Memória da Literatura Infanto-Juvenil
Depoimento de Cláudio Martins
Entrevistado por Thiago Majolo
Belo Horizonte, 13/02/2009
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MLIJ_HV036
Transcrito por Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P – Cláudio, para começar eu queria que você falasse seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Cláudio Francisco Martins Teixeira. Horrível. Nasci em Juiz de Fora, quinze de setembro de 1948.
P – Fala o nome dos seus pais, o que eles fazem, faziam.
R – A minha mãe era enfermeira. Chamava-se Rosália. Já morreu. E o meu pai trabalhava na Central do Brasil, como é que chama isso? Gente que faz código Morse? Telégrafo. Mas ele morreu quando eu tinha oito meses. Dizem que de desgosto. Não sei, mas é isso. Então nasci em Juiz de Fora.
E chamada infância normal, nada de mais. Um negócio que eu acho interessante falar que eu nunca fui um bom desenhista. Sabe aquelas coisas? Tem uns caras que dizem assim: "Não, desde pequeno eu tinha um talento, não sei o que." Não, não era nada, tudo normal. Isso é legal desmistificar, porque as crianças acham que têm que nascer com algo a mais. Elas imaginam que você trabalhe num castelo, isolado. Que você vive lá não sei onde, aquele mundo mágico, etc. Não é nada disso. Desenho absolutamente normal, trabalho normal, redações normais, até sofríveis. Tudo normalíssimo.
P – Queria voltar um pouquinho, só para a gente entender um pouco a história. Você teve contato com os seus avós, como é que foi?
R – Eu fui criado pela minha avó materna. Ela e a minha mãe e um irmão que eu tinha. Então eu fui criado pelas duas. E o meu avô, marido dessa minha avó materna, morreu também mais ou menos cedo - a turma morre cedo, eu não sei o que é que eu estou fazendo aqui até hoje - e ele era fotógrafo português. Inclusive, um dado interessante é que veio para o Rio de Janeiro e montou um estúdio...
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Depoimento de Cláudio Martins
Entrevistado por Thiago Majolo
Belo Horizonte, 13/02/2009
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MLIJ_HV036
Transcrito por Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P – Cláudio, para começar eu queria que você falasse seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Cláudio Francisco Martins Teixeira. Horrível. Nasci em Juiz de Fora, quinze de setembro de 1948.
P – Fala o nome dos seus pais, o que eles fazem, faziam.
R – A minha mãe era enfermeira. Chamava-se Rosália. Já morreu. E o meu pai trabalhava na Central do Brasil, como é que chama isso? Gente que faz código Morse? Telégrafo. Mas ele morreu quando eu tinha oito meses. Dizem que de desgosto. Não sei, mas é isso. Então nasci em Juiz de Fora.
E chamada infância normal, nada de mais. Um negócio que eu acho interessante falar que eu nunca fui um bom desenhista. Sabe aquelas coisas? Tem uns caras que dizem assim: "Não, desde pequeno eu tinha um talento, não sei o que." Não, não era nada, tudo normal. Isso é legal desmistificar, porque as crianças acham que têm que nascer com algo a mais. Elas imaginam que você trabalhe num castelo, isolado. Que você vive lá não sei onde, aquele mundo mágico, etc. Não é nada disso. Desenho absolutamente normal, trabalho normal, redações normais, até sofríveis. Tudo normalíssimo.
P – Queria voltar um pouquinho, só para a gente entender um pouco a história. Você teve contato com os seus avós, como é que foi?
R – Eu fui criado pela minha avó materna. Ela e a minha mãe e um irmão que eu tinha. Então eu fui criado pelas duas. E o meu avô, marido dessa minha avó materna, morreu também mais ou menos cedo - a turma morre cedo, eu não sei o que é que eu estou fazendo aqui até hoje - e ele era fotógrafo português. Inclusive, um dado interessante é que veio para o Rio de Janeiro e montou um estúdio fotográfico ali no centro do Rio, chamado Foto Éden. E ali ele começa fotografar e ele pega um trabalho de fotografar todos os migrantes portugueses que chegam. Então era um acervo fantástico, ele fazia fotos para documento. Um acervo incrível de todo o processo de migração de um largo período. E o porto central do Brasil era Rio de Janeiro, evidentemente, a capital, então aí é que passava todo mundo. Mas a minha avó depois de algumas brigas com ele, a minha família sempre teve sangue meio esquentado, ela quebrou esses negativos todos. Uma briga horrorosa. E eram negativos de vidro que se usava na época, grandes. Quebrou isso tudo. Então isso se perdeu. E ele fotografou, inclusive é interessante, o Gago Coutinho e o Sacadura Cabral quando eles fizeram aquele vôo histórico atravessando o Atlântico. Quando eles chegaram ele fotografou os dois. Ele fez foto grande, quase tamanho natural, e a minha avó não conseguiu ver isso, porque ela foi lá na loja, numa vitrine onde estava exposto, e não conseguiu ver porque tinha uma quantidade de gente absurda. As fotos fizeram sucesso porque eram fotos grandes.
E Rui Barbosa, que estava muito doente, fotografou com a família, depois isolou o Rui Barbosa, fez com nanquim e depois refotografou, botou um fraque no Rui Barbosa, que estava de pijama, porque ele estava muito doente. Então tem essas histórias aí. Dizem também que foi morto pela maçonaria. Então a minha trajetória é um pouco complicada nessas coisas. O que é interessante, não ter uma história banal, afinal de contas.
Esse avô eu não conheci, fui criado pela minha avó. E os meus avós paternos o contato foi muito pequeno, porque meu pai morreu cedo, trinta e poucos anos. Então nosso contato era muito pequeno com eles. A minha grande lembrança de família, com relação aos mais antigos, é da minha avó, a Georgina. E tias, aquele negócio todo.
P – E irmãos? Tinha irmão, irmã?
R – Um irmão, morreu há uns quatro anos atrás. Era uma relação legal. Ele trabalhava com coisas outras, completamente diferentes. Ele era engenheiro elétrico. Era outra área, outro departamento. Trabalhava em São Paulo, na Light. E eu fui o único dessa turma toda que resolvi entrar na área chamada arte. Deve ter sido influência, e meu pai era pintor, chamava de pintor de domingo. Era aquele cara que no fim de semana pegava uma pintura qualquer, um cartão postal daqueles antigos que eram sempre pinturas e quadriculava para facilitar o desenho. Pegava uma tela, quadriculava também e repetia a pintura. Então um pintor de domingo. Tem até um quadro dele ali.
P – Então, Cláudio, conta um pouquinho como é que era a sua casa. Para descrever fisicamente a casa, conta um pouquinho pra gente.
R – Eu nunca morei em casa propriamente dita. Eu sempre queria, eu sempre quis isso. A gente morava em apartamento. Era um apartamento legal. Quer dizer, os apartamentos na época, inclusive, eram grandes. Era um apartamento legal. E um dado aí é que eu sempre tive mania de recolher cachorro na rua, era um horror. Porque eu cheguei a ter aí uns vinte e tantos. Alguns ficavam algumas horas apenas. Porque eram boi deitados, imensos. E outros eram menores, a minha avó suportava, digamos assim, 24, 48 horas. Fora os outros, que eu tive que ficaram mais tempo, evidentemente. Mas eu recolhia cachorro na rua, o que era um horror dentro de um apartamento. Era muito legal. Quer dizer, gostaria muito mais que fosse uma casa, mas não era. Mas era legal.
Você tinha aí o mundo da invenção. É o melhor período da vida, sem dúvida alguma. E quanto a isso eu, como toda criança, eu inventava quinhentas coisas, me divertia. E era uma família pobre. Então eu acho isso interessante, você era obrigado a inventar coisas em cima de quase nada. Com duas pedrinhas você construía uma muralha, ou você demolia uma muralha. Então você fazia e construía coisas, era legal. Muito legal.
P – Como que era essa vizinhança? O prédio, tinha os amigos aí, os vizinhos?
R – Era um prédio pequeno. Tinha alguns amigos, nunca foram muitos. Eram alguns amigos e aquelas brincadeiras normais, de menino. E com uma grande vantagem que, na época, a cidade, todas as cidades eram muito mais tranquilas. E Juiz de Fora, por ser uma cidade menor, era mais tranquila ainda. Então eu andava sozinho a cidade inteira. Rodava o dia inteiro. Ia para o parque - chamado parque era um jardim muito grande - e ficava lá brincando o dia inteiro. E ninguém nunca se preocupou comigo. Para você ter idéia, com nove anos de idade eu tinha a chave de casa. Isso é uma doideira. Dito hoje assim: "O é que é isso?" Mas é que, às vezes, a minha avó ia dormir mais cedo, a minha mãe estava encostada lá no quarto, então eu chegava nove e meia, dez horas da noite em casa e para não incomodar ninguém eu abria a porta. Quer dizer, era um homenzinho de nove anos de idade. Época de carnaval, a época em que o Brasil tinha carnaval, não tinha esse chiqueirinho onde o povo desfila hoje - que me perdoe o Niemeyer, o Brizola e o Darcy Ribeiro – era um carnaval de rua. E Juiz de Fora, muito próximo do Rio, então qualquer coisa no Rio de Janeiro reverberava com muita facilidade, muito rápido em Juiz de Fora. Então você tinha um carnaval muito legal. Carnaval de rua com blocos, escolas de samba, frevo, aquelas coisas todas. E no carnaval a minha avó me botava uma fantasia que eles inventavam, a gente fazia lá. Um esquema de comum acordo. Era chinês, ou tirolês, ou baiana. Enfim, o que desse na cabeça de cada um. E eu saía de casa nove, dez horas da manhã e voltava dez horas da noite. O dia inteiro rodando naquele negócio. O pessoal do bloco me pegava no colo, me botava na cabeça e levava subindo e descendo rua. E aquilo não tinha problema nenhum. Não tinha importância nenhuma. Então essa liberdade é algo muito interessante, que deve ser ressaltado. Eu não imagino o que é que seja se viver, hoje, dentro de uma circunstância de um apartamento, tendo como opções televisão, internet, essas coisas. Houve um empobrecimento muito grande.
P – E Juiz de Fora mudou bastante assim, hoje em dia não é o que era na sua época? Como que ela era a cidade? Conta um pouco pra gente.
R – A cidade era muito interessante. Inclusive, contraditoriamente, é o lugar da onde saiu aquela coisa cafona, daquele Mourão Filho, para fazer as primeiras instalações, fazer não sei o que. Colocou todo o sistema de telefonia. Vai com - isso um pouco posteriormente - o Exército para o Rio, etc e tal, e dá início à revolução de 64. Mas ao mesmo tempo, Juiz de Fora, como tinha uma intelectualidade mais possante e muito jornalistas que depois fizeram carreira no Rio e São Paulo, tipo Fernando Gabeira, por exemplo, e vários outros caras, e vários políticos de representação também, era o grande reduto de oposição à revolução de 64. Então tinha essa coisa de uma certa intelectualidade. E uma intelectualidade um pouco mais de vanguarda. E uma intelectualidade de vanguarda, de resistência a algo muito sério e grave que estava acontecendo, que era a revolução de 64.
Então, com isso, Juiz de Fora teve oportunidades fantásticas. Por exemplo, você tinha um festival de cinema, pela proximidade com o Rio também, elemento facilitador, e você tinha lá a turma toda do Cinema Novo. Então você andava na rua e estava lá aquele povo todo. E a noite num bar todo mundo encontrava e batia papo. Então o cara discutia uma teoria de cinema, ou uma idéia qualquer do lugar que tinha não sei que, feito não sei quanto, discutia na mesa com você ou com um amigo seu que estava presente. Então essa informação era transmitida assim. Era legal você conhecer uma série de gente, que eu não vou citar ninguém aqui porque você sempre incorre na falha de memória, um festival de teatro interessantíssimo. Festival de música. A turma toda estava lá. Então Juiz de Fora é esse universo de oportunidades. E quando eu mudo aqui para Belo Horizonte, sinceramente, houve uma certa queda. Porque Belo Horizonte, embora capital, ela não tinha essa movimentação em função da proximidade de Juiz de Fora com o Rio de Janeiro, que a cidade lá tinha. Número de livrarias, lançamentos. Inclusive, o que me influenciou muito em capas de livros foram livrarias em Juiz de Fora.
P – Conta um pouquinho então do cinema, se for possível, conta o que vocês viam? Quando vocês viam? Como é que era essa parte?
R – No cinema nós assistimos todo o neo-realismo italiano. Assistimos toda a nouvelle vague, toda. Toda a pré-nouvelle vague. Todo o pré-neo-realismo, o cinema americano de qualidade. Não é esse cinemão que está aí com essa coisa de Oscar. Cinema de qualidade. Aulas de cinema. A questão do cinema russo, por exemplo. Filmes como Napoleon, do Abel Gance, é um filme preto e branco, 1900 e começo. Um filme fantástico. A gente descobria. Chegava um cara, muitas vezes o Viany, que era um crítico de cinema do Jornal do Brasil, fundamental na época. Ia à Juiz de Fora e batia papo com a gente, discutindo com a meninada sobre Godard, sobre isso, sobre aquilo. Então a gente assistia um filme deste, Napoleon, por exemplo, do Abel Gance, e tinha sempre um jornalista, alguém, um cara que era expert em cinema ou algum cara de fora que sentava e começava a conversar, explicar detalhes desse filme. E, às vezes, até projetando de novo alguns pedaços. Então você tinha uma aula de fotografia de cinema, você tinha uma aula de dinâmica de cinema, de movimento. Você tinha uma aula de teatro. Você tinha uma aula de iluminação. Você tinha uma aula de dramaturgia. E você tinha uma aula de ética. Então foram coisas fundamentais. O cinema a gente assistiu tudo. E inventaram em Juiz de Fora uma grande jogada, um cinema pequenininho para trezentos, quatrocentos lugares, era um cinema que chamava Cinema de Arte. Então a população da cidade da época - posso errar em alguma coisa aqui - era quatrocentos mil habitantes, um negócio assim. Passaram para a distribuidora cinematográfica, passaram, deram a informação de que Juiz de Fora tinha 650 mil habitantes. Então justificava trazer alguns outros filmes, etc. Então o Godard foi todo visto lá. Passado e comentado para você poder depreender detalhes. Então você sabia quem era o fotógrafo do Godard naquele filme. Se tinha sido feito com uma dezesseis milímetros, ou com uma 35, ue filme que era. Era bárbaro. Você realmente adquiria, mesmo que você não se interessasse, não fosse a tua área. Eu prestei mais atenção nesses detalhes por causa de fotografia, porque depois eu começo a fotografar. Mas qualquer um, detalhes que eu não percebi sobre uma dança, sobre um movimento corporal, etc, outras pessoas mais vocacionadas para isso pegaram e constituíram o seu mundo em cima disso. Então experiência fantástica mesmo de formação de recursos humanos. E é um privilégio que eu tive, eu e muita gente aí. E muitas outras cidades também que havia, tipo Cataguazes, o próprio Rio de Janeiro, aqui em Belo Horizonte, muita coisa, São Paulo nem se fala. Mas eu acho que são oportunidades que deveriam ser estendidas ao Brasil, porque isso é que é educação. Educação, cultura. É isso é que é. Não é b, a, bá. Aprender a ler. Isso é só o início. Então eu acho que foi fundamental. Tudo que eu fiz depois é culpa disso aí, da minha mente doentia e neurótica. Culpa do Godard e do Alex Viany.
P – Cláudio, conta um pouquinho então do começo de ir para a escola, de aprender a ler. Ou você aprende a ler antes? Como é que é esse processo?
R – Ah, eu acho que eu aprendi um pouco antes. As mães ensinavam. Agora, fazer contas eu aprendi antes. Quer dizer, tentaram me ensinar antes, mas não teve jeito porque eu somava tudo errado. Ao invés de somar de cima para baixo, eu somava na horizontal, e a experiência de escola foi assim extremamente traumatizante. Esses primeiros dias? Eu lembro que eu chorei adoidado, horror ir para um lugar que não tinha nada, que era muito familiar. Isso assim no chamado, que chamam hoje de pré-primário, que na época era infantil. Mas foi um horror. E depois também eu confesso que a própria experiência de escola, embora muito interessante sob diversos aspectos, coisa de Português, História, um pouquinho de Geografia, etc e tal. Mas eu diria que a questão básica que quando você começa a aprender coisas, e coisas que eu acho que nunca tive facilidade para isso, tipo Matemática, uma Geografia mais pesada, Ciências, é um negócio meio traumatizante mesmo. Meio chato. Aquilo tem que descer na base da porrada. O Gaiarsa, o psicólogo, estava até dizendo outro dia que o professor tem que ser um palhaço. Ele tem que divertir, tem que arrumar uma outra forma. Porque o negócio de você enfiar na cabeça do cara é uma violência mesmo. Então eu lembro muito agradecido a determinadas professoras. Gostavam de mim, eu gostava muito delas. Ambientes de escolas incríveis. Podia brincar, podia tudo. Mas não é uma coisa que eu diria que é ótimo, maravilhoso, aprendi muito. Porque eu acho que quem estiver falando isso está mentindo, porque é danado.
P – Você lembra dos primeiros livros, primeiras leituras que chegam até você? Ou se alguém te lia contos ou leituras antes? Alguém te passava isso? Antes de você aprender a ler já te liam?
R – Olha, a minha família não era muito chegada em livros, não. Ela é a família brasileira de hoje. Quer dizer, ninguém está muito a fim disso. Nosso índice de leitura anual é terrível. Você sabe disso. Então eles não eram muito chegados à questão do livro. Exatamente pela falta de informação, falta de dinheiro, inclusive, e falta de oportunidade. Porque a literatura que a gente tinha, um pouco antes s de eu nascer era uma literatura de base portuguesa e muito acadêmica. Uma literatura infantil muito acadêmica, muito chata, cheia de regrinhas. O que é que pode, o que não pode. Um negócio meio carola, meio estranho. É Monteiro Lobato, e aí eu estou vivo, ainda bem, porque começa uma explosão. Um cara nacionalista ao extremo. Um cara inteligentíssimo. Um sujeito que cria os jornais, cria revistas, etc. A Petrobras foi criada e um pouco inspirada nele. E cria uma literatura fantástica, porque era uma literatura brasileira por excelência, com fenômenos, ocorrências, histórias e referências brasileiras ali. Então eu começo a ler Monteiro Lobato, eu e toda a geração que veio um pouco antes, a geração que veio um tanto depois. E todo mundo. Foi algo fundamental. A gente deve muito a Monteiro Lobato. E aí eu comecei esse processo de começar a ler ele, se deu na escola. Não veio de casa e não veio de nenhum parente, de ninguém, de nenhum amigo próximo. Ele veio da escola. A escola é fundamental nisso. E a partir daí eu comecei a ler outras coisas. Aí vem gibi, vem livro policial, que eu li igual um louco. Um atrás do outro. Adorava aquilo. E vai por aí.
P – E aí você conta, livraria, você citou aqui, a livraria importante em Juiz de Fora. Ela entra em que época, nessa época de adolescência? Ela entra numa época...
R – Eu começo a ler essas coisas todas, livros policiais, gibis, isso na faixa de dez, onze, doze, treze, quatorze. Quando chega aí dezesseis, dezessete anos eu sou apresentado à literatura, que a gente pode chamar de literatura. Porque até então a gente lia algumas coisas tipo, Olavo Bilac, Casimiro de Abreu. Sabe esses negócios? Muita coisa que a escola nesse momento deixa de ser um indutor de, não vou dizer de literatura, mas de livros específicos. Aí eu fui caçar outras coisas. E aí eu descubro a Literatura, que eu estou chamando de literatura maiúscula, que é a Literatura que sempre me interessou. Um dos pontos que eu acho muito legal é que a gente ia olhar o Índex Prohibitorum, que é lançado pelo Vaticano proibindo determinados filmes e determinados livros. Eles proibiam tanto que o Ulisses, do James Joyce, entrou. Os filmes do Godard todos, etc. Acho que até a Bíblia entrou naquilo, um horror. E aí a gente pra assistir algum filme ou pra ler algum livro, a gente ia olhar lá. Porque - só fazendo um parênteses - uma coisa interessante em Juiz de Fora é que você tinha lá também em algumas instituições, uma oferta de uma literatura legal, em termos de jornais e revistas. O Brasil-Estados Unidos, por exemplo, que é um curso de Inglês, eles recebiam lá as revistas americanas na semana seguinte. Passava uma semana de lançamento nos Estados Unidos elas já estavam lá. Então era um negócio legal. Você lia sobre jazz, por exemplo, o disco que saiu. Chegava lá em quinze dias, a revista já estava até antes com todas as críticas. Então é um negócio que os músicos podiam usufruir disso. Era fantástico. Desde que alguém traduzisse do inglês para eles, porque a gente não sabia. Bom, mas então a gente lia o Índex Prohibitorum para descobrir o que é que era legal de ler. Aí vieram os Henry Miller, claro. E uma série de outras coisas que começaram a me influenciar.
E livraria, especificamente em Juiz de Fora, tinha várias. Mas tinha uma mais, digamos, de maior porte, que ela recebia os livros da Editora Civilização Brasileira, que era do Ênio Silveira. Recebia aquilo toda semana. E o Ênio era um cara que enquanto outras editoras tinham facilidade de importação de papel, de publicação, uma censura mais ou menos, tinha uma série depois de facilidades por conta do corpo pensante ou não pensante da ditadura, a Civilização Brasileira - entre outras - sofria exatamente do contrário. Tudo para ela era mais difícil. Então o Ênio Silveira contra tudo e contra todos, ou melhor dizendo, a favor de tudo e a favor de todos; contra a ditadura, ele lançava alguma coisa em torno de cinco livros por semana. E eram livros pesados. Então você vai ler Otto Maria Carpeaux, você vai ler o livro sobre Buñuel. E entre eles Carlos Heitor Cony, por exemplo, que foi o cara que mais me pegou, eu achei aquilo tudo fantástico. Aquela limpeza, aquela facilidade. Um negócio moderno. Eu que estava saindo um pouco dos Olavo Bilac, Casimiro de Abreu, e aquilo foi fantástico. E continua fantástico até hoje. Mas na época o impacto foi muito grande. Eu li aquilo tudo. E essa livraria tinha esse esquema legal porque ela recebia esses livros e eu pude entrar em contato com os livros. Porque não tinha muita grana pra comprar, mas alguém sempre comprava. A gente trocava, emprestava um para o outro. Mas eu tomei contato com um negócio que é determinante para mim, que era a capa de livro. O capista da Editora Civilização Brasileira era o Eugênio Hirsch, que é um argentino que depois eu cheguei até a conhecer. Foi o melhor capista que o Brasil já teve. O Brasil tem essas coisas: o melhor capista, é o Eugênio Hirsch, que é argentino. Os nossos melhores pintores é o Constantin Cristophe, que é um cara fantástico e é búlgaro, mora em Montes Claros, mas é búlgaro. E o Eugênio Hirsch era um capista fantástico, moderno. Tinha um design incrível, uma coisa gráfica legal. Ele nunca foi igualado. Nunca, nunca. E vendo aquilo, cinco capas toda semana novas chegando do Eugênio, e ele raramente falhava em alguma coisa, era sempre legal, sempre com qualidade, eu comecei a achar legal essa história de capa de livro. E comecei a prestar mais atenção nas capas de livro do que nos livros.
Quando eu mudo para cá em 1971, já é um pouco mais adiante, eu procuro uma editora grande que tem aqui, que é a Editora Itatiaia, chamava na época. Cujo editor dono era amigo do Eugênio. E eu então cheguei para ele e falei: "Eu quero fazer capa de livro." porque eu queria imitar o Eugênio Hirsch. E até hoje eu tento e nunca consegui. O Eugênio é fantástico. E foi assim que eu comecei a fazer capas de livro. E eu já trabalhei em quinhentas outras coisas, mas a capa de livro é um negócio que sempre me acompanhou. E nunca igualei. Cheguei até a fazer a capa do Ulisses, que é um grande lance do Eugênio Hirsch. Foi pedido do Ênio Silveira, o editor, mas eu lhe digo que eu só fiz porque eu fiz uma capa ilustrada, com ilustração. Porque o Eugênio fez uma capa gráfica. A capa gráfica é aquela capa que a gente chama, para quem não sabe, que é apenas assim: cores e letras, e tipologia. Mas como ia entrar ilustração, e a do Eugênio não tinha, eu me meti a fazer uma com ilustração. Se não eu não faria, porque eu jamais ia entrar, pular por cima do Eugênio Hirsch. Um cara que eu adorava.
P – Você falou, logo no comecinho da entrevista, que você não desenhava bem, mas tinha um apreço por isso?
R – Tinha, tinha. Tinha um grande interesse. Eu vivia desenhando, rabiscando. Igual todo menino. Eu quero dizer que não era algo assim, que tivesse um desenho de alguém dizer assim: "Olha, ele vai ser um dia um grande pintor, um grande desenhista." Não, isso não havia. Ninguém fez essa leitura em escola nenhuma, parente nenhum, nada. Tudo normal. O que eu acho muito bom. As oportunidades são iguais mesmo. É claro que existem facilidades para aprender mais rápido. Existem facilidades para lidar com a coisa. Mas eu não acredito que o indivíduo nasça assim, e que tenha aquilo, e que vá ser um artista. A vida é muito louca, não é essa predestinação. Queria porque eu queria. Vi a capa de livro falei: "Vou fazer esse negócio. E começo a fazer sem saber o que eu estava fazendo. Já vou lhe adiantando, dando um pulo imenso nessa história toda, que hoje, com sessenta anos é que eu estou começando a ter algum controle. Eu estou começando a saber o que é que eu estou fazendo em termos de desenho, já tenho juízo daquilo, porque até então eu era um negócio muito instintivo de mandar ver. Continuo instintivo, mas hoje é que tenho um certo controle maior daquilo.
P – Queria que você contasse um pouquinho assim, se o sonho não fosse esse, ninguém fez essa leitura que você ia ser um desenhista, você tinha algum sonho de infância: "Quero ser aquilo, quero ser aquilo outro?" antes da coisa da capa?
R – A gente queria ser coisas que a gente achava fantásticas, que estavam longe da gente. Queria ser aviador. Estava longe. Aquilo era chiquérrimo. Hoje nem tanto. Quer dizer, os problemas da aviação civil são gravíssimos. Acho que ninguém quer ser, mas, na época, a gente queria. Era um negócio legal. Você ser médico também. A gente nunca lembrava que tinha senhoras de idade que a gente teria de atender. A gente só pensava nas mocinhas, lógico. E coisas assim. Mas não havia nada que eu me apegasse que queria ser.
P – E aí você está com, por volta de dezesseis anos quando a ditadura entra. E aí você sente, lá em Juiz de Fora, todo esse rebuliço político forte. Como é que é esse momento para você lá?
R – Havia uma turma um pouco mais adiante que participava dos movimentos estudantis. E eu tive um problema também, é bom colocar isso, eu tive um problema de calcificação no calcanhar. E com isso eu fiquei dois anos, mais até, uns quatro anos quase, com problemas muito sérios. Chegou ao ponto de eu não poder andar direito. Tive que fazer biópsias. Então eu tive que perder ano, começar tudo de novo no outro ano. No final do ano outra biópsia, perdi outro ano. Então eu fui ficando um pouco atrasado nesse negócio de escola. Então tinha uma turma que estava mais adiante que participava de movimentos estudantis, etc. Já havia uma liderança estudantil política importante, significativa, junto com esses intelectuais, jornalistas que trabalhavam no Rio, mas que estava sempre em Juiz de Fora. Então isso formava um quadro bem consciente do que é que ia rolando. Era o grande momento do O Pasquim. Senhor jornal, fundamental para isso tudo. Outros jornais de opinião. Outros até que se formavam dentro de Juiz de Fora mesmo, durava três números e acabava. E vai por aí. Então era algo interessante. Intelectualmente era algo muito interessante.
P – E aí quando acaba o colegial, você vem para BH? Como é que é essa decisão? Conta esse momento de, o que pensa o que vai fazer. Como é que você decide isso?
R – Houve um determinado momento de fazer essas escolhas. Quer dizer: "O que é que eu vou estudar?" É nesse momento que os grandes cursos eram Engenharia e Medicina. O cara que fazia Odontologia é porque ele era um médico que seria medíocre. E o cara que fazia um curso técnico de qualquer coisa relacionada a Engenharia, de Eletricidade ou de Construção, etc, é porque ele não tinha talento para a tal da Engenharia. Os advogados também representavam, não era bem aquele negócio. Porque o grande negócio na cidade era Medicina ou Engenharia. E eu lembro que um amigo meu foi o primeiro a entrar num curso de Serviço Social. Acho que eles estão chamando ele de boiola até hoje, uma coisa terrível. Então você não tinha muitas oportunidades. Havia um negócio fantástico que chamava Arquitetura. Todo mundo queria fazer Arquitetura porque era uma outra via, outro negócio. E havia dentro desse universo da Arquitetura algo mais sutil e mais complicado que é o tal do Design, aí eu quis fazer esse negócio. E havia oportunidade do Rio, mas havia também a oportunidade de Belo Horizonte que a gente tinha aqui uma escola de desenho industrial, temos ainda, e aqui, como havia uma facilidade maior, em função de parentes, eu me senti mais seguro. Enfim, eu venho aqui para Belo Horizonte para estudar Desenho Industrial. Isso em 1971.
P – E era o primeiro momento que você saiu de casa mesmo, ficar longe da mãe, da avó da _____.
R – Apesar de que para quem teve chave de casa com nove anos de idade eu já era bem libertário. E a gente estava sempre no Rio, muito próximo. Então você ia sempre ao Rio, sempre viajava por ali, conhecia outras coisas. Então eu tinha um trânsito razoável. Mas é sem dúvida alguma... Quando eu saio de casa, me desligo dessas coisas todas e vou estudar um outro negócio, um outro patamar, um pouco fora de colégio de formação religiosa, onde eu estudava até então.
P – Aí você vem morar onde em Belo Horizonte?
R – Eu vim morar na casa de alguns parentes. E depois me mudei, depois casei. O que foi um curso interessante, um curso de quatro anos, onde a gente tinha uma visão geral. Agora, a questão é que o Design, naquela época, não era conhecido, você tinha que explicar o que você fazia. E hoje, por contradição, também deixou de ser conhecido. Você tem que explicar o que você faz. Tem uma porção de design aí, está cheio de design. Nossa, são todos design. Então você tem que explicar que você faz design, que é outra coisa. Mas enfim, foi legal. Aí você entra em fotografia, aprimora isso, melhora isso. Questão de desenho, de perspectiva, de coisas mais técnicas. E desenho de produto, questões de ergonomia, não sei o quê... Começa a sofisticar. É nesse primeiro ano que eu mudo para cá, em 71, que começaram as capas de livro, que eu procurei o editor e comecei a trabalhar.
P – Aí você começa a trabalhar, você lembra da primeira capa? Você lembra ____
R – Lembro, lembro, lembro sim. Chamava-se: Tal Dia é o Batizado. Não sei que de Alencar, que era o autor. E a segunda capa foi: O Jornal de Serra Verde, é uma pessoa de Cataguazes, não me lembro o autor. E a partir daí foi.
P – Queria que você só voltasse um minutinho. Quando você fala em fotografia, enfim, dessa influência do curso, o rumo que você seguiu do curso, e isso foi mais ou menos assim: as escolhas foram variadas? Você conseguiu, você foi já determinado a pensar em fazer alguma coisa? Como é que foi esse curso mesmo, essa coisa, "Daqui pra frente vai ser capa que eu vou fazer?" ou então: "Vou pensar outras coisas." Como é que foi?
R – É, o Design, naquele momento, se bifurcava em Design de Produto. Você tem as geladeiras, automóveis, eletrodomésticos, mobiliário, etc. E você tinha Programação Visual, que é o chamado desenho bidimensional, os projetos gráficos, a programação gráfica. Hoje a coisa já se complicou um pouco. Você tem Design de Software, de Moda, não sei que. Mas na época era isso. E eu entrei na área da Programação Visual, o que tinha que ser. Todo o design de produto ele já vinha de fora pronto, não havia muito o que fazer. Exceto na indústria de mobiliário, onde hoje, inclusive, é a grande saída do design de produto. São várias empresas nacionais que fabricam móveis, é um mercado bem legal. Mas na época era Projeto Gráfico, Programação Visual. E dentro da Programação Visual, que abrangia muitas coisas, meu interesse maior era livro, Programação Gráfica, por causa das capas.
P – Está acontecendo esse boom da literatura infanto-juvenil. Você tinha conhecimento disso? Como é que chegava isso em Belo Horizonte? Ou você não tinha...
R – É, a literatura infantil, mais ou menos, talvez um pouco depois, ela começa a aparecer aqui em Belo Horizonte através da primeira editora. Começa a abrir essa porta. Os primeiros ilustradores, a Ana Raquel, grande ilustradora. Ela começa aí. Mas eu não tive uma relação imediata com a questão da ilustração infantil, não. O que aconteceu é que eu comecei a fazer uma linha de capas de uma coleção chamada Reconquista do Brasil. Uma coleção de mais ou menos uns 250 livros, que era uma coleção de brasilianistas. Saint-Hilaire, Richard Burton, não sei quem, que vieram ao Brasil. E depois outros brasileiros também, essa coleção foi crescendo. E a vertente que eu escolhi na época era fazer a série toda com bicho brasileiro. Então nessa história de bicho brasileiro é que começa a aparecer o meu desenho infantil.
A capa de livro tem outra peculiaridade também, hoje você está fazendo livro de Matemática e amanhã você está fazendo um romance histórico. Amanhã você vai estar fazendo Ulisses. Depois você está fazendo Henry Miller, Steinbeck, um livrinho de uma professora lá de Muriaé que escreveu e está editando. Então você tem que fazer de tudo. Medicina Legal… Um dia que eu fui dar uma olhada num livro pra ver o que é que eu tinha que desenhar e eu quase desmaiei. Um horror. Eu levei aquilo a sério. Então você é obrigado a ter vários recursos de traço. Traço que a gente fala é o tipo de desenho. Você é obrigado a se virar com tudo. Colagem, caneta, lápis de cor, guache. Misturar tudo. E formas de desenho também. E aí começou a sobressair a coisa da literatura, do desenho tipo de literatura infantil.
P – Então você estava falando quando começam a aparecer os desenhos infantis nas capas.
R – Essa Reconquista do Brasil é uma série de livros de brasilianistas, conforme eu estava dizendo. Então eu sempre comecei a usar bichos. Bichos brasileiros e elementos brasileiros, mas principalmente bichos, fundamentalmente. Esse tipo de coisa. Ganhei até um elogio ao contrário, do Carlos Drummond de Andrade, que eu achei ótimo. Ele virou para o editor e falou assim: "Escuta ô, Pedro Paulo, deixa eu te falar uma coisa: uma série importante dessa, chamada Reconquista do Brasil, que trata só da trajetória brasileira, cheio de bichinho umas coisas assim? Esse negócio está meio..." Então eu achei ótimo, porque era uma opinião legal, interessante, bem humorada. E por outro lado a gente tem que ser melhor em tudo, então até para ser o pior: eu fui o melhor dos piores mesmo. Foi ótimo.
Mas aí que eu já começo a delinear um pouco da ilustração infantil, que é culpa, digamos assim, em última instância, da minha baixa idade mental. Foi o que eu dei mais certo para fazer até hoje, que é literatura infantil. Agora, eu queria só dar um pequeno detalhe aqui que eu acho legal que é o seguinte: muitas capas que eu fiz eu nunca li o livro. Por quê? Porque era a história dos não sei dos quantos dos imigrantes que passaram não sei quê… E aí são trezentas páginas. Então não importa tanto aquele detalhe se você tem que fazer uma síntese. Então você se apóia onde? Na orelha do livro ou num prefácio. E, às vezes, você erra por conta disso. Foi o caso de um, depois que eu havia desenhado um monte de bichos, antas, papagaios, araras, periquito, o diabo a quatro, eu vi que nunca tinha desenhado macaco. Então eu treinei macaco, ensaiei macaco, estudei como é que desenha um macaco. E na sequência o editor me deu esse livro aqui: Dez Anos no Brasil. Eu olhei, falei: "Macaco. Está na hora do macaco. Macaco na cabeça." e mandei ver. E o macaco é esverdeado. Isso foi em 75 mais ou menos, 74. Quando ele olhou ele botou a mão na cabeça, porque esse é o único livro de toda a coleção que trata da vida militar no Brasil. Eu tive que fazer um gorila, orangotango, que era a forma que a gente chamava os militares. Então um horror.
Tem uma outra capa que é movimento da Independência, e teve uma outra história ótima que havia uma série que era Dom Pedro I e sua Época. Volume 1, tomo 1, tomo 2, tomo 3. Volume 2, tomo 1, tomo 2. Dom Pedro II e sua Época. Volume 1, tomo 1, tomo 2. Volume 2, tomo 1, tomo 2, tomo 3. Volume 3, tomo 1, tomo 2, tomo 3. Eu me lembro que como era uma repetição, e esses tomo 1, tomo 2 e volume 1, volume 2 entrariam como subtítulos, eu fiz um desenho base e lá na gráfica que ficaram de montar, o cara que fazia o fotolito, que são os filmes que se usava antigamente, seleção de cores. O rapaz é que ia colocar o volume 1, volume 2, tomo 1, tomo 2, etc. Eu fiz apenas o desenho título: Dom Pedro I e sua Época; Dom Pedro II e sua Época. Tudo bem. O rapaz trocou, o cara trabalhando de madrugada e ele enrolado com aquilo, coitado. Sozinho dentro da gráfica. Ele está fazendo: Dom Pedro I e sua época, tomo 1, volume 1, volume 2, e ele começou a tomar um goró lá. Cara, no dia seguinte de manhã nós tínhamos. Dom Pedro I e sua Época, volume 1, tomo 1, tomo 2, tomo tal. Dom Pedro II e sua Época, volume 1, tomo 1, tomo 2. Dom Pedro II, volume 2, tomo 2. Dom Pedro III e sua Época, tomo 1... Criou um imperador, é um negócio incrível.
O editor me dá os Índios Cinta Larga no Norte do Brasil, não sei quê no Norte de Minas, o Tupi Guarani e o não sei dos quantos, os Índios Caiapó que não sei quê, Só índio. Outra índio. Outra índio. Outra índio. Ele me deu uma de Guerra dos Emboabas, eu: "Índio." Botou a mão na cabeça e falou: "Sua mula, isso aqui não é." eu fazia, às vezes, as capas, pegava o título de manhã e entregava à tarde para ter uma grana para ir para a escola de ônibus, se não eu tinha que ir a pé. Isso aqui em Belo Horizonte. Então era um esquema legal. Não dá dinheiro, não, mas é divertido.
P – Uma pergunta aqui: você comentou que usa várias técnicas, vários estilos. Você tem que se adaptar. E como ficava na sua cabeça o seu traço, o seu próprio traço ______ poder criar. Como é que ficava isso na sua cabeça? Ainda mais uma pessoa nova, estou começando agora, como você...?
R – Não, isso não havia muito problema, não. Porque esses traços eles são recursos técnicos e que você lança mão ali na hora para resolver um problema. Na verdade, por trás de todas essas técnicas, esses traços tem algo que é, eu não vou chamar de inconfundível não, porque é até prepotente, mas que marca a tua mão, fica marcada ali. São recursos que você tem porque numa capa de um romance histórico, por exemplo, você tem que fazer uma coisa com determinado recurso de tintas e de aquarelas, etc. Um desenho que tenha perspectiva. Mas todos esses têm uma semelhança. Quer dizer, pode até não ter, mas algumas pessoas dizem que tem. A gente vê o desenho seu e sabe que foi você que fez. Eu falo: "Puxa vida, que chato. Tá todo mundo me vendo aí." Mas enfim, é isso. Então por trás desses traços você mantém uma certa identidade.
P – Antes da gente continuar, eu queria voltar, você comentou uma coisa lá da infância, do escotismo. Só para a gente não perder esse _____
R – Ah, o escotismo, pois é, rapaz. Esse é um negócio muito louco. Todo menino, na época, era um pouco fascinado por ser escoteiro. As meninas iam ser bandeirantes e os meninos iam ser escoteiros. E isso foi, eu considero hoje, um desvio de conduta da minha parte, mas era um uniforme legal, todo cáqui. Você tinha um cinto fantástico que fechava fazendo clack. Você tinha um chapéu de feltro grosso. Você tinha a faca, com cabo de osso. Uma porção de canivetes, botas, etc. Meia comprida. Eu achava legal. E entrei num grupo de escoteiros num bairro até mais sofisticado, meio de elite. E acontece que aquilo era um pouco a ilusão também, porque, na verdade, a grana era muito rara. Então não havia como comprar aquela roupa que era um negócio muito caro. A gente tinha dificuldade de sobrevivência e tal. E então houve uma decisão interna lá, num determinado momento, que aqueles meninos que não tinham arrumado o uniforme, que estavam enrolados, iam dar linha para eles, e me deram linha. E não houve mágoa, não. Mas isso foi um dos primeiros momentos em que você começa a perceber a injustiça no mundo, porque as coisas não deviam ser bem assim. Era um bairro elitista, tá certo, tudo bem, mas o mundo não devia ser esse. Você começa a perceber que há um profundo erro de desenho. Há um mundo muito mal desenhado. É nesse momento que eu percebo. Sem mágoa, sem grilo, etc. Que, aliás, o design serve para isso. A gente está tentando mudar o mundo. Está desenhando uma cadeira, não sei quê, mas é aquilo que apareceu agora, amanhã é outro, depois é outro. E nós todos juntos estamos tentando redesenhar o mundo: os designs e os arquitetos, que é diferente da engenharia.
Bom, eu sou expulso, falaram que eu não precisava voltar na semana seguinte. Mas acontece que isso me deu uma abertura - e eu tenho profundo agradecimento pelo grupo de escoteiros, eu quero aproveitar aqui e deixar isso público - é que um pouco depois eu fiquei conhecendo algo fantástico, que era o Baden Powell. Foi o cara que eu descobri como um cara fantástico. O pai dele, pai do Baden, compositor, claro. O pai do Baden gostava muito de escotismo e botou o nome no filho do Baden Powell. E eu olho lá: "Baden Powell", o que é isso? Me erudito, e vejo aquele cara fantástico.
Mais tarde, um pouco mais tarde inclusive, eu fui à casa do Di Cavalcanti, junto com um grupo de amigos. A gente foi ao Rio e tal, e fomos lá pra bater papo com ele. A gente não sabia se ia na casa do Glauber Rocha pedir cartaz de cinema, ou ir na casa do Di Cavalcanti. Ainda bem que nós fomos na do Di Cavalcanti, porque senão a gente ia estar preso na do Glauber até hoje, cheio de tudo na cabeça. Muito bem. E muito engraçado porque um pouco depois, um tanto depois, o Di Cavalcanti morreu e o Glauber Rocha correu para o Museu de Arte Moderna no Rio, onde o corpo estava sendo velado e fez um curta-metragem que foi premiado em Veneza, inclusive. Mas muito bem, só para falar da coincidência. Fomos na casa do Di Cavalcanti, o Di Cavalcanti recebeu a gente muito bem. Era um grupo, tinha umas meninas, uns caras, pessoal de São Paulo. Ele recebeu tudo muito bem, começou a contar. Ele estava começando a namorar a Marina Montini, que era uma mulata fantástica que vinha de um grupo que era o grupo da Rhodia, que era o Brazilien Style e Brazilian Look que estavam desfilando no exterior. No momento que a moda brasileira começa a estourar junto com Sérgio Mendes, a Bossa Nova estava arrebentando lá fora. Muito bem. E o Di Cavalcanti começa a falar, que morava em Paris seis meses. E lá em Paris ele ia com o Múcio Leão que era embaixador… E contando histórias da vida até que ele falou: "Ah, inclusive eu estou sempre com o Vinicius de Moraes..." No que ele falou "com o Vinicius de Moraes" a primeira coisa que eu perguntei foi: "E o Baden?", porque eu queria saber. Ocorre que o Di Cavalcanti o tempo todo estava dizendo que, para ele, o que interessava era o surrealismo, que era o grande negócio. Surrealismo, que o instinto, o instinto, a pintura, que Salvador Dali, porque o Fulano... O surrealismo, o instinto, o instinto… O inconsciente, a questão do instinto que você joga. "Eu pinto, mas na verdade, eu queria ser surrealista. Porque o instinto, o instinto." E quando eu perguntei sobre o Baden mais adiante ele falou: "Ah, não sei não. O Baden é um cara que eu acordo cedo em Paris, corro os museus e o Baden está lá em Paris. Ele acorda dez e meia da manhã. Não tem jeito. O Baden é assim, ele é muito instintivo." Eu falei: "Pronto, é isso que eu quero ser." E aí que eu começo a seguir o Baden. Comecei a ver Baden, seguir Baden, não sei quê, sem tocar violão. Mas simplesmente pelo instinto, porque é o cara que, pra mim, era o cara que fazia, acontecia. E tinha o negócio de uma criação extraordinária. E o Di Cavalcanti falando tanto do instinto, negou o Baden que era o mais puro instinto fantástico. Quando eu fui mandado embora do escotismo, eu ouvi o primeiro disco do Baden. Fiquei fascinado com aquilo. E aí me tornei escoteiro do Baden. Foi muito melhor. Então agradeço muito terem me mandado embora.
P – A outra pergunta dessas curiosas, de histórias boas talvez essa um pouco menos, mas é que falando de capa de livro você contou um pouco da história do Guinness, Livro dos Recordes...
R – Em 1992, que aliás foi o ano em que eu parei de trabalhar nas áreas institucionais, larguei tudo, empresa, larguei tudo e comecei a trabalhar só com literatura infantil. E em 92 eu inteirei mil capas de livro. E um jornal daqui de Belo Horizonte fez uma matéria. E, por sugestão de um amigo meu, eu mandei esse jornal, mandei o material, mandei um depoimento, mandei catálogo de editoras com todos os livros assinalados que eu tinha feito para o Guinness. Sugestão de um amigo para tentar alguma coisa. Afinal de contas, mil capas de livro eu acho, eu tenho quase certeza, que é um recorde quase internacional. Não tem quem fez isso. Principalmente que eu fiz um monte de porcaria também que entram na conta, não quero nem saber. Muita coisa para poder pegar de manhã, receber o dinheiro para ir para a escola no dia seguinte. A resposta que eu tive do Guinness, de uma moça de lá é que: "Infelizmente o Guinness não tinha essa categoria." eu falei: "Uma questão de categoria?" Fiquei pensando: "Se eu tivesse tomado em questão de cinco minutos dez latinhas de cerveja Guinness, que por sinal é bem forte, eu teria entrado para o Livro do Recorde?" Então não tiveram essa categoria. Infelizmente não pude nem concorrer. Queria até saber se alguém tinha mais aí, seria interessante. Mas também não quero mais, eu prefiro a Guinness.
P – Ah, também. Voltando à literatura. Quando você entra, qual o primeiro livro infanto-juvenil? Quando começa? Quem te chama? Conta um pouco disso aí pra gente.
R – Eu fiz alguma coisa de literatura infantil ilustrando livro de outros autores, e começo a fazer alguma coisa mais assim capa. Havia uma coleção que eram vários ilustradores e eu fiz alguma coisa pra ela. Agora, o primeiro livro infantil que eu ilustrei chama-se: Galo de Briga, de Paz. É da Editora Paulinas. Isso foi em 1980 e qualquer coisa. 82, 83, me parece, não me lembro. Então esse foi o primeiro livro infantil que eu ilustrei de cabo a rabo. E aí eu comecei a ilustrar. Entrei na área de literatura infantil para valer.
Esse livro foi ilustrado para a Paulinas, São Paulo, e aí ele sai, você mostra pra outros, etc. Em Belo Horizonte você estava começando um movimento editorial infantil já significativo. Outras editoras de São Paulo me chamaram. Aí você vai, faz um, dois, três, e aí você começa.
P – Saí da capa de livro para uma ilustração, quer dizer, vai ilustrar um texto, vai botar imagem num texto. Você entra mais no desenho, você vai pesquisar, como é que vai, como é que é esse processo?
R – Não é um rito de passagem assim. Não é nada extraordinário, não. É como se você pegasse uma capa de livro e fosse ilustrar uma sequência de acontecimentos relativos àquele título, aquela história que está ali anunciada. Você define um personagem, alguma coisa e você vai dar uma continuidade àquilo. É uma sequência. Ao invés de uma imagem única é uma sequência. E não há, sinceramente eu não percebi, não há nada que eu possa falar de diferente nisso, não. O que eu posso dizer, que eu acho que tem uma diferença que é significativa é que quando chega 92 e eu escrevo o meu primeiro texto. Então eu começo a ilustrar os meus livros. Até os meus eles deixaram eu ilustrar, você imagina. Aí se cria uma diferença. Porque enquanto você vai ilustrar o livro da cabeça de alguém, alguém que escreveu é uma coisa. Quer dizer, é muito interessante você tentar julgar, ler o que é que o cara pensou. Tentar decifrar um pouco a cabeça dele. E, ao mesmo tempo, decifrar lá na frente, no futuro... O que é que foi a cabeça dele escrevendo no passado. E decifrar lá no futuro o que é que vai ser a cabeça da criança lendo. Então você tem que fazer essa jogada. E nunca, nunca, nunca mesmo, isso aí é óbvio - óbvio para quem está na área da Literatura Infantil e da Ilustração, principalmente - é que aquela história que está sendo narrada, ela é fundamental, ela é importante, mas, na verdade, a gente está ligando muito pouco para ela. Nós estamos fazendo uma outra história aqui no paralelo. Então tem que contar outras histórias. Eu tenho que inventar que um passarinho fez coco na cabeça de alguém, que tem uma janela lá atrás, que tem uma coisa acontecendo nessa janela, tem uma paisagem onde tem um urubu, um avião, uma coisa qualquer. Eu tenho que ir contando outras histórias. Porque senão não tem sentido. O cara narra determinada coisa, eu vou fazer uma narrativa visual da mesma coisa? Então tem que criar outras histórias.
Quando se trata do meu livro, do meu texto, ele já é diferente porque eles já nascem juntos: texto, desenho. Às vezes você começa a escrever porque você faz um rabisco com a cara do menino. Ali você achou que é um personagem que é interessante, tem cara de bobo. Não, é espertinho. Então você vai fazer em cima. Então você vai, você vai navegando em cima disso. Outra coisa é que certos elementos que você não gosta, ou que não dão um bom desenho, ou que você acha que não são legais, ou que não vão ter interesse, enfim, você simplesmente não põe no seu texto. Claro, você é esperto. Eu detesto desenhar camelo, um negócio chato. O camelo é um bicho muito feio, não tem jeito. É raro o camelo. Então evidentemente num texto meu eu nunca vou por um camelo. A menos que haja uma necessidade absurda. Aí eu vou lá ver uma forma melhor de desenhar o camelo. No livro dos outros não tem jeito.
E a relação com o autor, eu me dou muito bem com todos, fiquei amigo daqueles que foram mais próximos, que houve possibilidade por causa da distância. Mas o autor, geralmente, eu tenho um pouco de pena dele. Porque o cara é obrigado a escrever tudo como se não houvesse ilustração. Porque aquele texto tem que ficar em pé sozinho. Então ele tem que dizer que o menino saiu, que fez, que aconteceu. É uma canseira. Se houvesse um ilustrador ao lado dele desde o surgimento da primeira idéia a vida dele seria mais fácil. O ilustrador diria: "Não, deixa isso comigo que eu desenho." Principalmente sendo um ilustrador mais figurativo, menos abstrato. Então ele resolve. Mas o autor, coitado, ele tem que botar tudo. E nessa coisa do botar tudo, às vezes, ele cerca tanto a história que às vezes surge algum problema.
Eu me lembro que uma vez, muito tempo atrás, um autor - essa história de vez em quando eu conto aí ela - tinha um texto que era um bicho-ferreiro. Eu chamo uma araponga. E que a única função desse bicho lá era dar uns berros. Dava um berro, berro, berro. Tá bom. E eu fui ver o que é que era uma araponga, porue eu não conhecia a dita cuja de perto e vi que era apenas uma galinha cinza e muito feia, sem graça. Aí eu, inocentemente, fiz uma proposta através da editora para se trocar por uma arara, que dá um berro tão legal e é um bicho brasileiro, coloridíssimo, que dá um desenho. Me mandaram calar a boca. Bom. Desenhei a araponga. Tudo bem. Então é isso, quando eu escrevo um texto eu já tenho as opções de desenho na cabeça, o que é que é que vai ser mais legal, o que vai dar um visual mais poderoso. Coisa que o autor não tem esse detalhe da mesma forma. Já aconteceu deu desenhar, fazer uma série de ilustrações e passar para o autor para o autor fazer o texto. Eu também vou cometer uma série de, não vou dizer de erros, mas de coisinhas que poderiam ser otimizadas se eu conhecesse o que é que está na cabeça dele, a linguagem dele. Não se conclui, onde eu estou querendo chegar é o seguinte: é que o livro é um produto industrial e tem que funcionar como um tripé. Esse tripé é autor, ilustrador e editora. Você tem que ter uma editora que faça esse intercâmbio, mesmo que um more lá no Sul, outro no Norte. Faça esse intercâmbio que é para poder fazer um ajuste para que o produto fique em pé. É fundamental isso. E a gente está caminhando. O livro brasileiro é respeitadíssimo lá fora. Ganhamos quinhentos mil prêmios. Mas ainda falta um pouquinho disso. Então esses ajustes estão sendo feitos. Está havendo um negócio legal nesse entrosamento. Está se fazendo produto legal, bem acabado.
P – Você vai perceber que sua ilustração serve ao infanto-juvenil não só pelo reconhecimento das editoras, com os prêmios que também está ganhando. Como é que é essa coisa de ganhar prêmios, ser reconhecido, ser chamado? Como é que começa a acontecer isso na sua vida infanto-juvenil?
R – Olha, ele é ótimo, ele é fundamental. Eu ganhei um prêmio importante logo no início, foi um prêmio da IBBY. IBBY é que congrega todas as associações e entidades de literatura infantil e juvenil no mundo inteiro. Tem sede na Suíça. Então me deram um prêmio legal, isso é ótimo, claro, sem dúvida. Vieram outros. Agora, nunca liguei para isso. Pra mim é condecoração, aquele negócio da medalha. Não é um ato de bravura. Quer dizer, dependendo do livro é um ato de bravura, mas ele não é algo que me basta. Mês passado, agora, eu ganhei um prêmio do Japão. Ninguém ficou sabendo disso. A nossa imprensa hoje que tinha anteriormente um espaço muito grande para a literatura infantil deu uma fechada. Eu digo Veja, a Isto É, etc. A gente tinha uns setores locais do Isto É BH,Veja BH que dava esse espaço. Então isso não foi comentado. A minha mulher é que andou comentando para alguns amigos, eu até neguei. Falei: "Não, mentira, não sei quê" porque é uma coisa que não me interessa. Recebi o papel, está guardado ali. Agora, nessa semana recebi uma carta de uma senhora, uma moça da Petrobrás me dizendo que o filho dela tinha pego um livro. Ele puxou ela para uma livraria, mostrou para ela um livro meu. E disse que na biblioteca da escola estava sempre procurando os meus livros que achava ótimo aquele cara. "Aquele cara é ótimo. Ele tem umas coisas muito engraçadas, e eu vivo procurando os livros dele." E ela fez questão de mostrar um livro. E ela então me escreve, manda um e-mail agradecendo muito por eu estar ajudando no interesse pela leitura dessa criança. Esse é o prêmio. Uma pessoa me dizer isso é fundamental, porque eu sei que estão acontecendo coisas parecidas, esse é o prêmio. Então acho que é por aí.
P – Queria que você comentasse uns livros infanto-juvenis, algum que você acha importante, marcante, que foram bons pra você. Comentar alguns traços se puder.
R – De 92 pra cá, eu andei ilustrando bastante coisa. De outros autores são cerca de trezentos já, contando os didáticos também, os livros informativos, cartilhas, etc. E texto meu são uns quarenta e qualquer coisa. Esse aqui foi o primeiro. Esse aqui é edição em espanhol, que foi para o Mercosul e ele, quando saiu, foi comprado pelo Governo do México também. Então recebeu essa edição em espanhol. Chama: Eu e Minha Luneta. Esse foi o primeiro, que foi em 1992. Ele virou uma coleção. E tem de tudo aí. Tem livrinho sobre o Cartola, Villa-Lobos. Estão saindo agora algumas coisas que eu acho que são interessantes, são livros de terror. Eu mandei esse para uma editora num primeiro momento e aí estranharam: "Mas livro de terror? Livro de terror?" E menino adora isso. Não fui eu que saquei, não. Foi um divulgador de uma editora que me falou: "Olha, professora mineira me disse que os meninos estão muito curiosos com essa coisa de livro de terror, tal." e aí ficou, passou para outra editora que teve dúvidas. Até que foi para a editora FTD de São Paulo que aprovou na hora. O livro já teve compra aí de governo, já foi para uma feira na Espanha que é só sobre o medo. E foi para uma outra em Portugal. Já escreveram a respeito, já está na segunda edição. Então é um negócio incrível. São historinhas de terror. Aquele terrorzinho que dá um medão, aquele negócio legal. Tem alguns livros de imagem, os chamados livros sem texto. Então tem de tudo aí. Você vai trafegando por essas áreas. E aí a dica é sempre dada por crianças, quando eu vou em escolas, bato papo. Meninos que você encontra em lançamento, que falam coisas, perguntam coisas. Professoras, coordenadores e divulgadores das editoras que são os caras que estão ligados à coisa.
Agora, aproveitando um gancho aí, eu acho que nós precisamos ainda melhorar isso muito em termos de literatura aqui. Que é o seguinte: a gente faz pesquisa com divulgador, com coordenador, com professor, com pai, etc e tal. E pergunta para os meninos. A gente não faz uma pesquisa com os meninos. Eu acho que toda editora deveria de ter um conselho editorial infantil, porque o menino escolhesse o texto, sugerisse algumas modificações que ele achar necessárias. E escolhesse até o ilustrador, porque é o único segmento de mercado para o qual se lançam produtos e que não se pergunta a ele. Para você ter uma idéia, Belo Horizonte é uma cidade laboratório. Quando foram lançar, por exemplo, o cigarro Hollywood com filtro lançou-se aqui. Deu certo no resto do Brasil. Porque aqui tem uma resistência. Então se faz pesquisa para tudo, até se manipula pesquisa, aliás é o que mais se faz. E não literatura infantil não se pergunta. Você tem um Prêmio João-de-Barro da prefeitura que tem um júri infantil. Fora isso eu não conheço. Tem algumas editoras que têm essa preocupação. Muitos autores, ilustradores têm essa preocupação de ir lá e conversar. Mas sistematicamente não existe. Então a criança deveria escolher o que é que ela quer ler, ter opção de três textos para ela escolher um que ela acha mais legal. A opinião dela deveria ter um peso. É algo que a gente tem que caminhar para isso também.
P – Cláudio, você falou de alguns livros seus, alguns livros que você ilustrou das pessoas. E quando é um livro que, por exemplo, um livro que você ilustrou inclusive da Ruth Rocha _____ que já tem uma edição anterior e aí você teve que reeditar. Nova ilustração. Como que você faz? Você lê o original, você lê, como que é isso daí?
R – Quando é outra pessoa que ilustrou, às vezes, a editora manda o livro anterior que é para você ver. Às vezes ela prefere não mandar para não influenciar, que é para não haver nada de relação. Você não fica nem sabendo a menos que você pesquise quem é que fez os desenhos. Então cada caso é um caso. Agora, por exemplo, eu estou ilustrando uns livros da Ruth, que ela está relançando 23 títulos. Acho, 23, para uma editora. E então os livros estão sendo novamente ilustrados. Alguns livros dela que eu já ilustrei e estão sendo ilustrados por outras, outra pessoa. E eu estou ilustrando livro que outra pessoa ilustrou. Se houver algum problema correrão alguns processos posteriormente, ou xingamentos. "O teu ficou muito melhor do que o meu." "O meu ficou melhor do que o seu." Mas até então é normal isso. É porque o livro é lançado novamente, às vezes ele tem que ter uma cara nova.
P – Conta um pouquinho como é o contato com o leitor, no seu caso o seu leitor de imagem. A criança, você vai em escola, como é que é isso?
R – Vou sempre à escolas, tenho sempre lançamentos, autógrafos. Às vezes tenho autógrafos em escolas, em feiras de livro. E aí você vai lá e bate papo com os meninos. E vou sempre, vou sempre. Às vezes você reúne numa feira de livro várias turmas. Então dá aí 150, 180, duzentos meninos. Aí fica tudo muito complicado, porque eles fazem quinhentas perguntas, eu não tenho como responder. Não dá tempo. Acaba virando uma senhora bagunça, mas é legal. É ótimo. É um contato interessante. O meu interesse é sempre esse de desmistificar, de dizer que eu nunca fui nada, mas nunca fui um desenhista que já nasci com um dom. Não. Todo mundo pode fazer. Façam seus próprios livros. E é interessante eles verem, me verem lá, eu e outros. Poder pegar, xingar, jogar coisa na gente. Saber que a gente pertence a esse mundo real. Porque eles vêem um livro e imaginam que o cara está atrás do atrás do atrás. Eles têm muita dúvida sobre como é feito o livro. Me perguntam: "Mas quantos livros são?" Eu falei: "Olha, uma edição..." Aí você explica o que é uma editora, porque eles têm muita curiosidade com isso, como é que funciona. O que é uma gráfica. Aí eles falam: "E você desenhou cinco mil livros?" E você tem que explicar para eles: "Foi uma máquina que imprime. Você faz uns desenhos apenas, etc." É muito interessante.
P – E como que é seu processo de trabalho? Assim, tem uma mesinha, está na mesa ali, mas você tem que sentar ___? Você tem algumas regras? Não tem regra nenhuma?
R – Eu não sigo regra nenhuma pra nada. Eu detesto regra. Quer dizer, existem as convenções que você tem que seguir, evidentemente. O metro tem cem centímetros. Está guardado lá em Paris num museu, uma barra de platina, porque temperatura e pressão específicas, que é para ele não dilatar... Isso aí é uma convenção. Então eu não vou mudar o meu tamanho de regra aqui simplesmente porque eu quero ser diferente, lógico. Então é uma convenção. Consideradas as convenções que existem que você não vai ficar mexendo, parede é reta e outras mais, não existe regras. Pelo amor de Deus, esqueçam todas as regras. Quem estiver começando a desenhar, a escrever, principalmente na área da Literatura Infantil, que é a área da criação e da invenção. Quando chega em dezessete, dezoito, dezenove anos, coitados. Eu tenho tanta pena de adolescente. Entrou num caminho praticamente sem volta. Poucos se salvarão. Tem a tal da racionalidade que deu nesse mundo que está aí, nessa besteira que está aí. Aquele negócio do Descartes: "Penso, logo existo." eu já descartei Descartes: "Eu penso, logo desisto." Não sigo regra, não tem regra. Por favor não siga nada. Você tem o padrão do livro, que é um tamanho que você tem que seguir. É aquilo que eu disse. Então tantos centímetros por tantos centímetros. Você não vai aprontar dentro disso. E tem regras mínimas também para você estabelecer aonde entra texto e aonde entra ilustração. Fora isso não siga nada. Não siga padrões. Tudo que foi inventado nesse mundo foi quebrando padrão. Você tem que ter conhecimento da regra para não segui-la.
Eu fui numa escola de excepcionais. Fiquei um pouco preocupado porque eu falei: "Pô, conversar com crianças já é meio complicado. Eles perguntam a mesma coisa trezentas vezes." Aquele negócio, porque não prestaram atenção, porque estão puxando a orelha do outro e tal. "Criança excepcional vai ser mais complicado ainda." Fui lá. Bom, nada disso. Nada disso. É claro que haviam uns meninos que se perdiam um pouco, mas no geral perguntas absolutamente inteligentes. Meninos de dezesseis, dezessete, dezoito anos com idade mental de cinco, seis, sete. Grandões assim. Às vezes nervosos, esfregando a mão. Um negócio, tinha uns até que achei que eles iam me morder, um negócio fantástico. Tinha uma menina que a professora tirou umas três vezes de cima de mim porque ela queria me agarrar o pescoço e me contar as experiências dela. E, fantástico. Ela dizia: "Eu não gosto de televisão. Porque já está tudo lá. Você liga está lá. O desenho está lá. Não sei quê está lá. O som está lá. Eu gosto do livro, porque o livro a gente fica assim, ó, imaginando, sabe? Você está entendendo? Imaginando." E pulava no meu pescoço. Eu tinha que tirar a menina. "E a gente fica imaginando." Com essa menina eu já comecei a botar em cheque a própria ilustração do livro infantil. Porque se ele tiver um espaço em branco para o menino criar, ou induções de ilustração… Por que é que nós temos que amarrar isso? Você está contando uma história que você tem que amarrar visualmente essa história. Quer dizer, já estou dizendo isso, já vou ser xingado por todos meus coleguinhas. Inclusive pelo Cláudio, porque aqui em casa é o Cláudio e o Martins. O Martins escreve e o Cláudio é que ilustra. É uma briga do cão.
Mas, enfim, essa menina continuou a falar coisas assim. De repente, um menino veio de lá de trás, torcendo as mãos, muito grandão, me olhando e me perguntou se isso dava para ganhar dinheiro. O menino já era um mercantilista. Aí eu expliquei para ele, dentro das possibilidades que eu tinha ali, que às vezes dava, às vezes não dava. Ele foi lá para o fundo e voltou me perguntando se eu fazia livro para adultos. Eu falei que não. "Qual a diferença de livro para adulto de livro para criança?" Aí eu disse para ele, já sabendo que aquele menino dificilmente teria acesso a uma literatura para adultos, eu disse para ele que livro para adulto é muito chato. É cheio de regra. Cheio de: "O que é que eu acho. Eu acho. Eu acho. Devia. Podia." E que tinha um troço que era auto-ajuda, que é pior ainda, que era uma desgraça. Meti o cacete. Esculhambei com tudo. E que a literatura infantil não, ela dava força para o menino imaginar, o menino criar, o menino fantasiar, que era um mundo mágico. Foi lá para trás e daí a pouco ele voltou e me fez a seguinte pergunta: "Por que vocês não escrevem livro pra gente que tenha essa coisa assim do que devia, do que é que não devia, porque a gente é meio inseguro. E escreve livro pros adultos com essa coisa da imaginação, da idéia, da fantasia, porque eles são tão sem imaginação." Então foi um tapa. Aí você descobre o mundo. Esse foi para mim o dia D. Me deram um buquê de flores, que aquilo durou adoidado. Eu saí chorando. Aí descobri que lágrimas, quem tiver flores, chora em cima que dura uma eternidade.
Saio para a rua e tirei o óculos, botei um óculos de grau, escuro. Porque estava já num estado lastimável. Porque foi assim. Sabe aquele negócio assim: o milagre? Cada um tem direito ao seu milagre. Eu tenho o meu. Aquele foi o meu milagre. A revelação. Aquilo foi fantástico. E eu lembro que eu fui tomar um táxi. E fiz sinal para o táxi com aquela flor, o óculos escuro, aquela cara assim de tapa. O motorista parou o carro, me olhou, jogou a gimba do cigarro, falou: "Ô, parceiro, é pro cemitério, é?" Eu falei para ele: "Pelo contrário, meu amigo, nasci hoje." Foi um grande lance: A partir daí eu comecei a prestar atenção nisso e me senti muito feliz por estar nessa área. Aí eu comecei a levar isso mais a sério ainda. Sabe como? Que você tem que descartar Descartes mesmo. Não siga nada. Você siga a tua intuição, a tua imaginação. É o que interessa. É um mundo mágico, fantástico. É um mundo de Niemeyer. Niemeyer se inventa todo dia. O Ferreira Goulart estava dizendo isso outro dia, com toda razão. O Fulano se inventa todo dia, as pessoas têm que se inventar. E não ficar seguindo aquilo que o outro vai achar, o que é que o outro vai dizer, o que é que falou. A literatura tem que partir pra outra. E por aí. Grande lição.
P – A literatura infanto-juvenil cumpre um pouco dessa lacuna, dessa função, então de ser o canal para adentrar isso, você acha?
R – A boa literatura infantil a função dela é exatamente essa. É claro que você está otimizando a leitura. Você está aprendendo a juntar a com b melhor do que antes. Você está lendo, etc. Tem esses aspectos funcionais da linguagem e do uso dela. Mas, evidentemente, ela está dando força para o negócio da imaginação. Se a nossa massa - e você não pode considerar os caras que não têm oportunidade nenhuma, as pessoas que não têm nem proteína, que é pra poder pensar alguma coisa, num Brasil imenso desse - mas eu digo: se a classe média, principalmente as nossas elites que primam pela falta de percepção, pela secura, se esse povo acordasse e se esse povo tivesse a oportunidade de criar outras oportunidades para os outros de ler Monteiro Lobato, pelo amor de Deus... Ler outra vez a nossa literatura fundamental de formação. Sérgio Buarque, Raízes do Brasil. Se você começasse a se entender, a gente seria um outro país. Eu não consigo deixar de pensar numa coisa que uma moça aqui da universidade, Maria Antonieta, disse e é importantíssimo isso. É que ela estava falando um pouco das diferenças entre Argentina e Brasil. Os argentinos são pretensiosos, olham de cima, não sei quê. Tá, tudo bem. Agora, em 1800 e qualquer coisa um Sarmiento, que era um presidente, bota a Argentina inteirinha para ser alfabetizada de cabo a rabo. Todo mundo estudou, todo mundo aprendeu a ler. Você não tem analfabetos. Restaram três ali, quatro lá, acabou. Isso é fundamental, porque na hora que você vê mais ou menos nessa época, 1870 e qualquer coisa, a gente estava aqui discutindo a Lei do Sexagenário. Aquela mesquinharia. E a Lei do Ventre Livre? "Ah, bobagem, bota lá os meninos com cinco anos é que eles vão ficar livre já. Até cinco eles podem também..." É esse nível que estava o Brasil.
Então hoje quando você vê que num panelaço daquele em dez dias se muda totalmente a estrutura de um governo, uma crise brava que estava. Então é essa coisa. Eu acho que se lesse Monteiro Lobato, repito, Petrobrás foi criada em função do que ele colocou do petróleo, nacionalista bravo, etc. Se fossem ler o que é que é aquilo, a Dona Benta, a Dona Fulana, o Visconde de Sabugosa, Narizinho, as relações que se estabelecem. O que é o Brasil. A formação desse Brasil. Se houvesse uma inteligência para se ir adquirindo e readquirindo e aí partindo daí. E ir se atualizando. A gente podia mudar. Fora isso não tem chance. Ou a coisa vai pela leitura ou ela não vai. Porque a internet, direto, dançou.
P – A gente vai terminando, vou fazer uma pergunta de praxe do Museu, que a gente faz pra todo mundo. A gente conta um pouquinho da vida, um pedaço, é uma escolha possível. Mas o que você achou de ter contado um pouco dessa trajetória sua?
R – Bom, eu achei ótimo. Só estou preocupado naquilo que você disse no início com a conta da psicanálise que vem aí. Porque evidentemente, depois que eu contei isso tudo vocês vão me cobrar, não tem como não me cobrar. Olha, é uma oportunidade, eu não vou dizer legal, ela é ótima. Porque a gente tem o costume de dar entrevistas, mas são coisas mais localizadas, em função disso ou daquilo. Você falar um pouco sobre a tua experiência, como é que é essa formação, por que é que você fez, por que é que você não fez. As dificuldades que você tem, é algo fantástico.
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