DEPOIS DA TEMPESTADE... Lembro-me como se fosse hoje... Na madrugada do dia onze de abril de mil novecentos e oitenta e cinco, comecei a sentir as dores do parto. Era uma noite escura, chuvosa, com ventos que davam um maior medo. Raios cortavam o céu, e reluziam todas as extremidades. A luz entrav...Continuar leitura
DEPOIS DA TEMPESTADE...
Lembro-me como se fosse hoje... Na madrugada do dia onze de abril de mil novecentos e oitenta e cinco, comecei a sentir as dores do parto. Era uma noite escura, chuvosa, com ventos que davam um maior medo. Raios cortavam o céu, e reluziam todas as extremidades. A luz entrava pelas brechas do telhado, única forma de clarear tudo pelo caminho, já que não dispúnhamos de energia elétrica - usávamos um candeeiro e um velho lampião. Teve um momento em que o relâmpago iluminou, e deu para observar Elias, o meu marido, em um sono tranquilo, como se nada estivesse acontecendo. O pobre homem cansado de um dia inteiro de trabalho, pescava do meio dia às altas horas da noite, nesse sol escaldante da Paraíba, no sítio Barra, nos confins do meu sertão nordestino. Não queria despertá-lo desse sono merecido, mas não pude conter-me de tantas dores. Então, pedi que fosse chamar o senhor Antônio de Zé Mané, único motorista que havia no sítio.
Assim que chegaram, saímos sem demora. No caminho, o carro subia e descia as ladeiras bem devagar quase parando. O lamaçal era grande, mal andávamos mais ou menos uns cem metros, o carro atolava, e meu marido descia para empurrar. Era chuva que não acabava mais, e os perigos só tendiam a piorar... Tínhamos que atravessar uma sangria, nessas épocas de chuva. No meio das estradas, sempre corria água em grande quantidade. Senti-me como se atravessasse o Mar Vermelho, porém, dessa vez, não foi Moisés o guia, mas meu marido que sempre esteve do meu lado, me dando forças e fazendo-me superar as dificuldades; e nem ao menos estávamos fugindo do faraó, mas era uma corrida contra o tempo, em busca de trazer ao mundo uma vida que não tinha nem noção de tudo o que estávamos passando. O motorista, a todo tempo, me perguntava se dava para aguentar, caso contrário, tinha uma tesoura em mãos para ajudar a cortar o cordão umbilical. Mesmo com tanta dor, não me continha e até dava uma risadinha, porém acompanhada de um gemido, já que as dores das contrações são tão fortes que só quem um dia foi mãe, e tivera um parto normal, sabe do que estou falando. Quando conseguimos atravessar e saímos da estrada de terra, ficamos em dúvida de qual maternidade iríamos, se seria a de Cajazeiras ou a de São José de Piranhas. Optamos por São José de Piranhas, já que a distância era menor, aproximadamente quinze quilômetros; enquanto que, para Cajazeiras, seria de dezessete quilômetros, sendo um longo caminho a percorrer e com as dores cada vez mais fortes. Meu marido avisou que na estrada havia muitos buracos, e que o motorista tivesse cuidado para não cair dentro de um. Parece que quando se avisa algo, tende a acontecer, pois foi em uma fração de segundos que apareceu um animal na estrada e fez o carro cair em um buraco. Essa situação fez com que ele saísse sem controle, e quase que algo pior acontecia; mas graças a Deus foi apenas um susto, nem percebi quase nada, pois estava tão sintonizada com as dores, que nem dei por mim.
Vi a entrada da cidade, estava toda alagada... A tempestade destruiu a barragem do açude principal que abastecia a cidade. Foram devastadas várias plantações, os animais eram arrastados pela correnteza - percebi bem paradinho, um pobre papagaio em cima da árvore, tentando fugir de toda aquela aflição. Depois de todas as turbulências enfrentadas, enfim, cheguei à maternidade Ana Lacerda. Não demorou nada para eu ser atendida. Assim que entrei na sala de parto, senti que as dores não eram nada comparadas a força e a vontade de ver o meu bebê. Não sei bem descrever ao certo, o que acontece com uma mãe, no momento de trazer uma criança ao mundo... Parece que um ser superior nos fortalece até o término do nascimento de uma criança. Quando me dei conta, ouvi um choro e fiquei aliviada, havia trazido ao mundo uma menina que pesava um quilo e trezentas gramas que nem sabia eu, até então, o sexo - já que nenhuma vez passei em um médico ou por um pré-natal como se faz hoje. Foi algo que não tive como tirar da memória, pois fui ter uma criança sem ao menos saber o sexo, e nem se a gestação estava bem. Sabemos que a saúde pública sempre enfrentou dificuldades, e mais ainda nessa época, com poucos recursos em uma cidade pequena.
Pensei que o calvário havia chegado ao fim, mas os médicos me falaram que ainda tinha outra criança a caminho. Essa me deu tanto trabalho para nascer, que já estava ficando roxa; e quando dei por mim, vi outra menina, essa bem menor que a primeira, pesava apenas um quilo e cem gramas. Quando quase que ia desmaiando, colocaram minhas duas princesas pertinho de mim, comecei a observá-las e fiquei com muita dó, pois as pobrezinhas eram tão pequeninas e indefesas... Não sei como tem mães que dão fim a um filho, que acabam jogando-o numa vala, no lixo, ou deixam por aí, sem dó nem piedade. As mães que estavam na maternidade ficaram impressionadas com o tamanho e o peso das crianças. Recordo-me que uma senhora havia dado uma roupa para minhas filhas, já que não levei roupa para duas. Lá na maternidade, teve uma mãe que perdeu o seu bebê, pois nascera morto, e pediu-me uma das minhas filhas. Fiquei compadecida com sua dor, mas nunca que daria um filho meu para ninguém; até fiz um comentário, disse que não são filhos de gatos para serem dados, não é à toa que tive dez gestações. Estou atualmente com sete filhos, pois morreram três, dentre eles um casal - a menina morreu por uma intensa diarreia, ela era linda tão esperta, nem gosto de lembrar-me desse dia; já o menino sentiu uma crise urinária que acabou pondo fim a sua vida. Foram dois fatos em minha vida que pensei que não teria forças para aguentar. Um outro filho não teve a oportunidade de vir ao mundo, pois abortei por causa de um susto que tive no caminho da cidade, quando fui para o velório do meu sobrinho. Mas voltando as minhas gêmeas e inesperadas, tomei-as no braço no dia seguinte, e fomos para casa. Nesse dia, ainda passamos por perigos, pois tivemos que atravessar um açude para chegar ao nosso destino final, o sítio Barra, em uma casa feita de taipa e construída com nossas próprias mãos, lugar onde iniciei a formação da minha família que, como muitas, é imperfeita, cheia de problemas e como inúmeras falhas, mas nada impossível de se resolver, já que o mundo não é feito de perfeição, e sim, de superação....
Espero eu, Vilani Pereira de Souza, poder contar mais um momento vivenciado por mim ou minha família; será um prazer compartilhar momentos tão particulares, e ao mesmo tempo parecidos com os de milhares de pessoas. Deixo aqui minhas últimas palavras: nunca abandone seus pais, seus filhos, seus irmãos ou nenhum ente querido, pois nada te trará maior paz de espírito do que ter sempre ao seu lado alguém com quem contar... Ame sua família, pois foi essa a escolhida por Deus...Recolher