Sou filha de uma família de lavradores do interior do Paraná. Trabalhávamos na colheita do café, na cultura de feijão e com todo tipo de cultura que dava; plantando e colhendo. Era para a sobrevivência mesmo. Trabalhamos também no corte da cana no interior de São Paulo, na região de Ourinho...Continuar leitura
Sou filha de uma família de lavradores do interior do Paraná. Trabalhávamos na colheita do café, na cultura de feijão e com todo tipo de cultura que dava; plantando e colhendo. Era para a sobrevivência mesmo. Trabalhamos também no corte da cana no interior de São Paulo, na região de Ourinhos. Com seis anos eu já trabalhava na roça. O corte de cana é o mais triste, o mais pesado dos trabalhos. Pra fazer o corte da cana, é preciso primeiro queimar as folhas do canavial. A fuligem que fica não sai do corpo da gente e as folhas que não queimam, cortam a gente toda.
O corte da cana é triste em qualquer lugar - menos agora, com essa mecanização - mas antes era cortar com a foice e carregar. Na verdade, soube que era branca em Curitiba, porque fica aquela fuligem no rosto, e por mais que se tome banho, lave, fica o dia todo com aquilo. E era difícil, tinha que se limpar, tomar banho, se esfregar até quase se machucar, para depois estar limpinho, dormir e estar pronto para a escola no outro dia.
Ia a pé ou a cavalo pra escola. Quando meu avô ainda era vivo, ele me levava. Ele nos dava algumas orientações, e hoje vejo como ele era sábio. Antes de ele falecer, em 1974, ele dizia: “Para vocês, que são meninas irem à escola”, no caso era a minha irmã e eu, “quando virem cachorro, gente ou poeira na serra, entrem no mato”. Hoje acho que ele dizia: “Cuidem-se para que não encontrem homens que podem vos fazer mal”. Hoje faço essa leitura.
Eram cinco quilômetros pra ir e cinco pra voltar. Ele faleceu e deixou um cavalo pra gente, que era ensinado, só ia até a escola e voltava, não fazia outro trajeto. Naquela época, aprendi a ler e escrever, na primeira série. Na segunda série, já era obrigada, pela professora, a fazer redação e ela não passava mais matéria no quadro para copiar, cada um tinha que saber só pelo livro.
Hoje, quando estou escrevendo, estou lembrando do meu ensino primário, daquela professora da segunda série que não admitia erro. Ela dizia assim: “Vocês não podem nem usar borracha, pois quem usa borracha erra. E vocês não podem errar”. Ela era bem enérgica nesse sentido. O primário foi, para mim, a base de tudo, da minha profissão.
A saída do campo foi traumática para minha família. Quando chegamos na capital, Curitiba, fiquei uns três anos em depressão. Vivíamos em família, mas estávamos na solidão. Ninguém queria saber da gente. O meu pai está desaparecido há trinta e quatro anos, ele veio para Curitiba, não se adaptou, voltou para a cidade de origem e desapareceu. Apesar de tantas buscas, a gente não conseguiu contato com ele nunca mais. Eu não sei se ele vive ou se já morreu.
Eu e meus três irmãos estudávamos de teimosos, porque meu pai e minha mãe nunca deram valor aos estudos. A falta de apoio e a dificuldade de aprender não me desanimaram, aguentei firme. Mesmo com a hostilidade que enfrentei no colégio, acabei me formando em Serviço Social.
Quando eu era menina decidi que queria fazer Sociologia, porque quando o meu pai ainda vivia conosco numa fazenda de cana, lembro que, quando ele ia receber, eu ia junto, era muito esperta, e o dono da fazenda sempre dizia para ele assim: “O senhor não tem nada para receber, seu Zé, porque o senhor já comeu com a sua família o trabalho dessa semana. O senhor não tem o que receber”. E pensava comigo: “Há de haver alguém que lute pelo direito dessas pessoas que trabalham tanto e não têm o que receber, porque é impossível você trabalhar só para comer; tem que ter um dinheiro para você comprar alguma coisa”.
Quando entrei na faculdade, já entrei no estágio. Após sair do trabalho, sobrevivia realmente do estágio da faculdade. Ganhava livros, era filiada ao PT na época, e ao PCdoB. Toda a literatura que precisava na faculdade, conseguia com os partidos, ou na própria faculdade. Eu não tinha condições de comprar os livros, então pegava desses locais. Fiquei um ano nessa instabilidade e fazia um estágio em que a bolsa era muito baixa, não conseguia pagar a outra parte da bolsa. Um dia o pessoal falou assim: “Vai ter vaga para vocês fazerem estágio na cadeia, no complexo penal, e ali é um estágio de dois anos. E vai ter em outros locais também”.
Comecei minha vida profissional como assistente social estagiando em presídio. Eram mil e duzentos homens na época, um público masculino, e trabalhávamos direto com eles. Lá, ou você aprende, ou você aprende. É muito difícil você entrar num sistema como o sistema penal, mas como não tinha outra alternativa, fui. Nunca tive muita alternativa na vida, o que aparecia tinha que agarrar. Comecei com toda força, com toda garra e trabalhando com eles diretamente.
Nunca tive medo e nunca demonstrei receio. Tinha dificuldade de atender estuprador, que é o artigo 213. Eu atendia a todos os artigos, mas quando chegava no 213, atendia, mas com um pouco de insatisfação. Porque achava que o crime – “sob tortura toda carne se trai”, como dizia o Henri Charriere, que é o autor do Papillon - mas acho que não pode ter características de maldade, como é o caso do estuprador. Aquilo é uma coisa que acho que a Psiquiatria Forense tem que dar conta, e aquilo era demais para mim.
Foi um senhor que fui atender e ele até deu um murro na minha mesa, ele estava bem agressivo, e eu com o prontuário dele. Ele me chamou a atenção. Ele pegou acho que uns vinte e poucos anos, porque ele criava as filhas e constituiu família para atender as necessidades dele. Então, ele tinha filhos, torcendo para que fossem filhas, ou filhos mesmo, para que pudesse atender sua necessidade sádica. Essa situação me criava uma barreira, então, para não prejudicá-lo, eu passava para outro profissional.
Depois, passei dez anos trabalhando em uma Unidade Básica de Saúde. Prestei concurso na Fundação Social para o CRAS e, por fim, no CREAS, onde trabalho com casos de alta complexidade. Os Centros são parceiros do projeto Vira Vida e encaminham jovens que se encontram em situação de abuso e exploração sexual.
Quando chega essa denúncia de abuso no CREAS, a criança já é atendida por outra equipe. Nós temos várias equipes na prefeitura de Curitiba, o primeiro contato é com a equipe do CREAS Cristo Rei, que trabalha com a violência sexual, eles fazem a primeira abordagem. Quando o CREAS chega na família, ela já passou pelo Conselho Tutelar, já passou pelo NUCRIA [Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítima de Crimes], pelo hospital, pelo IML [Instituto Médico Legal] e já está sendo acompanhada pelo CREAS Cristo Rei, que é uma equipe composta de psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, onde a criança vai receber esse acompanhamento.
O que falta hoje é acompanhar o agressor, mas o agressor desaparece, ele some, geralmente a própria vara da infância já pede o afastamento dele. Quando essa pessoa não se afasta e passa a apresentar risco para essa família, esta é acolhida, não só a mãe, mas as crianças também.
A gente identifica quando uma agressão está por vir. Na escola é possível perceber, porque a criança vai falar. Ela tem um comportamento que a professora bem orientada vai perceber. Nós, técnicos, assistentes sociais, conseguimos perceber pela própria fala. E cada técnico, pela própria fala do agressor, sabe se ele está representando perigo ou não. E isso é técnica. O jeito dele se comportar, o jeito dele ficar ao lado da pessoa, ou a forma de interagir na própria família, nós percebemos se ele é um possível agressor ou não.
Não dá para descrever, nós sentimos na fala, nos trejeitos, na forma com que ele olha para a criança ou para o adolescente. Isso é possível perceber. E não só o padrasto, hoje tem casos de abuso sexual, claro, é padrasto, pai, irmãos e avós. Mas a questão é a permanência contínua ao lado da criança, o excesso de cuidado. Por exemplo, um padrasto que vai querer dar banho na enteada - já ficamos desconfiados. Por que ele vai dar banho? Por que a mãe não vai dar banho na criança? E por que a criança não toma banho sozinha? Por que ele tem que entrar nesse lugar? É o próprio ambiente que dá sinais de que a coisa não está bacana. Cada técnico tem essa percepção.
No CREAS eu visito as famílias pra entender o que gerou o desequilíbrio familiar que acabou em violência. Eu faço os relatórios nos quais os juízes vão se basear pra dar suas sentenças. A responsabilidade é grande, o assistente social pode acabar com a vida de uma família. Seu relatório é como o bisturi na mão do médico. É em cima dele que o juiz vai ajuizar.
Meus anos de experiência treinaram meus sentidos para perceber os sinais daquilo que está errado quando visito uma família. A gente sente na fala, nos trejeitos, no comportamento de cada um. Os abusadores são padrastos, pais, irmãos e avós. O próprio ambiente dá sinais. Cada um tem que ser atendido de acordo com suas necessidades. Numa fração de segundos, tenho que perceber o que o núcleo daquela família precisa.
Como fiz a opção de não casar e não ter filhos, minha dedicação ao trabalho é quase que integral. Passo a vida tentando apoiar as famílias em dificuldade, pra que não se percam os vínculos afetivos.
O foco do meu trabalho hoje são os dependentes químicos. De cada dez famílias que atendo, dez têm problemas com drogas. A dependência química gera situações de exploração sexual. Nas famílias mais pobres, a forma de sustentar o vício é se prostituindo.
Para nós, é um alívio ter parceiros como o Vira Vida, que dão continuidade ao nosso trabalho. O Estado é limitado. É difícil trabalhar com a questão do abuso e da exploração sexual, porque essa situação dá votos pros políticos. O que a gente pode oferecer para essas famílias e para esses jovens? Uma cesta básica, como fazem os políticos? Isso não é solução, é apenas um curativo, não vai curá-los. Vai mantê-los com a mesma ferida, na mesma situação. O SESI sim, propõe uma solução para aqueles que desejam mudar suas vidas. Oferece cursos, bolsa de estudos e aprendizado.
Hoje os jovens encaminhados ao Vira Vida têm projetos de vida, e são projetos ambiciosos. Percebemos claramente avanços significativos em suas trajetórias. A longo prazo, esses jovens não representarão custos para o Estado. Pelo contrário, passarão a contribuir econômica e socialmente para a sociedade.
Às vezes os jovens resistem em serem ajudados. É o caso de uma menina que eu acompanho de perto. Ela é danada. Ela viveu isolada, não adere a nada. Saiu do Vira Vida por opção dela. Não conseguiu ficar em lugar nenhum. Mas acontecem mudanças. Depois que passou pelo Vira Vida, eu a vejo mais sociável. Hoje é possível abordá-la sem aquele resquício de agressividade. Ela aprendeu a conviver em sociedade, com as outras meninas. Aprendeu aqui no projeto, com todos os módulos de que participou.
As transformações do Vira Vida na vida do jovem, e também nas suas famílias, são a promoção social deles e a mudança de perspectiva. Se ontem a perspectiva era só balada, droga e amanhecer fora de casa, hoje eles já têm projetos de vida: “Eu quero ser um dentista, quero ser um bombeiro, ser um historiador, ser isso e aquilo.”A transformação é nítida e o avanço é claramente muito significativo.Recolher