Projeto Museu em Rede Sete Barras
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Alcidineia dos Santos Leduc
Entrevistada por Isla Nakano e Ana Letícia Vianna
Sete Barras, 05 de fevereiro de 2011
Código: MRSB_CB009
Transcrito por Filipe Vicente Barbaras
Revisado por Marconi de Albuquerque Ur...Continuar leitura
Projeto Museu em Rede Sete Barras
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Alcidineia dos Santos Leduc
Entrevistada por Isla Nakano e Ana Letícia Vianna
Sete Barras, 05 de fevereiro de 2011
Código: MRSB_CB009
Transcrito por Filipe Vicente Barbaras
Revisado por Marconi de Albuquerque Urquiza
P/1- Bom Dona Alcidineia, em primeiro lugar eu queria já agradecer a senhora em nome do Museu em Rede, do Instituto Peabirus, do Museu da Pessoa e da Secretaria do Estado. E aí pra gente começar, eu queria que a senhora falasse pra gente seu nome completo, a sua data de nascimento e onde que a senhora nasceu.
R- Pode começar de qualquer parte [risos]?
P/1- Pode.
R- Começo por onde nasceu?
P/1- Pode ser pelo nome [risos].
R- Meu nome é Alcidineia dos Santos Leduc, natural do Rio de Janeiro, nascida em 19 de setembro de 1948.
P/1- Então Dona Alcidineia me conta, qual que é a origem da sua família: a senhora sabe como seus avós, seus pais se conheceram?
R- Parte de pai, africanos e parte de mãe índios, índios mesmo.
P/1- E a senhora nasceu no Rio de Janeiro. Qual que é essa história, como que a senhora veio parar aqui em Sete Barras?
R- Eu nasci no Rio de Janeiro numa cidade chamada Macuco. Antigamente Estado do Rio, hoje é Rio de Janeiro. Nasci na lavoura, fui criada na lavoura e depois eu fui pro Centro do Rio de Janeiro pra trabalhar, estudar, né? E de repente fui parar em Nova Iguaçu, com os conhecimentos da natureza, que eu comecei a mexer com a natureza, a trabalhar com o meio ambiente. Comecei a me interessar por esse lado. Comecei a trabalhar com um trabalho de serviços sociais, e depois fui pra Goiás, de Goiás eu vim pra Sete Barras, tudo voltado pelo trabalho social.
P/1- E conta, como é que a senhora começou a trabalhar com a natureza, qual...
R- Eu comecei a me interessar pela natureza, porque eu acho um crime o que nós fazemos com a natureza e eu não encontrava solução:
por quê fuma, joga o cigarro no chão, chupa bala, joga o papel no chão. E essas coisas eu não concordava, nunca concordei. Eu sempre
procurei um modo da gente estar ajudando, trabalhando esse lado aí da natureza. Só que você sabe que é difícil, né? A pessoa acha que você não bate bem da cabeça: “ porque a maioria faz, por que eu vou me preocupar?” Aí eu tive um conhecimento, conheci a Cultura Racional, que a Cultura Racional ela trabalha voltada pra natureza, aí me interessou. Aí foi quando eu fui pra uma fazenda e nessa fazenda tinha esse trabalho social, através de ajuda humana, através da pessoa carente, alcoólatra, drogado, todo tipo de pessoas que tinham problema. Então eu me interessei por esse trabalho e fiquei até hoje, nesse trabalho, nesse movimento, de bandas. Porque a banda na realidade é praticamente de recuperados, a banda da Cultura Racional. E muita gente não sabe disso, mas a banda é de recuperados de droga, álcool, de alguma coisa que estava pendente que ele foi recuperado e ele se ligou na natureza através da banda. Porque a banda, aquela cor branca, ela representa a paz, a cor branca já fala da natureza, porque a paz está ligada também à natureza, né?
P/1- Me conta Dona Alcidineia, a senhora passou sua infância no Rio. Como é que foi essa infância?
R- Ah, minha infância...bem, eu não tive bem muita infância porque na lavoura não dá pra ter muita infância [riso tímido], tem que trabalhar. Mas depois que eu fui pra cidade, já com meus 12 anos, eu comecei a trabalhar numa forma pra ter o ganha pão,
pra ajudar a família. E com uns 16, 17 anos, já comecei a me interessar por Escola de Samba, voltar à dança, comecei a aprender a dançar, a dançar dança afro, dança indígena, né. Eu comecei a aprender e nisso comecei a desfilar em Escolas de Samba, na Mangueira...
P/1- [risos]
R- Na Portela desfilei também. Foi muito bom, porque eu aprendi muita coisa.
P/1- E como é que foi sair desse outro mundo e vir pra cá?
R- Bem, eu saí desse mundo porque eu tinha que tomar uma posição: ou eu ficava na Escola de Samba ou eu assumia a parte social da Cultural Racional de cuidar de pessoas carentes. Eu decidi cuidar só de pessoas carentes, através da dança, através da música, né, que é a banda, através de danças. Danças de vários tipos: dança indígena, música árabe, música cigana, vários tipos de dança, e até hoje nós praticamos essas danças todas.
P/1- E me conta um pouquinho Dona Alcidineia, qual é a sua formação? A senhora estudou até que série?
R- Eu parei de estudar, porque era tanta coisa, eu me envolvi com tanta coisa que esqueci de estudar. Agora eu voltei a estudar, eu voltei a estudar ano passado, e esse ano pretendo continuar e eu vou indo, né, até onde der eu vou indo. E está sendo muito bom pra mim porque a pessoa chega a uma certa idade, que eu acho que tem que ocupar a cabeça, a cabeça ocupada não tem problema. Porque o problema ele existe, mas se você ficar com a cabeça desocupada aí aumenta o problema, então eu prefiro ocupar a minha cabeça.
P/1- E me conta como é que foi chegar em Sete Barras, quais foram as primeiras impressões da cidade?
R- Olha, a primeira impressão que eu tive de Sete Barras... eu tinha visto uma reportagem no Fantástico sobre uma enchente em São Paulo, só que eu não sabia que era em Sete Barras, eu não tinha noção de Sete Barras. Aí um amigo me convidou pra eu vir conhecer uma fazendo que ele tinha aqui em Sete Barras. Eu decidi conhecer essa fazenda. Quando eu cheguei na cidade eu fiquei meio assustada, porque onde você passava tinham marcas nas casas, marca de enchente, né, aquela coisa, um pessoal reclamando, todo mundo querendo ir embora, no final de 1997. Aí esse meu amigo falou assim pra mim: " ‘Ó’, se você quiser essa fazenda, eu dou pra você; porque eu tô fora. Eu não quero ficar mais aqui, eu tenho cinco fazendas, não preciso dessa fazenda. Ela tá abandonada". Estava abandonada. Eu não acreditei, achei que era brincadeira dar uma fazenda. E ele falou: " Você quer? Se você quiser eu te dou". E eu falei: " ‘Ué’, eu quero. O serviço que eu faço, o trabalho que eu faço, eu preciso. E se você realmente me der essa fazenda, eu vou fazer um trabalho social nessa cidade". E ele falou: "Mas aqui não tem nada, não tem água, não tem luz, não tem nada aqui". E eu falei: "Mas é por isso que eu quero, porque não tem nada. Se tem tudo fica sem graça, né? [risos]”. E estou aqui até hoje. Agora lá tem luz, tem água, já tem 18 casas construídas [pausa], porque se tem tudo, fica sem graça. A gente tem que... o trabalho que incentiva a gente, trabalho é o que dá emoção. Pra mim é assim, dessa forma que funciona. Onde não tem trabalho, fica sem graça, não é? Acaba você ficando com depressão. Eu não conheço essa personalidade, depressão, graças a Deus, eu não conheço.
P/1- [risos].
R- [risos].
P/1- E como é que foi a adaptação da senhora aqui na cidade? Conhecer novas pessoas, se adaptar ao ritmo...
R- Foi meio difícil no início, porque a cor da pele já incomoda um pouco, porque já fazem a ligação: Bahia, baiana, centro, macumba [risos]. "Ué", é verdade, essas coisas não me incomodam. Eu tive um pouco de rejeição no começo, porque eu uso muita roupa branca, adoro andar de branco, não parece um "mosquitinho" no leite, né? Eu gosto de andar de branco. Eu até diminuí porque aonde eu ia: "A senhora tem centro?" "A senhora dá consulta?", e "tãnanam, tãranram," e fora outras coisas, né, as piadinhas. Mas eu fui
[mexe-se como se estivesse esquivando-se]... Eu sou "lisa" igual quiabo [risos], sabe?
P/1-[risos].
R- "Ué", você tem que ser "lisa", se você não for "lisa", minha filha, você sofre. E eu fui dali, fui daqui, "tãranram" [repete gestos esquivando], e hoje graças a Deus já sou bem mais aceita. Hoje a gente tem Escola de Samba também na cidade, afinal de contas, "mangueirense", né [sorriso]? Eu sou `mangueirense" de carteirinha, viu? Minha carteirinha está guardada.
P/1- E já que a senhora falou, não tem nenhuma manifestação, nenhum grupo de pessoas aqui na cidade, que seja do Candomblé, ou da Umbanda?
R- Tem. Na cidade tem, "tipo assim", eu acho, na minha opinião, que é bem assim, meio [faz com as mãos como se fosse algo escondido], mas tem. Tem, porque quem tem olho pra ver, vê, e sabe. Mas você sabe que tem muita gente, às vezes por falta até de informação, que discrimina uma coisa que não conhece, né? Eu sou o tipo de pessoa que antes de falar qualquer coisa... já não gosto de falar, mas se eu falar, eu tenho que ter certeza. Eu não posso falar que uma pessoa é macumba, ou é isso, ou é aquilo, se eu não conheço a pessoa. Mas têm pessoas que às vezes por falta de instrução, né, falam coisas que não devem, ou que devem, né[risos]?
P/1- E me conta uma coisa Dona Alcidineia, como é que foi montar essa Escola de samba...
R-
Ah, foi muito lindo...
P/1- Como que foi trazer o samba pra cá [risos]?
R - ...sabe por quê? Eu tenho uma cabeça meio criativa, sabe? Então eu gosto de ir criando as coisas, ir montando as coisas. A Edimar que me acompanha também ela sabe, né [olha para Edimar]? Eu falo: "Edimar, olha, tem que ser assim". Às vezes, ela fala assim: "Mas será que não é coisa da sua cabeça?" "Edimar, vai que vai dar certo" e no final dá certo. Então nós resolvemos...começamos com um bloco. Aqui tinha uma Escola de Samba, e nós fomos convidados pelo dono dessa Escola (para desfilarmos juntos?), desfilamos juntos e "coisa e tal". Só que era muito problemático, porque tinha muito usuário de droga, alcoolismo, então na hora do desfile era muito problema, entendeu? E meu trabalho é para abolir o alcoolismo, droga, cigarro. Para cortar o vício, então pra gente já não ia dar certo. Aí ele desistiu da Escola dele, e nós ficamos com o nosso bloco, que agora não é mais bloco, agora é Escola de Samba. Esse ano eu pedi para fazer o samba em homenagem à Sete Barras, porque se eu moro nesse lugar eu tenho que prestar homenagem ao lugar que eu estou morando, não é? Para ficar em paz, com a natureza do lugar.
P/1- E já tem o samba enredo desse ano?
R- Já temos.
P/1- Canta pra gente.
R- "Vixi"
eu não sei [olha para o lado]. Edimar sabe.
P/1- Só um minutinho.
(troca de fita)
P/1- (Voltou?) [risos].
R- Gente, meu Deus do céu, Edimar, como é que começa mesmo (o do ano passado?)? [Edimar responde] Não, o do ano passado é o _______ [barulho de moto]. E agora? Eu acho que eu sei só a introdução.
P/1- O que a senhora souber está ótimo já.
R- [entrevistada canta]: "Eu sou cigano eu sou, cigano eu sou...". Como é que é mesmo [Edimar canta]? "Eu sou cigano! Cigano eu sou, eu sou cigano, eu sou, eu sou cigano eu sou, cigano eu sou!" Eu só sei a introdução [Edimar ri]. Sabe porquê? Porque agora eu já estou começando a treinar outro, aí já [mexe as mãos]. Então já...
P/2- Só uma dúvida, não está gravando, né?
P/1- Pode perguntar
P/2- Eu não entendi, você tinha criado um bloco?
R- É, era um bloco.
P/2- E daí, depois você falou que tinham muitos usuários de droga e você resolveu...
R- Não, era no bloco que tinha na cidade...
P/2- Tá.
R- E o bloco que tinha na cidade era muita confusão. Tinha usuários de droga, alcoolismo, gente caindo com instrumentos. Então eu falei: "Bem, vai ter que ter uma adaptação, senão não dá certo". Aí eu conversei com a pessoa responsável, e falei: " ‘Ó’ se quiser que a gente continue desfilando, tem que mudar o procedimento. Tem que reunir esse pessoal, conversar, conscientizar, porque fica até feio pro bloco, desfilar com as pessoas caindo, drogados. Não tem como." Então foi combinado. Só que depois, não sei o que é que houve aí com ele e com o pessoal que saía com ele, desistiram, e nós ficamos. Aí nós só assumimos, nós ficamos. Já é o terceiro ou quarto ano [olha para Edimar]? [Edimar responde] Quarto ano.
P/1- E como que é esse trabalho com os usuários? Como que é o trabalho que a senhora
desenvolve, o dia a dia do trabalho.
R- Então, o dia a dia do trabalho tem as atividades, tem artesanato, tem banda, tem que estudar música, entendeu, tem o que fazer, né. Tem os afazeres, também a fazer e nisso as pessoas...tem o livro para estudar, independente da religião que a pessoa tenha. Então é uma sequência e a pessoa, naturalmente, vai parando. Através da leitura, tem os chás, os chás de ervas, carobinha... como é que chama a outra lá, Edimar? A erva do chá, o nome da outra erva que faz o chá, o chá diário que o pessoal toma [fala olhando para Edimar]? Chá matte, com chá de...aquela ervinha que tem um cheirinho bom, Edimar. Que faz calmante [fala olhando para Edimar]...Camomila, erva cidreira, erva doce. Então esses chás são para ir equilibrando a pessoa, equilibrando os nervos, são diuréticos, uma forma da pessoa estar, né [movimenta as mãos]? Esse é o trabalho que a gente faz, entendeu? E fora estudar. Quando a pessoa já começa a ficar numa condição de estudar, a primeira coisa que eu faço, eu não estudei, mas eu ponho na escola. Então por isso que, em nosso meio [barulho de moto]...esse ano quatro passaram para a faculdade [pausa]. Geralmente a gente corre atrás de bolsa, né, pra encaminhar. Têm três que estão na... inclusive o marido dela [aponta para Edimar] está lá fazendo a bolsa família, para poder ganhar a bolsa gratuita. Então a gente incentiva a pessoa a progredir, entrar na sociedade, esse é o nosso trabalho.
P/1- E a senhora falou que mexe com a parte de dança, dança afro, dança cigana, como é que...
R- Dança cigana, dança egípcia, dança árabe.
P/1-...E onde é que a senhora pesquisa, de onde é que vêm essas ideias?
R- Da internet, né [risos], revistas. Antes eu não pesquisava na internet porque eu não mexia na internet, agora é que eu tô começando. Era em revistas, né, "Cds", "Dvds", músicas. E a gente ensaia, Edimar ensaia as meninas e a gente vai ensaiando, e vai dançando, e as pessoas vão se animando. É coisa diferente, coisa que a pessoa não está acostumada, a pessoa se interessa. Têm pessoas que chegam mudos e saem falando até demais, porque a música mexe, né, obriga a pessoa a se mexer.
P/1- E além do carnaval, tem alguma outra festa que vocês organizam, alguma outra apresentação de dança?
R- Tem. Nós fazemos festas típicas, com comidas típicas também. Comidas africanas, comidas indianas, comidas árabes, comidas ciganas. "Ó", você já viu aqui, né, pelo [leva as mãos a barriga][risos].
P/1- [risos]
R- Povo tudo farturento [risos]! E eu gostaria, com o tempo, e eu tenho certeza que Deus vai me ajudar nisso, porque ele já me ajudou e me ajuda em tudo que eu peço graças a Deus. Eu gostaria de, aqui em Sete Barras, com o tempo, eu ter um local para acolher as crianças lá da vila, pra fazer esse trabalho com as crianças, carentes mesmo. Porque, por enquanto está assim, né. Porque, como nós não temos espaço, o espaço que temos é muito pequeno. Não tem como reunir essas crianças para estarmos fazendo com lanches, tudo direitinho, para já crescerem com outra cabeça. Porque essas crianças são criadas na rua e se essas crianças são o futuro do Brasil, o futuro do país. Como é que umas crianças com futuro ficam na rua desde a idade de 4, 5 anos e são criadas na rua? Então eu gostaria de fazer um trabalho desses pra ser o exemplo para outras cidades. Está tudo aqui "ó" [encosta o dedo na testa], na cabecinha. Uma hora materializa, né?
P/1- E me conta uma coisa Dona Alcidineia, e as festas da cidade, a senhora costuma frequentar? Quais são as festas da cidade?
R-
As festas da cidade... tem a festa dia 24 de junho, né, que é a da cidade, a do padroeiro da cidade. Então nessas festas geralmente a gente participa, com barracas, porque precisa para angariar um dinheirinho para ajudar nas roupas, porque as roupas são tudo por nossa conta. Têm alguns colaboradores, mas são poucos colaboradores, então a gente participa com barraquinhas, com danças...agora eles convidam, porque antigamente não convidavam, mas agora já convidam, as danças, principalmente a banda, eles convidam sempre a banda pra abrir os eventos, graças a Deus, né? E assim a gente vai indo.
P/1- E as festas são aqui na pracinha? Como é que elas são organizadas?
R- Tem festa que é aqui na pracinha. Tem festa que é na quadra coberta, né, porque tem uma quadra, e fora isso, é o carnaval. O carnaval praticamente quem estava fazendo éramos
só nós. Agora esse ano a prefeitura, acho eu, que vai entrar algum bloco da prefeitura junto com a gente.
P/1- E como é que é o carnaval na cidade? Vai haver bastante gente?
R- Vem, vem bastante gente para cá, para a praça. Na praça fica bastante gente. E nós no ano passado fomos convidados, Jacupiranga convidou, e nós fomos em Jacupiranga também. Foi muito bom, viemos da rodoviária até a praça aqui desfilando, depois aí no _______ fecharam pra gente ficar brincando aí também, um pouco, com o pessoal. Foi muito bom.
P/1- E Dona Alcidineia, a senhora tem alguma história marcante aqui em Sete Barras, alguma coisa que foi muito importante para a senhora, que a tenha marcado[risos]?
R- Bem, eu quando eu cheguei na cidade, como eu falei para você, a cidade estava bem precária e muita gente estava indo embora, né, tinha muita casa vazia, casas abandonadas. E nessa época eu não morava aqui na cidade, eu ficava só no sítio. Então no sitio eu comecei a montar banda, comecei a mexer com dança, tudo devagar para não assustar, porque o pouquinho de branco que eu vinha, ou às vezes um grupinho que vinha de branco já assustava, então eu falei: " ‘Ó’ gente, vamos nos organizar aqui no sítio, e depois a gente vai pra cidade.” Então, tinha uma situação, tipo assim, tinha uma pessoa que sempre passava lá no sítio, ele passava a cavalo ou a pé, então ele dizia assim pra mim: "A senhora não tem medo de ficar aqui?" Às vezes eu ficava lá com uma criança, ou duas crianças, eu estava praticamente sozinha e o sítio é bem isolado, é o último. "A senhora não tem medo de ficar aqui?" "Não, eu não tenho medo, vou ter medo de quê?", no meio do mato[risos]. "É, mas aqui é perigoso, quando o tempo muda tem uma cobra muito grande que aparece aqui e "coisa e tal."
"Bem, mas eu não tenho medo de cobra não, porque a cobra, acho que ela só vai fazer alguma coisa se eu mexer com ela, se eu não mexer com ela, ela não vai fazer nada comigo." "É, mas a senhora não deve facilitar, porque essa cobra é enorme, ela já amassou para-brisa de carro." Eu falei: "Nossa, que cobra, hein? [irônica]" "É, ela come a língua dos bezerros aí no pasto.” " Cara", eu deixei ele falar a primeira, a segunda, terceira, a quarta; na quinta, na sexta e na sétima eu falei para ele: "Olha, só existe essa cobra aqui? Não tem mais de uma?" " ‘Ói’ que eu saiba...", "Mas tem que ter uma para comer a língua de mentiroso!" Porque o que é isso? Só pode ser mentira gente, isso não existe.” Ele nunca mais apareceu, sumiu [risos].
P/1- [risos]
R- Nunca mais ele apareceu. ‘Ué’, mas não é? "Poxa, a cobra come língua do bezerro, a cobra amassa parabrisa de carro, e fica por isso mesmo, ninguém faz nada com essa cobra. Eu falei: " ‘Ó’ tem que ter duas, uma
pra comer a língua de mentiroso", não é? Ele não apareceu mais, sumiu. Então essa é a história que eu tenho, tenho outras histórias assim, por exemplo, de pessoas me procurarem, acharem que eu fazia milagre, né, porque me viam de branco demais. Eu não sei, eu acho que são pessoas carentes, que não têm... não sei [pausa]. Não, gente, eu não faço milagre não, o que é que é isso? As pessoas falavam: "Não, porque eu ouvi dizer que a senhora faz milagre, que a senhora..." "Não". É porque eu falo muito da natureza, então eu acho que a pessoa, eu não sei o que é que imaginou, pensou, não sei. A natureza é viva, essa árvore é viva [aponta para árvore], tudo é vivo na natureza, né? Aí eu parei de falar essas coisas, de que tudo é vivo, de que tudo tem vida, porque tem muita gente que nem acredita nisso, acham que a gente é meio [mexe as mãos]. Mas é verdade, tudo tem vida. Se você tira uma folha, a árvore ela sente, é a mesma coisa que você tirar um filho da mãe, entendeu, ela sente. Isso eu aprendi com meus avós, com meus bisavós, eles são índios, né, nasceram no mato. A minha avó e a minha bisavó foram criadas dentro da mata e eu conheci o local todo onde elas foram criadas. Tipo assim, ocas e malocas, né, que falavam antigamente. Então eu tenho uma coisa que eu carrego deles ainda,
e eu acredito. Pra mim funciona, se não funciona pros outros eu não posso fazer nada, mas pra mim funciona, entendeu? Colocar a peneira no sol, para saber o tempo, sabe, tinha todas aquelas coisas. Eu era pequena, na época ainda da minha bisavó, minha bisavó quando morreu eu deveria ter acho que uns oito anos, mas eu lembro, lembro direitinho.
P/1- De que tribo que eles eram, a senhora sabe?
R- Ai, assim agora da tribo eu não lembro, mas eram índios mesmo, lá do Rio de Janeiro, desse interior onde eu nasci. E da parte do meu pai eles eram africanos, daquele africano que tem um dedo, assim [estendo o dedo indicador], de grossura, de andar com os pés no chão. Meu avô, meu bisavô, minha bisa, tudo aqueles africanos do beiço de pendurar.
É que teve mistura, depois daí fica misturando tudo, aí fica aquela coisa meio misturada. Na minha família tem até olho azul, olho verde. Misturou tudo, é bom misturar, né, mas aí vai perdendo, vai misturando e vai perdendo, só que eu ainda tenho muita coisa dos meus bisavós ainda, eu assumo [risos].
P/1- E Dona Alcidineia, o que é que a senhora viu mudar na cidade...
R- Ah, mudou bastante.
P/1- ...nesses últimos anos?
R- Mudou bastante coisa Até as próprias pessoas que eu conheci quando eu cheguei, hoje estão diferentes. A concepção de religiosidade, tudo isso de religião. Porque eu acho que tudo é independente de religião, você tem que ter o direito de caminhar, de ir e vir onde você quiser; você tem que ter a religião que você se sente bem. Ninguém é obrigado a ter uma religião, se não se sente bem, cada um tem que estar onde tem que estar, não é? Então tinha muito isso aqui na cidade, e hoje, através da minha pessoa, eu vejo que já mudou bastante, entendeu? As casas estão mais cheias, era muita casa vazia e agora você não acha casa pra alugar mais, não tem mais casa para alugar, as pessoas eu vejo que estão mais, assim, assimilando as coisas. Por exemplo, hoje a Escola de Samba, eles já começam a ver com outros olhos, porque hoje uma pessoa chega pra tocar, pra pedir para tocar. Eles sabem que não vão beber e antes muitos não entravam porque não podiam beber. Hoje eles já entram porque não tem bebida. Então mudou, entendeu [pausa]? Então mudou. Eu tenho paciência, eu sou muito paciente, o que não der tempo pra eu terminar, alguém termina por mim, não é?
P/1- E a senhora vem pra cá...
R- Tudo isso é tempo.
P/1- A senhora vem para cá com a sua família, com amigos...
R- Eu vim sozinha, e Deus. Eu e meu esposo. Ele falava assim pra min: "Pretinha, o que é que você perdeu nesse lugar [risos]?" E eu falava assim pra ele: "Não sei, acho que é um pote de ouro, sete barras de ouro" [risos]. As câmeras tão filmando, tô falando de brincadeira. Então ele falava assim: "Pretinha o que é que você perdeu aqui, aqui não tem nada", mas eu falei: "Por isso que eu vou ficar aqui, porque não tem nada, criatura". Agora pergunta se ele quer ir embora daqui! Entendeu, não quer, achou o pote de ouro, não quer mais ir embora. Então eu vim pra cá com a cara e a coragem. Eu não tenho medo de começar, eu não carrego mudança, sabia? Mudança é só gastar dinheiro. Você vai começar uma vida nova, você tem que começar com tudo novo, aí fica carregando aquilo tudo, aí nunca muda nada. Meu marido fala que eu sou diferente. Eu sou diferente, sabe por que? Eu mudei do Rio, fui pra Praia Grande e não carreguei mudança. Fui da Praia Grande pra Goiás, não levei mudança. Vim de Goiás pra cá, não carreguei. Ele sabe disso,
não carrego mudança, não carrego. E por incrível que pareça, eu já tenho coisas já pra montar outra casa. Eu tenho que ficar dando pros outros as coisas, graças a Deus, graças a Deus. Vocês aprendam, não carreguem mudança, carregar mudança é carregar entulho, mudança não se carrega não, se começa tudo de novo. E dá mais certo, viu, experiência própria. Enquanto eu carregava mudança eu ficava num sofrimento danado, porque quebra as coisas, você se estressa. Se não quebra nada, compra tudo novo, vai comprando, compra uma coisa hoje, compra uma vez por mês, mas compra. Estou errada? "Tsc, tsc, tsc" [balança a cabeça em gestos de negação]. Coisa boa começar com tudo novo, cidade nova, tudo novo, não tem nada velho para trazer lembranças de nada.
P/1- [risos].
R- Entendeu, é muito bom.
P/1- E Dona Alcidineia, o que é que a senhora acha que tem de especial aqui em Sete Barras, que as pessoas ficam e gostam?
R- Olha, eu acho especial que aqui ainda existe "bom dia" e "boa tarde". As pessoas ainda se cumprimentam, olham pra outra e se cumprimentam, por aí ninguém cumprimenta mais ninguém. É uma correria tão grande, uma vai atropelando tudo, não têm tempo nem de olhar. Ele não tem nem tempo de olhar na casa dele, vai cumprimentar fora de casa? Não se dão, nem "bom dia" mais em casa, vão dar "bom dia" fora de casa? Então pra mim o especial ainda aqui, isso hoje, é isso; as pessoas ainda se olham. Você viu aquela senhora que passou ali [aponta para frente]? Ela olhou para mim, falou: "Boa tarde", entendeu? Isso não existe por aí, é muito difícil. Então eu sou uma pessoa que observa muito as coisas, eu gosto de observar as coisas. Eu sou uma pessoa que ainda sou muito conservadora, sabe aquelas coisas, sabe, assim, esses detalhes, eu presto bem atenção.
P/1- E agora eu queria perguntar quais são os sonhos da senhora?
R- Bem, um dos sonhos eu falei pra você, que é o de ter esse espaço, para estar cuidando dessas crianças, pra dar exemplo para outras cidades, sabe? Nesse espaço, tem que ter de tudo nesse espaço; até aula de motorista. Vamos supor se a menina, se o menino já tem 15 anos, já tem que aprender a dirigir, pro dia que ele sair, ele já sabe dirigir. Então tem que aprender de tudo, de acordo com a opção de cada um, tem gente que não nasceu pra cozinhar, você não vai obrigar ela a cozinhar. É isso que frustra as crianças hoje, entendeu, querer obrigar a fazer o que ela não gosta de fazer. As mães, a maioria, elas obrigam os filhos a fazerem o que eles não querem fazer. Se não gosta de cozinhar, vê outra coisa. Vê outro serviço doméstico em casa, mas que saiba e aprenda a fazer de tudo. Porque a pessoa fala: "Ah, mas eu vou casar com um homem rico, eu não preciso aprender". "Ué", mas se você não souber ensinar minha filha, você vai comer qualquer coisa, você tem que saber ensinar. Por exemplo, eu não preciso cozinhar na minha casa, mas se eu não souber ensinar, eu vou comer qualquer coisa, você me entendeu? Eu cozinho porque eu adoro cozinhar, adoro, mas tem gente que não gosta, mas aprende, pra poder ensinar. Mas tem que saber também conquistar a pessoa, né. Eu conheço tanta gente que não gostava de cozinhar e hoje em dia "ó", minha filha, "ó" [olha para Edimar].
P/1- E Dona Alcidineia, agora pra gente encerrar eu queria perguntar o que é que a senhora achou de contar a sua história pra gente...
R- Ah, eu achei maravilhoso. No começo eu fiquei meio assim... agora que eu comecei a desinibir, vai acabar.
P/1- [risos]
R- [risos] Não é? É gostoso, ao ar livre, você se sente mais à vontade do que num lugar fechado, que dá mais impressão de prisão, né? Aqui eu me senti bem à vontade, gostei, adorei, eu agradeço por essa oportunidade maravilhosa que vocês me deram, espero que voltem outra vez.
P/1- Tem mais alguma coisa que a senhora queira deixar registrado?
R- Ah, eu deixo registrado o seguinte: se alguém quiser me ajudar nessa tarefa aí, de um espaço, não sei se algum empresário ou alguém queira me ajudar, eu agradeço, eu aceito e agradeço. Porque quanto mais demorar, né, mais as crianças vão se perdendo.
P/1- Muito obrigada.
R- Eu agradeço a atenção.
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