Depoimento de Chaim Siche Kuperman
Entrevistado por Cláudia Leonor e Valéria Barbosa
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 21 de novembro de 1994
Transcrita por Teresa Furtado
P - Diga seu nome, o local e a data de nascimento.
R - O meu nome é Chaim Siche Kuperman; para o português, é Jaime Kuperman. Eu nasci na cidade de Safed, na Palestina, hoje Israel, em 21 de março de 1915, e... eu não conheci meu pai. Quando eu tinha um ano ele faleceu. E minha mãe casou novamente, com meu padrasto, e eu como órfão, fiquei na casa da minha avó. Fiquei na casa de minha avó durante cinco anos, que ela cuidava de mim. Agora, como... ela... a dificuldade, dificuldade, de depois... após guerra, na Palestina era muito ruim, ela tinha que se sujeitar a lavar roupas de tuberculosos que vinham pra aquela cidade, que era uma cidade de clima - que nem Campos do Jordão ou São José dos Campos aqui - e ela se sujeitou a lavar roupa e a fazer comida pra esses tuberculosos. Aí ela tinha medo que eu pudesse me contaminar. Ela pegou e conseguiu me internar num orfanato, mais ou menos tinha uns 40 meninos, só de meninos, e, com o tempo, ela conseguiu, também, se empregar como cozinheira pra poder tomar conta de mim. A minha mãe e o meu padrasto vieram pro Brasil em 1920, junto com familiares da minha mãe, e irmã, uma irmã, e filhos, sobrinhos, vieram; que o marido da... o marido da minha tia, cunhado da minha mãe, morava em Belo Horizonte antes da Primeira Guerra Mundial, isso tudo é durante a guerra mundial. Aí vieram pro Brasil e eu fiquei lá em Safed, ah... no orfanato. Com o tempo, ela queria que eu fosse... minha mãe queria que eu viesse pro Brasil, e minha avó, do outro lado, não deixava, queria cuidar de mim. No fim... até 1928, ela conseguiu - não sei por que meio -, me mandou passagem para eu vir pro Brasil. Eu saí... mais ou menos 18, 19 de abril de 1928, do Porto de Jaffa; viajamos até Marselha, na França. Em Marselha ficamos...
Continuar leituraDepoimento de Chaim Siche Kuperman
Entrevistado por Cláudia Leonor e Valéria Barbosa
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 21 de novembro de 1994
Transcrita por Teresa Furtado
P - Diga seu nome, o local e a data de nascimento.
R - O meu nome é Chaim Siche Kuperman; para o português, é Jaime Kuperman. Eu nasci na cidade de Safed, na Palestina, hoje Israel, em 21 de março de 1915, e... eu não conheci meu pai. Quando eu tinha um ano ele faleceu. E minha mãe casou novamente, com meu padrasto, e eu como órfão, fiquei na casa da minha avó. Fiquei na casa de minha avó durante cinco anos, que ela cuidava de mim. Agora, como... ela... a dificuldade, dificuldade, de depois... após guerra, na Palestina era muito ruim, ela tinha que se sujeitar a lavar roupas de tuberculosos que vinham pra aquela cidade, que era uma cidade de clima - que nem Campos do Jordão ou São José dos Campos aqui - e ela se sujeitou a lavar roupa e a fazer comida pra esses tuberculosos. Aí ela tinha medo que eu pudesse me contaminar. Ela pegou e conseguiu me internar num orfanato, mais ou menos tinha uns 40 meninos, só de meninos, e, com o tempo, ela conseguiu, também, se empregar como cozinheira pra poder tomar conta de mim. A minha mãe e o meu padrasto vieram pro Brasil em 1920, junto com familiares da minha mãe, e irmã, uma irmã, e filhos, sobrinhos, vieram; que o marido da... o marido da minha tia, cunhado da minha mãe, morava em Belo Horizonte antes da Primeira Guerra Mundial, isso tudo é durante a guerra mundial. Aí vieram pro Brasil e eu fiquei lá em Safed, ah... no orfanato. Com o tempo, ela queria que eu fosse... minha mãe queria que eu viesse pro Brasil, e minha avó, do outro lado, não deixava, queria cuidar de mim. No fim... até 1928, ela conseguiu - não sei por que meio -, me mandou passagem para eu vir pro Brasil. Eu saí... mais ou menos 18, 19 de abril de 1928, do Porto de Jaffa; viajamos até Marselha, na França. Em Marselha ficamos uma semana, depois fomos pra Cherburgo; em Cherburgo pegamos o navio da Royal... ah... Royal Line, até o Brasil. Cheguei pro Rio de Janeiro, meu padrasto me esperou no Rio de Janeiro e me levou até Belo Horizonte.
P - Seu Jaime, voltando um pouquinho, eu queria que o senhor falasse assim: como é que era o dia-a-dia no orfanato?
R - O orfanato era um... era portas abertas, o orfanato. Era... no princípio era muito rígido, devido à religião. A gente tinha de levantar de madrugada para estudar a religião, principalmente a religião, e rezar. Depois... depois de algum tempo, alguns anos, entrou, assumiu a direção do orfanato um dos pioneiros dos eh... kibutzim, de Israel. É um homem, aliás ele consta, esse diretor consta do dicionário hebraico, o nome dele, ele era inclusive escritor... e ele como homem de idade, ele começou a dirigir o orfanato. E aí, com ele, aprendemos a comer com garfo, aprendemos a escovar os dentes e aprendemos a ler livros. E... o tratamento era ótimo Muita gente, muitos meninos que não eram no orfanato, gostariam de ir no orfanato. Quem sustentava o orfanato era, era pessoal que nasciam em Safed, que nasce... e estavam em Nova Iorque, e nos Estados Unidos, eles fizeram uma sociedade em auxílio ao orfanato de, de Safed, e mandavam o dinheiro pra sustentar isso, por menos até 1928, que eu saí, era isso. Então, vivia-se muito bem, tínhamos liberdade, foi formada uma orquestra, eh... fazia-se correio, aprendemos a filatelia, que até agora eu gosto muito de filatelia, tenho uma bonita coleção de selos de Israel, e... era muito bom. Eu acho que naquele tempo eu vivia melhor do que eu vivia na casa dos meus pais, depois aí no Brasil que era tudo com dificuldade. Isso... agora, lá no orfanato, não se estudava, quer dizer, era orfanato pra... pra estudar a gente ia na escola pública da cidade que todos os alunos da cidade freqüentavam. Aliás, em 1976, em 1989, eu visitei a cidade, e por acaso encontrei um colega do orfanato, era o único que eu encontrei, foi uma alegria Bom, chegando em Belo Horizonte, eu não sabia a língua; o meu padrasto tinha uma alfaiataria e o contramestre era filho de sírio, e ele falava árabe, e eu também falava árabe e um pouco de inglês. Ele me ensinou o português e eu, conforme ele estava me ensinando o português, eu acabei per... esquecendo o árabe, algumas palavras eu ainda me lembro. E com tempo, esqueci o hebraico que eu sabia muito bem. Aliás, a última vez que eu fui... antes de ir pra Israel, em 1989, eu fiz um curso de hebraico na USP pra poder aprender e recordar tudo de novo. Bom, voltando para Belo Horizonte... meu padrasto me matriculou no Colégio Batista, estudei no Colégio Batista, e, depois de um certo tempo, ele fez uma, uma loja, trabalhei com ele na loja, depois eu vim numa viagem pra São Paulo, voltei de São Paulo pra Belo Horizonte, de Belo Horizonte uma viagem pra, pro Rio, do Rio pra São Paulo, de São Paulo novamente a Belo Horizonte. Era uma vida itinerante procurando o melhor... melhor... melhorar a vida, a situação econômica que era muito difícil No fim, eu comecei, já muito... 1935, mais ou menos, 33, 34, eu comecei a trabalhar com quadros. Eu vim aqui em São Paulo, comprava quadros religiosos e fui trabalhar no... em Belo Horizonte, para vender à prestação, pra pagar um mil réis, que seria hoje um real, por semana. E aí eu comprava sapatos na Rua Visconde de Parnaíba, me lembro agora, com sola de borracha de pneu, borracha de pneu, pra poder andar muito Porque tinha que andar, vender. Entre meus clientes, tinha alguns famosos e famosíssimos Um deles chamava Juscelino Kubitschek, que comprou à prestação, era médico Comprou à prestação Não era aquela política. Eu me lembro aqueles políticos de Belo Horizonte, não eram ricos, não eram tão corruptos Outro que era meu freguês era Israel Pinheiro, o primeiro prefeito de Brasília, que aliás ele que ajudou a construir Brasília. Com o tempo, eu fui, eu não consegui grande coisa em Belo Horizonte, e eu vim pra São Paulo, comecei a trabalhar numa casa de acessórios de automóveis pertencente ao meu tio, na Vila Mariana, Auto Guanabara que chamava, que era perto lá a Guanabara. De lá fomos pro Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro trabalhei numa agência de Chevrolet, uma agência de automóveis Chevrolet Chadler, que aliás o dono também era de Safed, aí foi mais fácil conseguir o emprego. Depois do Rio eu vim pra São Paulo, em São Paulo eu montei, com umas pequenas economias, montei uma pequena loja em Vila Mariana; em 1941 casei, minha mulher é de Niterói, e tivemos cuidado de não ter filhos aos primeiros anos, que a economia não dava, e um filho nasceu em 1945, e... trabalhei nessa... segurei a loja, ou a loja me segurou... (riso) me lembro que a loja até me segurou, e... depois eu vendi a loja, em 1949 e alguns dias depois consegui emprego na Papelaria Formosa, que estou até agora.
P - Certo. Vamos voltar um pouco, seu Jaime. Eu queria que o senhor me falasse mais assim... quando o senhor vendia os quadros religiosos, quem fornecia pro senhor, era a crédito, e como que o senhor vendia, lá em Belo Horizonte?
R - Era um alemão, era um alemão que tinha uma estamparia aqui na Penha, perto do Parque São Jorge, e a gente ia lá e comprava os quadros. E eu levava esses quadros pra Belo Horizonte, era à vista, e eu vendia à prazo. Aí que não dava mesmo Eu comprava a dinheiro, vendia à prazo, aí... o negócio não funcionou bem...
P - E que estampas saíam mais, assim... tinha alguma coisa que o pessoal...
R - Era mais, ah... Nossa Senhora Aparecida, que saía mais. Era Cosme e Damião, a Santa Ceia, ah... e outras aí que não me lembro mais. Eu procurava catequizar os católicos: chegava lá: "Ah, o senhor é católico, o senhor não, não tem nenhum quadro na sua casa, como é que é? Vamos..." "Mas eu não tenho dinheiro..." "Mas o senhor não precisa de dinheiro, eu lhe vendo...", e não podia dizer vender, o mineiro era muito religioso, era trocar: "Eu troco com o senhor com dinheiro pra pagar um mil réis toda a semana." E assim foi indo.
P - E o senhor ia de casa em casa receber depois?
R - De casa em casa... pois é, por causa disso eu comprava um sapato de, de sola de pneu.
P - Seu Jaime, o senhor estava me falando, além dos quadros, o senhor vendia sabonetes, eu queria que o senhor contasse um pouco sobre isso.
R - Ah, bom. Esse negócio de sabonete, é o seguinte: a Mina de... Morro Velho, né, em Nova Lima, todo o primeiro sábado do mês, eles faziam o pagamento. No dia seguinte, no domingo, muita gente de Belo Horizonte ia para Nova Lima pra vender porque eles tinham dinheiro naquela ocasião. E eu, pra poder ajudar na, na minha despesa, eu comprava sabonete, porque eu precisava de alguma coisa que todo o mundo usa, e enchia a mala de sabonete, de manhã cedo pegava... eu esqueci o nome, não era kombi, tem um nome específico, aquela, aquela viatura, esqueci o nome. Aí, se amontoava um em cima do outro, junto com as malas e ia até Nova Lima, não era estrada, ainda era era estrada de terra. E chegávamos lá. Nova Lima era uma cidade onde que no morro tinha os chalés, os bangalôs dos ingleses, porque era... dos ingleses, e embaixo tinha as casas que era... casas; e você entrava numa, numa sala, tinha 14, 15 camas, ao lado de cada cama tinha um caixote de querosene fechado onde que era o guarda-roupa do, dos operários. Então eu ia, de cama em cama, vendia sabonete. Era... o endereço deles. E, para ajudar no meu sustento, porque eu estudava de noite, eu precisava de mais dinheiro, eu gostava muito de livros, então eu tinha uma despesa extra, além de comer e dormir. Mas Nova Lima, é uma, hoje já faz muitos anos que eu não vou lá, não fui, mas era muito interessante ver como é que eles tiram o ouro lá das minas, como é que descem com os elevadores, não sei quantos, quantas centenas de metros, e era uma... uma coisa interessante. Depois, como que eu gostava de futebol, eu me lembro que Nova Lima conseguiu fazer um time de futebol que ganhou diversos campeonatos em Belo Horizonte, porque aquilo pertencia ao Atlético Mineiro e ao Cruzeiro. Isso era Nova Lima que eu procurava, procurava ganhar mais alguma coisa. Agora... posso falar de futebol?
P - Claro
R - Eu me lembro de futebol... então era... os times lá era, era Palestra e Atlético. Uma curiosidade nisso era que quase todo o estrangeiro era Palestra, porque era da colônia italiana; e de um lado tinha as gerais, as gerais eram ficar em pé, e do outro lado tinha as arquibancadas de madeira que era o pessoal que podia pagar mais. Eu estava na geral, e de repente o Palestra faz o gol. O Palestra faz o gol e um... e de repente ouve-se um tiro, um rojão. Um mulatão: "Quem foi?" e tirou um revólver desse tamanho: "Quem foi, quem foi?" e o cara que fez... escapuliu, senão ele seria morto aquela hora ali. Quer dizer, a violência (riso) já vem de longe, não é só agora. Isso, simplesmente um episódio.
P - E o que o senhor fazia como lazer, nessa época? Além do futebol tinha mais coisa?
R - Eu lia, não tinha nem rádio, eu lia, ia no cinema, gostava de circo, passeava no parque, lá tem um parque no centro da cidade, a gente passeava, depois de vez em quando passeava também... era o... televisão não tinha, era... rádio era o princípio de rádio, não era todo o mundo que tinha rádio, era muito... só gente rica que tinha rádio, e tinha que ligar três botões, tinha de ter antena, era muito, muito difícil. E também não tinha dinheiro pra comprar rádio. Então, era leitura; leitura, biblioteca, tinha o clube, a gente ia lá pra jogar ping-pong, eu era sócio do sindicato, Associação dos Comerciários, na época não era sindicato ainda, ia jogar ping-pong, xadrez, gostava muito do xadrez, é isso que era o lazer diário.
P - O senhor disse que estudou na Escola Batista, né?
R - Colégio Batista.
P - Colégio Batista.
R - E de noite eu estudava na Academia Mineira de Comércio e consegui me formar em contabilidade, mas nunca exerci a profissão.
P - No Colégio Batista, nessa época de colégio, o senhor tem alguma lembrança, assim, forte?
R - Eu tenho lembrança que os dirigentes, os dirigentes eram americanos, um deles era o doutor Jaime Zaley, era uma pessoa fantástica Sabia... era muito bom pra todo o mundo. E tinha internato também, era uma área enorme, parecia uma fazenda, ali, na Rua Pouso Alegre. Atrás do colégio não tinha mais nada, e tinha muito árvore, também, a gente arrancava as frutas, jogava-se futebol, basquete, vôlei. Os americanos jogavam tênis, pra mim era novidade, tênis, e me dava muito bem com todos, eu não falava bem o português, mas o pessoal me entendia com a mímica, tal etc., fui aprendendo o português. É isso. Ah... Mas foi uma época muito boa, muito boa, peguei a Revolução de 1930 em Belo Horizonte, tinha o 12º Regimento, lá no Calafate, eles começavam a atirar contra a polícia, e muitos proje... projéteis foram parar no meio da cidade. E, no fim, eles se entregaram, mas foi uma novidade, pra mim, aquilo, uma novidade a revolução. Não sabia o que é que é isso, de repente soldados andando com fuzis, metralhadoras, e no fim a revolução ganhou. Getúlio Vargas ganhou e Minas estava apoiando Getúlio Vargas. Conheci muitos políticos e... eu me lembro que o vice-presidente da República, Mello Viana, ele era mulato, e a mulher dele, ele morava na Rua Pernambuco, me lembro até agora, a mulher dele, nos fundos tinha um, tipo porão, mas um porão mais... melhorzinho, moravam estudantes, ela alugava, tinha de viver Era vice-presidente da República e a mulher trabalhava pra poder viver, sobreviver
P - Seu Jaime, nessa época, ainda em Belo Horizonte, o senhor começou a trabalhar com o tio do senhor?
R - Em Belo Horizonte? Não, comecei a trabalhar com o meu tio aqui em São Paulo, na casa de acessórios de automóveis.
P - Sim, mas antes de vir pra São Paulo, na Afonso Pena...
R - ...trabalhei com o meu padrasto.
P - Ah, sim Eu queria que o senhor falasse da loja, o que é que era...
R - A loja, era loja de casimiras, era só casimira. Então ele comprava no Rio de Janeiro ou em São Paulo as casimiras, pendurava com preços, e a gente tinha de atender os fregueses e vendia. Era na Avenida Afonso Pena, a principal avenida de Belo Horizonte. O aluguel era muito caro, e... despesas, impostos, aliás, naquele tempo era mais imposto, prefeitura, pra... porque o imposto de vendas... existia o imposto vendas mercantis, me lembro, mas ninguém pagava, era questão federal, tinha que pôr um selo, e tal, ninguém, ninguém usava; só muitos anos depois é que o negócio aí vingou, porque agora lido com esse negócio eu estou avaliando a diferença daquele tempo e agora em relação ao... a dinheiro que entra no, no estado, ou no município.
P - E quando que o senhor veio para São Paulo, seu Jaime?
R - Eu vim diversas vezes pra São Paulo.
P - Mas morar...
R - Morar foi em 37. Fim de 37, aí já estou definitivamente aqui.
P - E por que é que o senhor veio?
R - Por que eu vim? Bom, eu tinha uma namorada, e... consegui vir pra ficar perto dela, que aliás era uma prima, e depois eu larguei esse noivado. Mas eu vim, fiz uma pequena loja no... na Vila Mariana pra vender roupas, e depois eu larguei o noivado e em 41 me casei de novo, me casei com a mulher atual, que é de Niterói.
P - A loja da Vila Mariana, ela... era de roupas?
R - Era de roupas.
P - Como que era essa loja, quem era a clientela?
R - A clientela, como que em frente da loja tinha a estação dos bondes, Vila Mariana, então a maior parte da freguesia eram as famílias dos motorneiros e dos cobradores de bonde. Era a maior parte, entendeu? Tinha outra freguesia também, mas a maior parte era mais por eles. E... estava indo mais ou menos, não estava tão ruim assim, não. Consegui comprar uma casa, consegui ter um filho, foi indo.
P - O que é que o senhor mais vendia pra essas pessoas?
R - Era roupa, era camisas, gravatas, ternos; mantô de senhoras, taillers de senhoras, vestidos. Eu fabricava, confeccionava sozinho os vestidos, então, em vez de comprar uma peça de tecido, pra... primeiro eu comprava uma peça de tecido, então saía 10, 12 vestidos, todos eram iguais, então a freguesia: "Não tem, não quero essa cor." Aí eu resolvi comprar em cortes. Eu descia na Rua 25 de Março, em vez de comprar uma peça, eu comprava 30, 40, 50 cortes, um diferente do outro. Aí o negócio funcionou melhor. É isso.
P - E como é que era a 25 de Março, nessa época?
R - A 25 de Março, a maior parte era tecidos e... armarinhos. Toda a 25 de Março, tecido e armarinhos; e era movimentada também. Ah... começava na Ladeira General Carneiro, a 25 com... para Senador Souza Queiroz, né, pra lá, e era tecidos e armarinhos. Como é que ali, no... no fim da General Carneiro era o mercado municipal, então aquele lado que ia de lá até o viaduto, que hoje... não tinha o viaduto ainda, hoje o viaduto em frente à Secretaria da Fazenda, eram galinhas, ovos, patos, porcos, que o pessoal trazia das fazendas pra venderem. Agora está tudo mudado.
P - Antes da construção, né, do Mercado Central?
R - Antes, estavam construindo o mercado novo, depois demoliram aquilo lá, fizeram uma rua e... a Rua General Carneiro, suponhamos, era rua de lojas de ferragens e de louças, de presentes, que nem tem agora... lá na Consolação de, de lustres, e tal, era... Santa Ifigênia tem agora eletrônicos, antigamente Santa Ifigênia era modas, era a maior parte de modas. Porque... posso falar disso?
P - Claro
R - Por quê? Porque perto tinha muitas ruas de prostituição e dancings. Então, Santa Ifigênia era lojas de peles, roupas pra senhoras e chapéus de senhoras, usava-se muito chapéu, mulher não saía sem chapéu Então, modelos de chapéus era muito. Outra rua que também tinha modas era a Liberdade. Aliás eu fiz essa, o roteiro... então, Liberdade; por que Liberdade? Porque na Rua Rodrigo Silva tinha muitos bordéis, então tinha modas na Rua Liberdade também. Negócio... isso, São Paulo, me lembro... posso falar de São Paulo?
R - O senhor estava me falando da... do Largo São Bento.
P - Largo São Bento, Largo São Bento era o mercado de empregadas. Então, a maior parte de empregadas, brasileiras eram muito pouco, eram lituanas, polonesas, russas... era aquela imigração que vinha após guerra, após a Primeira Guerra Mundial, que vieram fugindo do comunismo, então procuravam... os maridos trabalhavam em fábricas, na Mooca, e as mulheres tinha de procurar emprego. Então vinha as madames de São Paulo pra procurar e... olhava pra uma, combinava preço etc. A gente via isso. Não era prostituição, era coisa séria Outra coisa que tinha interessante aqui, era a maior... a guarda civil tinha de ter, mínimo, um metro e oitenta de altura. Uma grande parte deles também eram estrangeiros. Inclusive muitos andavam, na lapela, com as cores das línguas que eles falavam. Então, tinha guarda civil que falava quatro, cinco línguas. Inglês, francês, alemão, russo... e era isso. Depois degringolou, isso, mas era beleza, eram aqueles altos, fortes, bonitões... todos bem-educados, atendiam bem. Isso era... uma lembrança de São Paulo que eu tenho. Além disso tinha a guarda noturna. Guarda Noturna era a que todas as ruas e toda a casa, foram em todas as casas, cada casa, cada família pagava um... uma mensalidade pra essa guarda noturna, e tinha guarda noturna de noite, apitando, e tomando conta, e tal. Também não tinha esses assaltos que tem hoje, né? Ah...
P - E a Barão de Itapetininga?
R - Barão de Itapetininga, a Barão de Itapetininga tinha... era a rua de luxo, era rua de luxo, era rua de modas, peles, restaurante, bar de luxo. E... eu me lembro, a primeira casa de luxo de vestidos era a Madame Geni, depois veio Madame Rosita, depois a Madame Rosita mudou pra Avenida Paulista e aquilo degringolou, ficou aquilo que nós sabemos o que é que é hoje. Ah... rua... na Praça João Mendes, na Praça João Mendes tinha o Teatro Recreio, e lá eu consegui ver muitas peças de teatro com Manuel Durães, não me lembro o nome da partner dele que era irmã de... Odilon de Azevedo não, esqueci o nome da...
P - Não tem problema.
R - ...não sei se... Dulcina de Morais Os artistas principais naquele tempo as estrelas eram, e os stars, eram Procópio, Jaime Costa, Mesquitinha, e... Mesquitinha, Odilon de Azevedo e tinha a Dulcina de Morais, em mulheres; e tinha o Oscarito, Oscarito usava muito o Teatro Cassino Antártica, na Rua Anhangabaú. Tinha um outro teatro, mais de luxo, que era o Santana; companhias melhores, não sendo operetas, iam no... Santana. Cinemas, Avenida São João era avenida de luxo, cinemas de luxo, não se podia entrar sem gravata, me lembro que fui uma vez bem vestido mas sem gravata, me barraram, não podia entrar, e... as primeiras peças que vinham eram na Avenida São João, ah... cinema de luxo era Paramount também e tinha, na Rua Consolação, dois cinemas, o Odeon sala azul e sala vermelha, a sala vermelha era mais luxuosa. Mas tudo atapetado, tudo bonito Hoje não se vê mais cinema assim Mesmo o Metro, o Metro era... me lembro a peça do... E o Vento Levou, aquilo encheu semanas e semanas sem parar, aquilo lá, três horas, era uma novidade, entendeu? E futebol, o que me lembro, que era proibido, só uma estação de rádio tinha autorização de irradiar, não tinha televisão, ainda..., de irradiar. Os jogos eram no Parque Antártica, que é... era Palestra, agora, Palmeiras. Mas, a Rádio São Paulo, por intermédio de Aurélio Campos, e Murilo Antunes Alves, que ainda está vivo, eles conseguiram fazer um tipo de torre Eiffel atrás do Estádio do Palmeiras, bem alto, e de lá, ninguém podia proibí-lo, e de lá irradiava o jogo, ficava com binóculo, irradiava o jogo de futebol. Era um marco aquilo lá, interessante, imagina Não se podia irradiar, hoje... Eu me lembro, suponhamos, quando veio o cinema sonoro, cada, cada sala de cinema tinha sua pequena, seu pequeno conjunto que tocava; porque era... os filmes eram, eram escritos, não eram falados, e a música tocava, a gente olhava. Quando veio o cinema sonoro, eles fizeram protestos, greves, que vão tirar o... o...
P - ...o emprego...
R - ...o emprego, e tal etc. No entanto, hoje tem... procura-se emprego... sendo músico bom, não tem problema, arranja emprego à vontade. E no rádio, a mesma coisa. Na televisão, futuramente, também vai ser a mesma coisa. Ah... eu me lembro, um fato interessante que... eu morava ali perto, na rua, na Rua Carlos Petit, em Vila Mariana, perto da caixa dágua, eu morava na Rua Manuel de Paiva esquina Carlos Petit, e lá morava Afonso Schmit. Afonso Schmit era um escritor conhecido, poeta, ele andava sempre pensativ, e morava Alcebíades; Alcebíades era um palhaço, que ele tinha um circo muito famoso, e sempre os dois andavam juntos e um dia, eu me lembro, Afonso Schmit escreveu uma crônica belíssima sobre Alcebíades. Circos tinha o Arrelia que ficou muito tempo na Praça da Liberdade.
P - Era um lugar fixo?
R - Era fixo dele. Até que mandaram embora porque tinha que construir... (riso) E tinha Piolim, na Avenida General Olímpio da Silveira, também ficou alguns anos lá. Piolim era o mais famoso palhaço aqui de São Paulo. São Paulo e do Brasil, praticamente. Agora, teatros... em 1950, eu fui pra Buenos Aires. E em Buenos Aires tinha mais ou menos funcionando toda a noite uns 30 teatros. Em São Paulo não tinha nem um, tinha dois, três. O que funcionava muito era o Teatro Colombo, ah... no Largo da Concórdia, foi demolido, que... como é que... Brás... era a maior parte de... da colônia italiana, então vinha aquelas operetas italianas ali, aquilo funcionava constantemente.
P - O senhor lembra de alguma opereta que o senhor tenha gostado...
R - Não me lembro, eu não assisti lá no... Colombo. Eu me lembro de operetas, de chanchadas de Oscarito com Violeta Ferraz, a gente morria de dar risada. A gente caía das cadeiras de dar risada. Todo o teatro, sempre lotado, lotado Era chanchada mas era gostoso Ah... Rua Boa Vista, já falei?, Rua Boa Vista era interessante porque não era rua de bancos, que nem agora. Bancos era Rua XV de Novembro. Rua Boa Vista era a maior parte de grandes armazéns de tecidos, de portugueses. A maior parte, pode-se dizer 90%, era portugueses. Português era muito educado, atendia muito bem aos clientes, e eu me lembro que em diversos estabelecimentos eles tinham suas próprias pensões para receber os clientes que vinham do interior Do, do, de Mato Grosso, de Goiás, de Minas, pra ficar lá Ficavam lá e eram bem tratados, de graça, dormir e tomar café, comida já é outra coisa, mas isso funcionou por muitos anos, assim, depois desapareceu Depois virou memo a rua dos, dos bancos. Eu me lembro, Praça do Correio, banca de jornais, na praça... uma grande banca de jornais, recebia jornais do mundo inteiro, inclusive da União Soviética. Eu comprei jornal da União Soviética em iídiche, na língua, que vinha aqui, até a época de Getúlio. Depois, quando veio a ditadura de Getúlio, aí não podia mais entrar. Quem que tinha um jornal daqueles podia ir preso. A zona de prostituição era a Rua Amador Bueno e Rua Ipiranga, não era Avenida Ipiranga, era Rua Ipiranga, uma parte, e ali em volta tinha os dancings, a gente ia lá pra dançar com as moças; tinhas as cartelas, que cada... cada vez que... ia lá a moça apertava, no fim tinha de, de pagar, então... mas na época do Adhemar, tinha de mudar, tinha de fazer a Avenida Ipiranga, ele mudou a prostituição pro Bom Retiro, Rua Aimorés e Rua Itaboca. E... eu quero salientar, que ele não era... o pessoal que mora lá, a maior parte judeus que mora, foram lá pedir pra... pra não pôr lá, arranjar outro lugar, mas parece que ele não queria. Ele também, a época de Getúlio, como que ele era muito para o... para o fascismo, então todos os interventores que ele colocou, que o Adhemar de Barros era um também, também era mais ou menos a favor, então ele foi contra os judeus, não queria nem receber; era, em princípio, anti-semita. Mas eu me lembro, depois da Segunda Guerra Mundial, depois do Estado de Israel, veio o Begin, Begin é aquele que fez a paz com o Egito, veio o Begin pra São Paulo, eu me lembro, ele mandou o carro oficial dele com motociclistas, com bandeirinhas, pra receber o Begin, ele recebeu ele no... aí o negócio ficou limpo... recebeu ele no palácio, Adhemar de Barros.
P - Seu Jaime, e... o senhor trabalhou com a loja ali na Vila Mariana até...
R - Até 1949. Depois entrei na Papelaria Formosa, e lá, como é que o caso é de livros e guias fiscais, é a especialidade daquilo lá, eu fui fazer cursos aleatórios de direito, direito comercial, tributos, impostos de consumo, que hoje é IPI, imposto de renda, imposto de vendas e consignaçðes; inclusive quando modificaram a... o imposto de vendas e consignaçðes, isso foi em 1971, aí me convocaram na Secretaria da Fazenda pra dar uma mãozinha lá, eu fui lá trabalhar. Agora, há um caso, caso interessante...
P - Aquele de quando saiu o... de lançamento...
R - Quando saiu o... de repente, BNH - Banco Nacional de Habitação, de todo o aluguel que a pessoa recebia, tinha de pagar uma porcentagem pro Banco Nacional de Habitação e tinha uma data marcada, até aquela data, pra recolhimento. Ninguém tinha as guias, e nós que fabricamos guias não tínhamos as guias. Eu fui no representante do BNH, não tem guias, fui no Banco do Brasil, não tem guias. Aí eu telefonei para o Banco Nacional no Rio de Janeiro, que era a presidente era a Sandra Cavalcanti, uma secretária dela me atendeu, e eu disse: "As guias, como é que..." "Ah, está na minha mesa" "Tá na tua mesa mas precisava estar na minha mesa, não na tua." "E como é que fazemos?" Falei: "Olha, você vai me fazer um favor, você vai... você vai me fazer a gentileza: você pega as guias, você vai até o aeroporto, que era no centro da cidade, Santos Dumont, você entrega pro capitão do avião da Vasp, pra me trazer a guia, e eu vou esperá-lo." Porque antes, não tinha cada meia hora, era três, quatro vezes, a gente sabia o horário de chegada. E... pedi o nome dela, pedi o endereço dela, onde que mora, lá na Copacabana, não me lembro onde, e... eu agradeci muito, fui na Kopenhagen, mandei uma caixa... mandei entregar uma caixa de bombons à casa dela, isso de... não é de corrupção, simplesmente de agradecimento pela gentileza que ela me fez, e no dia seguinte, batata: eu fui lá, o capitão do aeroporto me entregou a coisa, peguei um carro, fui até a nossa gráfica, isso era mais ou menos terça-feira, quarta-feira, e o... e não tinha computação que nem agora, não era tão fácil de fazer, que as gráficas ainda era linotipo, montagem e tal. Peguei o tipógrafo, mandei... pedi pra ele trabalhar a noite inteira na gráfica, que de fato ele ficou a noite inteira trabalhando, e eu por vez em quando telefonando pra ver se ele não está dormindo, e no dia seguinte começaram a blocar... a imprimir, eu dei anúncio, na quarta-feira eu dei anúncio pra sair na quinta-feira, que na sexta-feira vai ter guias na Formosa, vai ter guias pra pagamento porque o prazo estava se aproximando do fim, pra pagamento. Quando foi na sexta-feira... Quando foi na sexta-feira... Eu cheguei 7 horas, já tinha uma fila enorme A fila andou a Rua Formosa, durante o dia, o dia inteiro, Rua Formosa, subia a Avenida São João, entrava na Rua Conselheiro Crispiniano, passava o quartel general do segundo exército, era o quartel general, o capitão viu o negócio, não sabia o que é, telefonou pra Secretaria de Segurança, mandaram uns oito, dez guardas, e ficaram tomando conta da, da fila e... eu pus mais uma caixa pra poder ajudar lá, e aquele que dava dez cruzeiros, ou dez reais, sei lá, pro guarda, podia furar a fila. Então, era um negócio que era vantajoso pros guardas, naquele tempo também. Bom, eu sei que ficou o dia inteiro a fila. Quando foi à tarde veio o representante do Estado de S. Paulo me entrevistar, saiu, até que tenho o recorte aí no jornal, que eu vou mostrar pra vocês, e o mais interessante é que o pessoal do Banco do Brasil chegaram: "O que é que o senhor tá fazendo?" Falei: "Estou vendendo guias." "Como o senhor está vendendo guias?" "Ora, estou vendendo guias" E tinha de recolher no Banco do Brasil, isso que era, não tinha esse negócio de recolher em qualquer banco. "Mas nós não..." Falei: "Olha, no sétimo andar vocês têm guias, eh... vocês têm guichês abertos sem função. Ponham lá gente." Aí foram lá, depois eles voltaram e: "Está cheio de gente lá, então muita gente está querendo guias. O senhor podia nos fornecer as guias?" Falei: "Perfeitamente. Quantas guias?" "Dá 200 blocos" Dei 200 blocos, e eles foram vendendo lá no, no banco. Quando chegou à tarde, chegaram, trouxeram, falei: "Olha, eu vou dar... pro contador eu dou 20% de desconto..." "Nós não queremos desconto, não." Pagaram, e assim funcionou. Já na semana seguinte todo o mundo, outras gráficas já fizeram. Isso foi praticamente um diploma meu, isso foi um diploma da minha atividade naquela... hoje eu não tenho mais esse espírito, e tal, mas era espírito de, de competitividade. Outro caso interessante foi... saiu no jornal sobre três livros, livro de exportação: Mercadoria Exportada Diretamente da Fábrica, Mercadoria Exportada por Intermédio de um Revendedor e Mercadoria Exportada por Intermédio de Armazéns Gerais, que é Santos, Paranaguá e tal. Eu peguei o Diário Oficial, quando vejo, eu vejo 12 livros, em vez de três. Porque eles fizeram, dividiram muito mal na publicação do Diário Oficial. Porque eu leio todo o dia três diários oficiais: Diário do Estado de São Paulo, Diário Oficial do Estado de São Paulo, Diário Oficial do Município e Diário Oficial da União. Eu tenho de ler, porque as principais, os... principais portarias, decretos que se referem a meu ramo. Bom, aí eu peguei, fui lá na Recebedoria Federal e... fui lá no diretor pra ele me explicar, diz: "Não, vai lá..." Fui lá, o outro me mandou pra lá, e o outro pra baixo e vai em cima, vai em cima, vai naquela sala, vai lá, eu não entendo, o outro entende, tal... no fim, lá embaixo, no plantão dos fiscais onde que atende; eu esperei na fila, chegou a minha vez, falei: "Olha..." "O senhor quer isso pra quê?" Falei: "Não, é pra exportar, pra exportação." Olhou assim: "O senhor vai me desculpar mas eu não estou entendendo disso, o senhor faça o favor de ir na Rua Formosa, na Papelaria Formosa, procura o senhor Jaime, que ele lá vai lhe explicar isso aqui." "Muito obrigado"... Fui embora, que é que eu vou fazer? (riso) Mas tinha outros casos, muito caso pitoresco que... aconteceu comigo nesse negócio de... de fiscalização, de coisa aí.
P - Seu Jaime, a Papelaria Formosa ela sempre foi especializada...?
R - Sempre foi especializada em... a Papelaria Formosa começou com um italiano, um tal Louzaço, em 1926, parece. Em 1927 ele se engajou na campanha de imprimir coisa pra Aliança Liberal, que era a candidatura de Getúlio Vargas. Depois ele se viu mal e tal, ficou devendo dinheiro, e tal, ele vendeu então pro pai do senhor Leon Feffer, seu Leon Feffer é hoje o dono da Companhia Suzano de Papel e mais um montão de empresas que... de bastante atividade. Seu Leon Feffer este mês vai fazer 92 anos e ainda está em ativa. Bom, mas isso era do pai dele, a papelaria era do pai dele até 1955, quando ele faleceu. O pai era imigrante que veio pro Brasil da Rússia no princípio do século, e ele vendia material de escritório, no interior, ia pra Goiás, Mato Grosso e tal. Ele me contava que ele viajava junto com Maurício Klabin, o dono da fábrica... o patriarca da, dos Klabin. Ele e mais um sírio, árabe que tinha uma tecelagem na Lapa que chamava Tecelagem Iodete, eu cheguei a conhecer esse sírio, Maurício Klabin, não? Eles viajavam, alugavam um quarto, ficavam lá juntos e cada um ia trabalhar. O Maurício Klabin trabalhava com calendários suíços, aqueles assim, e aceitava serviços gráficos: notas fiscais, papel de carta, envelopes; ele vinha pra São Paulo, fazia, depois ele despachava. E o... o seu Feffer trabalhava com material de escritório: clips, fitas, enfim, todo esse negócio aqui, e vendia. Não era lá grande coisa mas ele se sustentava. Isso foi logo no princípio do século. Inclusive, um fato, um fato interessante, pitoresco - se vocês me permitem contar -, ele me contava que em Cuiabá, ele entrou no bar, que nem eu estou sentado aqui, ele sentou, ele mais um colega dele lá, em frente lá do balcão tinha dois fregueses... não, tinha um freguês e o balconista atendendo ele bebendo cachaça, ou... qualquer coisa. Ao lado dele tinha dois caboclos sentados, e um falando pro outro: "Você aposta quanto?" "Eu aposto 100 mil réis." "De quê?" "Direita." "Não, eu aposto esquerda, direita, esquerda." Aí um tirou um revólver, pá acertou no cara que estava lá, diz: "Você viu, era a direita, você perdeu" e foi embora... (riso) Isso ele me contou Caso que... aconteceu muitos casos semelhantes. Depois que faleceu o senhor... o nome dele era Simpson Feffer, ficou pra família Feffer que continua até agora. Só que faz uns 30 anos que eles não aparecem lá na firma.
P - O senhor é que cuida...
R - Eu cuido, agora eu cuido. Cuido da loja, tem mais uma loja na Rua Silveira Martins, e tem a gráfica na Rua Sapucaia, na Rua Sapucaia ocupamos um espaço... ocupávamos um espaço de 6.800 m2. E lá tem mais ou menos dez... naquele conjunto, é uma área de 52... 50.000 m2 que é ocupado por dez indústrias, ali. Era da antiga Cosmopolita. Cosmopolita era uma fábrica de fogões e de aquecedores a gás. Não existe mais, agora pertence a uma companhia lá do Rio Grande do Sul; e eles alugaram, estamos... não é nosso prédio, mas é alugado, estamos lá com a gráfica. A loja é aqui na Rua Formosa e na Rua Silveira Martins.
P - Seu Jaime, e quando que a Papelaria Formosa se especializou em material... em tributação...
R - Não... quando eu entrei, já, já estava especializado. Por quê? Porque em frente tinha a Recebedoria Federal, era em frente, depois foi explodida pra fazer aquele túnel do Adhemar, que chamava Buraco do Adhemar, que agora já é Jânio e Erundina, o negócio mudou. (riso) Era lá a Receita Federal e todo o mundo, toda a cidade... pra pagar imposto, comprar selos, tudo isso era lá. Então a papelaria era um ponto para poder vender essas guias e livros fiscais e tal que eram necessários pra Receita Federal. É por isso que... eu quando cheguei já estava isso em função, e eu ampliei mais um pouco e...
P - Eu queria que o senhor falasse um pouco do atendimento, que o senhor estava me dizendo como que é o atendimento aos clientes.
R - Bom, atendimento de cliente, eu fiz um... eu tinha um... um princípio de atender bem. Aliás, é bem atendido esse cliente. Por princípio, quando chegava muitos clientes do interior, eu perguntava... muitos, na época do Pelé, muita gente vinha sexta-feira pra poder assistir o jogo de Pelé. É Incrível "Eu preciso fazer compras." Então, em vez de vir, ele precisava fazer compras, então, em vez de vir no meio da semana, ele vinha na sexta, fazia as compras, sexta e sábado ficava aqui pra domingo assistir o jogo do Pelé ou ir pra Santos, que é... e depois voltar. Mas eram inúmeros fregueses. Muitos vieram... vinham com a família. Eu perguntava: "Onde que você está com sua esposa?" "Ah, estou naquele hotel..." Eu ia almoçar, olhe, depois do almoço eu saía do almoço ia na Kopenhagen comprava uma, uma caixa de bombons, mandava entregar pra senhora dele lá no... no hotel. Esse freguês nunca mais ia comprar em outro lugar (riso) Até agora eu tenho muitos fregueses assim, filhos já de fregueses, entendeu? Eu atendia bem, convidava pra almoço, combinava com o freguês depois de fechar pra tomar, num bar, tomar um drinque, conversar, conversava sobre os assuntos gerais...
P - E também ajudava no próprio preenchimento dos recibos, não era? O senhor estava me dizendo...
R - Não, ajudava na orientação aos clientes. O cliente vinha: "Eu quero isso, aquilo..." "Tem isso, você tem de preencher assim..." Era uma orientação básica pra ele não ter problemas, não precisava amolar o pessoal das, das recebedorias. E continua até agora Até agora o pessoal meu, o pessoal lá do balcão, atende o freguês, explica direitinho. Entendeu? A base é isso da Formosa: é atender e ajudar. Eu, modéstia à parte, mas colaborei muito com o governo nesse negócio aí. Eliminei muita dor de cabeça de pergunta lá nos balcðes da, nos guichês da recebedoria até agora, isso... Um dia... eles me reconhecem, porque eu gosto muito do Brasil... O Brasil é um país fantástico, o melhor do mundo, não há preconceito, deixa todo o mundo trabalhar... não sei se falei que tomei parte na Revolução de 32... (riso)
P - Não, o senhor não falou. O senhor quer falar...
R - Eu fui fazer... eu queria me alistar, fui me alistar, fui trabalhar no escritório, mas um dia me levaram pro quartel pra no dia seguinte... coiso... e apareceu o meu padrasto, me tirou dali... (riso)
P - (riso) Seu Jaime, a gente está terminando a entrevista, eu queria que o senhor me falasse assim... se o senhor fosse mudar alguma coisa na sua vida, na sua trajetória, o que é que o senhor mudaria?
R - Não, não mudaria não. Eu vivo muito bem com minha mulher, meus filhos são fantásticos, são os melhores filhos que eu tenho no mundo, não existe igual no mundo... meu filho está chegando da China de um projeto de fazer uma barragem lá na China, entendeu? Uma coisa fantástica Ele estava me contando, ele, quando voltou, ficou duas horas em casa, toda a família reunida, deu uma aula de geografia, de história, sobre o Oriente, lá, China, Japão, Cingapura. Ele ficou encantado de Singapura, deu nota dez pra Singapura... Ficou encantado, me contou um negócio que vale... eu tenho contado pra muita gente o que ele me contou, que vale a pena É interessante. Por isso que eu não tenho nada que escolher, a única coisa, eu gosto de ler, eu gosto de escrever, eu traduzi um... eu tenho um genro que é grego, nasceu na Grécia, e ele não sabe... aí eu traduzi um... sobre a Grécia, distribui mais ou menos uns três mil livretos, entendeu, sobre a vida de judeus na Grécia, que é... somos judeus. Isso aqui. A minha maior alegria é estar no Brasil, ver meus filhos, são brasileiros, trabalham, e lutam, e tudo isso.
P - E o senhor tem um sonho que o senhor gostaria de realizar?
R - Não, com essa idade eu não tenho mais sonho nenhum, a não ser viver mais... (riso)
P - (riso) E pra gente terminar, seu Jaime, o que é que o senhor achou de ter ficado essa hora com a gente, conversando, deixando registrada a sua vida...
R - ...tudo agradável, duas moças bonitas... (riso) não podia ser melhor do que isso... educadas, estou muito satisfeito e só posso agradecer vocês. Muito obrigado.
P - Nós é que agradecemos (riso) P - Diga seu nome, o local e a data de nascimento.
R - O meu nome é Chaim Siche Kuperman; para o português, é Jaime Kuperman. Eu nasci na cidade de Safed, na Palestina, hoje Israel, em 21 de março de 1915, e... eu não conheci meu pai. Quando eu tinha um ano ele faleceu. E minha mãe casou novamente, com meu padrasto, e eu como órfão, fiquei na casa da minha avó. Fiquei na casa de minha avó durante cinco anos, que ela cuidava de mim. Agora, como... ela... a dificuldade, dificuldade, de depois... após guerra, na Palestina era muito ruim, ela tinha que se sujeitar a lavar roupas de tuberculosos que vinham pra aquela cidade, que era uma cidade de clima - que nem Campos do Jordão ou São José dos Campos aqui - e ela se sujeitou a lavar roupa e a fazer comida pra esses tuberculosos. Aí ela tinha medo que eu pudesse me contaminar. Ela pegou e conseguiu me internar num orfanato, mais ou menos tinha uns 40 meninos, só de meninos, e, com o tempo, ela conseguiu, também, se empregar como cozinheira pra poder tomar conta de mim. A minha mãe e o meu padrasto vieram pro Brasil em 1920, junto com familiares da minha mãe, e irmã, uma irmã, e filhos, sobrinhos, vieram; que o marido da... o marido da minha tia, cunhado da minha mãe, morava em Belo Horizonte antes da Primeira Guerra Mundial, isso tudo é durante a guerra mundial. Aí vieram pro Brasil e eu fiquei lá em Safed, ah... no orfanato. Com o tempo, ela queria que eu fosse... minha mãe queria que eu viesse pro Brasil, e minha avó, do outro lado, não deixava, queria cuidar de mim. No fim... até 1928, ela conseguiu - não sei por que meio -, me mandou passagem para eu vir pro Brasil. Eu saí... mais ou menos 18, 19 de abril de 1928, do Porto de Jaffa; viajamos até Marselha, na França. Em Marselha ficamos uma semana, depois fomos pra Cherburgo; em Cherburgo pegamos o navio da Royal... ah... Royal Line, até o Brasil. Cheguei pro Rio de Janeiro, meu padrasto me esperou no Rio de Janeiro e me levou até Belo Horizonte.
P - Seu Jaime, voltando um pouquinho, eu queria que o senhor falasse assim: como é que era o dia-a-dia no orfanato?
R - O orfanato era um... era portas abertas, o orfanato. Era... no princípio era muito rígido, devido à religião. A gente tinha de levantar de madrugada para estudar a religião, principalmente a religião, e rezar. Depois... depois de algum tempo, alguns anos, entrou, assumiu a direção do orfanato um dos pioneiros dos eh... kibutzim, de Israel. É um homem, aliás ele consta, esse diretor consta do dicionário hebraico, o nome dele, ele era inclusive escritor... e ele como homem de idade, ele começou a dirigir o orfanato. E aí, com ele, aprendemos a comer com garfo, aprendemos a escovar os dentes e aprendemos a ler livros. E... o tratamento era ótimo Muita gente, muitos meninos que não eram no orfanato, gostariam de ir no orfanato. Quem sustentava o orfanato era, era pessoal que nasciam em Safed, que nasce... e estavam em Nova Iorque, e nos Estados Unidos, eles fizeram uma sociedade em auxílio ao orfanato de, de Safed, e mandavam o dinheiro pra sustentar isso, por menos até 1928, que eu saí, era isso. Então, vivia-se muito bem, tínhamos liberdade, foi formada uma orquestra, eh... fazia-se correio, aprendemos a filatelia, que até agora eu gosto muito de filatelia, tenho uma bonita coleção de selos de Israel, e... era muito bom. Eu acho que naquele tempo eu vivia melhor do que eu vivia na casa dos meus pais, depois aí no Brasil que era tudo com dificuldade. Isso... agora, lá no orfanato, não se estudava, quer dizer, era orfanato pra... pra estudar a gente ia na escola pública da cidade que todos os alunos da cidade freqüentavam. Aliás, em 1976, em 1989, eu visitei a cidade, e por acaso encontrei um colega do orfanato, era o único que eu encontrei, foi uma alegria Bom, chegando em Belo Horizonte, eu não sabia a língua; o meu padrasto tinha uma alfaiataria e o contramestre era filho de sírio, e ele falava árabe, e eu também falava árabe e um pouco de inglês. Ele me ensinou o português e eu, conforme ele estava me ensinando o português, eu acabei per... esquecendo o árabe, algumas palavras eu ainda me lembro. E com tempo, esqueci o hebraico que eu sabia muito bem. Aliás, a última vez que eu fui... antes de ir pra Israel, em 1989, eu fiz um curso de hebraico na USP pra poder aprender e recordar tudo de novo. Bom, voltando para Belo Horizonte... meu padrasto me matriculou no Colégio Batista, estudei no Colégio Batista, e, depois de um certo tempo, ele fez uma, uma loja, trabalhei com ele na loja, depois eu vim numa viagem pra São Paulo, voltei de São Paulo pra Belo Horizonte, de Belo Horizonte uma viagem pra, pro Rio, do Rio pra São Paulo, de São Paulo novamente a Belo Horizonte. Era uma vida itinerante procurando o melhor... melhor... melhorar a vida, a situação econômica que era muito difícil No fim, eu comecei, já muito... 1935, mais ou menos, 33, 34, eu comecei a trabalhar com quadros. Eu vim aqui em São Paulo, comprava quadros religiosos e fui trabalhar no... em Belo Horizonte, para vender à prestação, pra pagar um mil réis, que seria hoje um real, por semana. E aí eu comprava sapatos na Rua Visconde de Parnaíba, me lembro agora, com sola de borracha de pneu, borracha de pneu, pra poder andar muito Porque tinha que andar, vender. Entre meus clientes, tinha alguns famosos e famosíssimos Um deles chamava Juscelino Kubitschek, que comprou à prestação, era médico Comprou à prestação Não era aquela política. Eu me lembro aqueles políticos de Belo Horizonte, não eram ricos, não eram tão corruptos Outro que era meu freguês era Israel Pinheiro, o primeiro prefeito de Brasília, que aliás ele que ajudou a construir Brasília. Com o tempo, eu fui, eu não consegui grande coisa em Belo Horizonte, e eu vim pra São Paulo, comecei a trabalhar numa casa de acessórios de automóveis pertencente ao meu tio, na Vila Mariana, Auto Guanabara que chamava, que era perto lá a Guanabara. De lá fomos pro Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro trabalhei numa agência de Chevrolet, uma agência de automóveis Chevrolet Chadler, que aliás o dono também era de Safed, aí foi mais fácil conseguir o emprego. Depois do Rio eu vim pra São Paulo, em São Paulo eu montei, com umas pequenas economias, montei uma pequena loja em Vila Mariana; em 1941 casei, minha mulher é de Niterói, e tivemos cuidado de não ter filhos aos primeiros anos, que a economia não dava, e um filho nasceu em 1945, e... trabalhei nessa... segurei a loja, ou a loja me segurou... (riso) me lembro que a loja até me segurou, e... depois eu vendi a loja, em 1949 e alguns dias depois consegui emprego na Papelaria Formosa, que estou até agora.
P - Certo. Vamos voltar um pouco, seu Jaime. Eu queria que o senhor me falasse mais assim... quando o senhor vendia os quadros religiosos, quem fornecia pro senhor, era a crédito, e como que o senhor vendia, lá em Belo Horizonte?
R - Era um alemão, era um alemão que tinha uma estamparia aqui na Penha, perto do Parque São Jorge, e a gente ia lá e comprava os quadros. E eu levava esses quadros pra Belo Horizonte, era à vista, e eu vendia à prazo. Aí que não dava mesmo Eu comprava a dinheiro, vendia à prazo, aí... o negócio não funcionou bem...
P - E que estampas saíam mais, assim... tinha alguma coisa que o pessoal...
R - Era mais, ah... Nossa Senhora Aparecida, que saía mais. Era Cosme e Damião, a Santa Ceia, ah... e outras aí que não me lembro mais. Eu procurava catequizar os católicos: chegava lá: "Ah, o senhor é católico, o senhor não, não tem nenhum quadro na sua casa, como é que é? Vamos..." "Mas eu não tenho dinheiro..." "Mas o senhor não precisa de dinheiro, eu lhe vendo...", e não podia dizer vender, o mineiro era muito religioso, era trocar: "Eu troco com o senhor com dinheiro pra pagar um mil réis toda a semana." E assim foi indo.
P - E o senhor ia de casa em casa receber depois?
R - De casa em casa... pois é, por causa disso eu comprava um sapato de, de sola de pneu.
P - Seu Jaime, o senhor estava me falando, além dos quadros, o senhor vendia sabonetes, eu queria que o senhor contasse um pouco sobre isso.
R - Ah, bom. Esse negócio de sabonete, é o seguinte: a Mina de... Morro Velho, né, em Nova Lima, todo o primeiro sábado do mês, eles faziam o pagamento. No dia seguinte, no domingo, muita gente de Belo Horizonte ia para Nova Lima pra vender porque eles tinham dinheiro naquela ocasião. E eu, pra poder ajudar na, na minha despesa, eu comprava sabonete, porque eu precisava de alguma coisa que todo o mundo usa, e enchia a mala de sabonete, de manhã cedo pegava... eu esqueci o nome, não era kombi, tem um nome específico, aquela, aquela viatura, esqueci o nome. Aí, se amontoava um em cima do outro, junto com as malas e ia até Nova Lima, não era estrada, ainda era era estrada de terra. E chegávamos lá. Nova Lima era uma cidade onde que no morro tinha os chalés, os bangalôs dos ingleses, porque era... dos ingleses, e embaixo tinha as casas que era... casas; e você entrava numa, numa sala, tinha 14, 15 camas, ao lado de cada cama tinha um caixote de querosene fechado onde que era o guarda-roupa do, dos operários. Então eu ia, de cama em cama, vendia sabonete. Era... o endereço deles. E, para ajudar no meu sustento, porque eu estudava de noite, eu precisava de mais dinheiro, eu gostava muito de livros, então eu tinha uma despesa extra, além de comer e dormir. Mas Nova Lima, é uma, hoje já faz muitos anos que eu não vou lá, não fui, mas era muito interessante ver como é que eles tiram o ouro lá das minas, como é que descem com os elevadores, não sei quantos, quantas centenas de metros, e era uma... uma coisa interessante. Depois, como que eu gostava de futebol, eu me lembro que Nova Lima conseguiu fazer um time de futebol que ganhou diversos campeonatos em Belo Horizonte, porque aquilo pertencia ao Atlético Mineiro e ao Cruzeiro. Isso era Nova Lima que eu procurava, procurava ganhar mais alguma coisa. Agora... posso falar de futebol?
P - Claro
R - Eu me lembro de futebol... então era... os times lá era, era Palestra e Atlético. Uma curiosidade nisso era que quase todo o estrangeiro era Palestra, porque era da colônia italiana; e de um lado tinha as gerais, as gerais eram ficar em pé, e do outro lado tinha as arquibancadas de madeira que era o pessoal que podia pagar mais. Eu estava na geral, e de repente o Palestra faz o gol. O Palestra faz o gol e um... e de repente ouve-se um tiro, um rojão. Um mulatão: "Quem foi?" e tirou um revólver desse tamanho: "Quem foi, quem foi?" e o cara que fez... escapuliu, senão ele seria morto aquela hora ali. Quer dizer, a violência (riso) já vem de longe, não é só agora. Isso, simplesmente um episódio.
P - E o que o senhor fazia como lazer, nessa época? Além do futebol tinha mais coisa?
R - Eu lia, não tinha nem rádio, eu lia, ia no cinema, gostava de circo, passeava no parque, lá tem um parque no centro da cidade, a gente passeava, depois de vez em quando passeava também... era o... televisão não tinha, era... rádio era o princípio de rádio, não era todo o mundo que tinha rádio, era muito... só gente rica que tinha rádio, e tinha que ligar três botões, tinha de ter antena, era muito, muito difícil. E também não tinha dinheiro pra comprar rádio. Então, era leitura; leitura, biblioteca, tinha o clube, a gente ia lá pra jogar ping-pong, eu era sócio do sindicato, Associação dos Comerciários, na época não era sindicato ainda, ia jogar ping-pong, xadrez, gostava muito do xadrez, é isso que era o lazer diário.
P - O senhor disse que estudou na Escola Batista, né?
R - Colégio Batista.
P - Colégio Batista.
R - E de noite eu estudava na Academia Mineira de Comércio e consegui me formar em contabilidade, mas nunca exerci a profissão.
P - No Colégio Batista, nessa época de colégio, o senhor tem alguma lembrança, assim, forte?
R - Eu tenho lembrança que os dirigentes, os dirigentes eram americanos, um deles era o doutor Jaime Zaley, era uma pessoa fantástica Sabia... era muito bom pra todo o mundo. E tinha internato também, era uma área enorme, parecia uma fazenda, ali, na Rua Pouso Alegre. Atrás do colégio não tinha mais nada, e tinha muito árvore, também, a gente arrancava as frutas, jogava-se futebol, basquete, vôlei. Os americanos jogavam tênis, pra mim era novidade, tênis, e me dava muito bem com todos, eu não falava bem o português, mas o pessoal me entendia com a mímica, tal etc., fui aprendendo o português. É isso. Ah... Mas foi uma época muito boa, muito boa, peguei a Revolução de 1930 em Belo Horizonte, tinha o 12º Regimento, lá no Calafate, eles começavam a atirar contra a polícia, e muitos proje... projéteis foram parar no meio da cidade. E, no fim, eles se entregaram, mas foi uma novidade, pra mim, aquilo, uma novidade a revolução. Não sabia o que é que é isso, de repente soldados andando com fuzis, metralhadoras, e no fim a revolução ganhou. Getúlio Vargas ganhou e Minas estava apoiando Getúlio Vargas. Conheci muitos políticos e... eu me lembro que o vice-presidente da República, Mello Viana, ele era mulato, e a mulher dele, ele morava na Rua Pernambuco, me lembro até agora, a mulher dele, nos fundos tinha um, tipo porão, mas um porão mais... melhorzinho, moravam estudantes, ela alugava, tinha de viver Era vice-presidente da República e a mulher trabalhava pra poder viver, sobreviver
P - Seu Jaime, nessa época, ainda em Belo Horizonte, o senhor começou a trabalhar com o tio do senhor?
R - Em Belo Horizonte? Não, comecei a trabalhar com o meu tio aqui em São Paulo, na casa de acessórios de automóveis.
P - Sim, mas antes de vir pra São Paulo, na Afonso Pena...
R - ...trabalhei com o meu padrasto.
P - Ah, sim Eu queria que o senhor falasse da loja, o que é que era...
R - A loja, era loja de casimiras, era só casimira. Então ele comprava no Rio de Janeiro ou em São Paulo as casimiras, pendurava com preços, e a gente tinha de atender os fregueses e vendia. Era na Avenida Afonso Pena, a principal avenida de Belo Horizonte. O aluguel era muito caro, e... despesas, impostos, aliás, naquele tempo era mais imposto, prefeitura, pra... porque o imposto de vendas... existia o imposto vendas mercantis, me lembro, mas ninguém pagava, era questão federal, tinha que pôr um selo, e tal, ninguém, ninguém usava; só muitos anos depois é que o negócio aí vingou, porque agora lido com esse negócio eu estou avaliando a diferença daquele tempo e agora em relação ao... a dinheiro que entra no, no estado, ou no município.
P - E quando que o senhor veio para São Paulo, seu Jaime?
R - Eu vim diversas vezes pra São Paulo.
P - Mas morar...
R - Morar foi em 37. Fim de 37, aí já estou definitivamente aqui.
P - E por que é que o senhor veio?
R - Por que eu vim? Bom, eu tinha uma namorada, e... consegui vir pra ficar perto dela, que aliás era uma prima, e depois eu larguei esse noivado. Mas eu vim, fiz uma pequena loja no... na Vila Mariana pra vender roupas, e depois eu larguei o noivado e em 41 me casei de novo, me casei com a mulher atual, que é de Niterói.
P - A loja da Vila Mariana, ela... era de roupas?
R - Era de roupas.
P - Como que era essa loja, quem era a clientela?
R - A clientela, como que em frente da loja tinha a estação dos bondes, Vila Mariana, então a maior parte da freguesia eram as famílias dos motorneiros e dos cobradores de bonde. Era a maior parte, entendeu? Tinha outra freguesia também, mas a maior parte era mais por eles. E... estava indo mais ou menos, não estava tão ruim assim, não. Consegui comprar uma casa, consegui ter um filho, foi indo.
P - O que é que o senhor mais vendia pra essas pessoas?
R - Era roupa, era camisas, gravatas, ternos; mantô de senhoras, taillers de senhoras, vestidos. Eu fabricava, confeccionava sozinho os vestidos, então, em vez de comprar uma peça de tecido, pra... primeiro eu comprava uma peça de tecido, então saía 10, 12 vestidos, todos eram iguais, então a freguesia: "Não tem, não quero essa cor." Aí eu resolvi comprar em cortes. Eu descia na Rua 25 de Março, em vez de comprar uma peça, eu comprava 30, 40, 50 cortes, um diferente do outro. Aí o negócio funcionou melhor. É isso.
P - E como é que era a 25 de Março, nessa época?
R - A 25 de Março, a maior parte era tecidos e... armarinhos. Toda a 25 de Março, tecido e armarinhos; e era movimentada também. Ah... começava na Ladeira General Carneiro, a 25 com... para Senador Souza Queiroz, né, pra lá, e era tecidos e armarinhos. Como é que ali, no... no fim da General Carneiro era o mercado municipal, então aquele lado que ia de lá até o viaduto, que hoje... não tinha o viaduto ainda, hoje o viaduto em frente à Secretaria da Fazenda, eram galinhas, ovos, patos, porcos, que o pessoal trazia das fazendas pra venderem. Agora está tudo mudado.
P - Antes da construção, né, do Mercado Central?
R - Antes, estavam construindo o mercado novo, depois demoliram aquilo lá, fizeram uma rua e... a Rua General Carneiro, suponhamos, era rua de lojas de ferragens e de louças, de presentes, que nem tem agora... lá na Consolação de, de lustres, e tal, era... Santa Ifigênia tem agora eletrônicos, antigamente Santa Ifigênia era modas, era a maior parte de modas. Porque... posso falar disso?
P - Claro
R - Por quê? Porque perto tinha muitas ruas de prostituição e dancings. Então, Santa Ifigênia era lojas de peles, roupas pra senhoras e chapéus de senhoras, usava-se muito chapéu, mulher não saía sem chapéu Então, modelos de chapéus era muito. Outra rua que também tinha modas era a Liberdade. Aliás eu fiz essa, o roteiro... então, Liberdade; por que Liberdade? Porque na Rua Rodrigo Silva tinha muitos bordéis, então tinha modas na Rua Liberdade também. Negócio... isso, São Paulo, me lembro... posso falar de São Paulo?
R - O senhor estava me falando da... do Largo São Bento.
P - Largo São Bento, Largo São Bento era o mercado de empregadas. Então, a maior parte de empregadas, brasileiras eram muito pouco, eram lituanas, polonesas, russas... era aquela imigração que vinha após guerra, após a Primeira Guerra Mundial, que vieram fugindo do comunismo, então procuravam... os maridos trabalhavam em fábricas, na Mooca, e as mulheres tinha de procurar emprego. Então vinha as madames de São Paulo pra procurar e... olhava pra uma, combinava preço etc. A gente via isso. Não era prostituição, era coisa séria Outra coisa que tinha interessante aqui, era a maior... a guarda civil tinha de ter, mínimo, um metro e oitenta de altura. Uma grande parte deles também eram estrangeiros. Inclusive muitos andavam, na lapela, com as cores das línguas que eles falavam. Então, tinha guarda civil que falava quatro, cinco línguas. Inglês, francês, alemão, russo... e era isso. Depois degringolou, isso, mas era beleza, eram aqueles altos, fortes, bonitões... todos bem-educados, atendiam bem. Isso era... uma lembrança de São Paulo que eu tenho. Além disso tinha a guarda noturna. Guarda Noturna era a que todas as ruas e toda a casa, foram em todas as casas, cada casa, cada família pagava um... uma mensalidade pra essa guarda noturna, e tinha guarda noturna de noite, apitando, e tomando conta, e tal. Também não tinha esses assaltos que tem hoje, né? Ah...
P - E a Barão de Itapetininga?
R - Barão de Itapetininga, a Barão de Itapetininga tinha... era a rua de luxo, era rua de luxo, era rua de modas, peles, restaurante, bar de luxo. E... eu me lembro, a primeira casa de luxo de vestidos era a Madame Geni, depois veio Madame Rosita, depois a Madame Rosita mudou pra Avenida Paulista e aquilo degringolou, ficou aquilo que nós sabemos o que é que é hoje. Ah... rua... na Praça João Mendes, na Praça João Mendes tinha o Teatro Recreio, e lá eu consegui ver muitas peças de teatro com Manuel Durães, não me lembro o nome da partner dele que era irmã de... Odilon de Azevedo não, esqueci o nome da...
P - Não tem problema.
R - ...não sei se... Dulcina de Morais Os artistas principais naquele tempo as estrelas eram, e os stars, eram Procópio, Jaime Costa, Mesquitinha, e... Mesquitinha, Odilon de Azevedo e tinha a Dulcina de Morais, em mulheres; e tinha o Oscarito, Oscarito usava muito o Teatro Cassino Antártica, na Rua Anhangabaú. Tinha um outro teatro, mais de luxo, que era o Santana; companhias melhores, não sendo operetas, iam no... Santana. Cinemas, Avenida São João era avenida de luxo, cinemas de luxo, não se podia entrar sem gravata, me lembro que fui uma vez bem vestido mas sem gravata, me barraram, não podia entrar, e... as primeiras peças que vinham eram na Avenida São João, ah... cinema de luxo era Paramount também e tinha, na Rua Consolação, dois cinemas, o Odeon sala azul e sala vermelha, a sala vermelha era mais luxuosa. Mas tudo atapetado, tudo bonito Hoje não se vê mais cinema assim Mesmo o Metro, o Metro era... me lembro a peça do... E o Vento Levou, aquilo encheu semanas e semanas sem parar, aquilo lá, três horas, era uma novidade, entendeu? E futebol, o que me lembro, que era proibido, só uma estação de rádio tinha autorização de irradiar, não tinha televisão, ainda..., de irradiar. Os jogos eram no Parque Antártica, que é... era Palestra, agora, Palmeiras. Mas, a Rádio São Paulo, por intermédio de Aurélio Campos, e Murilo Antunes Alves, que ainda está vivo, eles conseguiram fazer um tipo de torre Eiffel atrás do Estádio do Palmeiras, bem alto, e de lá, ninguém podia proibí-lo, e de lá irradiava o jogo, ficava com binóculo, irradiava o jogo de futebol. Era um marco aquilo lá, interessante, imagina Não se podia irradiar, hoje... Eu me lembro, suponhamos, quando veio o cinema sonoro, cada, cada sala de cinema tinha sua pequena, seu pequeno conjunto que tocava; porque era... os filmes eram, eram escritos, não eram falados, e a música tocava, a gente olhava. Quando veio o cinema sonoro, eles fizeram protestos, greves, que vão tirar o... o...
P - ...o emprego...
R - ...o emprego, e tal etc. No entanto, hoje tem... procura-se emprego... sendo músico bom, não tem problema, arranja emprego à vontade. E no rádio, a mesma coisa. Na televisão, futuramente, também vai ser a mesma coisa. Ah... eu me lembro, um fato interessante que... eu morava ali perto, na rua, na Rua Carlos Petit, em Vila Mariana, perto da caixa dágua, eu morava na Rua Manuel de Paiva esquina Carlos Petit, e lá morava Afonso Schmit. Afonso Schmit era um escritor conhecido, poeta, ele andava sempre pensativ, e morava Alcebíades; Alcebíades era um palhaço, que ele tinha um circo muito famoso, e sempre os dois andavam juntos e um dia, eu me lembro, Afonso Schmit escreveu uma crônica belíssima sobre Alcebíades. Circos tinha o Arrelia que ficou muito tempo na Praça da Liberdade.
P - Era um lugar fixo?
R - Era fixo dele. Até que mandaram embora porque tinha que construir... (riso) E tinha Piolim, na Avenida General Olímpio da Silveira, também ficou alguns anos lá. Piolim era o mais famoso palhaço aqui de São Paulo. São Paulo e do Brasil, praticamente. Agora, teatros... em 1950, eu fui pra Buenos Aires. E em Buenos Aires tinha mais ou menos funcionando toda a noite uns 30 teatros. Em São Paulo não tinha nem um, tinha dois, três. O que funcionava muito era o Teatro Colombo, ah... no Largo da Concórdia, foi demolido, que... como é que... Brás... era a maior parte de... da colônia italiana, então vinha aquelas operetas italianas ali, aquilo funcionava constantemente.
P - O senhor lembra de alguma opereta que o senhor tenha gostado...
R - Não me lembro, eu não assisti lá no... Colombo. Eu me lembro de operetas, de chanchadas de Oscarito com Violeta Ferraz, a gente morria de dar risada. A gente caía das cadeiras de dar risada. Todo o teatro, sempre lotado, lotado Era chanchada mas era gostoso Ah... Rua Boa Vista, já falei?, Rua Boa Vista era interessante porque não era rua de bancos, que nem agora. Bancos era Rua XV de Novembro. Rua Boa Vista era a maior parte de grandes armazéns de tecidos, de portugueses. A maior parte, pode-se dizer 90%, era portugueses. Português era muito educado, atendia muito bem aos clientes, e eu me lembro que em diversos estabelecimentos eles tinham suas próprias pensões para receber os clientes que vinham do interior Do, do, de Mato Grosso, de Goiás, de Minas, pra ficar lá Ficavam lá e eram bem tratados, de graça, dormir e tomar café, comida já é outra coisa, mas isso funcionou por muitos anos, assim, depois desapareceu Depois virou memo a rua dos, dos bancos. Eu me lembro, Praça do Correio, banca de jornais, na praça... uma grande banca de jornais, recebia jornais do mundo inteiro, inclusive da União Soviética. Eu comprei jornal da União Soviética em iídiche, na língua, que vinha aqui, até a época de Getúlio. Depois, quando veio a ditadura de Getúlio, aí não podia mais entrar. Quem que tinha um jornal daqueles podia ir preso. A zona de prostituição era a Rua Amador Bueno e Rua Ipiranga, não era Avenida Ipiranga, era Rua Ipiranga, uma parte, e ali em volta tinha os dancings, a gente ia lá pra dançar com as moças; tinhas as cartelas, que cada... cada vez que... ia lá a moça apertava, no fim tinha de, de pagar, então... mas na época do Adhemar, tinha de mudar, tinha de fazer a Avenida Ipiranga, ele mudou a prostituição pro Bom Retiro, Rua Aimorés e Rua Itaboca. E... eu quero salientar, que ele não era... o pessoal que mora lá, a maior parte judeus que mora, foram lá pedir pra... pra não pôr lá, arranjar outro lugar, mas parece que ele não queria. Ele também, a época de Getúlio, como que ele era muito para o... para o fascismo, então todos os interventores que ele colocou, que o Adhemar de Barros era um também, também era mais ou menos a favor, então ele foi contra os judeus, não queria nem receber; era, em princípio, anti-semita. Mas eu me lembro, depois da Segunda Guerra Mundial, depois do Estado de Israel, veio o Begin, Begin é aquele que fez a paz com o Egito, veio o Begin pra São Paulo, eu me lembro, ele mandou o carro oficial dele com motociclistas, com bandeirinhas, pra receber o Begin, ele recebeu ele no... aí o negócio ficou limpo... recebeu ele no palácio, Adhemar de Barros.
P - Seu Jaime, e... o senhor trabalhou com a loja ali na Vila Mariana até...
R - Até 1949. Depois entrei na Papelaria Formosa, e lá, como é que o caso é de livros e guias fiscais, é a especialidade daquilo lá, eu fui fazer cursos aleatórios de direito, direito comercial, tributos, impostos de consumo, que hoje é IPI, imposto de renda, imposto de vendas e consignaçðes; inclusive quando modificaram a... o imposto de vendas e consignaçðes, isso foi em 1971, aí me convocaram na Secretaria da Fazenda pra dar uma mãozinha lá, eu fui lá trabalhar. Agora, há um caso, caso interessante...
P - Aquele de quando saiu o... de lançamento...
R - Quando saiu o... de repente, BNH - Banco Nacional de Habitação, de todo o aluguel que a pessoa recebia, tinha de pagar uma porcentagem pro Banco Nacional de Habitação e tinha uma data marcada, até aquela data, pra recolhimento. Ninguém tinha as guias, e nós que fabricamos guias não tínhamos as guias. Eu fui no representante do BNH, não tem guias, fui no Banco do Brasil, não tem guias. Aí eu telefonei para o Banco Nacional no Rio de Janeiro, que era a presidente era a Sandra Cavalcanti, uma secretária dela me atendeu, e eu disse: "As guias, como é que..." "Ah, está na minha mesa" "Tá na tua mesa mas precisava estar na minha mesa, não na tua." "E como é que fazemos?" Falei: "Olha, você vai me fazer um favor, você vai... você vai me fazer a gentileza: você pega as guias, você vai até o aeroporto, que era no centro da cidade, Santos Dumont, você entrega pro capitão do avião da Vasp, pra me trazer a guia, e eu vou esperá-lo." Porque antes, não tinha cada meia hora, era três, quatro vezes, a gente sabia o horário de chegada. E... pedi o nome dela, pedi o endereço dela, onde que mora, lá na Copacabana, não me lembro onde, e... eu agradeci muito, fui na Kopenhagen, mandei uma caixa... mandei entregar uma caixa de bombons à casa dela, isso de... não é de corrupção, simplesmente de agradecimento pela gentileza que ela me fez, e no dia seguinte, batata: eu fui lá, o capitão do aeroporto me entregou a coisa, peguei um carro, fui até a nossa gráfica, isso era mais ou menos terça-feira, quarta-feira, e o... e não tinha computação que nem agora, não era tão fácil de fazer, que as gráficas ainda era linotipo, montagem e tal. Peguei o tipógrafo, mandei... pedi pra ele trabalhar a noite inteira na gráfica, que de fato ele ficou a noite inteira trabalhando, e eu por vez em quando telefonando pra ver se ele não está dormindo, e no dia seguinte começaram a blocar... a imprimir, eu dei anúncio, na quarta-feira eu dei anúncio pra sair na quinta-feira, que na sexta-feira vai ter guias na Formosa, vai ter guias pra pagamento porque o prazo estava se aproximando do fim, pra pagamento. Quando foi na sexta-feira... Quando foi na sexta-feira... Eu cheguei 7 horas, já tinha uma fila enorme A fila andou a Rua Formosa, durante o dia, o dia inteiro, Rua Formosa, subia a Avenida São João, entrava na Rua Conselheiro Crispiniano, passava o quartel general do segundo exército, era o quartel general, o capitão viu o negócio, não sabia o que é, telefonou pra Secretaria de Segurança, mandaram uns oito, dez guardas, e ficaram tomando conta da, da fila e... eu pus mais uma caixa pra poder ajudar lá, e aquele que dava dez cruzeiros, ou dez reais, sei lá, pro guarda, podia furar a fila. Então, era um negócio que era vantajoso pros guardas, naquele tempo também. Bom, eu sei que ficou o dia inteiro a fila. Quando foi à tarde veio o representante do Estado de S. Paulo me entrevistar, saiu, até que tenho o recorte aí no jornal, que eu vou mostrar pra vocês, e o mais interessante é que o pessoal do Banco do Brasil chegaram: "O que é que o senhor tá fazendo?" Falei: "Estou vendendo guias." "Como o senhor está vendendo guias?" "Ora, estou vendendo guias" E tinha de recolher no Banco do Brasil, isso que era, não tinha esse negócio de recolher em qualquer banco. "Mas nós não..." Falei: "Olha, no sétimo andar vocês têm guias, eh... vocês têm guichês abertos sem função. Ponham lá gente." Aí foram lá, depois eles voltaram e: "Está cheio de gente lá, então muita gente está querendo guias. O senhor podia nos fornecer as guias?" Falei: "Perfeitamente. Quantas guias?" "Dá 200 blocos" Dei 200 blocos, e eles foram vendendo lá no, no banco. Quando chegou à tarde, chegaram, trouxeram, falei: "Olha, eu vou dar... pro contador eu dou 20% de desconto..." "Nós não queremos desconto, não." Pagaram, e assim funcionou. Já na semana seguinte todo o mundo, outras gráficas já fizeram. Isso foi praticamente um diploma meu, isso foi um diploma da minha atividade naquela... hoje eu não tenho mais esse espírito, e tal, mas era espírito de, de competitividade. Outro caso interessante foi... saiu no jornal sobre três livros, livro de exportação: Mercadoria Exportada Diretamente da Fábrica, Mercadoria Exportada por Intermédio de um Revendedor e Mercadoria Exportada por Intermédio de Armazéns Gerais, que é Santos, Paranaguá e tal. Eu peguei o Diário Oficial, quando vejo, eu vejo 12 livros, em vez de três. Porque eles fizeram, dividiram muito mal na publicação do Diário Oficial. Porque eu leio todo o dia três diários oficiais: Diário do Estado de São Paulo, Diário Oficial do Estado de São Paulo, Diário Oficial do Município e Diário Oficial da União. Eu tenho de ler, porque as principais, os... principais portarias, decretos que se referem a meu ramo. Bom, aí eu peguei, fui lá na Recebedoria Federal e... fui lá no diretor pra ele me explicar, diz: "Não, vai lá..." Fui lá, o outro me mandou pra lá, e o outro pra baixo e vai em cima, vai em cima, vai naquela sala, vai lá, eu não entendo, o outro entende, tal... no fim, lá embaixo, no plantão dos fiscais onde que atende; eu esperei na fila, chegou a minha vez, falei: "Olha..." "O senhor quer isso pra quê?" Falei: "Não, é pra exportar, pra exportação." Olhou assim: "O senhor vai me desculpar mas eu não estou entendendo disso, o senhor faça o favor de ir na Rua Formosa, na Papelaria Formosa, procura o senhor Jaime, que ele lá vai lhe explicar isso aqui." "Muito obrigado"... Fui embora, que é que eu vou fazer? (riso) Mas tinha outros casos, muito caso pitoresco que... aconteceu comigo nesse negócio de... de fiscalização, de coisa aí.
P - Seu Jaime, a Papelaria Formosa ela sempre foi especializada...?
R - Sempre foi especializada em... a Papelaria Formosa começou com um italiano, um tal Louzaço, em 1926, parece. Em 1927 ele se engajou na campanha de imprimir coisa pra Aliança Liberal, que era a candidatura de Getúlio Vargas. Depois ele se viu mal e tal, ficou devendo dinheiro, e tal, ele vendeu então pro pai do senhor Leon Feffer, seu Leon Feffer é hoje o dono da Companhia Suzano de Papel e mais um montão de empresas que... de bastante atividade. Seu Leon Feffer este mês vai fazer 92 anos e ainda está em ativa. Bom, mas isso era do pai dele, a papelaria era do pai dele até 1955, quando ele faleceu. O pai era imigrante que veio pro Brasil da Rússia no princípio do século, e ele vendia material de escritório, no interior, ia pra Goiás, Mato Grosso e tal. Ele me contava que ele viajava junto com Maurício Klabin, o dono da fábrica... o patriarca da, dos Klabin. Ele e mais um sírio, árabe que tinha uma tecelagem na Lapa que chamava Tecelagem Iodete, eu cheguei a conhecer esse sírio, Maurício Klabin, não? Eles viajavam, alugavam um quarto, ficavam lá juntos e cada um ia trabalhar. O Maurício Klabin trabalhava com calendários suíços, aqueles assim, e aceitava serviços gráficos: notas fiscais, papel de carta, envelopes; ele vinha pra São Paulo, fazia, depois ele despachava. E o... o seu Feffer trabalhava com material de escritório: clips, fitas, enfim, todo esse negócio aqui, e vendia. Não era lá grande coisa mas ele se sustentava. Isso foi logo no princípio do século. Inclusive, um fato, um fato interessante, pitoresco - se vocês me permitem contar -, ele me contava que em Cuiabá, ele entrou no bar, que nem eu estou sentado aqui, ele sentou, ele mais um colega dele lá, em frente lá do balcão tinha dois fregueses... não, tinha um freguês e o balconista atendendo ele bebendo cachaça, ou... qualquer coisa. Ao lado dele tinha dois caboclos sentados, e um falando pro outro: "Você aposta quanto?" "Eu aposto 100 mil réis." "De quê?" "Direita." "Não, eu aposto esquerda, direita, esquerda." Aí um tirou um revólver, pá acertou no cara que estava lá, diz: "Você viu, era a direita, você perdeu" e foi embora... (riso) Isso ele me contou Caso que... aconteceu muitos casos semelhantes. Depois que faleceu o senhor... o nome dele era Simpson Feffer, ficou pra família Feffer que continua até agora. Só que faz uns 30 anos que eles não aparecem lá na firma.
P - O senhor é que cuida...
R - Eu cuido, agora eu cuido. Cuido da loja, tem mais uma loja na Rua Silveira Martins, e tem a gráfica na Rua Sapucaia, na Rua Sapucaia ocupamos um espaço... ocupávamos um espaço de 6.800 m2. E lá tem mais ou menos dez... naquele conjunto, é uma área de 52... 50.000 m2 que é ocupado por dez indústrias, ali. Era da antiga Cosmopolita. Cosmopolita era uma fábrica de fogões e de aquecedores a gás. Não existe mais, agora pertence a uma companhia lá do Rio Grande do Sul; e eles alugaram, estamos... não é nosso prédio, mas é alugado, estamos lá com a gráfica. A loja é aqui na Rua Formosa e na Rua Silveira Martins.
P - Seu Jaime, e quando que a Papelaria Formosa se especializou em material... em tributação...
R - Não... quando eu entrei, já, já estava especializado. Por quê? Porque em frente tinha a Recebedoria Federal, era em frente, depois foi explodida pra fazer aquele túnel do Adhemar, que chamava Buraco do Adhemar, que agora já é Jânio e Erundina, o negócio mudou. (riso) Era lá a Receita Federal e todo o mundo, toda a cidade... pra pagar imposto, comprar selos, tudo isso era lá. Então a papelaria era um ponto para poder vender essas guias e livros fiscais e tal que eram necessários pra Receita Federal. É por isso que... eu quando cheguei já estava isso em função, e eu ampliei mais um pouco e...
P - Eu queria que o senhor falasse um pouco do atendimento, que o senhor estava me dizendo como que é o atendimento aos clientes.
R - Bom, atendimento de cliente, eu fiz um... eu tinha um... um princípio de atender bem. Aliás, é bem atendido esse cliente. Por princípio, quando chegava muitos clientes do interior, eu perguntava... muitos, na época do Pelé, muita gente vinha sexta-feira pra poder assistir o jogo de Pelé. É Incrível "Eu preciso fazer compras." Então, em vez de vir, ele precisava fazer compras, então, em vez de vir no meio da semana, ele vinha na sexta, fazia as compras, sexta e sábado ficava aqui pra domingo assistir o jogo do Pelé ou ir pra Santos, que é... e depois voltar. Mas eram inúmeros fregueses. Muitos vieram... vinham com a família. Eu perguntava: "Onde que você está com sua esposa?" "Ah, estou naquele hotel..." Eu ia almoçar, olhe, depois do almoço eu saía do almoço ia na Kopenhagen comprava uma, uma caixa de bombons, mandava entregar pra senhora dele lá no... no hotel. Esse freguês nunca mais ia comprar em outro lugar (riso) Até agora eu tenho muitos fregueses assim, filhos já de fregueses, entendeu? Eu atendia bem, convidava pra almoço, combinava com o freguês depois de fechar pra tomar, num bar, tomar um drinque, conversar, conversava sobre os assuntos gerais...
P - E também ajudava no próprio preenchimento dos recibos, não era? O senhor estava me dizendo...
R - Não, ajudava na orientação aos clientes. O cliente vinha: "Eu quero isso, aquilo..." "Tem isso, você tem de preencher assim..." Era uma orientação básica pra ele não ter problemas, não precisava amolar o pessoal das, das recebedorias. E continua até agora Até agora o pessoal meu, o pessoal lá do balcão, atende o freguês, explica direitinho. Entendeu? A base é isso da Formosa: é atender e ajudar. Eu, modéstia à parte, mas colaborei muito com o governo nesse negócio aí. Eliminei muita dor de cabeça de pergunta lá nos balcðes da, nos guichês da recebedoria até agora, isso... Um dia... eles me reconhecem, porque eu gosto muito do Brasil... O Brasil é um país fantástico, o melhor do mundo, não há preconceito, deixa todo o mundo trabalhar... não sei se falei que tomei parte na Revolução de 32... (riso)
P - Não, o senhor não falou. O senhor quer falar...
R - Eu fui fazer... eu queria me alistar, fui me alistar, fui trabalhar no escritório, mas um dia me levaram pro quartel pra no dia seguinte... coiso... e apareceu o meu padrasto, me tirou dali... (riso)
P - (riso) Seu Jaime, a gente está terminando a entrevista, eu queria que o senhor me falasse assim... se o senhor fosse mudar alguma coisa na sua vida, na sua trajetória, o que é que o senhor mudaria?
R - Não, não mudaria não. Eu vivo muito bem com minha mulher, meus filhos são fantásticos, são os melhores filhos que eu tenho no mundo, não existe igual no mundo... meu filho está chegando da China de um projeto de fazer uma barragem lá na China, entendeu? Uma coisa fantástica Ele estava me contando, ele, quando voltou, ficou duas horas em casa, toda a família reunida, deu uma aula de geografia, de história, sobre o Oriente, lá, China, Japão, Cingapura. Ele ficou encantado de Singapura, deu nota dez pra Singapura... Ficou encantado, me contou um negócio que vale... eu tenho contado pra muita gente o que ele me contou, que vale a pena É interessante. Por isso que eu não tenho nada que escolher, a única coisa, eu gosto de ler, eu gosto de escrever, eu traduzi um... eu tenho um genro que é grego, nasceu na Grécia, e ele não sabe... aí eu traduzi um... sobre a Grécia, distribui mais ou menos uns três mil livretos, entendeu, sobre a vida de judeus na Grécia, que é... somos judeus. Isso aqui. A minha maior alegria é estar no Brasil, ver meus filhos, são brasileiros, trabalham, e lutam, e tudo isso.
P - E o senhor tem um sonho que o senhor gostaria de realizar?
R - Não, com essa idade eu não tenho mais sonho nenhum, a não ser viver mais... (riso)
P - (riso) E pra gente terminar, seu Jaime, o que é que o senhor achou de ter ficado essa hora com a gente, conversando, deixando registrada a sua vida...
R - ...tudo agradável, duas moças bonitas... (riso) não podia ser melhor do que isso... educadas, estou muito satisfeito e só posso agradecer vocês. Muito obrigado.
P - Nós é que agradecemos (riso)
Recolher