (Universidade Estadual Paulista), na UFScar (Universidade Federal de São Carlos) e na UEM (Universidade Estadual de Maringá), em Maringá, além da USP (Universidade de São Paulo). Então tinha outras opções até mais próximas de Rio Preto, mas como ele tava na USP, acabei vindo pra cá. No final, acabou minha graduação e acabou o namoro. Não me arrependo, gosto muito de São Paulo, foi ótimo ter feito USP, mas foi meio traumático também. Então talvez pela juventude e tal, hoje eu teria levado de outra forma.
P/1 – Vocês se conheceram no colégio?
R – Não. A gente se conheceu nos encontros da igreja, acampamento. Ele era do interior também e tal, a gente namorou uns três anos à distância, mas foi difícil porque justamente eu era muito... O pensamento, na época a gente era muito um para o outro só, então não tinha muitos amigos, talvez pela juventude a gente começa a mudar, amadurecer, aí no final já tiveram alguns atritos. Mas assim, no início ele ainda era muito que referência pra mim. Hoje em dia é totalmente diferente. Eu vejo que foi no término que eu comecei a me reconhecer como Aline, que eu me transformei, mudei. Então aquela coisa de que tem males que vêm para o bem. Então assim, realmente eu sou outra pessoa. Foi importante passar por tudo isso, mas foi um momento muito ruim, ainda mais quando eu terminei, minha família muito longe e eu dentro da USP, isolada, com uma monografia pra entregar e aos prantos, não conseguia. Era meio chato pela forma como foi, tal, depois de tantos anos, oito anos, foi um terço da minha vida na época. Então foi meio pesado.
P/1 – Foi bem no seu último ano, foi isso?
R – É. Faltavam dois meses pra eu me formar, aí eu atrasei a faculdade mais um semestre, praticamente. Hoje eu consigo falar disso numa boa, mas antes era pesado. Porque eu acho que tem muito dessa coisa da intensidade, de achar que não foi justo e que eu faria diferente, sabe? Que eu teria sido mais amistosa, mais tolerante. Depois você se pune, você se culpa, mas hoje eu enxergo de outra formar. E ele já casou com outra também, então... Mas é isso, rola aquela tristezinha de pensar: “Putz, eu lutei tanto do lado pra ajudar a construir tudo, pra depois casar com outra menina que às vezes por status, alguma outra coisa assim nesse sentido”. Mas é isso. Passou.
P/1 – É que são muitos anos mesmo,
R – Sim.
P/1 – Não tem como não ser doloroso.
R – E hoje em dia é muito comum. Você não vê mais quase relacionamentos longos assim.
P/1 – Começou muito novinha.
R – Sim.
P/1 – Conta um pouco como é que foi essa aproximação da igreja que você citou algumas vezes já. Como isso surgiu na sua vida? Como você entrou para o grupo? Como foi essa experiência?
R – Acho que entrou um pouco pela minha tia também, a mesma que me ensinou a ouvir Alanis, Shakira, Marisa Monte, foi a que me levou pra igreja para o grupo de jovens. Eu achava ela muito bonita, muito comunicativa, engraçada e ela frequentava a igreja, eu sempre queria ir com ela e não dava certo. Um dia ela me convidou quando eu fiquei com mais idade. Depois minha mãe começou a acompanhar, já no final do meu Ensino Médio meu pai começou a ter problemas de saúde, então eu acho que isso colaborou também. Tinha uma questão de eu querer ajudar, de eu querer ter um trabalho já mais pra colaborar com as pessoas. Então isso era bom, me ajudava. E eu não sei, eu me sentia acolhida por um grupo, diferente das outras pessoas. Então foi um tempo bom, tinha bastantes encontros, tal. Mas também a gente se cobra bastante por tudo, pela postura. É uma coisa meio que da minha família. Hoje em dia a maioria já não é mais católica carismática, acabaram virando protestantes, mas é uma coisa que é uma constante na minha vida, tive a avó benzedeira. Então, assim, todo mundo sempre teve muita fé. Às vezes mudam de religião, mas continuam acreditando. Então é isso, assim. A minha família é meio misturado. O lado da minha avó teve uma coisa mais de espiritismo, depois o lado da minha mãe já mais cristão mesmo. E é isso. São todas as minhas influências. E mesmo tento feito FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), estudado tanto, eu não consigo deixar de acreditar, entendeu? E eu quero acreditar na verdade, então é uma opção assim.
P/1 – Você fala da sua avó benzedeira, era por parte de mãe?
R – A mãe do meu pai. E eu também me lembro de ter visto os cultos quando eu era criança, os rituais, na verdade. Tinha festa de Cosme e Damião, eu me lembro dela benzendo com arruda. Também são imagens fortes na minha lembrança. Pena que os meus avós acabaram morrendo cedo, então eu não tive muito tempo de conversar. Tem uma única avó hoje, que fez 77 anos, que é a mãe da minha mãe. Mas os outros faleceram antes dos meus 11 anos de idade, dez anos, por aí.
P/1 – E dessas imagens que você lembra, teve alguma situação mais marcante ligada a essa esfera religiosa?
R – Ah, sim. Principalmente pela minha avó, a gente conversava pouco, na época era eu e o meu irmão um pouco mais rebeldes, então a gente mais ofendia, zoava, do que tinha aquele amor de aproximação mesmo, de carinho. Então eu me lembro dela atendendo algumas pessoas e usando roupas brancas, fazendo algumas coisas no chão com mel, vela, tinha um congá no fundo da casa dela. Mas eu não entendia muito bem, na época, nada, então nunca participei efetivamente de nada. Depois que ela faleceu, eu já era mais grandinha, aí vem só o lamento de não ter podido conversar e conhecer de fato ela. Mas tem a casa dela ainda lá, nunca mais voltei. O marido dela faleceu quando eu tinha um aninho, meu avô, mas meus pais meio que me ensinaram a amá-lo por fotos. Esse é teu avô, a história, ele era mecânico, tinha um olho de vidro, alto, magro, então eu me lembro disso. Avô Mario. O avô Mario e a avó Cida. Depois, por parte da minha mãe tinha o avô Eduardo, que tinha os olhos verdes, e tinha trabalhado na ferroviária mesmo, construindo... Na época era Fepasa que chamava a empresa. E eu lembro que teve um período que ele foi alcoólatra, então era bem difícil, mas quando eu nasci já tava tudo mais calmo. Minha mãe lembra que ela sofreu bastante na infância, que ele era violento, agressivo. Eu lembro que quando eu nasci, já peguei uma fase branda, que ele era bem atencioso, ia me ver. Uma vez me colocou na garupa da bicicletinha dele e me levou num bar, procurando um bar aberto de domingo porque eu queria guaraná, aquelas Caçulinhas, e paçoquinha, aí ele foi comprar pra mim. Então é uma boa lembrança que eu tenho dele. Mas ele morreu de câncer também, foi meio duro, eu devia ter uns nove anos, por aí, não lembro. E aí sobrou minha avó Luzia, que é analfabeta, negra. Legal. Hoje em dia a gente conversa. Quando eu volto pra Rio Preto, eu sempre vou à casa dela também. Ela é muito parecida com a minha mãe, com as minhas tias, eu acho que comigo também. Então ela teve cinco filhos, não conheceu os pais dela e tem algumas histórias. Então quando eu a encontro, ela sempre fala que eu to mais gorda, que meu cabelo parece uma paina, aí eu descobri que paina tinha a ver com algodão que era algo macio e tal, e ela me pergunta dos namorados. Ela fala: “E os namorados? Você não vai namorar? Não vai casar?”. Então ela me cobra por isso. E é isso, minha família tem esse lado, toda vez que eu volto para o interior, eu tenho que estar disposta a ouvir essas cobranças. Porque minhas primas todas evangélicas, todas casadas com filhos. Eu sou a única que me aventurei a estudar, trabalhar fora, viajar, fazer outra coisa. Essa parte bem assim mais da família, das cobranças.
P/1 – Essa sua avó Luzia, você disse que ela conta muitas histórias, é isso?
R – Ela fala mais assim... Uma vez ela falou que ela tinha andado de avião e eu não sabia que ela tinha andado de avião, mas ela tinha sobrevoado uma fazenda lá de um dos chefes dela e é isso assim. É mais pouca coisa. Eu vejo hoje muito forte também na minha família a questão de que os homens da família, os avôs sempre tiveram alguns casos paralelos. Então eu me lembro das mulheres reclamando muito e sofrendo pelas traições. Eu acho que de ambos os lados, tanto materno, quanto paterno, é uma coisa que me incomoda muito saber que desde sempre a gente tinha que aceitar isso e que era algo: “Aceita, porque você é mulher e tem que ser feito dessa forma”. Sabe? Mas hoje em dia já não falo mais... Converso com a minha avó, mas não toco nesses assuntos, ela tem 77 anos. As festas hoje em dia tudo acontece na casa dela, então a gente se reúne lá de domingo, aí tem o churrasco, foi aniversário do meu irmão ontem, então teve bolo. A gente tenta centralizar agora nela e já tem bisneto, várias netinhas que nasceram também agora mais recentemente. Então sempre tem as festas meio que pra privilegiar o espaço dela, a história dela, é tudo lá na casa dessa minha avó materna agora.
P/1 – Você sabe por que ela não conheceu os pais?
R – Não tenho certeza também. Creio que a mãe deva ter morrido mesmo no parto, aí eu sei que ela cresceu meio que em outra família. A mesma coisa aconteceu com a minha avó paterna, mas aí ela já teve a família presente. Ela nasceu, foi criada com os pais, até inclusive numa família rica, mas aí tinha aquela coisa de fazenda, assinou um papel em branco, perdeu tudo. Meu bisavô teve uma tuberculose, foi se tratar em Campos do Jordão, se eu não me engano, essa é a história que eu ouvi; aí minha bisavó, ingênua, assinou passando tudo pra outra família e aí meio que morreu de desgosto, essas coisas. Depois que o meu bisavô morreu, ela também morreu logo depois. Aí essa minha avó, já mais mocinha, foi viver com tias, que acabaram herdando todo o dinheiro da família. Aí ficou nisso. Não tenho mais muitas fontes. A história que eu me lembro da história mesmo de ouvir.
P/1 – E esse seu avô com o olho de vidro, você lembra qual era a história do olho de vidro?
R – Ele era mecânico e um dia ele tava pregando um negócio, o prego voou e furou o olho dele, não lembro qual. Mas aí o meu pai conta que ele era impossível, muito charmoso, muito bonito, garboso, elegante, nãnãnã. Então era terrível! E aí eu me lembro disso. A mesma coisa o meu outro avô, de ter essa minha avó Luzia, a mulher dele, e ter uma amante também chamada Luzia, e as duas sem saberem conviverem, assim, tipo, comer na mesma casa. Então assim, são histórias terríveis pra mim (risos). Eu também já escutei muitas vezes isso.
P/1 – E voltando um pouquinho pra essa sua experiência então que falou com o grupo da igreja. É a igreja católica, é isso?
R – Na época, sim.
P/1 – E aí conta como foram essas experiências até de trabalho voluntário. Era trabalho voluntário, é isso?
R – Isso. A gente visitava asilos, orfanatos, era muito legal. Asilo lá em Rio Preto, na verdade era uma cidade satélite ali, Schmidt, que é conhecida pelos doces caseiros e tal, a gente visitou asilo algumas vezes e era muito legal ouvir a história das pessoas. Então eu gostava muito de ouvir e você via fotos de pessoas que foram muito ricas, viajaram pelo mundo, Europa, e de repente estavam lá abandonadas pela família num asilo público. Tinha umas senhoras muito elegantes ainda, com uns colares e tal, mas supercarentes, queriam um pouco de atenção, de afeto. Tinha outras já bem mais pobrezinhas que andavam com bonecas. Era um pouco chocante pra mim, porque eu ainda tinha acho que uns 13, 14 anos, e ver tanta gente debilitada e abandonada me causava uma melancolia. Eu me lembro disso, de tentar levar um pouco de alegria, mas também não poder fazer muito. Então eu ia, acompanhava, conversava o máximo que podia, tinha casais que ser formavam lá dentro também, era legal. Tinha gente que conseguia ainda dançar, outros não saíam da cama, mal podiam tomar água. Mas foi legal a parte de conhecer esses asilos. E é uma coisa que eu tenho comigo, de tentar evitar o máximo que um dia os meus pais ou alguém próximo chegue a esse ponto, mas esse é um caso do asilo lá de Schmidt, que eu conheci assim as pessoas de lá.
P/1 – Essas mulheres que andavam com bonecas, como era?
R – Tinha uma que tinha uma deficiência mesmo, uma coisa de voltar a ser criança, então ela mostrava a boneca dela pra você e tal. Mas tinha outras superlúcidas e que sabiam que os filhos não iam voltar pra visitar. E ela mostrava foto da Europa, da Piazza di San Marco, lá em Veneza, a foto com os pombos. Era legal por conversar, mas eu saía de lá muito pensando na vida, sabe? Então eu acho que eu cresci com esse peso de refletir demais, tanto de me sentir responsável pelos meus pais muito cedo e de tentar ajudar todo mundo. Isso eu acho que foi bom pra formação de quem eu sou hoje, mas ao mesmo tempo eu acho que ficou pesado, um fardo de achar que tenho que ajudar e salvar todo mundo disso, da solidão.
P/1 – Nessa experiência no asilo, você se lembra de alguém que tenha sido mais marcante, alguém que você tenha tido contato, ou uma história que você tenha escutado que tenha ficado na memória?
R – Eu acho que foram essas duas mesmo, da senhorinha que sempre mostrava a bonequinha toda vez que a gente ia lá e dessa senhora que tinha sido muito rica e que depois meio que ficou nessa solidão. Mas na história mais recente tem boas histórias com os catadores com os quais eu trabalho, que praticamente a mesma coisa, a faixa de idade acima já de 50 anos, alguns. Então é isso. Sempre gosto de me envolver, de ouvir a história, de tentar dar o máximo de atenção possível. Essa troca que eu acho importante, porque no fundo talvez eu também goste.
P/1 – Eu queria saber até quantos anos você frequentou esse grupo.
R – Eu acho que foi dos meus 13 até os 18. Até eu sair de Rio Preto, praticamente. Talvez o meu último ano só, que eu precisei estudar mais pesado pra passar no vestibular, que eu meio que desisti, fui me afastando. A gente vai também amadurecendo, começa a questionar algumas coisas, aí você vê que talvez aquelas amizades todas também não fossem tão verdadeiras assim, então tem essa coisa. Meus pais meio que me ensinaram a desconfiar muito de tudo e de achar que não existe amigo. Então eles são bem fechados, não têm mesmo amigos. Pra mim é difícil... Hoje em dia eu tenho amigos, são poucos. Mas eles sempre me ensinaram a desconfiar de tudo e acreditar que não existe amizade, sabe? E aí foi bom pra minha adolescência, foi bom pra minha formação saber quem eu sou e tudo mais, mas hoje eu não sei se eu voltaria e seria tão ativa como era na época.
P/1 – Em que momento você decidiu o que você ia fazer de profissão? Como é que foi essa escolha e aí como é que foi prestar o vestibular?
R – No ensino médio, ainda no terceiro ano, eu cheguei a prestar, prestava só História, ainda tava um pouco confusa. Depois que eu tive um ano que eu meio que amadureci, me acalmei, que ainda prestei História, mas prestei Geografia, e aí foi o que deu certo e eu escolhi Geografia no final. Eu acho que não faria outra coisa. Talvez hoje eu fizesse Ciências Sociais, ou Letras, mas não sairia da FFLCH. Continuaria pobre (risos), não ia fazer Economia, Direito, nada disso.
P/1 – Ia ficar nessas áreas humanitárias.
R – Sim.
P/1 – E aí como é que foi então a vinda pra São Paulo? Queria saber como veio o resultado do vestibular, como foi fazer essa escolha. Você falou um pouco que teve a ver com o relacionamento amoroso, mas se você puder retomar, e aí como foi a mudança mesmo. O que mudou na sua vida?
R – É estranho, porque eu nunca sonhei em morar numa metrópole. Nunca pensei que eu fosse vir pra São Paulo. Até engraçado, que a primeira vez que eu vim quando era criança, vim passear com os meus pais, eu me lembro de ter vindo no Parque do Ibirapuera e a gente pegou um ônibus aqui do lado. E pensar que depois de uns 15 anos eu ia estar trabalhando aqui no mesmo lugar onde eu peguei o ônibus e visitei com os meus pais, sabe? Então era uma loucura assim, pra mim era muito distante. Eu me lembro de ter, quando eu era criança, ter andado de metrô e achado tudo muito grandioso assim. Mas não era pra mim, aí fiquei em Rio Preto feliz, fiz as minhas coisas e aí na hora de prestar o vestibular, eu prestei as universidades públicas e vim pra São Paulo. Eu não tinha família, não tinha parente, não tinha ninguém aqui, tinha só essa pessoa, por isso que foi tão talvez forte o envolvimento, porque eu vim muito menina, meio que caipira ingênua mesmo pra São Paulo. Não tinha ideia. Sabia o que era USP, mas não sabia como rolavam as relações internas, como era tudo. Aí eu cheguei, minha mãe veio comigo fazer a matrícula, a gente no ônibus só nós duas, ela bem tristinha, assim, achando que tava perdendo a filha. Depois eu me lembro de eu estar no Coseas, que é a assistente social lá do Crusp, do Conjunto Residencial da USP, com travesseiro na mão e pedindo um lugar pra ficar, pra morar. E aí consegui. No início foram seis meses que eu fiquei num super quarto, alojamento mesmo, com 12 meninas muito diferentes de mim, de Santos e tal. E eu sofri muito, porque eu fui muito julgada naquela época, porque eu era do interior, tinha uma vida religiosa e tudo mais, e elas já vinham com uma mentalidade... Algumas mais punks, mais hippies, tudo muito mais livre, porque já estavam morando em cidades próximas de São Paulo, cidades maiores, outras referências, outras criações. Então os seis primeiros meses foram difíceis pra mim, porque eu vim do interior de uma família muito fechada, bem mais conservadora, tradicional. Eu tentava fazer amizade, tudo me fazia parecer boba demais, sabe? Tanto é que não sou amiga de ninguém daquela época que morou comigo, talvez justamente porque a gente não conseguia se entender, na época a gente não teve maturidade suficiente. Se fosse hoje em dia, com certeza seria diferente, mas foi bem difícil. Consegui a minha vaga no Crusp, morar lá, aí foi legal, tive outras amizades, tinha só o meu espaço, era um quartinho bem pequeninho, a cama, a escrivaninha, um guarda-roupa duas portas que eu só mudei de lá em 2011 e eu não sei como tudo coube lá dentro, porque muitos livros, artigos, todas as cópias dos textos de faculdade. Muita coisa acumulada lá. Foi legal. Sempre morei no bloco A, que era o primeiro bloco, em frente a raia olímpica, e via o pessoal andando de bike, correndo, achava lindo, mas eu nunca fiz, até hoje não pratico nada ao ar livre porque, não sei, eu acho até bonito, mas não ando de bicicleta, nada disso. Fui a poucas festas, mas boas, participei de bastante coisa lá. Assim, tentei dar aula de dança para as crianças, tinha muitos peruanos, colombianos, bolivianos, tem muitos africanos também no Crusp, então alguns tinham filho, eu tentei dar aula de dança para algumas crianças, mas por pouco tempo. Os meninos também, os pais não deixavam, ainda mais os pais peruanos, não queriam nem que os filhos usassem uma caneta cor de rosa, imagina fazer aula de balé.
P/1 – Mas como foi essa experiência? Você propôs um curso?
R – Propus. Eu coloquei os cartazes no corredor, falei que eu queria dar aula tal dia, tal horário para as crianças e tal, apareceu uma turminha legal, mas tinha uns três meninos e no final os pais não deixaram os meninos fazerem balé.
P/1 – E como foi esse contato com essas crianças? Qual que era o perfil delas? Como é que era dar aula?
R – Eram filhos dos moradores do Crusp, estudantes mesmo. Mas durou pouco, menos de meses, dois meses. Foi legal, foi bacana, eram crianças de cinco, seis anos. Mas os meninos, realmente, eles só queriam lutar capoeira, era uma coisa meio de não dar muita atenção. Então no geral como eu tinha que estudar muito, estava começando também o meu estágio, muita coisa, eu acabei desistindo porque eu ia ter que negociar com os pais deles e era outra cultura também. Eu tentei, mas não foi pra frente.
P/1 – Essa experiência que você falou do alojamento, como foi? Como você se sentiu e como foi essa coisa de ir morar fora? Você saiu da sua casa pra um alojamento.
R – Isso.
P/1 – É uma mudança muito radical assim.
R – Pois é.
P/1 – Qual foi a impressão que você de tudo isso?
R – No interior, assim, embora fosse tudo muito simples, eu nunca dividi quarto nem com o meu irmão, nada, tinha todo o espaço que eu quisesse, meu ritmo, os meus horários. No alojamento eram várias meninas, desapareciam coisas, então a gente teve muito atrito por isso. Depois no final a gente descobriu quem era a menina que tava pegando. A gente comia no bandejão, café da manhã, almoço, jantar. Mas a gente não conseguiu ficar amigas assim por diferenças mesmo de pensamento. Na época, eu me senti bastante injustiçada e, não sei, talvez eu tenha ido mesmo muito caipira ingênua pra lá, despreparada. As meninas, embora tivessem a mesma idade que eu, já saíam à noite, bebiam, fumavam, e eu ainda não. Eu não faço isso também muito hoje. Então foi um choque assim, namoro sério, tudo, então eu parecia a mais caxias da turma. Mas eu sou muito grata, se não fosse o Crusp, não teria feito faculdade lá, nada. É difícil, é um perrengue, mas se não fosse... Foi supernecessário, foi importante na minha vida. Foi bom assim, no final foi um pouco... Era ruim ficar os finais de semana lá sozinha, meio que isolada, não tinha uma padaria boa, ônibus com frequência. Hoje tá melhorando um pouco. No Crusp, poucos amigos, mas foi uma coisa importante.
P/1 – E essa experiência com o curso mesmo? O que você achou do curso? Qual que foi a sua impressão da FFLCH, do curso de Geografia?
R – Foram cinco anos, no final acho que acabou sendo cinco anos e meio, porque eu atrasei a monografia um semestre. Eu fiz bacharelado e licenciatura, os dois, então tinha aulas lá, a gente pegou algumas matérias da Geologia também. Foi legal. Eu comecei a trabalhar só na metade do curso, fazer o estágio aqui no Cempre.
P/1 – Era o que você queria? Qual que foi a sua sensação no começo?
R – Era bem diferente. Não tinha muita ideia, achei que a turma seria menor, no final tinha 90 pessoas na sala de aula. Mais para o final você começa a desenhar mais o que você quer. Aí tinha os trabalhos de campo que eu gostava bastante, conheci, passei pelos três estados do sul do país, fui pra Minas Gerais, cidades históricas, fiz um encontro de geógrafos para o Espírito Santo, Niterói. Então a gente foi ficando mais amiga nesses trabalhos de campo, na estrada mesmo. E as aulas eram legais. Tive aula com um professor uruguaio, que eu gostava muito, que faleceu recentemente. Professora argentina, professor alemão, os brasileiros. No final meio que... A gente sempre tem aquela sensação de que poderia ter aproveitado mais, mas eu fiz o possível e foi um período bom, gostoso, e eu acho que eu sou uma boa geógrafa.
P/1 – E essas viagens que você mencionou, você lembra também de alguma história, algum episódio que tenha ficado marcado, uma viagem que você gostou mais?
R – Tem várias. A gente rodou bastante. E agora que eu trabalho também, ainda mais. Mas sempre histórias no ônibus. Em Niterói, a gente ficava em barraca e tomava banho frio. Então assim, muita coisa que hoje talvez eu não faria mais porque a gente não quer mais se aventurar tanto, mas a primeira vez que fui pro Rio de Janeiro foi com essa turma da faculdade. No sul do país foi muito legal, porque a gente começou a visitar pelo Paraná, até o Rio Grande do Sul, e aí no Rio Grande do Sul a gente visitou uma vinícola. Era mais pra tentar ver um sistema camponês no Brasil, mas a gente ficou degustando vinho. A gente parava nas cantinas pra comer massa. Em Minas Gerais, cidades históricas também, Tiradentes, São João Del Rei foi muito legal. É bom lembrar, mas tem coisa que a gente não pode contar assim.
P/1 – Não?
R – Ah, era um trabalho acadêmico, não era pra gente curtir tanto assim, né?
P/1 – Vocês eram jovens, estavam na idade pra fazer isso também.
R – Mas foi legal assim. Não me arrependo de ter escolhido Geografia justamente porque eu acho que é bem holístico mesmo essa parte de geografia econômica, política, a parte de militância, de MST de, sei lá. Eu nunca fui filiada a partido, mas sempre quis saber o que tava acontecendo nas assembleias, mas também não me envolvi tanto. Mas a Geografia possibilita isso, é tudo que está acima do solo e abaixo da atmosfera, então a relação homem/meio ambiente, homem/cidade, homem/campo. Então é muito legal pensar a questão urbana, a metrópole, as desigualdades. Então é um curso que é bastante crítico e é legal, eu gostei muito de ter feito.
P/1 – E você mencionou que você começou o seu estágio do meio do curso pra frente?
R – É. Mais ou menos isso.
P/1 – E aí foi a sua primeira relação com trabalho, esse estágio?
R – É. Que não fosse voluntário, sim. Comecei aqui, eu tinha feito algumas coisas de pesquisa dentro da faculdade mesmo, orientação, iniciação científica e tal. E aí eu conheci um professor que me indicou uma entrevista aqui no Cempre. Eu vim, comecei como estagiária meio período, fiquei dois anos e meio no estágio, depois comecei a ficar como consultora, agora eu to aqui já tem seis anos e pouco, alguns meses que eu to aqui.
P/1 – Esse trabalho inicial como estagiária, qual era exatamente a sua função? Conta um pouco pra gente qual era o trabalho.
R – Eu já tinha contato com as cooperativas, visitava, viajava, fazia algumas palestras, desde o início a gente meio que já entra pra fazer tudo. Então a gente brinca que aqui a gente faz desde servir o cafezinho até receber comitiva da Tailândia, de outros países. Então eu fazia algumas tabelas de preços, de informações, ligava pras cooperativas pra saber como tava. Era legal.
P/1 – Você já conhecia o Cempre? Você já trabalha com alguma coisa nessa área na faculdade ou não?
R – Não. Eu gostava do tema, essa questão mais ambiental, projetos socioambientais, mas vim meio que sem conhecer tanto.
P/1 – E o que você fez com as primeiras bolsas, você lembra? Se você comprou alguma coisa que você queria muito.
R – Eu acho que sim. O primeiro salário eu comprei maquiagem (risos), os pincéis, então aquela coisa que eu gosto. Pode parecer um pouco contraditório, mas acho que isso vem muito do interior. As minhas amigas todas, o pessoal lá, a gente cresce e aprende muito a se arrumar sempre assim, sabe? Então eu gosto muito de usar salto alto porque sou nanica, mas é uma coisa que... Então, imagina, na FFLCH sempre de salto alto. Mas nada, assim, a gente nega bastante essa coisa da futilidade, mas eu gosto de maquiagem e tal. Eu me lembro dos meus primeiros salários. Eu lembro que eu comprei uma máquina de lavar pra usar no Crusp (Conjunto Residencial da USP), porque era muito difícil lavar roupa assim. Depois eu fui montando a minha maletinha de cosméticos e tal. Era legal.
P/1 – E como foi essa sua aproximação então no estágio com esse universo da reciclagem, das cooperativas, dos catadores?
R – Sempre via catadores nas ruas, mas nunca pensei, não achei que um dia eu fosse trabalhar com isso. Foi tudo meio que acontecendo. Eu nunca pensei que eu fosse vir morar em São Paulo, que eu fosse fazer USP e trabalhar com catadores. Mas tem sido uma experiência ótima, gratificante.
P/1 – E lá nesse início no estágio você lembra qual foi sua primeira impressão, se teve também algum primeiro contato, ou primeiros contatos que tenham te marcado, uma história?
R – Uma das primeiras cooperativas que eu visitei foi a Coopercaps, que é no sul de São Paulo, ali em Interlagos, e eu me lembro de ter visto uma gata andando com um bichinho na boca, que eu achei que fosse o filhotinho dela, o gatinho. Mas de repente ela jogou no chão e rasgou com a unha, saiu um monte de sangue, aí eu percebi que era um rato e não um gato. Mas nunca fui com nojo, fresca, ou reclamei de cheiro, alguma coisa assim. Hoje em dia é muito tranquilo, eu tiro de letra, mas sempre de uniforme, calça jeans, bota, cabelo preso e sem maquiagem, mas é tranquilo. A gente tá superacostumado em falar de igual pra igual com os catadores. É bom. Tive boas experiências também na Vila Leopoldina com senhoras falando que conseguiram estudar os filhos, que compraram a geladeira pra casa com aquele trabalho, então elas contavam a história delas e era bastante gratificante também. Ouvir que às vezes o marido tava preso, ou tinha gente em casa com problemas com drogas e tal. Então elas eram as líderes da família. Então sempre mulheres na liderança com vários filhos e trabalhando, assim. Então é muito normal em cooperativas no Brasil todo, no geral 90% de quem tá na cooperativa são senhoras até com mais de 50 anos, mulheres, então é legal.
P/1 – Tem uma delas que tenha te marcado assim? Uma figura em especial ou uma dessas histórias que você escutou?
R – Duas histórias marcaram muito, mas não foram com mulheres catadoras, foram com homens. Uma foi em Jacutinga, a gente tava fazendo um projeto lá e eu fui várias vezes pra cidade, e tinha o senhorzinho que no primeiro curso que eu fiz, de introdução, pra apresentar e tal, eu falei umas duas horas seguidas, e aí ele chegou a mim no final, não me conhecia, e falou assim: “A senhora é casada?”. Aí eu pra me proteger, me defender, já uma postura superprofissional, falei: “Sim. Sou casada”. Ele olhou pra mim e falou assim: “Coitado do seu marido, porque a senhora fala pra caramba”. Então assim, eu achando que ele fosse fazer... Ele fez uma piada, me zoou porque eu falo muito (risos). E depois a gente voltou umas duas, três vezes, já conhecia, tinha ficado amiga dele. E no final do projeto eu perguntei por ele, aí me falaram que ele tinha morrido. Fiquei muito chateada, porque ele já tinha um problema com álcool, e aí ele descobriu uma traição da mulher dele, que era cooperada também, com outro cooperado na mesma cooperativa e aí só afundou mais o estado dele, piorou. Então esse é um caso. E o último caso, mais recente já, do ano passo, na Vitória do Belém, que foi uma cooperativa que a gente ajudou a construir mesmo, do zero, do início. A gente fez uma série de aulas, de capacitação, tal, módulo a módulo, e tinha um cara baiano que chamava Jairo, que é o nome do meu primeiro namorado. Então eu já falei, primeira brincadeira, que eu não gostava de Jairo. Aí ele começou, com respeito, chamava de professora e tal, e no final quando a gente foi entregar o certificado do curso tinha o subprefeito, tinha o padre da comunidade, tava todo mundo ali, aí na frente de todo mundo ele brincou e falou: “Eu gostaria de aproveitar a presença do padre e pedir a Aline em casamento”. E aí foi engraçado, todo mundo meio que zoando, até hoje eles falam que o Jairo era apaixonado por mim, mas no final ele voltou pra Bahia, ou seja, ele me pediu em casamento e fugiu. Até tá na Bahia, não chegou a participar da cooperativa. Ele fez todo o processo de formação e não se tornou um catador. Nessa mesma cooperativa tem a Taís, que é uma menina que vive em albergue, que no início do curso era muito agressiva, fechada, não falava, falava muito de morte, quando ela falava comigo, ela falava que queria morrer, e ela sempre me sensibilizou muito, então eu chegava, tentava abraçá-la. E hoje ela tá na cooperativa, já fala mais, ela me vê, ela me reconhece, me chama pelo nome. E ela tá agora sempre com um colar que ela achou, eu acho, e ela disse que ela não tira aquele colar por nada. Ela dorme, usa todo dia aquele mesmo colar, colar com perolas, perolado, aí eu falo que ela tá bonita, pergunto como é que tá o trabalho dela. Então ficou amiga também.
P/1 – Você sabe qual que é a história desse colar? Se ela ganhou de alguém, você sabe?
R – Eu acho que ela achou no que veio no material mesmo pra ser... Porque chega muita bolsa, gravata, vestido, sapato. Até tinha uma história de um pessoal que fundou mesmo, fez um brechozinho, vendia. Então tem mulher que acha dinheiro nas bolsas. Chega bolsa da Prada, chega gravata italiana, coisa muito boa, nova. E assim, às vezes eles acham no meio de livro dinheiro esquecido. Então eu acho que esse colar, ela meio que garimpou mesmo, pegou dali e aí ela não tira. Realmente tem uns três meses que eu a vejo usando esse colar todo... Não que eu a veja todo dia, mas já teve vezes que eu voltei lá e ela tava com o colar, que ela fala que ela não tira. Então ela se apegou mesmo, porque eu acho que ela sente muito sozinha, isolada, vive em albergue, não tem família, então ela falava muito em morte. Esse trabalho pra ela é uma coisa que ajuda e o colar faz ela se sentir, sei lá, apegada a algo.
P/1 – Qual é essa história do brechó que você mencionou?
R – Na Vila Leopoldina tinha uma cooperativa, uma das primeiras que eu fui também, a Cooperação, e as mulheres falavam que chegava vestido de noiva, chegava muita coisa, então eles não iam descartar, mandar pra um aterro sanitário, e aí não é passível de reciclagem, também não dá pra comercializar pra uma indústria recicladora. Mas elas comercializavam entre elas na região, no bairro, então tinha um dia especial que eles abriam com valores simbólicos e aí tinha... Imagina também as histórias que vinham com essas roupas, gravatas intactas, vestido de noiva, tudo. Então tinha tapete, as coisas que chegavam, sapatos, isso é muito comum em vários... Eu já vi depois em Brasília, em outras cidades também esses brechós que eles montam com as coisas que chegam às cooperativas.
P/1 – Incrível.
R – Legal.
P/1 – Você se lembra de alguma história de ter escutado de uma coisa muito inusitada que veio junto com o material reciclável?
R – Ah, sim, a gente escuta sempre. Tem essa parte de acharem dinheiro, bolsas que a madame joga porque quebrou o zíper, mas que vale 20 mil reais. Elas nem tem noção também do valor. Tem história de gente que estudou com os livros, os Atlas, o que chegava à cooperativa, e entrou também em faculdades. Isso também já tá ficando bastante comum. Mas tem também história mais triste, que o pessoal recebe muito pedaço de dedo, de orelha, feto. Então assim, realmente as pessoas descartam de tudo na cooperativa.
P/1 – Queria que você explicasse pra gente um pouco assim, em linhas gerais, qual que é o trabalho do Cempre.
R – O Cempre é uma ONG que já tem 22 anos, nasceu no Rio de Janeiro na época dos primeiros debates sobre no Brasil. Agora teve a Rio+20, mas antes era Rio-92. Então começou com indústrias pensando nisso, são grandes geradores de embalagem, Coca-Cola, Tetra Pak, a Nestlé, Unilever. Então a gente tem mais de 40 hoje em dia, 40 associados dessas grandes empresas, transnacionais, que de alguma forma apoiam a educação ambiental. Então, assim, apoiam a educação ambiental, questão de sustentabilidade. Eles mantêm a ONG, a entidade, com site, com todas as nossas publicações, os manuais. Hoje em dia a gente também tá nas redes sociais com Facebook, com Twitter. Então é todo um trabalho que chega pra estudante, dona de casa, empresário, qualquer um que tenha interesse em conhecer melhor da coleta seletiva, da reciclagem, pra onde encaminhar os seus resíduos, pra onde destinar mesmo às vezes um material mais diferente. Tem a disponibilidade no site, conhecer cooperativas, quais são os endereços. Então eu to em tal estado, tal cidade eu consigo achar uma cooperativa mais próxima ou então algum reciclador, algum intermediário próximo. Então o Cempre tem essa questão, é reconhecido mesmo como entidade pública, mas...
P/1 – Vocês fazem um mapeamento, é isso? Só pra entender um pouco mais a natureza do trabalho.
R – Sim. A gente visita muitas cooperativas, a gente faz um diagnóstico, tem o checklist, vê se ela se enquadra e aí fica meio que no nosso radar. Quando se aproxima alguém como a Nestlé, que quer apoiar, a gente já oferece essas opções, já tem o perfil da cooperativa, as necessidades, a estrutura do galpão, a sessão dos equipamentos ou uso dos EPIs. E aí quando é aprovado, no geral a gente faz os cursos, palestras, capacitações falando da importância do uso dos equipamentos de proteção individual, botas, luvas, a parte de vacinação. Então a gente fala muito de saúde e segurança, de como manusear as embalagens. Porque realmente, o pessoal é muito sofrido, a grande maioria é analfabeta ou semianalfabeta. Já vi senhorinha na mesa de triagem com saco de uva aberto do lado, comendo a uva que chegou no material e triando o material. Ou então chega também chocolate, eles querem dividir, muita comida. A gente não apoia cooperativas que tenham criança trabalhando, mas já vi criança também se lambuzando em filtro solar que provavelmente tava vencido. Então assim, muita coisa que é descartada já não tem utilidade pra gente, então por que teria para os cooperados? Então a gente alerta muito isso, de eles não usarem, não comerem, não experimentarem o que chega lá. Ainda assim tem. Ainda mais mulheres muito vaidosas, chega xampu, creme, perfume, mas o que a gente já nem sabe se é realmente aquilo que tá dentro do pote ou não, mas coisas caras às vezes. Aí elas ficam todas encantadas querendo usar, experimentar. Tá dentro do escopo das nossas capacitações, tá previsto em um módulo falar disso, da preocupação mesmo com a segurança dos catadores.
P/1 – Então vocês trabalham dando essas capacitações para as cooperativas e fazendo um pouco a mediação dessa relação entre a empresa e cooperativa, é isso o trabalho do Cempre?
R – Exatamente. É. O tripé mesmo de gestão pública, a gente fala com o município, com prefeituras também. A gente fala com a iniciativa privada, com essas empresas e aí é com a população, com os habitantes mesmo, incentivando-os, ensinando a separar do modo mais fácil, sensibilizando pra essa questão de que nem tudo realmente é lixo ou merece se acumular embaixo da terra. É mostrar que tem possibilidades, que a gente pode reciclar, aumentar a vida útil de aterros, que a gente pode ter uma alternativa, gerar emprego e renda principalmente num país em desenvolvimento ainda, crescendo, acelerando aí como o Brasil. São mais de 800 mil catadores no país e menos de 5% estão realmente organizados, usando CNPJ, uniforme, os EPIs, como uma cooperativa. Então é isso que a gente estimula, é isso que a gente tenta fazer, com que eles tenham maior autonomia, organização, planejamento pra ter a renda deles. E tem grupos que chegam a tirar mais de 1200, mil reais. Tem grupos mais distantes, menores, que a gente tenta ajudar também que têm uma renda bastante inferior. Mas é isso, uma luta pela causa. Tem o Movimento Nacional de Catadores, tem o Movimento Latino-americano de Catadores. E é pensar mesmo na vida útil. Na verdade, eu não penso em salvar o planeta, eu não penso se tá tendo efeito estufa, se tá tendo aquecimento global, eu penso mais na prática, no hoje, no agora, porque a gente vê que não é legal... Igual teve greve dos garis, ou quando tem greve na Europa, em Nápoles, sempre vê aquela montanha de lixos se acumulando. Só aí que a gente vai pensar na questão dos resíduos. Em geral, a gente separa ou não, coloca na calçada, o caminhão passa, a gente tá livre desse problema. Ninguém reflete a questão do espaço, da saúde, ou se aquelas embalagens merecem de fato terem um fim ali e serem enterradas, quando não pra um lixão a céu aberto, pra um aterro sanitário. Então é isso, eu penso muito nessa questão do planejamento urbano, da gestão mesmo integrada desses resíduos, da destinação correta. Questão de qualidade de vida, de espaço. Então se a gente pode reciclar, por que não? A gente vai economizar energia, muitas vezes água mesmo. Mesmo que seja na indústria, mas eu acho que só de ter uma cidade mais limpa, mais organizada, e na medida do possível gerar emprego e renda para algumas pessoas já é um motivo pra eu reciclar.
P/1 – Queria que você falasse um pouco então do relacionamento que o Cempre tem com a Nestlé. Como é essa relação? Com é essa parceria mesmo? Como se dá parceria?
R – Com a Nestlé é uma das parcerias mais antigas, mais longas mesmo, que a gente conseguiu apoiar o maior número de catadores, de cooperativas em si. Então a gente começou esse projeto já tem mais de sete anos, e todo ano a gente renova o número de cooperativas, tende a crescer, tem crescido. É um dos maiores projetos que a gente tem. Então sempre a gente tem reuniões, a gente mostra as possibilidades, a gente faz até algumas visitas mesmo, que a gente chama de diagnósticos, umas visitas no início do projeto. Geralmente a gente apoia cidades próximas onde tem as plantas ou a própria cidade onde está instalada alguma unidade da Nestlé. Agora no último ano, do ano passado pra cá, a gente apoiou cidades sedes da Copa, por uma questão da política nacional de resíduos sólidos. A gente já apoiou em Araçatuba pela Nestlé, São Paulo, Rio, várias cidades por aí, Belo Horizonte.
P/1 – Mas é um projeto específico dentro do Cempre?
R – Sim. A gente tem cerca de dez, 11 projetos na atualidade, e um deles, talvez se não o maior, é o da Nestlé.
P/1 – Tem um nome específico esse projeto, essa parceria?
R – Não. A gente adota o nosso kit que é o Reciclar Cooperando, Cooperar Reciclando. Aí a gente faz as visitas, aplica as capacitações, doa equipamentos doados pela Nestlé, em parceria com a Nestlé. Em média tem duração de um ano essas visitas, depois a gente acompanha mais remotamente, que a intenção é que a cooperativa caminhe com as próprias pernas, tenha autonomia, a gente não interfere nas decisões, na comercialização. A gente não impõe nada. A gente dá sugestões de layout do galpão, entrada e saída de material, o que facilitaria a gestão mesmo no dia a dia da cooperativa, mas a gente dá as dicas e sugestões, eles acatam ou não.
P/1 – E aí a Nestlé nesse caso é que financia esse trabalho, é essa que é a parceria?
R – Sim. Tem os aportes, geralmente anuais, pra renovação do projeto e manutenção do projeto.
P/1 – Você citou em linhas gerais um pouco qual o trabalho que vocês fazem com as cooperativas. E dentro do projeto com a Nestlé, o que é, como é que é essa atuação de vocês? Você falou num diagnóstico, o que inclui esse diagnóstico? No que vocês auxiliam? Que tipo de sugestões vocês apontam?
R – A gente faz a primeira reunião pensando nas localidades, as regiões que a gente pode avançar e aí a gente já recorre ao nosso banco de dados, faz nossas ligações, a gente marca uma visita na cooperativa pra ver se ela tem condições, se tem o espaço adequado, galpão, CNPJ, documentação. A gente conversa, faz uma entrevista com o pessoal, vê quais que seriam as necessidades, se tem prensa, balança, os uniformes, esteira, o que seria necessário pra cooperativa funcionar. A gente informa que a gente vai voltar se for aprovado e fazer uma série de capacitações, se eles estão dispostos, abertos a isso. Alguns são mais ressabiados e falam que já receberam capacitação ou que não tem importância, mas equipamento todo mundo quer, eles sempre querem receber doação. A gente vai retornando pra Nestlé, mostra as possibilidades, aí eles dão a confirmação se pode seguir ou não, não ou ok. Aí a gente vai agendando mais que por nossa conta mesmo o passo a passo das visitas e sempre pensando nos indicadores, que são as toneladas coletadas, o volume da comercialização da cooperativa, se melhorou ou não após o projeto, o número de catadores, se eles se mantiveram, se perdeu catador, se agregou catadores. E a renda média mensal, se eles melhoraram também a renda ou não depois da nossa intervenção.
P/1 – E aí nesse tempo... Quanto tempo você falou que você tem de parceria com a Nestlé já?
R – Já passou de sete anos. Aí varia, cada cooperativa é em média um ano, aí a gente volta a visitar mais espaçadamente assim, mas a gente mantém relação com todas.
P/1 – Queria saber duas coisas. Primeiro, que importância você acha que tem essa parceria entre a Nestlé e o Cempre e a atuação nas cooperativas? E se você já viu, teve contato com mudanças e transformações que vieram a partir desse trabalho, dessa parceria.
R – Sim. Eu vejo que é um dos projetos maiores, mais bem sucedidos, que a gente consegue mesmo modificar a estrutura da cooperativa. No caso da Vitória de Belém, a gente praticamente construiu todo o galpão. Teve iniciativa de outras empresas, mas a Nestlé foi que doou todo o refeitório, muita parte de equipamentos. Então é concreto mesmo, a possibilidade de apoiar de verdade, não só com ideias ou com palavras, mas é de poder doar maquinários pesados, caros, realmente só vem da iniciativa privada. Então a Nestlé realmente consegue fazer isso. Doamos coisa no interior também, em Araçatuba. Então a gente fez intervenções em diversas cidades e a gente vê que os grupos se mantiveram, nunca houve um caso do grupo se dissolver ou de não dar certo o equipamento. Então quando a gente volta, eles relatam que teve um caso em São Paulo, teve uma catadora que estudou com livro, uma catadora que a gente apoiou na cooperativa pelo projeto da Nestlé e ela entrou em Gestão Ambiental na EACH, na USP. Então assim, a gente percebe que a gente consegue, de certa forma, influenciar e modificar sim a vida das pessoas. Algumas coisas às vezes podem levar um pouco mais de tempo, mais de um ano, mas só deles sentirem que eles não estão abandonados... Porque acontece muito isso. A gente chega às vezes no extremo sul de São Paulo, grupos isolados, menores, mais fracos, só de a gente fazer uma visita e propor alguma mudança, mostrar que tem empresas, alguém preocupado com eles, já melhora a autoestima, já da aquela movimentada assim na vida deles. Então pode parecer pouco, insuficiente, ou às vezes pode ser que não dure mesmo por décadas, mas é uma coisa que a gente pode fazer a diferença agora, no momento, e construir mesmo, aos poucos ir mudando a mentalidade das pessoas. Então eu acho que é mudar isso, a atitude, a questão de hábito. Pode parecer difícil no início separar as coisas em casa, mas a gente já separa tanta coisa. Tipo, vai fazer um bolo, separa a clara do ovo da gema do ovo, vai jogar um carteado, também separa as cartas. Então assim, no dia a dia a gente tá sempre separando, separa a roupa pra lavar, a roupa clara das coloridas. Então é isso, é uma questão de hábito de que uma hora você vai separar tudo que for orgânico, úmido, do que é seco, passível de reciclagem. Todo mundo hoje em dia tem latinha de alumínio, caixinha longa vida, tudo isso na geladeira. Então é meio que automático, meio que não pensa mais. Pelo menos, não sei se é porque eu trabalho com isso, mas to sempre olhando as lixeiras em volta e pensando como que pra mim é automático não jogar uma embalagem que pode ser reutilizada, que pode ser reciclada, no lixo comum. A gente ainda vê tudo muito misturado, é difícil em algumas outras cabeças tentar fazer algo diferente. Mas eu acho que é um caminho, uma evolução natural. Então vai mudar.
P/1 – E aí nessa mudança, nessa transformação, o que você acha que tem de importante nessa parceria entre uma empresa, no caso específico da Nestlé, e pra sociedade? Esse tipo de parceria, que uma empresa como a Nestlé faça esse tipo de parceria com Cempre e com as cooperativas pra sociedade brasileira, por exemplo, que é o lugar onde a gente tá no momento.
R – Eu acho que tem uma coisa de identidade também, por ser uma empresa muito grande, de todo mundo consumir os alimentos dela. Lembro-me das bolachas, minhas prediletas algumas são da Nestlé, então tem muita coisa de saber que aquela embalagem é daquela empresa, que você vê o logo, você identifica, tem no seu dia a dia, na sua rotina. Então eu gostaria de saber que essa empresa que eu prestigio, que eu compro, está desenvolvendo alguma coisa pensando nas pessoas, nas relações mesmo no futuro. Então eu acho que é muito importante não só pela lei, que agora todos têm que ter um papel, têm que comprovar que estão efetivamente fazendo algo pela política nacional de resíduos sólidos, mas no final vê que não é só uma questão empresarial, industrial, de obter lucro ou vantagem, mas tentar de alguma forma ser parceira nesse crescimento, na evolução das pessoas. Tem um papel de influenciar, tem um papel de comunicar o que tá acontecendo pelos rótulos. Então dar dicas de coleta seletiva, de reciclagem, qual é o ponto de entrega das embalagens mais próximo. Então é um papel importante mesmo de fazer as pessoas pensarem, então de influenciar, porque comer todo mundo come, pode ser que não tenha acesso a livros, revistas, jornais, mas na hora de comprar você tá fazendo a sua escolha. Você tendo num supermercado várias opções, você pode escolher a melhor embalagem, qual produto leva menos embalagens. É meio que automático você também ler quando tá fazendo a sua escolha. Então acho que esse é um dos maiores acertos da Nestlé mesmo, de estar comunicando isso e pensar no bem estar no geral da sociedade mesmo.
P/1 – E agora nesses dois casos específicos que você citou, que foram cooperativas nas quais a gente também esteve, que é a Coopercaps e a Vitória Belém, eu queria saber como foi o trabalho nessas duas cooperativas. O que mudou a partir da parceria? Qual foi a intervenção, o auxílio, o que aconteceu nessas...
R – Na Vitória do Belém, que fica ali no Belém, a gente começou do zero. Foi o primeiro caso de cooperativa que a gente realmente formou. Pegamos pessoas, alguns já tinham trabalhado com catação, outros vinham de albergues mesmo, nunca tinham trabalhado. Então a gente fez um curso longo, várias semanas fazendo as capacitações, conversando com os catadores, como uma sala de aula mesmo, enquanto o galpão subia. Foi junto o crescimento. E a gente fez doação de toda uma infraestrutura mesmo moderna, o que tinha de melhor no mercado pra eles, um galpão todo mais ecologicamente correto, se a gente pode chamar assim, mas tentando utilizar água mesmo de chuva, uma cerca viva de bambu, com objetos mesmo já feitos de embalagem longa vida. Então a gente conseguiu fazer um galpão seguro, exemplar, com a parceria com a Nestlé. E a gente desenvolveu uma aproximação, um afeto por esses catadores, porque a gente os acompanhou mais no dia a dia. Hoje são mais esporádicas essas visitas, acontece uma vez por mês, mas a gente continua acompanhando. No caso da Coopercaps já uma renovação do projeto, a gente vai começar uma nova leva e é um grupo já bem estruturado, bem liderado, e a gente vai colaborar agora com uma esteira elevada pra eles. Então a gente vai doar um equipamento de grande porte, bastante caro, mas que vai ter um peso, uma importância maior pra aquele grupo, que já tem a sua estabilidade, mas isso vai colaborar para o aumento da renda dos catadores, maior produtividade, maior ritmo na coleta, na separação mesmo dos materiais.
P/1 – Tá certo. Eu vou encaminhar para as questões finais.
R – Ótimo.
P/1 – Vão ser umas três ou quatro questões que eu vou te perguntar.
R – Tá bom.
P/1 – Mas antes disso, eu queria saber se tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado e que você gostaria de falar.
R – Nossa, olha que já falei bastante, já me expus muito (risos). Só. Acho que a gente falou da importância da minha família, da dança, até mesmo da religião, da universidade. É isso. Meio que tento com o meu trabalho fazer diferença na vida das pessoas. Pode parecer um pouco “ecochato”, “biodesagradável”, mas eu não sou tão radical com nata. Considero-me ambientalista, mas é isso, é tentar continuar estudando pra isso, trabalhando nisso pra realmente fazer a diferença, mudar um pouquinho a forma de viver das pessoas, os hábitos, ser menos consumista, menos...
P/1 – Eu queria que você me falasse um pouco da sua especialização. Foi uma especialização, uma pós que você fez?
R – Isso.
P/1 – Como foi? O que é?
R – Então, eu terminei a graduação em 2011, fiz algumas matérias no mestrado como aluna especial, mas precisava de bolsa e é um pouquinho complicado, você tem que ter meio que dedicação integral mesmo a isso. Então me afastei, deixei pra mais tarde. Enquanto isso, eu encontrei esse curso dentro da USP mesmo de especialização, uma pós-graduação em Gestão Ambiental, que já era uma coisa que tava na minha área, que eu já gostava. E setor energético, então tinha uma parte de energias renováveis, biomassa, eólica, solar. E na minha monografia, eu escrevi justamente sobre a incineração. Que é uma opção, queimar esses materiais, essas embalagens, pra gerar energia, mas contrapondo com a visão do Movimento Nacional, do Movimento Latino-americano de Catadores, que são pessoas que dependem das embalagens, que comercializa, que triam, separam, fazem todo o trabalho, pra depois venderem esses materiais. Então na minha monografia, eu contrapus justamente essa ideia, do trabalho que eu tenho, da proximidade com os catadores, e dessa questão do emprego e renda, a importância das embalagens pra eles, e refletindo de fato se a incineração é essencial, é o melhor modelo para o Brasil ou não. Porque a gente sabe que existe, tem em outros países, mas será que seria o mais interessante? É o mais ideal? Então assim, a proposta é justamente estudar isso, ter várias alternativas no final, extinguir os lixões, incentivar o aterro, mas que sempre envolvam os catadores, o material seja triado e comercializado por eles pra garantir a renda. Depois só o estritamente necessário, que realmente não é passível de reciclagem, que vá para um aterro. E em último caso, em última hipótese, de preferência só o que é hospitalar, que seja incinerado. Mas é isso, eu estudei um pouquinho de energia pra poder pensar em incineração.
P/1 – Que ano você terminou?
R – Terminei no primeiro semestre desse ano.
P/1 – Foi recente.
R – É bem recente.
P/1 – Então tá bom. Vou para as três perguntas finais.
R – Tá.
P/1 – A primeira é: qual você acha que foi o maior desafio que você enfrentou até assim pensando na sua trajetória? E como você lidou com isso?
R – No trabalho?
P/1 – Pode ser tanto na história pessoal, quanto de trabalho.
R – Nossa, desafios são vários.
P/1 – Alguma coisa que tenha te marcado e como você lidou com isso.
R – Ah, principalmente nos últimos anos foi sem dúvida a doença do meu pai, nesse âmbito mais familiar, que várias vezes a gente achou mesmo que ele não fosse aguentar, que fosse falecer. Conseguiu tratamento em Barretos, que é hospital de referência, e muitas vezes eu vi meu pai chorar, minha mãe chorar, então isso foi muito ruim. Mas hoje a gente acompanha, ele continua o tratamento, mas já é considerado curado. Mas ao longo de sete anos aí nessa batalha, então muita tensão, tristeza, o tempo inteiro as emoções nos altos e baixos. Ele teve que extrair o olho, mas conseguiu sobreviver, isso que é o importante. E pessoal, em São Paulo, realmente é me manter em São Paulo. Eu vejo muito isso de nessa idade ter que mudar. Se não fosse o Crusp, eu não teria feito talvez faculdade, e morar de aluguel, dividir apartamento, toda essa questão de como é caro se manter numa cidade tão grande, em que as pessoas têm prazer, parece, em pagar cada vez mais caro, e não se importam, porque é um bairro nobre, em pagar 18 reais numa fatia de bolo, principalmente por status, pra dizer que podem pagar. Mas os alugueis supercaros, a especulação imobiliária, e não faz sentido. Já é o segundo apartamento que eu mudo, agora buscando justamente paz e tranquilidade pra me manter em São Paulo. A mudança sempre é um desafio, mas eu tento encarar de uma forma mais positiva, pensando que é pra mudar pra melhor e que em breve não vou mais precisar mudar assim. E profissional, assim, os desafios são muito rotineiros principalmente pelo público que a gente trabalha. Então é legal a gente estar numa superempresa falando com um diretor latino-americano da área de sustentabilidade. No outro dia, a gente tem que adequar a postura, o modo de falar, pra falar com pessoas bem mais simples, que às vezes estão passando por um momento de amargura, de grande dificuldade. A gente tem que ter o jogo de cintura de passar muito bem: um estar numa embaixada em Brasília, no outro dia estar numa prefeitura, no outro dia estar em zonas mais periféricas, então é desafiador, é legal, é bom ouvir essas histórias, mas é um pouco também cansativo. Um dia cinco da manhã você tá saindo pra ir para o aeroporto, depois volta às vezes 11 da noite, duas da manhã, então é corrido, mas no geral a gente sente que é importante, que agrega bastante conhecimento, sabedoria, então eu me considero uma pessoa mais... Tenho muito ainda que melhorar, mas um pouco mais calma, tolerante, paciente com o mundo mesmo depois desse trabalho. E é isso, o desafio é todo dia na cidade. Mas eu me sinto bem de saber que eu consigo transitar, conversar e fazer amigos em todas as regiões do país. Então é muito bom quando a gente tem o sacrifício de ir a uma área difícil, que você não conhece, que as pessoas estão ressabiadas, as pessoas te recebem mal, mas depois você conquista essas pessoas, elas se lembram de você, se lembram do seu nome. Às vezes você não se lembra do nome, mas quando você chega, eles te acolhem, fazem café da manhã, te dão um abraço. Então, assim, leva um tempo pra conquistar, mas eu posso dizer que tenho amigos de norte a sul do país.
P/1 – E agora a penúltima pergunta então: quais são seus sonhos hoje?
R – Nossa, meu sonho é... Ah, são vários sonhos, mas eu tento não pensar tanto como um sonho, mas eu tento pensar que eu já to na caminhada pra conquistar. Então eu quero ser reconhecida pelo meu trabalho, ser referência mesmo na área, pra isso que eu estudo, que eu trabalho. Tem que ter paciência, que é um longo caminho, mas me vejo como uma grande diretora na área mesmo de responsabilidade social, de referência mesmo em projetos socioambientais. Ter o meu apartamento em São Paulo, de preferência. Apesar de toda a questão da loucura de estar aqui, de pagar tudo a preços exorbitantes. E ter também o meu porto seguro, a minha família, e passar as coisas que eu aprendi, de certa forma, caso eu tenha filhos.
P/1 – E, por fim, como foi contar a sua história?
R – Ah, foi legal. Nossa, pensando agora assim, não sei se eu vou conseguir voltar a trabalhar, que eu fiquei bastante reflexiva agora, fiquei pensando. Eu não tinha realmente meio que me preparado. Eu não sabia que era tudo isso de conteúdo assim, aí trazer essas lembranças tão fundas desde muitos anos atrás.
P/1 – Você quer colocar mais alguma coisa?
R – Eu costumo ser um pouco emotiva demais, isso até me incomoda. Eu acho que tem ser mais fria, mais dura aqui em São Paulo. As pessoas são um pouco impacientes, intolerantes com quem é muito doce demais às vezes. Parece só. Então é isso, eu me considero cada dia uma pessoa mais forte, e tem que ser firme e forte pra se manter aqui. Então apesar de tudo, acho que a gente tende a evoluir. Então acho que é isso.
P/1 – Tá bom. Muito obrigada então.
R – Obrigada você, imagina.
P/1 – A gente encerra aqui.
FINAL DA ENTREVISTARecolher