Eu nasci no cerrado do Piauí, Canto do Buriti, e vim para São Paulo com dois anos de idade. Faço parte da migração do Nordeste para São Paulo, na época da industrialização, nos anos 50 para cá, mais ou menos. No primeiro momento fomos para a Vila Anastácia, São Paulo, depois para a cidad...Continuar leitura
Eu nasci no cerrado do Piauí, Canto do Buriti, e vim para São Paulo com dois anos de idade. Faço parte da migração do Nordeste para São Paulo, na época da industrialização, nos anos 50 para cá, mais ou menos. No primeiro momento fomos para a Vila Anastácia, São Paulo, depois para a cidade de Osasco, onde fui criado praticamente em família com outros primos, primas, meus tios e avô.
Minha juventude foi construída em cima dos princípios do movimento hippie, da valorização da música como forma de liberdade contra a guerra, em busca de paz e amor. E eu comecei a fumar cigarro, aquela coisa de estar descobrindo os vícios da vida, comecei a beber, e acabei conhecendo a maconha.
Na véspera do Natal de 82, fomos para uma festa na Lapa, na casa de um dos meus primos, estávamos cada um com um cigarro de maconha, que a gente fez com a seda que tem no maço, aquilo parecia um charuto. E começamos a fumar aquilo de um jeito, que de repente deu uma depressão tão grande. E, eu fui para casa, falei, não, vou embora, fui embora.
Aí depois daquele dia lá eu entrei em uma depressão, dentro de um quarto escuro muito grande, e tipo tranquei a porta pelo lado de dentro. E aí me desliguei completamente de quem estava do lado de fora. E nunca teve diagnóstico a respeito disso, eu não sei, mas aí criou todo um problema. Eu cheguei para a minha mãe e falei: “Mãe, estava fumando droga”, aí ela se desesperou.
A primeira reação dela foi procurar um médico, e pelo conselho de uma vizinha ela acabou me internando em um sanatório, acho que ali foi quando realmente perdi. A partir daí eu tive toda uma trajetória envolvida com drogas. Minha mãe tinha ficado muito preocupada e por conta disso me internou, no Sanatório Saião em Araras, e eu fiquei muito sentido com isso, e desse tempo para cá as nossas relações já não foram muito amigáveis.
No sanatório, nós éramos colocados em alas, eu vivia em uma ala aonde tinha mais pessoas com problemas de álcool e droga, e tinha uma ala que ficava do meu lado, que era uma ala que às vezes eu me atrevia ir lá e olhar o que tinha atrás daquela porta. Tinha uma fresta na porta que eu conseguia enxergar alguma coisa, as pessoas andavam nuas lá dentro, aquilo me impressionava muito, eu não sabia o que era aquele lugar, porque as pessoas andavam no pátio de um lado para o outro.
Então eu vi coisas que eu não esperava enxergar, acho que foi justamente aí que eu acabei perdendo essa confiança, de me abrir, porque se eu me abrisse viriam coisas pesadas para cima de mim. Eu também não tinha saída, todas as pessoas que tentavam fugir eram penalizadas brutalmente, tomavam o sossega-leão, uma injeção, uns coquetéis. Eu fiquei lá, passou o tempo, depois meu pai me buscou e levou de volta para casa.
Hoje eu sei que foram nove meses, mas lá dentro eu achei que eu já estava há mais de dois anos, porque eu perdi completamente a noção do tempo, eu entrei em uma anulação muito grande a respeito da minha família, de tudo. Até hoje eu nunca mais recuperei aquela liberdade da infância, aquela relação de segurança do espaço com a família, isso aí eu já perdi e acho que não dá mais. E eu não usei realmente só maconha, eu usei de tudo aquilo de fácil acesso, cocaína, craque, essas drogas baratas e que tem um efeito destrutivo. Depois que eu comecei a usar o craque eu fui de vez mesmo para a rua, porque eu me tornei insuportável. Então eu acho que só a condição de rua poderia me aguentar. Eu tive que fazer isso, eu tive que tomar essa decisão, porque a minha família já não me suportava mais. Na minha situação, sem trabalho, sem emprego, sem renda, sem nada, foi difícil, não tinha outra saída, eu tinha que ir para a rua, não tinha outra saída, eu não queria, mas tive que ir. A droga me deixava em um estado que a minha família perdia completamente o eixo de equilíbrio dentro de casa, eles ficavam completamente agressivos também.
Mas eu entrei em uma depressão tão profunda que eu perdi o significado da vida nessa época, e depois de ter perdido os vínculos com a sociedade, com a minha família, eu fiquei muito sozinho, me sentia muito sozinho. Eu busquei um preenchimento. Em um primeiro momento, quando experimentei as drogas pela primeira vez, foi a curiosidade, depois aquilo se tornou uma dependência, e aí criou um vazio, e tive aquele momento de que eu fiquei completamente vazio, como um espaço, e não tinha nada para me preencher mais. Eu comecei a passar por todas essas clínicas de internação, e aí aquela sensação de prazer que a droga me dava, ela fazia me sentir aliviado por um tempo. Aí vinha o remorso, “porque eu fiz isso? ”, deveria não ter feito, deveria ter resistido. Mas às vezes, a carência é tão grande, e o meio onde você está é tão favorável a isso, que você não consegue viver aquela realidade se você não tiver drogado.
O primeiro dia que eu fui para a rua, fiquei com muito medo, na verdade, eu confesso isso. Tinha um lugar que dava atendimento às pessoas em situação de rua, o Centro POP, lá no Piratininga, eu não sabia que estava fechado,
alcancei o lugar, mas não sabia ainda o que era, fiquei por lá para esperar abrir, isso era à noite, já bem tarde, acabei dormindo.
No meio da noite uma pessoa me acordou e eu tomei o maior susto, era um cara com dois copos, estava com um copo de cerveja em uma mão e um drink na outra, e veio me acordando, me convidando para ir em uma festa lá na favela, uns sambas, uns negócios assim, e eu falei: “Poxa, velho, não estou a fim não, eu estou legal”. Aí ele começou a contar que tinha acabado de tomar um enquadro, estava com cinco “papel de cocaína”, teve que dispensar tudo, perdeu tudo, e ele já tinha cheirado, estava doidão, isso foi o primeiro contato que eu tive. E o tamanho do susto que eu tomei, perdi o medo completamente, foi a primeira pessoa com quem eu me comuniquei, ele seguiu o caminho dele,
eu fiquei lá até de manhã.
Eu fiquei uma época no albergue, depois fiquei na maloca, eu preferia ficar na maloca porque tinha liberdade de dormir na hora que eu achava que tinha que dormir. A maloca é praticamente aonde a gente dorme, onde a gente vive com outras pessoas, e isso pode ser em uma casa velha que você acha na rua, ou pode ser em uma marquise, ou de baixo de um viaduto, e aí você fica por lá com aquelas pessoas comuns que geralmente são as mesmas todos os dias, quando muda é uma ou outra que às vezes, aparece. Ela pede licença para chegar, se pode, se não pode como se fosse a sua casa, aquele pedacinho ali. E tem sido assim o relacionamento familiar. Nessas relações a gente tinha pessoas de todos os tipos envolvidas na rua, e é um ato de sobrevivência mesmo, você tem que tomar muito cuidado com quem você está se relacionando, você pode perder a vida, porque eu vi muitos que perderam a vida, muitas pessoas morreram na rua, e a gente não entende porque a violência é tanta desse jeito. Eu digo, porque as pessoas se agridem, se matam, às vezes, por pouca coisa. E tem um lado que às vezes, você encontra pessoas que fazem uso da droga, mas elas mostram o lado fraterno, de humildade, tem também isso.
Depois de um tempo, eu comecei a frequentar o Centro POP, porque eles garantiam um café da manhã, um banho e um almoço. Então
sabia que em tal lugar eu teria isso, e aí todos os dias eu ia para lá. A assistente social começou a me acompanhar, tinha uma psicóloga, e eu já estava entrando na época de redução de danos, eu estava firme em parar com as drogas e tudo.
Eu tive as minhas recaídas, e as pessoas que me acompanhavam não me condenavam por isso, fazia parte do tratamento, não me sentia tão culpado como me sentia antes.
A nossa questão hoje, é que a maioria das pessoas internadas compulsoriamente, ficam nesse tratamento de abstinência, e não funciona muito bem. Eu realmente vim largar mesmo as drogas quando aderi ao programa Redução de Danos. Tanto é que eu não fiz isso pelo CAPS, eu fiz isso de mim mesmo através da ideia, do conceito, eu mesmo apliquei isso em mim e funcionou.
Eu recusei o CAPS pelo fato de eles quererem me dar aqueles remédios. Medicação, eu não sei ter eu sempre questionei:
por que o cara começa a babar quando começa a ir para o CAPS? As vezes, o cara vai tentando acertar a dose, por isso vai ficando com aquela cara de “xarope”, e eu olhava, via amigos meus que entraram, começaram a ficar com uma aparência horrível de doente mental, e aquilo me assustava. E como eu gostei do conceito, eu me recusei a ser tratado pelo CAPS por conta daqueles remédios, que não queria tomar.
Em 2013, entrei no Movimento Nacional de População de Rua. Me convidaram, se eu gostaria de participar, falei, vamos, participei lá três dias, e depois eu comecei a frequentar as reuniões do movimento, comecei a me informar a respeito dos direitos da própria rua, de cidadania, aquela coisa toda. Era uma causa por qual lutar, algo significativo.
O primeiro encontro que participei foi em uma casa muito bonita, sobradada, com varanda para o mar. Aquilo já me fez bem, dificilmente eu dormia em uma cama. Então, só o fato de eu chegar em um lugar limpo, uma cama para dormir, um quarto só para mim e uma varanda para você sentar, ficar olhando o mar e pensando. Era tudo distante assim para mim, e depois nas reuniões a gente começou a conversar sobre a questão social, porque nós vivemos em situação de rua, porque estamos na rua, somos nós os culpados disso ou é uma questão social, uma questão que é imposta, luta de classes, aquela coisa toda. Eu comecei então a ver que a gente poderia mudar um pouco a situação, eu achei alguma coisa para fazer, então vamos fazer isso e comecei, lá não me senti mais só, falava: “Poxa, não estou mais sozinho, tem outras pessoas que estão com a gente”. E foi um encontro, acho que eu me encontrei com uma nova família, pessoas com ideias, uma ideia não violenta, mas uma ideia diplomática, claro que às vezes, a gente faz alguma expressão, mas é de muita pressão, uma pressão muito forte feita no Governo quando a gente precisa, mas a gente não tem o princípio de pegar a arma, nada disso. Hoje eu estou com uma coordenação estadual do Movimento.
O Movimento começou a partir do massacre da Sé, a sociedade se rebelou contra aquilo, foi como a queda do 01 de maio do prédio do Paissandu, a sociedade se mobilizou naturalmente, começou a fazer bastante doações, foram tantas doações que a Cruz Vermelha e a Prefeitura tiveram que dizer para parar, que ninguém conseguia mais guardar nada, porque era muita coisa. E com essa tragédia, com esse massacre, foi a mesma coisa, as pessoas se mobilizaram, São Paulo inteiro, e em nível nacional, e aí o Anderson teve uma ideia, “Vamos criar um Movimento! ”. E criou o Movimento relacionado à população de rua e a gente já está em quase todas as partes.
O Movimento tem um regimento que diz que para a coordenação, as pessoas têm que ter trajetória de rua ou em situação de rua, essa é a principal condição para ser da coordenação do movimento, e isso, às vezes, é muito difícil
de alguns apoiadores entenderem, porque eles vestem realmente a camisa do movimento Maseles podem tranquilamente participar de uma associação com a gente, porque também precisamos do capital intelectual, e às vezes, quem detém o capital intelectual nunca teve trajetória de rua.
A gente procura trazer um pouco da política pública, que consiga chegar, não só a segurança pública, que vai lá para reprimir, ou a limpeza urbana que vai lá para tirar toda a sobrevivência. Porque o Estado é muito falho em relação à pessoa hoje que perde o poder de compra, o poder aquisitivo, que perde os vínculos com a sociedade, o Governo não consegue, porque existe a política, mas não existe a vontade, aí depende muito de quem está assumindo a gestão, se ele quer fazer ele faz, se ele não quer ele não faz. E aí a gente tenta:isso é um dever do Estado, e é um direito dele. Então tenta garantir essa cidadania, e eles percebem que a gente realmente briga por eles, na hora que perdem as coisas, a polícia vai lá, agride, sem o cara ter feito nada, sem ter dado nenhum motivo, não violado nenhuma lei.
Mudou bastante o conceito, o que mais a gente tenta mudar é a maneira de pensar, então por isso se cria muito seminário, muito congresso, livros, hoje as universidades estão envolvidas, para mudar o conceito, não é mais aquele do vagabundo que não quer trabalhar, não é mais que é só porque ele é cachaceiro, o homem do saco. A História também, em 13 de maio de 1888, falando que a abolição era coisa boa, mas eles foram largados, eles foram alforriados e ninguém queria contratá-los para nada, e aí tem toda essa história que veio. Então a gente tenta mudar a mentalidade de que o brasileiro é preguiçoso, que não gosta de trabalhar.
Nossa principal bandeira é a moradia, nós estamos tentando trazer um novo conceito agora, de “house first”, esse conceito é moradia primeiro, a gente quer criar um nova cultura no poder público de como trabalhar com a própria rua, porque hoje a maioria tem dificuldade de entender que a necessidade da população de rua é justamente porque ela não tem moradia. Eles entendem que é só uma assistência social que precisa, que a população de rua é uma coisa da pasta da assistência social. E a gente entende que é de todas, que é da saúde, que é da habitação, da educação, do trabalho, intersetorial.
É importante que a pessoa tenha endereço para voltar, se ela está trabalhando, que ela possa descansar depois, e não ficar só dependente do albergue, do Centro POP, porque é difícil você hoje viver em um albergue, não dá mais, a situação está represada. Então, a gente tem 20 mil pessoas em situação de rua, metade está no albergue e mais da metade está na rua, então você não tem vaga e o número está aumentando.
Hoje eu acho que quando a assistência social, a saúde, tenta resgatar a pessoa que está em situação de rua por causa de drogas, outras coisas, e tentar aproximar essa pessoa da família, muitas vezes, não é a solução, porque a família não tem como arcar, e aí a pessoa que não produz, não colabora com nada, fica pesada às vezes, para a família.
E aí eu percebo que tanto eu como alguém que tem um lugarzinho para retornar, ele consegue se organizar melhor. Hoje eu consigo ter uma organização melhor, porque, por exemplo, tem lá um quarto que é na minha mãe, se eu quiser ir eu tenho ele lá. Então quando você tem esse retorno, é diferente de quem está só na rua, dormindo em uma calçada em um papelão, em cima de uns cobertores, e levantar cedo para trabalhar, primeiro a humilhação que você sente, aquele peso, porque é um peso assim que você sente, parece que você está com a cidade inteira em cima de você, é um peso muito grande. Então por isso a gente comprou essa bandeira, então é isso que a gente quer, moradia primeiro.
Quem passou por aquilo e está em uma situação de superação, ele é uma inspiração para quem está lá, e acha que não vai conseguir, mas é importante perceber que não está sozinho, que há construção de vínculo, construção de amor, uma construção de sentimentos ali. Quando consegue construir isso com uma equipe que quer dar suporte, ele consegue se encontrar, começa a ter autoestima, se sente acolhido, porque é feito com amor, você sente uma energia boa, produtiva.
Há experiências que eu já ouvi de profissionais que tem uma afinidade muito grande com a rua, de trabalhar artesanato e as pessoas sem memória, que não lembram do que aconteceu nem porque estão na rua, com aquele trabalho,
aquela conversa,
terem flashs de memória, e construindo junto com o trabalho de artesanato, de concentração, e conseguirem recuperar a memória. E traz toda uma esperança nova. O que demonstra bem claro que quando a gente se propõe a unir forças, a trabalhar junto, a gente consegue grandes realizações, do que quando a gente está sozinho, largado lá na rua sem perspectiva. E quando a gente se propõe a buscar caminhos, os resultados são mais demorados, mas eles são mais produtivos, benéficos.Recolher