Plano Anual de Atividades 2013 – Pronac 128.976 – Whirlpool
Depoimento de Messias Andrade de Jesus
Entrevistada por Márcia Trezza
Lauro de Freitas, 19 de maio de 2014
Realização Museu da Pessoa
WHLP_HV030_Messias Andrade de Jesus
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Dona Messias, nós v...Continuar leitura
Plano Anual de Atividades 2013 – Pronac 128.976 – Whirlpool
Depoimento de Messias Andrade de Jesus
Entrevistada por Márcia Trezza
Lauro de Freitas, 19 de maio de 2014
Realização Museu da Pessoa
WHLP_HV030_Messias Andrade de Jesus
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Dona Messias, nós vamos começar a entrevista. Qual o seu nome completo?
R – É Messias Andrade de Jesus.
P/1 – Onde a senhora nasceu?
R – Em Curaçá.
P/1 – No Estado da Bahia?
R – É Estado da Bahia, Mar de São Francisco.
P/1 – Que data a senhora nasceu?
R – Vinte e cinco de dezembro.
P/1 – De que ano?
R – No ano de 30.
P/1 – De 1930?
R – Sim.
P/1 – Como é pra senhora fazer aniversário no dia de dezembro, no dia de Natal?
R – Ah, faz tudo junto. O Natal, meus filhos chegam, fazem aquele almoço, chamam as minhas colegas velhas, vão todo mundo pra lá. Todo mundo sai da missa e já vai. Começa dentro da igreja. O padre já me conhece, fala do meu aniversário ali na igreja e daí vai lá pra casa ou vai pra casa de meu filho. Lá todo mundo... Já tá o almoço, todo mundo se despacha, lá ninguém serve a ninguém, não. Meu filho fala assim: “A comida tá aí, todo mundo apanha seu prato e vai botar”. Ficamos ali a tarde toda, de tarde todo mundo vai pra casa.
P/1 – Gostoso. Já comemora ali mesmo, né?
R – É. Comemora o aniversário com o aniversário de Jesus também.
P/1 – Pois é (risos).
R – Eu nasci nesse dia mesmo, por causa desse dia foi que meu pai mandou botar meu nome de Messias.
P/1 – Olha! Qual o nome do seu pai?
R – Hermínio.
P/1 – Fala o nome completo.
R – Hermínio Andrade.
P/1 – E da sua mãe?
R – Era Cecília da Conceição.
P/1 – Ele trabalhava com que, o seu pai?
R – Meu pai era pescador.
P/1 – Pescador.
R – Ele vivia de pesca.
P/1 – Ele pescava em rio ou em mar?
R – Em rio. E tinha a roça. A gente morava numa roça. Depois que a gente foi crescendo que ele ficou pela rua, por causa do estudo, botava a gente pra estudar, pelo menos pra aprender o nome. Quando a gente saía, quando tinham as férias do colégio, a gente ia pra roça ficar mais eles.
P/1 – Entendi.
R – Mas a gente foi mais na roça. Ali ele plantava mandioca, a gente ajudava. Tudo que plantava ali, a gente ajudava. Vivia de roça mesmo e da pescaria.
P/1 – A pescaria, ele pescava pra família ou ele vendia?
R – Vendia.
P/1 – Ah, é?
R – Vendia. Meu pai era pescador, ele tinha canoa e tudo. E aí a gente pescava pra família e pra vender, pra comprar outras coisas.
P/1 – A senhora ia pescar com ele, não?
R – Não. Não. Só o que a gente não fazia era ir pescar com ele.
P/1 – Os meninos iam?
R – Irmãos, eu só tinha dois: um já tava rapaz, que era por parte de pai, foi embora pra São Paulo, e lá ficou. Só ficou um, mas estudava, aí não “coisava”. A gente ficava mais na roça. Quando era tempo de rançar mandioca, a gente tinha que ficar ali pra raspar a mandioca, tirar a tapioca, essas coisas assim. Quando plantava a cana pra fazer a rapadura, a gente tinha que estar ali tocando os bois, que nesse tempo era engenho.
P/1 – Nossa!
R – Aí a gente tocava os bois no pé do engenho pra poder moer a cana pra fazer a rapadura.
P/1 – Todas essas coisas que vocês faziam eram pra própria família?
R – Pra própria família. Vendia e pra própria família.
P/1 – Ah, vendia também?
R – Vendia, porque fazia rapadura e a rapadura vende muito. Tinha a fininho, tinha a batida, tudo vendia. O mel, tudo vendia.
P/1 – Batida do quê?
R – Da própria rapadura. Tira o mel pra fazer a batida com canela, erva-doce, fica aquilo maciozinho, que a senhora bota na boca, desmancha.
P/1 – Tipo uma bala assim?
R – Não, mas ele já fazia como um santo. Ficava assim em pezinho. Igual o fininho, a gente já fazia como uma flor.
P/1 – Olha!
R – Fazia aqueles ramos, vendia.
P/1 – Conta como era feita essa flor.
R – Essa flor, a gente tirava aquele mel grosso numa cana raspada, depois pegava a tapioca e a gente melava a mão de goma e ficava, assim, puxando até ele amolecer. Quando ele amolecia, a gente fazia aquelas rosinhas ligeiramente, aí dizia: “Morreu” (risos).
P/1 – (risos).
R – Que ficava durinho. Já fininho.
P/1 – Já na hora mesmo ficava duro.
R – É. A gente ia fazendo, assim, aí quando ele tava bom, ele ficava molinho, aí a gente já ia fazendo as rosinhas tudo pra vender. Aí botava lá.
P/1 – Existe isso ainda?
R – Existe. Abaixo de Curaçá tem um lugarzinho onde chama Riacho Seco, ainda tem.
P/1 – É mesmo?
R – É. Em Petrolina mesmo ainda se acha.
P/1 – E que idade a senhora tinha quando a senhora fazia tudo isso que a senhora falou?
R – Ah, eu já tinha meus dez a 12 anos. Porque lá no meu interior, novinhos os meninos já trabalhavam na roça mais os pais. Eu ficava ali mais a minha mãe, meu pai, a gente trabalhando ali mesmo.
P/1 – Sua mãe também ficava fazendo?
R – Todo mundo trabalhando na roça. Quando era das canas, quando tinha quem tangesse o boi no engenho, a gente tava descansando. Quando não tinha, a gente ia tanger o boi, ia cortar cana, tudo a gente fazia. No tempo de mandioca, fazia farinha, a gente tinha que estar tudo ali tirando a tapioca, peneirando massa, tudo a gente fazia.
P/1 – Todas as irmãs?
R – Todas as irmãs, que era de ser assim mesmo. Que naquele tempo não corria dizer: “Vai chamar fulano que eu pago”. Não. A gente ia raspar a mandioca, o dono fazia aquela farinha, aí dava um tanto de farinha a gente. Quem raspava, ajudava a raspar, ganhava um tanto de farinha, era o dinheiro que a gente recebia.
P/1 – Mas o dono... O seu pai não era o dono da roça?
R – Meu pai tinha a roça dele, mas tem os outros donos. Ali ele tava em sociedade.
P/1 – Entendi.
R – Quando o rio enchia, que tomava a mandioca toda, aí era todo mundo na carreira arrancando pra não perder. Porque o Rio de São Francisco enche muito.
P/1 – E no dia-a-dia assim, a senhora gostava de fazer tudo isso?
R – Eu gostava. Eu gostava. Quando tinham as festinhas de noite, a gente pegava aquela rapadura...
P/1 – Eu perguntei se a senhora gostava de tudo isso, de fazer tudo isso.
R – Eu gostava.
P/1 – E aí a senhora ia falar das festinhas.
R – De noite a gente ia para os bailes, aos forrós em outras roças. A gente ia fazer o forró, a gente amanhecia o dia. De manhã vinha pra tirar leite para o povo tomar café, os trabalhadores. Eu gostava muito desses trabalhos. Até hoje. É como eu gosto desse trabalho que eu vivo. Eu acho que eu só vivo por causa desse trabalho. Eu adoro esse trabalho. Lavei 52 anos dentro do Rio da Pitanga.
P/1 – Conta então essa história, dona Messias.
R – Ah, eu lavei muito. Eu tinha dez roupas de família. Eu chegava no rio seis horas da manhã!
P/1 – Como que fazia? Conta como era assim.
R – A gente pega a trouxa da roupa, vai para o rio, lá lava e bota pra enxugar. De tarde, dobra tudo, traz pra casa pra passar ferro nos outros dias, ou no mesmo dia.
P/1 – No mesmo dia? Mas a senhora ia com todas as trouxas?
R – Não. Cada dia a gente levava uma trouxa. Quando terminava, ainda dava tempo de ensaboar outra, aí a gente ia ver. Porque hoje em dia tudo tá difícil, mas tá melhor do que antigamente. Porque antigamente, não escolhia roupa, era pano de chão, era toalha, era tudo, botavam pra gente lavar, e a gente lavava pra ganhar cinco, dez mil réis. E hoje em dia não, a gente dá o preço da gente, como é aqui mesmo, aí eu lavo. Mas a gente lava 30 peças, eles pagam 42 reais a diária. Depois vem a peça: dois reais, dois e 50, cinco reais, o edredom 20 reais. Quer dizer que hoje tá melhor nesse ponto. E naquele tempo não, eram dois mil réis naquele tempo.
P/1 – Que idade a senhora começou a lavar roupa?
R – Ah, muito nova. Muito nova. Eu trabalhei em casa de família, tudo.
P/1 – Então vamos voltar ainda pra sua infância mais um pouquinho. A senhora disse que ia para os bailes, mas desde que época?
R – Mocinha. Mocinha, nos meus 12 anos.
P/1 – E seu pai, ele concordava?
R – Que nada! Eles iam dormir, a gente saía. Ninguém via. No outro dia, quando a gente chegava era a hora que eles tinham acordado também. Pra todos os efeitos, a gente tinha acordado também (risos).
P/1 – A senhora ia com quem para os bailes?
R – Mais as outras, as amigas. Porque roça sempre tem amiga. São mais longe as casas, mas a gente tem aquela amizade. E naquele tempo, em Curaçá, tinha muita muriçoca. Pra gente dormir, tinha que juntar aquele bocado pra ir pra dentro dos matos pra poder dormir um sono longe da muriçoca.
P/1 – Dentro do mato?
R – Sim.
P/1 – Era melhor do que em casa?
R – Era melhor do que em casa. Passava a noite toda ali embaixo dos pés de umbuzeiro, quando a gente levantava, já era com uma vasilhinha de farinha pra espremer umbu dentro, pra comer, pra poder vir trabalhar.
P/1 – Olha!
R – É. A gente foi criado assim.
P/1 – Mas dormia assim, ao ar livre mesmo?
R – Ao ar livre assim. Aqui ainda tem essa coisa, ao ar livre. A gente, cada qual levava sua esteira, seu travesseiro, botava ali e dormia. Quando eram cinco horas da manhã, de madrugadinha, aí os umbus já estavam caindo. A gente ia apanhando os umbus e espremendo. Nem lavava nesse tempo, por isso que eu digo que nada mata. Nem lavava. Só era espremer na farinha. Oxe, antes de a gente sair do “quarto” que dormia, a gente vinha com a barriga cheia de umbu com farinha.
P/1 – Olha só.
R – E nisso eu fui criada toda a vida assim. Tempo de farinhada, a gente cuidava da mandioca e ia dormir no mato “mó” da muriçoca, porque ninguém aguentava a muriçoca naquela beira de rio.
P/1 – Agora, isso na época da farinha?
R – Sim. Que era beira de rio.
P/1 – Mas quando não era época da farinha, também tinha?
R – Não.
P/1 – Muriçoca?
R – Não. Já era menos, porque não era tempo delas.
P/1 – Hum. Entendi.
R – Não era tempo delas. E o rio enchia que tomava a cidade. Tomava uma parte da cidade.
P/1 – Nossa!
R – Então a muriçoca ficava demais. Aqui tem muita muriçoca. Tem gente que vem pra aqui, não aguenta, porque diz que muriçoca fica mordendo. Já eu, não sinto.
P/1 – Acostumou, né?
R – É. Acho que ela gostou de mim, não me morde. Mas muita gente aqui senta aí, diz: “Ih, aqui tá cheio de muriçoca”. Só botando repelente. Eu digo: “Eu não boto nada, que eu não tou sentindo”.
P/1 – Dona Messias, e o seu pai, ele era pescador.
R – É. Pescador.
P/1 – Que lembranças a senhora tem dele?
R – Só de ele trazer o peixe, cada peixe grande, aquele surubim tamanho de um homem, cortava ali no meio de muita gente, cada qual comprava um quilo. Isso aí eu me lembro. E ele plantava roça. Ele plantava roça no lado baiano e no Pernambuco. Do lado baiano e pernambucano.
P/1 – Ele ia para os dois lados?
R – É.
P/1 – Mas ele atravessava o rio?
R – Atravessava o rio.
P/1 – Mas ele tinha roça dos dois lados, ou ele trabalhava pra alguém?
R – Tinha roça dos dois lados. Ele não trabalhava pra ninguém, não. Ele trabalhava nas roças dele.
P/1 – E a senhora atravessava sempre o rio?
R – É. Ele levava a gente. Passava o dia todinho lá na ilha. Passava o dia todinho.
P/1 – Trabalhando?
R – Trabalhando. Plantando mandioca, plantando feijão. Porque o feijão, a gente já sabia botar o tanto do caroço na cova pra nascer. Aí vai abrindo a cova, um vai jogando o caroço, outro vai enterrando.
P/1 – E, dona Messias, como ele era com as filhas?
R – Ah, ele tratava bem. Naquele tempo, o pessoal não sabia tratar filho com carinho, não. Deu comida, deu um banho, deu roupa, tá bem. Naquele tempo, ninguém fazia carinho nos filhos como hoje em dia. Que é por isso que estão mais viciados, é de vir tanto carinho que eles fazem. É. Porque naquele tempo não tinha carinho, mas a senhora não ouvia falar “filho de fulano roubou, filho de...”. Não! Tudo no conforme! Hoje em dia não. Hoje em dia tem padrinho de um lado, tem padrinho do outro, e nisso fica, o mundo tá virado. Faz medo a senhora sair na rua.
P/1 – Dona Messias, e a mãe da senhora, como era a relação? Como ela era com vocês?
R – Ah, de trabalhar. De manhã ela acordava todo mundo pra buscar água pra molhar as plantas. Que ela tinha pé de uva e tinha bananeira no quintal. Aí a gente tinha que carregar a água, botar naquelas plantas todas. Depois, naquele tempo, o pobre não sabia o que era pão, nem nada não, era café com farinha. Tomava o seu cafezinho com farinha, e escola. Meio-dia vinha, comia o seu pratinho de feijão, ficava ali descansando. Tinha uma moça que ensinava ponto de cruz, aí foi lá que eu fui indo e aprendi.
P/1 – E a senhora disse que o seu pai queria que vocês fossem pra escola.
R – É.
P/1 – A senhora foi pra escola desde cedo?
R – Desde cedo. Só que eu fui que eu não quis aprender mesmo, que hoje eu me arrependo. Eu fui que não quis; não queria, não. Eu queria mais esse serviço assim. Eu brigava na escola, tudo. Eu lembro que eu brigava na escola. Eu fui reprovada pelo delegado escolar.
P/1 – Como foi? Conta pra nós essa história.
R – Porque eu botei um apelido na professora, aí a professora me reprovou. O ano que eu ia passar direto. Fui reprovada por isso.
P/1 – E que apelido a senhora pôs na professora?
R – Ah, eu nem digo (risos). Eu nem digo. Essa professora, acho que ela já morreu.
P/1 – E o delegado...
R – Ela me botou de castigo, aí eu botei o apelido. Eu escrevi na parede. Ela viu, me botou no castigo, depois minha mãe me deu uma surra que eu adoeci.
P/1 – Nossa!
R – Minha mãe me deu uma surra, porque eu fiz isso. Quando foi no dia das provas, receber as provas, eu fui reprovada por causa disso. Passei em todas as provas direto, mas quando chegou aí, eu fui... Aí foi que eu fui me arrepender, podia não ter botado.
P/1 – Mas depois, foi dessa vez que a senhora parou de estudar?
R – Não. Eu não parei de estudar, porque eu não podia mais estudar em escola particular. O delegado me tirou de estudar em escola particular. Minha mãe pagou uma escola particular, um professor particular.
P/1 – Ele não deixou mais estudar em escola pública?
R – Não. Pública. Foi suspenso. Aí minha mãe teve que pagar um professor particular. Esse professor era ruim, batia como que era bolo. Se não acertasse um número da tabuada, o bolo cantava. Mas a gente tinha que ir. Foi aí que eu ainda aprendi assinar o nome, porque senão nem isso eu ia aprender mais.
P/1 – Quando tempo a senhora ficou na escola, dona Messias? Quantos anos, mais ou menos?
R – Não sei muito, não. Porque eu trabalhei muito. Meu pai morreu, a gente tinha que cada qual trabalhar pra se manter. Aí eu não sei. Não gravei assim muito, não. Mas foi muito cedo que eu comecei a trabalhar.
P/1 – Muito cedo, né?
R – Muito cedo. Eu lavava roupa de ganho, eu me empregava em casa de família, tudo isso pra chegar ao fim do ano, a gente ter. Porque a minha mãe não tinha outro jeito, a gente tinha que todo mundo trabalhar.
P/1 – Aí não era só na roça mais?
R – Não. Não. Meu pai morreu, ficou minha mãe na roça com a minha irmã mais velha.
P/1 – Quantos anos a senhora tinha quando ele morreu?
R – Minha irmã já tinha seus 20 anos.
P/1 – E a senhora, lembra?
R – Eu não, eu tava novinha.
P/1 – Novinha.
R – Com 12 anos, 13 anos.
P/1 – Quantos irmãos vocês são?
R – Irmãos? Nós éramos quatro. Mas tinham mais três que eram por parte de pai, mas não moraram junto com a gente, foram embora cada qual para o seu lugar.
P/1 – E aí ficaram vocês quatro com a sua mãe?
R – Foi. Com a minha mãe.
P/1 – A irmã mais velha ficou com ela?
R – Ficou com a minha mãe. Depois minha irmã saiu da roça, não quis mais ir pra roça, aí ficou em casa de família, empregada. Foi quando foi um capitão daqui de Salvador lá pra Curaçá, foi pra Curaçá, aí ela se empregou na casa da mulher dele. Depois ele veio embora pra Salvador, aí trouxeram ela. Daqui ela foi para o Rio, aí a gente nunca mais soube notícia.
P/1 – Nunca mais?
R – Nunca mais.
P/1 – E depois era a senhora, e os outros dois eram homens ou mulheres?
R – Duas mulheres e um homem. Éramos eu e uma mulher e um homem.
P/1 – E aí a senhora disse que começou a trabalhar em casa de família.
R – Foi casa de família.
P/1 – Como foi acontecendo?
R – Eu era tão grande, que a patroa botava um caixote pra eu subir pra botar a panela no fogo.
P/1 – A senhora cozinhava?
R – Era. Cozinhava. Aí tinha aquele caixote pra eu subir, pra poder eu dar no fogão pra cozinhar. E nisso eu fiquei. Depois a gente vai crescendo, vai mudando. Aí minha mãe morreu, ficamos só eu e minha irmã.
P/1 – A senhora trabalhou muito tempo na casa dessa pessoa?
R – Trabalhei muito tempo em casa de família. Eu tomei conta de criança, eu cozinhava, eu tomava conta de... Eu era babá. Trabalhei muito em casa de família.
P/1 – E onde era? Na sua cidade mesmo?
R – Na minha cidade mesmo.
P/1 – A senhora morava na casa?
R – Morava. Tinham uns trabalhos que eu ia dormir em casa, tinham outros que eu já dormia ali mesmo. Tinha um que os meninos eram apegados comigo, aí a patroa dizia: “Não, você não vai dormir. Quando ele acorda, fica lhe gritando”. Aí eu tinha que dormir.
P/1 – Como foi essa mudança de a senhora trabalhar roça, fazendo tudo aquilo, e depois ir trabalhar em casa de família?
R – Vim pra rua... A senhora sabe, como dizem, “quem não tem cachorro, caça com gato”. Então a gente tinha que mudar mesmo. A gente foi, a patroa boazinha, ensinava a gente, aí a gente ia aprendendo e ia fazendo.
P/1 – Quando a senhora fala “ia pra rua” é que saía da roça?
R – É. Porque a gente morava ao redor da rua três léguas.
P/1 – Entendi.
R – Dia de segunda-feira, a gente ia fazer a feira em Curaçá. A gente ia pra lá.
P/1 – A senhora gostava desse dia da feira?
R – Eu gostava. Eu gostava de vir, cada um com o seu balaio de coisa na cabeça. Eu gostava.
P/1 – O que tinha, assim? Como era esse dia? O que tinha nessa feira?
R – Tinha tudo. Tudo que a senhora procurasse: o beiju, a farinha, o feijão, tudo de tudo que a senhora procurava, tinha. A batata, tudo tinha na feira. Aí a gente vinha pra fazer compra de feijão, farinha. E de noite, a gente ia, chegava a casa cansada. Uns tinham seu jegue, iam montados no jegue, outros iam a pé. Mas era muito bom.
P/1 – Dona Messias, e a senhora logo cedo trabalhando.
R – É.
P/1 – E tinha uma brincadeira, mesmo assim, que você gostava muito?
R – Não. Minha brincadeira era assim, no tempo de Carnaval eu brincava aquele pouquinho. Porque em Curaçá não tinha Carnaval, então o povo jogava água uns nos outros quando era Carnaval. Isso era o que eu gostava, de apanhar água e jogar no povo. Todo mundo, juntava aquele bocado de moça, aí vinha com aquela vasilha d’água apoiada, a gente ia molhar o delegado pra ver se o delegado prendia a gente (risos). Essas coisas assim. Eram essas brincadeiras assim. E quando tinha uma festa, tinha um baile, que e os donos do baile iam pedir a mãe da gente pra gente ir.
P/1 – Ah!
R – A gente não andava, assim...
P/1 – A senhora gosta de samba, né? Nessa época já tinha o samba?
R – Já. Já. O samba nunca acaba. O do baiano, não (risos)!
P/1 – (risos).
R – Eu gosto muito de um samba. Eu gosto do baile e gosto do samba. O samba eu gosto mesmo, não posso ver um tocar. Oxe, eu não posso ver um samba, eu me peneiro toda (riso).
P/1 – A senhora falou que ia para o baile, que era forró, né?
R – Era forró.
P/1 – Mas e o samba apareceu quando?
R – O samba nesse tempo, quando eu me entendi, já tinha samba.
P/1 – Já, né?
R – Já. Porque sempre o samba foi mais par ao baiano.
P/1 – Sei.
R – Aí eu já tinha samba. A gente já saía pela rua sambando, tudo.
P/1 – Em época de Carnaval não?
R – Não. Em época de Carnaval a gente não saía, não, só tinham aqueles grupinhos. E quando era de noite, encerrava tudo, porque o delegado de Curaçá proibia jogar água de noite. E lá, a gente chamava ‘Entrugue’, saía todo mundo jogando água uns nos outros, aqueles que estivessem bem fardados eram os que a gente ia jogar água. Quando eram cinco horas, ele mandava parar, a gente tinha que parar.
P/1 – Isso na cidade?
R – Na cidade. A gente tinha que parar.
P/1 – E a senhora falou que ia dançando o samba na rua, em que época? Que situação acontecia isso?
R – Não, quando tinha, assim... Porque lá em Curaçá tem a festa de São Benedito. E a festa de São Benedito tem o Dia da Marujada, que todo mundo saía dançando no meio da rua, aí a gente aproveitava pra dançar, pra sambar no meio da rua.
P/1 – Isso mesmo depois que a senhora começou a trabalhar em casa de família?
R – Em casa de família. Meu horário de eu sair é que eu fazia. Eu tinha horário de sair, tinha horário de acordar, tudo, pra cuidar das coisas. Tinha tudo.
P/1 – E quando a senhora trabalhava assim, a senhora sempre morou na casa da família?
R – Algumas casas eu dormia, porque às vezes os meninos eram apegados comigo. Aí as mães diziam: “Não, você não vai dormir na sua casa, não, porque ele acorda de noite te chamando”. Aí eu ficava dormindo no quarto deles ali.
P/1 – Enquanto a senhora trabalhava assim, a senhora passou a morar na cidade?
R – Foi. Minha mãe tinha casa na cidade. Tinha casa na roça e na cidade.
P/1 – Ah, sei. Entendi.
R – Aí a gente ficava.
P/1 – Certo. E a senhora casou depois?
R – Hein?
P/1 – A senhora casou?
R – Foi.
P/1 – Como a senhora conheceu o seu esposo?
R – Ele foi fazer um posto de saúde em Curaçá, que ele trabalhava na Sucam. Aí ele foi fazer um posto de saúde em Curaçá.
P/1 – E como foi esse primeiro dia?
R – Ah, eu nem sei mais nem como foi. Porque ele já morreu, já me deixou em paz (risos).
P/1 – Dona Messias, mas foi o primeiro namorado?
R – Foi. Eu brincava, tudo, mas a gente... Naquele tempo, as meninas não tinham esse fogo de namorar cedo, não. Hoje em dia que os meninos novinhos já estão procurando namoro. Mas aquele tempo, não.
P/1 – A senhora não teve pressa?
R – Não. Naquele tempo a gente não tinha essa pressa de ter casamento, nem nada, não.
P/1 – Mas aí a senhora casou... Assim, conta um pouco como foi essa história.
R – Eu tinha meus 18 anos.
P/1 – Até então a senhora continuou trabalhando em casa de família?
R – Não. Agora não trabalhei mais em casa de família.
P/1 – Não, até a senhora casar?
R – Sim. Não trabalhei mais em casa de família, não. Aí vinha pra casa, ele trabalhava, era funcionário, aí não precisava de eu ir me acabar na casa de família. Depois, quando eu vim pra aqui, que começou ele com a ruindade dele, aí eu comecei a trabalhar pra ter o meu.
P/1 – Ah, sei.
R – Não pedir a ele.
P/1 – Entendi.
R – Quando ele chegasse com o dele grande, eu tenho o meu pequeno. Eu era assim. Mandava: “Ah, porque vai comprar o feijão” “Não”. Se ele botasse, eu pegava; se não botasse, também eu não pedia, pegava o meu e ia comprar. Que eu trabalhava assim. Com isso eu tive 14 filhos, esses 14 filhos, tudo, estudaram. Até hoje eu to assim, eu moro com o meu filho, mas ninguém me vê pedir nada a meus filhos, eles me dão, porque querem. Mas eu sei que eu como, como eu vou esperar meu filho? Eu sei que eu tomo um leite, como eu vou esperar meu filho me dar? Não, eu quero trabalhar pra ter o meu. E até hoje eu trabalho. Eu peço todo dia a Deus que me dê força e saúde e muita coragem pra eu vencer. Eu só quero vencer.
P/1 – Como a senhora começou? Porque a gente tá naquela época que a senhora trabalhava nessas casas, né?
R – É.
P/1 – Como a senhora começou a costurar?
R – A gente chegou aqui, tinha... Essa moça, ela é do Vilas, todas eram do Vilas. Aí irmã Bete ligou lá pra casa: “Messias, vem aqui que eu quero falar com você”. Que ela se dava muito comigo, a irmã Bete. Eu fui, ela disse: “Olha, tem um ‘coiso’ aqui de bordado muito bom pra você. Vocês vão se unir pra bordar e depois ela vai contar a vocês”. Eu fui, fiz a entrevista e fiquei bordando. E o pessoal gostava de mim. Aquela dali foi uma que costurou junto comigo lá. Aí fazia ponto de marca, ponto de cruz, bainha aberta, até hoje isso a gente faz. A gente ficou mais de quatro anos, acho que foram seis anos nessa vida. Depois a gente pediu auxílio do padre. Enquanto foi o padre João, tudo bem, mas depois veio outro padre e a gente não ia muito com a cara do padre. Eu que não gostava de ouvir, eu dizia. Aí teve uma festa de Santo Amaro e a gente tinha a noite da gente na missa. Na festa tinha a noite da gente. Nesse padre, ele disse... Eu perguntei à moça, disse: “Venha cá, por que a noite da gente não foi?” “Ah, porque a gente pensou que vocês não tinham condições de comprar nem um foguete”. Eu disse: “Venha cá, quem disse a senhora? Toda vez que a gente faz, a Lilian me dá o dinheiro pra eu comprar a bandeja de bolo, os foguetes e tudo. E por que esse ano não teve?” “Ah, eu acho que padre Antônio Sérgio mandou o aviso”. O padre veio me perguntar, logo a quem: “Eu mandei aviso” “O senhor mandou aviso? O senhor não mandou aviso pra mim, não. Se o senhor mandasse, a gente recebia e fazia, que toda a vida a gente deu aqui na igreja”. Porque as nossas patroas davam, elas davam o dinheiro pra gente comprar o que precisasse pra aquela noite. A gente assumia. Depois entrou da Associação das Lavadeiras, a gente também ficou. Tinha a noite das lavadeiras. Aí arrendamos, eu disse: “Agora que eu não vou mais nem na missa e nem vou mais de jeito nenhum”. Aí não fui mais (risos). Não fui mais.
P/1 – Faz tempo, isso?
R – Faz tempo. Tem um tempinho. Foi de padre João pra Padre Antônio Sérgio.
P/1 – E essa noite que vocês tinham, era que época? Todo mês?
R – Era janeiro.
P/1 – Janeiro?
R – Sim.
P/1 – Era alguma festa?
R – Era a festa do Santo Amaro, do padroeiro.
P/1 – Entendi.
R – Ele: “Ah, porque a patroa de vocês não mandou o aviso”. Eu disse que mandou. “Ou então entregou à secretária.” Eu disse: “Quem mandou o senhor botar a secretária incompetente?”. Eu respondia logo, aí eu digo: “Olha, se for de arranjar uma cadeia, vou ficar de fora”. Porque comigo não tinha essa. Hoje em dia até que eu ouço tudo calada, não digo nada, mas de primeiro!
P/1 – Dona Messias, voltando ainda, que tem muita história antes.
R – É. Minha vida é uma história.
P/1 – Como a senhora começou a lavar roupa no rio?
R – O povo falava com a gente, a gente ia buscar a roupa, a trouxa de roupa, e ia para o rio lavar.
P/1 – Mas essa época era quando, antes ou depois que a senhora começou a trabalhar em casa de família?
R – Não, foi depois.
P/1 – Depois.
R – Aí eu não ia mais pra casa de família, ficava lavando roupa.
P/1 – A senhora já era casada?
R – Já. Mas o homem ganhava o dinheiro dele, eu ganhava o meu por outro lugar, não tem esse negócio de esperar por ele, não.
P/1 – E como era a convivência de vocês? Porque a senhora contou que levava a roupa pra fazer, lavar.
R – É. Lavar.
P/1 – Mas ali, durante o dia, como era? Conta pra gente um dia inteiro.
R – Durante o dia a gente lavava. Lavava, botava pra enxugar lá no rio mesmo, de tardezinha, umas cinco e meia, os meninos começavam a carregar as bacias de roupa. No outro dia, eu levantava duas horas da manhã, eu acordava pra passar alguma depressa, pra deixar pronta pra quando o dono vinha buscar, pra seis horas eu ir para o rio de volta lavar outra. Era assim que a gente fazia. A gente passava...
P/1 – Todo dia?
R – Todo dia isso. Tinha vez que dia de domingo eu lavava aquelas fardas de quem trabalhava. Eu lavava dez roupas de família.
P/1 – Pra dez famílias?
R – Era.
P/1 – E vocês, parece que levavam coisas pra comer. Conta como era.
R – Ah, levava, levava. E tinha o rio, tinha uma passagem que vinha gente de caroço de farinha, que fazia farinha aí pra cima. Quando a gente não levava comida, eu dizia: “Oh, fulana, você me dá aquelas farinhas? Tem farinha aí?” “Tem” “Dá aqui um pouquinho pra gente comer”. Era assim que a gente vivia. Tempo de manga, juntava aquele bocado de manga, cada uma levava um bocado de manga. Quando acabava de lavar roupa, tomava um banho, sentava na sombra, haja chupar manga! Vinha comer de tarde. A vida da gente era muito sofrida, viu? Vinha comer de tarde. E tinha alguma das patroas que eu lavava roupa, que mandava me levar comida no rio. Fazia o prato e mandava.
P/1 – Senão era assim que vocês faziam?
R – Era.
P/1 – Mas tinha algum lado assim mais alegre, ou não, era sempre muito sofrido?
R – Não, era alegria porque tava todo mundo trabalhando ali todo mundo junto, conversando. Tinha delas que bebia, dizia: “Vamos beber um rabo de galo”. Aí mandava comprar a bebida, bebia, aí ficava mais alegre (risos). Oxe, foi o tempo melhor, porque a pessoa lavava dentro do rio. Depois foi que o rio não prestou mais, fizeram esgoto, aí a gente ficou sem lavar no rio.
P/1 – Nossa! E as crianças iam junto com vocês?
R – Iam. Iam tomar banho no rio.
P/1 – Conta como era, dona Messias, com as crianças.
R – Tomava banho no rio, meus meninos, todos eles. Iam tomar banho no rio. De noite, eu levantava quatro horas da manhã pra carregar água pra encher o tonel em casa, pra quando eu fosse para o rio, já deixar água dentro de casa pra eles. A gente juntava duas, três mulheres, e íamos para o rio quatro horas da manhã pra encher o tonel.
P/1 – Pra depois levar a roupa pra lá.
R – Pra poder levar a roupa pra lavar.
P/1 – E quantos filhos a senhora teve?
R – Eu tive 14.
P/1 – Quantos meninos e quantas meninas?
R – Ah, foi um bocado. Eu acho que foram uns sete meninos e umas sete meninas.
P/1 – E todos estão vivos?
R – Não. Morreram cinco.
P/1 – Cinco. E netos?
R – Ah, neto tem um bocado aí. Tem um bocado de neto. Se botar aqui, enche isso aqui tudo.
P/1 – Tem bisneto também?
R – Tem. Tem, já tenho um bisneto. Se botar aqui, enche tudo.
P/1 – E vocês cantavam enquanto lavavam roupa lá no rio?
R – Cantava, cantava! A gente aqui no começo cantava nas casas o hino das lavadeiras. Eu tenho um bocado de hino guardado daquele tempo.
P/1 – E a senhora se lembra de algum pra cantar agora pra gente?
R – Ah, lembro. Eu só me lembro de dois ou três, mas eu tenho um bocado mesmo ainda guardado.
P/1 – Mas a senhora cantaria agora um pra gente?
R – Tem um que é (entoa): “Sou lavadeira, mulher sofrida, vivo sofrendo, meu Deus, sem ter saída. E acordo de manhã cedo, vou lavar a roupa para o dinheiro ganhar. Lavar roupa, quando eu chego a casa...”. Eu sei que diz assim, agora eu não lembro, não. Tem um que diz assim (entoa): “Vamos todos ouvir nossas forças, vamos todos lutar pra valer. Porque Deus não despreza seu povo, só pedimos pra Ele atender. Vamos dar as mãos, companheira, pra nossa corrente ficar forte. Vamos dar as mãos, lavadeiras, porque essa é a nossa sorte”. Esse eu ainda me lembro.
P/1 – Muito bom.
R – A gente ia fazer assembleia na cidade.
P/1 – Conta então dessa parte.
R – A gente saía pelo meio da rua.
P/1 – Mas pra quê assembleia? Por quê?
R – Porque todo ano dá assembleia. Pra poder as patroas verem que a gente trabalhava e darem aquele salário justo a gente.
P/1 – E quem organizava isso?
R – A gente mesmo. Lá na cidade que a gente ia ao colégio das freiras. Elas ajudavam muito as lavadeiras. A gente saía fazer manifestação na rua. Tudo isso a gente fazia na cidade.
P/1 – Faz tempo isso?
R – Faz.
P/1 – Quanto tempo, mais ou menos?
R – Tem um bocado de tempo. A gente fazia a reunião, tinha... Agora mesmo vai ter a assembleia daqui.
P/1 – Todo ano tinha?
R – Todo ano a gente faz uma assembleia.
P/1 – Mas a senhora lembra quem começou com essa movimentação assim? Esse movimento?
R – Aqui em Lauro de Freitas eu sei, fui eu e dona Antônia. Porque ela agora anda doente. A gente juntava o povo, pedia ao povo pra frequentar, e naquele tempo, folia assim, e todo mundo vinha. Daqui tinham umas da cidade que acompanhavam a gente, aí quando tinha festa aqui, nós “mandava” chamar elas, elas vinham; quando tinha lá, a gente ia. Elas vinham pra cá e juntavam, as da cidade pra aqui. Depois que eu pedi... Aqui eu pedi o espaço, eles deram, o prefeito. E elas lá estavam pedindo pra fazer também o lugar de lavar. Lá ainda estavam esperando os vereadores irem, quando eu já tinha o meu.
P/1 – Entendi.
R – É. Eu disse: “Não, o meu eu já recebi” “Ah, você andou ligeiro” “Não, mas porque eu andei, quem meu deu isso aqui foi Roberto Muniz quando ele foi prefeito”.
P/1 – A gente já vai contar mais dessa história. Só voltando um pouquinho, dona Messias, a senhora morava naquela cidade, naquela região que a senhora nasceu.
R – Foi.
P/1 – Quando a senhora veio pra Lauro de Freitas?
R – Eu vim mais o homem.
P/1 – Entendi.
R – E daqui fiquei toda a vida.
P/1 – E esse tempo que a senhora lavou roupa foi só nesse rio mesmo daqui?
R – Foi. Nesse rio aqui.
P/1 – E a senhora viu Lauro de Freitas se desenvolver?
R – Foi. Vi Lauro de Freitas se desenvolver. Desenvolveu muito.
P/1 – Quando a senhora chegou aqui, como era?
R – Era muito apagado, não tinha nem luz. A luz era só até dez horas. Era tão apagado que eu tinha medo quando eu vinha na rua de noite, que a base saía de noite, que a base ficava atrás de mim, eu saía correndo com medo dos soldados.
P/1 – Por quê? Não podia sair à noite?
R – Não. Porque a gente tinha medo do soldado. Porque naquele tempo era soldado aí, fazia bagunça e tudo.
P/1 – Os soldados?
R – Sim. E não tinha luz. Não tinham essas casas aqui, não. Aqui tudo era mato.
P/1 – E os soldados, eles...
R – Eles brincavam muito pela rua. Foi quando começou esse movimento aí da base.
P/1 – E aí foi crescendo. A senhora que mudança principal, assim?
R – Muita, muita mudança mesmo. De luz que não tinha, desse movimento aqui de carro, não tinha isso, não tinha essas casas por aqui. Depois foi criando tudo. Isso aqui tudo era mato, tinha só o caminhozinho de a gente passar. E hoje em dia tudo é casa.
P/1 – E os seus filhos todos foram criados aqui?
R – Meus filhos todos foram criados aqui e estudaram tudo, assinaram o nome foi por aqui mesmo.
P/1 – E quando a senhora ia à escola, era longe da roça?
R – Não, lá em Curaçá era.
P/1 – Era longe?
R – Era longe.
P/1 – E aqui, para os seus filhos estudarem, como era na época?
R – Aqui era perto. Aqui era perto o colégio, que aqui todo lado tinha colégio, e até hoje tem. Aqui era perto. Aquela ali estudou aqui também, no Colégio Bartolomeu.
P/1 – Então, e aí vocês fizeram esse movimento todo.
R – Foi. Nas casas.
P/1 – Conta então, dona Messias, quando começou a poluir o rio. Como foi isso?
R – Quando começou a poluir o rio, a Embasa já tinha botado água. A Embasa já tinha puxado água, aí todo mundo puxou água para suas casas.
P/1 – Porque não tinha água.
R – Não tinha água encanada, não. Todo mundo apanhava água no rio. Pra beber, tudo era no rio.
P/1 – Mesmo as famílias, que a senhora lavava roupa para as famílias, essas famílias, elas tinham água encanada?
R – Não. Não. Tinha a aguadeira, tinha a cozinheira e tinha quem tomava conta dos meninos. A aguadeira ia de manhã e de tarde, subiam a escada pra encher um tanque lá em cima. Depois que chegou água encanada.
P/1 – Tinha a cozinheira que também tinha que dar conta da água.
R – É. Tinha. Se a aguadeira não fosse, a cozinheira ia para o rio apanhar água. Era um movimento danado. A gente tinha que trabalhar muito pra poder conseguir as coisas, conseguir um vestidinho para o fim de ano, porque senão não tinha, não! Chegavam as festas, todo mundo tinha que ficar com a roupa velha mesmo.
P/1 – Dona Messias, quando houve a poluição do rio, foi ao mesmo tempo em que veio a água encanada?
R – Foi.
P/1 – Como foi esse momento pra vocês?
R – Quando o rio poluiu, a Embasa entrou logo com a água aqui.
P/1 – Entendi.
R – Já tinha casa que já tava botando a água. Foi quando eu também botei lá em casa.
P/1 – Sei. E a senhora que tinha esse trabalho de lavar roupa no rio e tudo, como foi essa passagem? Como você fez, porque aí não podia mais lavar no rio.
R – Não.
P/1 – Então, conta pra gente como foi acontecendo.
R – Lavava em casa. Lavava em casa. Na rua tinha aqueles capinzinhos baixos, a gente escorava a roupa tudo, enxaguava, botava ali. Lavava em casa.
P/1 – Então continuou cada um lavando na sua casa.
R – Na sua casa.
P/1 – Mas pra vocês que lavavam tudo ali junto, teve mudança?
R – Ficou ruim só por isso, porque cada qual ficou só na sua a casa (risos). Porque todo mundo botou sua aguinha e ia lavar.
P/1 – E daí, a senhora disse que começou a ter essa movimentação com as freiras. Conta pra gente como foi acontecendo.
R – Foi. Dona Antônia chegou, disse: “Messias, vamos fazer um grupo de lavadeira?”. Eu disse: “Pra quê, dona?” “Não, pra gente fazer um grupo”. Eu disse: “Vamos”. Aí começamos a ir pra cidade ver as coisas como eram, botamos cada semana numa casa, uma reunião. A gente fazia aqueles bolos bem pequenininhos pra vender, a um real a cada sócia que ia com a gente pra poder a gente juntar o dinheiro. E nisso foi fazendo o grupo, depois entrou esse prefeito, aí ele deu esse terreno aqui a gente, disse que dava a lavanderia. Eu disse logo a ele: “Não é nada de trabalho, porque eu não quero trabalho, eu quero é descanso para os idosos”. Eu quero descanso para os idosos, porque toda vida meu sonho foi esse: quando eu ver um idoso cansado, eu dar o abrigo. Aí ele me deu a lavanderia, eu digo: “Quem puder lavar, lava; quem não puder, descansa, passa o dia ali conversando”. Tanto que quando vem gente aqui, que às vezes eles botam pra vir aqui pra fazer qualquer coisa, eu digo logo: “Olha, quando ele sair, vocês saem na frente. Agora, eu não saio, não, sabe por quê? Porque eu não pedi trabalho, eu pedi descanso”. Dito, acontece mesmo, porque todo mundo vem pra aqui trabalhar. Só a gente mesmo, os idosos, senta um, dois, eu me sento ali também, a gente fica trabalhando ali. Dia de sábado a gente costura, mas se tiver um churrasquinho... Aqui tem uma que não pode passar uma carne, diz: “Vamos comer uma carne queimada?” (risos). Aí todo mundo dá aquele tostãozinho e vai comprar aquela carne, faz aquela farofa, todo mundo come até seis horas, que vai embora, toma a sua cerveja. Eu boto a cerveja aí e tomo. Outro dia um falou, disse que é lavanderia com cerveja. Aí minha filha foi lá e disse a ele “o que ele sabia daqui”. Porque quando eu fiz a ata, tinha o lazer das lavadeiras. A gente fez com lazer para a lavadeira, ter o lazer das lavadeiras e tudo, e ele queria se meter, um professor que tem aqui. Aí a minha menina foi logo, o cortou logo, disse “o que ele sabia daqui da lavanderia, se ele sabia das atas como eram?”. Ele fechou a carinha dele e pronto.
P/1 – E a senhora tava dizendo que esse espaço aqui foi numa prefeitura que vocês conseguiram. Faz tempo isso, dona Messias?
R – Faz. Foi na gestão de Roberto Muniz.
P/1 – Quanto tempo, mais ou menos?
R – Quantos anos tem, Mina? De Roberto Muniz? Dezoito?
P/1 – Dezoito anos?
R – Foi nesse tempo.
P/1 – Fala o nome das mulheres que conviveram com a senhora desde essa época e que ajudaram a construir a associação. Fala o nome delas todas.
R – Oxe, tem muita mesmo. Muitas já morreram. Tinha a dona Lurdes, tinha a dona Antônia, tinha a Célia. Tinha muita mesmo, até do Portão.
P/1 – E das que estão aqui hoje?
R – As que estão aqui ainda tem um bocado. A gente era umas 42. Aí foi morrendo, uma adoecendo já de velha, de tanto lavar roupa, foi morrendo. E ainda até que estamos chegando aqui, mas hoje em dia...
P/1 – E as que estão aqui, do lado aqui, que estão aqui presentes? Fale o nome delas.
R – Aí tem Nilza, tem... Deixe-me ver quem é a outra. Nilza, a Vânia... Quem mais tem aí, Nilza? Roxa, Dionice, Tereza, tem ainda, tem um bocado. Ainda faltou Neném, que vinha, mas disse se chegasse cedo, que acho que ela foi para o médico, vinha para a reunião. Tem um bocado. Tem Lourdes.
P/1 – E essas 40 mulheres lavadeiras foi que a senhora conseguiu ir reunindo?
R – Foi. Reunindo. Depois umas adoecem, vai se afastando, outras vão morrendo. Eu disse: “Olha, nem que eu fique sozinha, mas eu vou dar conta, nem que eu fique sozinha”.
P/1 – E até que idade a senhora continuou lavando roupa, dona Messias?
R – Até hoje eu lavo. Eu lavo e passo! Eu não me sinto cansada no meu trabalho, eu me sinto cansada sem trabalhar.
P/1 – Dona Messias, e o espaço vocês conseguiram nesse período?
R – Foi.
P/1 – E só o espaço?
R – Só o espaço.
P1 – E como foi montando?
R – Oxe, a gente teve que pedir a um, a outro. Começamos lavando nos tanques. Eles deram com os tanques. Começamos lavando com os tanques, eu digo: “Mas eu tenho fé em Deus que um dia Deus ilumina um anjo bom pra me ajudar”. Todo dia eu pedia a Deus um anjo bom, aí quando apareceu o Consulado da Mulher. Aí Maísa foi quem trouxe aqui. Maísa trouxe aqui, eu com medo de dar os documentos, digo: “Oh, Maísa, eu tenho muito medo de dar os documentos da lavanderia, porque eu não confio em ninguém”. Ela disse: “Não, dona Messias, pode confiar em mim que eu garanto”. Eu disse: “Só que agora a lavanderia não tem dinheiro pra tirar documento, tirar xérox”. Ela disse: “Não, pode me dar que eu tiro a xérox e reconheço firma”. Que eles queriam com a firma reconhecida. “E reconheço a firma, depois a senhora me dá o dinheiro.” Eu disse: “Você faz isso?” “Faço”. Eu disse: “Pode fazer. O dia que você vier me trazer o documento, o dinheiro tá aqui”. Foi dito e feito. Deus mandou o Consulado da Mulher, que mandou essas máquinas, duas de enxugar e duas de lavar, que foi o que descansou a gente. Foi Deus mesmo. E todo dia que entrego esse povo a Deus, porque eu vou dizer, é pequena, mas me ajudou muito, porque a gente lavar na mão, chovendo, é dose. E eu tenho muita roupa, o povo só queria que eu lavasse.
P/1 – A senhora?
R – Sim.
P/1 – Por que, dona Messias?
R – Porque já estavam acostumado desde a beira do rio lavando. Eu tinha muito freguês.
P/1 – O que eles falam? Que a senhora lava como?
R – Que eu lavo a roupa bem, que tava cheirosa, dentro da base. Eu lavei muito pra base.
P/1 – Das fardas?
R – Sim. Lavei muito.
P/1 – Dona Messias, que marca é? As marcas da Cônsul mesmo?
R – É Cônsul. Elas estão ali, depois você vai ver.
P/1 – E quando chegaram essas máquinas aqui? Como foi pra todas vocês?
R – Foi uma alegria. Foi uma alegria. Era pra eu ir pra São Paulo pra receber treinamento, mas na ocasião eu tava até doente, aí eu disse assim: “Eu não vou. Uma que eu não aguento. Só quem pode ir é Dionice, que é minha vizinha, ou minha nora, ou minha filha”. Eu disse assim: “Eu vou falar com a minha filha, se ela vai”.
P/1 – Qual filha?
R – Essa daí, foi ela que foi.
P/1 – Como ela chama?
R – Maria. Foi ela que foi. Eu falei com a Mina: “Mina, tem isso, isso e isso”. Ela disse assim: “Mãe, tenha paciência, que eu vou saber se me dão uns dias no trabalho pra eu ir”. Aí Deus ajudou que a prefeitura deu os dias a ela e ela foi, fez o treinamento. Antes de ela chegar aqui, as máquinas chegaram. Quando desceu, o caminhão parou aqui. Só faltou que eles iam... Que Maísa disse: “Ah, Messias, vamos botar um fogão com uma geladeira pra vocês”, que a gente tinha uma velhinha. Eu disse: “E se eles derem um micro-ondas e um bebedouro?”. Aí eles deram o filtro. No fim não veio. Eu também não sei por que não veio. Maísa disse que depois ia conversar com ele, mas eu não sei. Mas Maísa, que Deus ajudou botar ela no nosso caminho, que eu nem a conhecia quando ela entrou aqui falando nesse projeto.
P/1 – Ela é de onde, a Maísa?
R – É daqui, não é, Mina?
P/1 – Mas ela é do Consulado?
R – Ela é da prefeitura, não é?
P/1 – Da prefeitura?
R – Aí foi ela e Mina pra São Paulo.
P/1 – Dona Messias, esse treinamento que a Maria recebeu, a senhora sabe do que foi, como foi?
R – Não. Não sei, não. Sei que lá foi ela receber, ela falou aqui como foi, que quando ela chegou, ela reuniu as lavadeiras e falou tudo que se passou lá.
P/1 – Sei. E era sobre o quê lá? Ela comentou alguma coisa? O que ela aprendeu lá?
R – Ela comentou aí, mas só que eu não me lembro.
P/1 – Sei. Dona Messias, alguma das mulheres, das lavadeiras, alguém não se acostuma com a máquina, acha que não fica bem lavada?
R – Não. Todas elas acostumam. Todas elas. Tem uma que vem pra lavar, tem gente que vem só pra lavar e dá uma taxazinha a gente.
P/1 – Isso que eu queria entender. Como é usado o espaço, dona Messias?
R – Olha, eu tenho uma que é parceira minha mesmo, de passar roupa, aí eu lavo. Todas as roupas que entrarem aqui pra mim eu lavo, dou tudo lavadinho a ela, ela passa. Depois que recebe o dinheiro, a gente divide o dinheiro, aí bota, tira aquele tantinho, bota numa caixinha, que é o fundo da máquina, pra quando precisar, pra consertar a máquina ou outras coisas. As outras também ajudam, todo mundo dá. Aí fica nisso. Eu lavo todas as roupas e ela passa.
P/1 – E depois, a senhora falou que se outras mulheres querem usar...
R – Se outras mulheres quiserem usar, como tem uma que ela é até de Minas, ela faz um show, ela faz show, aí ela vem lavar aqui. Ela vem, naquele dia ninguém usa a lavanderia, é dela, porque ela traz muita roupa mesmo. Ela rola dois meses sem vir, mas quando vem, é roupa de show e tudo. Ou então naquele dia eu aviso: “Olha, hoje não se lava roupa aqui. Malu veio e o dia é dela”. Ela dá aquela porcentagem à gente.
P/1 – Entendi.
R – É. Quer dizer que é uma diária.
P/1 – Entendi.
R – Eu lavo, a outra passa, depois a gente empacota e os donos vêm pagar.
P/2 – Dona Messias, vocês cobram por peça ou por quilo?
R – A gente cobra por peça e uma diária. A diária são 30 peças, a gente lava, 42 reais. Aí por peça, tem peça de um real, dois reais, dois e cinquenta, tem até peça de 20 reais, que é edredom, aqueles edredons, aquelas colchas, são 20 reais pra lavar.
P/1 – Dona Messias, como a associação funciona assim? Tem essa parte das roupas, conta pra gente um pouco como vocês se organizam.
R – Funciona como?
P/1 – Assim, como chama a associação de vocês?
R – Associação das Lavadeiras.
P/1 – Das Lavadeiras.
R – É. De Lauro de Freitas.
P/1 – Isso. A senhora disse que a senhora que lava, a outra pessoa passa.
R – Passa.
P/1 – E as outras mulheres?
R – A mesma coisa. Se vier uma, se for só pra lavar, elas lavam, vão passar na casa delas.
P/1 – E as que vêm sempre aqui? Hoje, por exemplo, tem várias mulheres aqui.
R – Vêm pra bordar.
P/1 – Tem também essa parte?
R – É. Vêm pra bordar. Quando é no dia de amanhã, a professora de bordado vem, aí aquelas costuras a gente já tá pronta pra apresentar a ela, que a gente fez durante a semana. Aí ela passa outras. No dia que não tem roupa pra lavar, a gente tá aqui costurando. Todo mundo senta aqui e vai costurar. Essas que ficaram aqui perto de mim fazem tapete. Aí a gente passa o dia aqui, de tarde vai todo mundo embora, ou de noitinha.
P/1 – Então tem mulheres que vêm fazer esses bordados que não são lavadeiras?
R – Não, não lavam, não, vêm só pra bordar.
P/1 – E faz tempo que essa professora tá com vocês?
R – Tem é tempo! Começou no Centro Comunitário, aí do Centro Comunitário elas pararam um tempo, depois ela ligou pra mim, se eu queria que elas dessem aula de novo, eu disse: “Oxente, eu quero”. Aí não tinha lugar, que ainda não tinha isso aqui. Eu disse: “Olha, vai botar no centro”. Lá, meu filho tem um centro espírita, aí só é de noite. Eu falei com ele, ele disse assim, se eu quiser uma coisa, eles me ajudam. Eu disse: “Olha, Humberto, a moça do centro de Vilas quer vir costurar e ensinar o povo a costurar. E lá na lavanderia é muito quente, não tinha toldo, não tinha nada”. Ele disse: “Podem vir aqui para o centro”. Todo dia de quinta-feira ela vinha para o centro, o povo ia pra lá, costurava. Já a parte da roupa não tinha, porque eu ia para o centro, só ia depois que eu chegava do centro. Aí nós vínhamos tudo para o centro. Depois ela ajudou a gente a construir esse espaço.
P/1 – Construir?
R – Sim. Esse espaço não tinha, não. Ela foi que ajudou a gente a construir.
P/1 – De onde ela é?
R – É do Vilas.
P/1 – Vilas é o quê?
R – Vilas do Atlântico.
P/1 – Ah, ela mora lá?
R – Ela mora lá.
P/1 – Mas ela é de alguma organização?
R – Não sei. Ela gosta desses lugares. Ela gosta de fazer esse trabalho, lidar com a gente. Você vai ver o retrato dela aí. Ela gosta, aí ela ajudou a gente. Agora ela quer fazer outra coisa, ela disse: “Messias, vamos nos juntar pra nós acimentarmos esse lado todo pra quando quisermos fazer as festinhas”. Aí a gente tá nesse movimento aí: juntar o dinheiro pra mandar acimentar tudo.
P/1 – A senhora falou que esse espaço aqui é de trabalho, mas é de lazer também.
R – É.
P/1 – É de descanso.
R – É de descanso. Eu digo a todo mundo quando vem procurar conversa, eu digo: “Olha, aqui eu não pedi trabalho, eu pedi descanso”. Todo mundo que vem procurar conversa, da prefeitura: “Ah, porque...” “Olha, eu não pedi trabalho. Sabe por que ele não me tirou ainda? Porque eu não pedi trabalho, eu pedi descanso. Se eu pedisse trabalho, eu já tava na frente deles na mala arrumada”.
P/1 – O que as pessoas cobram quando vêm, que a senhora fala isso?
R – Nada. Alegam assim, por causa do espaço. Porque sabe que prefeito de um pra outro tem mudança, tudo, aí eles querem que bulam aqui, só que comigo não bolem. Comigo não bolem, porque quem me deu sabe de que jeito me deu. Aí eu aqui cavei, cavei mais Vivaldina, a gente foi ver se tinha dono o terreno, tudo. A gente cavou, cavou, chegou lá: “Não tem dono, o terreno é do patrimônio”. Eu digo: “É?”. Aí já estamos pra receber o documento. A gente foi tirar, dei meus documentos tudo, mas eu disse assim, eu tirei em nome da lavanderia, porque eu disse logo, aqui não sou eu só que digo, não. Teve prefeito que já entrou e já disse se eu queria esse lugar, pra me dar outra lavanderia. Eu digo: “Não, eu não quero outro lugar, não, prefeita. É porque eu não pedi trabalho, não, eu pedi descanso”. Quer dizer que ela queria me dar uma lavanderia lá dentro dos matos pra ficar com esse espaço aqui pra outra coisa. Eu disse a ela, eu disse: “Não, prefeita, eu não pedi trabalho, eu pedi descanso. E ali dá muito bem pra eu descansar mais minhas colegas. Aqui dá muito bem”. Ela já veio aqui, já veio outra, muita gente já veio pra trocar, eu não troco, não.
P/1 – E as outras mulheres?
R – Aqui se uma disser “vamos fazer?”, todas dizem “vamos”. Se disser “não”, é não, pronto. Se eu disser “vamos dar?”, “é bom dar?”, e elas todas disserem “dê”, vai. Se elas disserem “não”, não.
P/1 – Vocês sempre decidem junto?
R – É. A gente decide junto.
P/1 – A senhora falou que quando vai a um lugar, conta pra gente essa história.
R – É. Se tiver alguma pessoa que humilhe a gente, humilhe ao menos uma da família, que tá mais a gente, a gente vai tudo embora, não fica, não. Porque a gente foi junto, então não tem que ninguém humilhar. Vem tudo embora. Aqui bole com uma, briga com todas. Bula com uma aqui dentro que buliu com todas. Aí vem uma, vem outra, quando vê a senhora tá rodeada que não sabe por onde sai.
P/1 – Dona Messias, e como as mulheres ficam aqui? O que a senhora acha que é pra elas esse espaço?
R – Pra descanso. Eu acho que é um descanso. Porque ela vem, já evita de estar na porta da rua, em outra. Tá ali conversando, fazendo seu pontinho, tá conversando, tá descansando. É como eu, eu lavo a roupa, mas eu acho que aqui que é bom pra mim. Eu não sei ficar dentro de quatro paredes, deu cinco horas da manhã, eu já quero sair. “Minha mãe, pega a Kombi.” Eu não. Deus me deu duas pernas.
P/1 – A senhora vem andando?
R – Eu venho andando e vou andando. Agora que meu filho, quando ele tá de folga, que ele trabalha na Embasa, tá de folga, ele vem e me traz de carro. Todos os carros param aqui, eu não peço um, venho andando na minha perna. Vou andando, venho andando.
P/1 – E as mulheres aqui?
R – E as mulheres a mesma coisa, vão pra casa delas. Todo mundo, uma traz uma coisa, uma compra um pedacinho de carne, outra compra um feijão, bota no fogo, do jeito que sair todo mundo come. Vamos comer o que tiver! E tiver todo mundo aqui, como nem que for uma colher, todo mundo. É assim! A gente se reúne assim. Todo mundo que tiver aqui, é pra todo mundo.
P/1 – Dona Messias, a gente já tá quase terminando a entrevista. Qual, hoje, o sonho maior da senhora?
R – Meu sonho maior? É ver aqui crescer do jeito que eu quero.
P/1 – Como a senhora quer?
R – Crescer como uma lavanderia, como um espaço para o idoso, pra quando o filho de um idoso maltratar a sua mãe, venha, fique aqui, o que nós comermos, você come. Eu quero é isso. Isso aí, e eu tenho fé em Deus que eu vou alcançar isso. Já disse, ali não ocupe nada, vai cimentar, mas no dia que eu achar quem me ajude a fazer o quarto, eu boto duas camas, quando estiver sofrendo: “Venha, deite aí, pode dormir, amanhecer o dia”. Eu quero é isso, é união assim pra botar os idosos pra descansar. Porque quando eu vejo tanto idoso que os filhos não ligam, aquilo me dói por dentro. Se eu pudesse, botava aqui dentro, mas só que não tem onde dormir. Vem, come... De comer, come todo mundo, que aqui o que uma fizer, todo mundo come, tanto faz eu estar como não estar. Quem estiver, estiverem todas que tem aí, “vamos almoçar”, “vamos”, todo mundo come, nem que for uma colher. Mas eu tenho fé em Deus que esse sonho eu vejo. E queria fazer um armarinho ali naquele beco pra botar as costuras daqui pra vender, com armarinho, arrumar direitinho lá no armarinho. E ver crescer mesmo. Eu peço todo dia a Deus isso, pra me dar força, muita coragem, muita fé. Que eu tenho muita fé nas minhas orações.
P/1 – Muito bom. E vai acontecer.
R – Se Deus quiser.
P/1 – E só mais uma pergunta, dona Messias, que eu lembrei agora. Vocês praticam alguma religião aqui?
R – Pratica. Para o mês, a gente já vai rezar o Santo Antônio aqui. É Mãe Rainha, a gente tem uma convivência com esse apoio, com essa coisa de Mãe Rainha. Cada dia ela fica numa casa. Ou então, pra ficar aqui em Lauro de Freitas, elas confiaram em mim, quem tá responsável sou eu. Ela vem, daqui caminha em qualquer casa, cada dia numa casa, reza o terço. Depois eu tiro um dia pra ela dormir aqui na lavanderia. E nisso fica.
P/1 – E cada festa de santo...
R – Quando tem alguma festa, reunião, tudo, porque Mãe Rainha sempre... Ela é mãe de todos, é mãe, três vezes mãe. Aí a gente tem muita fé. Eu tenho muita fé nela.
P/1 – Uma fé nela.
R – É.
P/1 – E São João, Santo Antônio?
R – São João a gente faz a brincadeira, Natal. Tudo a gente brinca por aqui.
P/1 – E eu sei que o samba aqui também é forte.
R – É. Ave Maria! O Santo Antônio, aqui reza Santo Antônio, depois do Santo Antônio tem um samba aqui. Acaba de rezar, e leva ele no samba.
P/1 – Tá certo.
R – Quem é que vive sem uma reunião?
P/2 – Dona Messias, no samba a senhora canta?
R – Hein?
P/2 – A senhora canta no samba?
R – Não. Aqui tem umas que cantam mais do que eu e tiram samba mesmo. Aquela escurinha, a Nilza.
P/1 – E faz o samba de roda, roda de samba?
R – É. Mas tem o disco aí. Bota uma radiola aí, bota o CD aí, bota o CD aí pra gente dançar. Aí pula, nem acaba de sambar, eu digo assim: “Oi minhas pernas. Oi minhas pernas” (riso).
P/1 – E tem maridos ainda que...
R – Deixe-me ver. As que têm aqui nem têm marido mais. Todos os homens já foram pra deixar as mulheres livres (riso). Os homens já foram pra deixar as mulheres livres. Quase todo mundo aqui é viúva. E a que tem marido se meter no meio da gente, vai seguir o que a gente tá fazendo (risos).
P/1 – Tá certo. Quer perguntar mais, Eliete?
P/2 – Obrigada.
P/1 – Dona Messias, a senhora quer contar alguma coisa que eu não perguntei?
R – O quê?
P/1 – Que eu me esqueci de perguntar, a senhora que contar? Falar alguma coisa pra gravar aqui?
R – Não. O que eu tinha de falar, eu já falei. Só é isso mesmo.
P/1 – E o que a senhora achou de contar a sua história pra gente aqui?
R – Ah, eu me sinto bem, porque eu acho que essa história aí vai evoluindo, vai vendo pela televisão, aí aonde vem o anjo bom que vai ajudar a gente. E a gente calada, só naquela coisa, calada, esperando... Porque ninguém espere, que do céu não cai nada! Ninguém espere. Tem que sair pedindo, nem que não diga que vai. Quantas vezes a gente vai à prefeitura, o prefeito diz: “Ah, vou mandar fazer” e não faz? Porque eu não tenho ajuda de prefeito. Eu tive ajuda de prefeito esse que me deu.
P/1 – Os outros?
R – Não. Esse que me deu, até uma festa do dia das mães, eu ia ao social e falava: “Eu vou fazer a festa do dia das mães”. A secretária dizia assim: “Tome, fale logo com o prefeito”. Eu falava com ele, ele dava a ordem pra eu ir comprar a merenda e tinha o presente das lavadeiras. Esse daí eu tive. Se ele não sai, a lavanderia não tava assim, não. Mas ele saiu, Deus não ajudou. Mas esse era. Qualquer coisa, até o sabão, ele chegava ao social e dizia assim: “Ah, liga aí para o Marcelo Abreu, para o Roberto Muniz, que não tem sabão”. Com pouca hora o telefone batia, o sabão chegava. Esses daí me ajudaram, mas esses outros não estão me ajudando, não.
P/1 – Mas vocês continuam brigando?
R – Oxe, continua. Não vou lá. Pra ir pedir, ele dizer “não”, eu vou trabalhar. Deus me dá força, eu trabalho. Não vou, não. Ninguém vê. Eu ia tanto que os prefeitos que têm aí dizem: “Ela não ocupa a gente em nada”. Pra quê? Pra dizer que não tem. Quando ela chega me contando, eu digo: “A prefeitura tá igual lá em casa. Deixa lá”. Porque não tem. Eu não abuso de prefeitura, não. Ou então eu faço assim: “Nilza, vamos fazer isso? Dionice, você quer me ajudar nisso? Tem um pessoal que vem, vamos contar a história pra ver o que acham”. Aí elas me ajudam e a gente faz aqui com nós mesmo. Mas não vou, não. Não vou. Peço a Deus que um dia já chegue um prefeito que a gente possa... Que hoje em dia, nem os prefeitos não são culpados, não. Eu mesmo não me queixo dos prefeitos. Eu acho que é o secretário que fica por detrás, quer mandar mais que o prefeito. Eu acho que é isso. Porque os prefeitos, não. Porque se a gente conversa, eles recebem a gente bem. Olha, eu tenho aí peças de pano que a outra prefeita mandou pra gente fazer costura aqui. Por isso eu não posso dizer que ela não preste, porque ela mandou um corte de pano. Ainda tem aí, porque ela mandou muita peça. E a gente vai costurando, vai costurando. Ou então a gente vai aquele tostão, já serve pra alguma coisa. Mas os outros, não. Esse de agora, eu nem sei quem é. Nem votei nele, nem sei quem é.
P/2 – Dona Messias, a senhora comentou que algumas pessoas quiseram esse espaço aqui, né?
R – É.
P/2 – Mas houve situação que vocês tiveram que brigar por esse espaço?
R – Não. Quando o prefeito me deu, que eu fui receber, ele mandou me chamar pra eu receber a chave, não teve briga. A briga só foi porque os outros prefeitos queriam dar outra lavanderia e me botar lá pra dentro dos matos. Eu disse não, que eu não pedi trabalho, eu pedi foi descanso. Eu não pedi trabalho, pra ir pra prefeitura trabalhar, pra quando chegasse... Teve uma que veio costurar aqui, que a prefeita botou uma moça pra costura aqui, aí ela: “Me bote na diretoria quando tiver”. Eu disse: “Não, a diretoria daqui já é certa”. Ela falando, botando muita banca, puxando o saco, eu disse: “Olha, quando ela arrumar a mala, você arrume na frente dela. Agora, eu não arrumo a minha, não, mas você vai arrumar”. Foi dito e feito. Ela foi na frente dele. Porque eu não pedi trabalho. Pra eles me botarem fazer, eu tinha que pedir trabalho. Não tava comendo do dinheiro de lá da prefeitura. Eu não tava. Eu não pedi trabalho, eu pedi um descanso. E o descanso que ele me deu, nem dono tinha. Eu conheci o velho que morou aqui, tudo. O velho tinha a casa ali, morava nessa nesga aqui. Eu conhecia tudo isso aqui. Eu ainda disse mais, se eu não fui dona é porque eu fui burra, que o dono me chamava de “minha fia”, fazia a casa, daí eu ficar mais ele aqui, ele doente, eu fazendo as coisas pra ele. Mas eu que nunca gostei de me aproveitar de nada dos outros.
P/1 – Dona Messias, assim, vocês têm esse jeito de se organizar. Pegando o que a Eliete falou, teve algum momento que vocês tiveram que fazer uma movimentação maior, uma briga maior?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não. Nós nunca brigamos. O que arranja tudo aqui é assim mesmo. Vou na prefeitura, peço, se não pode, não pode e pronto, fica lá. Eu passo do jeito que eu posso. Mas nunca teve. Só teve essa que a prefeita pediu, foi na prefeita, pediu o espaço daqui pra me dar outro no lugar.
P/1 – Sei.
R – Foi aí que eu disse a ela: “Prefeita, aqui nós somos 32, se uma disser ‘não’, não tem nada feito” “Ah, mas eu dou outra lavanderia melhor”. Digo: “Não. Eu não pedi lavanderia, não pedi trabalho, eu pedi descanso. Por isso, aqui tá muito bom pra mim”. Aí veio outra mandada pela prefeita pra ver se eu concordava de fazer restaurante aqui. Não. Não quero. Aqui é descanso dos idosos.
P/1 – E vocês têm a associação, vocês que cuidam mesmo.
R – É. A gente cuida. A gente mesmo que cuida daqui. Os documentos quem faz é a gente. Todo ano a gente faz os documentos daqui. Tá em dia. Eles chegam na prefeitura, perguntam, o documento que tá em dia é só da lavanderia, porque eu não deixo... Agora mesmo, agora em maio, a gente já vai fazer assembleia.
P/1 – E tem eleição?
R – Tem. Tem eleição todo ano.
P/1 – Todo ano?
R – Todo ano a gente faz eleição. Não, de quatro em quatro anos a eleição daqui. De quatro em quatro anos. Esse ano a gente já vai fazer.
P/1 – Vai fazer?
R – É. Aí faz da ata, pronto. Tá tudo certo, as contas vão para o contador.
P/1 – Assembleia tem de quanto em quanto tempo?
R – De quatro em quatro anos.
P/1 – Quatro também.
R – É. Aí a gente faz a assembleia.
P/1 – Tá certo.
P/2 – Quem é hoje a direção aqui, a coordenação da lavanderia?
R – Como?
P/1 – Da associação, quem é presidente hoje?
R – Sou eu.
P/1 – A senhora.
R – Porque uma vez teve uma assembleia aqui, que quem veio fazer foi gente da prefeitura mesmo. Aí da prefeitura ela já trouxe a ordem que quem da diretoria quisesse sair, saía, só quem não podia sair era a dona Messias. Que o prefeito tinha mandado, que eu não, eu ficava sempre responsável. A tesoureira disse: “Ah, eu quero sair mesmo, que eu ando doente”. Eu digo: “Se é pra ficar só eu, vocês vão ficar, que eu não vou ficar no fogo sozinha, não. Eu não sei o que vocês fizeram aqui, por isso fica todo mundo.” Aí pronto.
P/1 – Aí ficaram?
R – Ficaram. Aí já queria mudar, mas ninguém quer. Porque a gente sabe que é um grupo de muita responsabilidade, ninguém quer assumir, não. Ninguém quer mesmo, porque eu já pelejei aqui, uma diz: “Eu não quero. Não bote pra mim que eu não fico”. Porque a presidente tem que responder por aquilo tudo. Tudo que falta, a presidente tem que responder, aí ninguém quer.
P/1 – Dona Messias, pra encerrar, a senhora tava falando que também fazem passeios, né?
R – Faz.
P/1 – Vão todas as mulheres aqui?
R – Todas vão. Agora mesmo elas estão querendo que a gente faça um passeio.
P/1 – E pra onde, geralmente?
R – Pra praia. Vamos pra praia, passamos o dia na praia. Cada dia eles vão numa praia, vão à outra. Às vezes a gente passa o dia todinho na praia, de tarde vem pra casa.
P/1 – E São João também, a senhora tava falando.
R – São João, a gente faz a festinha da gente aqui mesmo. Faz de dia aqui, de noite vai para as casas. A gente faz.
P/1 – A senhora já foi pra Brasília também?
R – Já. Já fui pra Brasília, Gramado. Tudo passeando.
P/1 – Então, dona Messias, agora a gente vai terminar mesmo. A senhora quer falar mais alguma coisa?
R – Não, chega.
P/1 – Muito obrigada, viu?
R – De nada.
P/1 – Foi muito bom ouvir a sua história. Ainda tinha muita coisa pra perguntar, mas...
R – Não, deixa aí, deixa quieto, porque senão vão dois dias ou três.
P/1 – Obrigada, viu?
P/2 – Obrigada.
R – De nada.
FINAL DA ENTREVISTARecolher