Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Gilvânia Santos Silva
Entrevistada por Tereza Ruiz
São Paulo 21/10/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_22
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então prim...Continuar leitura
Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Gilvânia Santos Silva
Entrevistada por Tereza Ruiz
São Paulo 21/10/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_22
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então primeiro, Gilvânia, eu vou pedir pra você falar seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Tá. Eu sou Gilvânia Santos Silva, eu nasci no dia 21 de abril de 1987, na cidade de Rio Formoso, Pernambuco.
P/1 – Agora o nome completo dos seus pais, do seu pai e sua mãe, e também local e data de nascimento se você souber.
R – Minha mãe é Maria do Carmo Santos Silva, ela vai fazer 50 anos agora, nasceu no dia 29 de outubro de 1964, também em Rio Formoso, Pernambuco. O meu pai é Arnóbio Ferreira da Silva, nasceu no dia 21 de março de 1958, também em Rio Formoso, Pernambuco.
P/1 – O que seus pais faziam ou fazem profissionalmente?
R – Há quase três anos eles voltaram pra Pernambuco, depois de 20 anos de história em São Paulo. E atualmente meu pai trabalha lá com pedreiro, encanador, e minha mãe o acompanha, na verdade, nesse dia a dia, mas ela fica mais em casa agora descansando um pouco.
P/1 – E seu pai sempre trabalhou como pedreiro e encanador?
R – Não. O meu pai aos oito anos de idade começou a trabalhar no corte da cana lá em Pernambuco, durante 12 anos ele foi cortador de cana. Minha mãe sempre trabalhou em casa ajudando o meu avô, que tinha algumas plantações e tal. E depois de algum tempo, eles decidiram... Quando se conheceram, decidiram vir pra São Paulo, a gente chegou aqui em 1992, eu tinha cinco anos, meu irmão tinha oito anos, e minha irmã, três. E morando na casa de parente de favor e ele aprendeu a profissão aqui em São Paulo. Até então ele nunca tinha trabalhado com outra coisa.
P/1 – Descreve pra gente um pouco como os seus pais são assim como pessoas, de personalidade, de jeito.
R – É uma tarefa difícil, porque não tem como descrever. Na verdade, eles são... Não gosto nem de falar, já dá vontade de chorar. A minha mãe e meu pai são assim, de fato, as pessoas mais importantes. Se eu sou professora hoje, se eu tenho uma faculdade concluída, se eu tenho uma especialização, é devido à formação que eles me deram. Eles são, na verdade, os meus grandes mestres. Então toda a minha caminhada, toda a minha história tem muita influência e referência dos dois por conta do caráter e da dignidade que eles têm. Então é difícil de escrever quando são pessoas super, extremamente importantes na minha vida. Eu acho que já conheci muitas pessoas bacanas, muitas pessoas legais, mas tão dignas e tão honestas com a dona Maria e seu Arnóbio, não encontrei ainda.
P/1 – Você tem dois irmãos, né? Você mencionou agora. Eu queria que você falasse pra gente o nome dos seus irmãos e o que eles fazem hoje em dia.
R – A minha irmã, Gilderlânia, mas ela não gosta desse nome, a Gil, Gil Santos, atualmente ela é figurinista, trabalha numa emissora de TV. O meu irmão, Gilmar, ele é formado em Educação Física e é educador há alguns anos já.
P/1 – Você sabe qual a origem da sua família? Assim, os antepassados, de onde vieram?
R – Sim. Com certeza indígena e africana, porque o meu avô por parte de mãe bem negão mesmo, a minha avó tem ali um parentesco indígena e tal. E do lado do meu pai, por parte do meu pai, o pouco que eu conheci, porque eu não cheguei a conhecer o meu avô, conheci só a minha avó, tinha brancos também, mas o lugar exatamente eu ainda não cutuquei.
P/1 – Conta um pouco pra gente como era a casa onde você passou a infância. A casa, o bairro, a cidade.
R – Olha, em Rio Formoso eu me lembro de pouca coisa, porque quando eu vim pra São Paulo, eu tinha cinco anos, mas eu lembro que tinha espaço. Era uma casa que eu me sentia livre, porque tinha quintal, tinha terra, tinha bicho, então eu tinha todo esse contato com a natureza. Eu acho que eu era livre mesmo, assim no sentido mais poético da palavra. Mas eu tenho poucas lembranças. Assim, a minha infância mesmo eu passei no fundo de uma casa, porque quando eu cheguei a São Paulo, a gente morou durante algum tempo dentro da casa da minha tia, então eram dez pessoas dentro de uma casa que tinha acho que dois cômodos. Depois a minha tia conseguiu construir outro cômodo e deu um cômodo do tamanho dessa sala aqui, mais ou menos, e eu morei com a minha mãe, com o meu pai e com os meus irmãos. E tinha um corredor, nesse corredor a gente brincava bastante. A minha mãe tinha muito receio de a gente ir pra rua. Ela nunca largou a gente, sempre muito protetora, muito atenciosa, a minha mãe e meu pai, então a gente brincava num corredor e era esse cômodo da casa que a gente tinha. Mas assim, eu acho que na infância eu tive a experiência da liberdade e da não liberdade. Não sei se eu posso usar essa palavra, mas era mais ou menos isso. Porque foi uma mudança muito rápida, muito brusca. Quase de um dia para o outro meus pais disseram: “A gente vai pra São Paulo”. Eu acho que eles queriam comprar alguma coisa, acho que algum eletrodoméstico, não sei direito a história, mas eu acho que é mais ou menos isso. E eles disseram: “Não, em São Paulo é mais barato, tal, não sei o quê, a gente vai comprar e volta”. A intenção era ficar aqui um ano e voltar, tanto é que eles nem me matricularam na escola, a minha irmã também não. E aí passou um tempinho, colocaram o meu irmão na escola, porque viram que a gente ia ficar mais tempo aqui. E aí esse um ano se tornou cinco, a gente foi, voltou a Pernambuco, depois de cinco anos, ficou lá acho que um mês e pouco e voltou pra São Paulo de novo.
P/1 – Então você era muito pequenininha, né? Mas o que você se lembra da causa dessa mudança era essa história da compra do eletrodoméstico? Assim, o porquê de vocês virem pra São Paulo?
R – Não, então, na verdade eu ouvi histórias assim. Na verdade eu não lembro, foram coisas que eu minha mãe falando, meu pai falando.
P/1 – E você tem alguma recordação dessa viagem, da saída de Rio Formoso e da vinda pra São Paulo?
R – Não. Não lembro. O deslocamento em si assim, como foi a situação, arrumar as malas, essas coisas, eu não me recordo.
P/1 – E da chegada a São Paulo, ou assim, as primeiras lembranças que você tem de São Paulo?
R – Olha, primeiro que assim, frio pra caramba na época. A gente chegou em 92, era muito frio. E eu lembro que a gente... Pelo que a minha mãe conta e meu pai conta, a gente não gostou muito, não, porque não tinha sol, parecia que o dia não sorria muito. Porque lá a gente já amanhecia com aquele solzão e tal. Então eu lembro que era muito gelado, então dava aquela sensação mesmo de... Não sei, de lugar fechado. Não sei.
P/1 – Quando vocês chegaram a São Paulo, vocês foram morar em que região?
R – Em Osasco. Desde quando a gente chegou aqui a São Paulo, a gente sempre morou em Osasco. Sempre.
P/1 – E na época, como era a região de Osasco? Qual era o bairro? Como era esse bairro? Na época da sua infância.
R – Então, na época quase não tinha casa em volta quando a gente chegou. Tinha um campo grandão assim, que era barro e grama misturados. Assim, uma casa ou outra, espalhada. Era mais ou menos isso. As ruas de terra, não tinha asfalto ainda. Era assim. E aos poucos as pessoas foram chegando, tanto é que os vizinhos são em sua maioria nordestinos, que foram chegando, chegando, e ficaram por lá também.
P/1 – Qual era o bairro?
R – Rochdale.
P/1 – E você falou que vocês foram morar na casa da sua tia, depois ela construiu um cômodo pra vocês, e aí quanto tempo vocês ficaram ali?
R – Na verdade não foi um cômodo pra gente. Na verdade, ela já tava em São Paulo há algum tempo e ela já tava encaminhando a vida dela. Aí assim, como ela construiu um cômodo pra ela e pra família, então ela falou: “Olha, vocês fiquem aqui por enquanto, tal, até vocês se organizarem”. Então a gente ficou nesse cômodo. Esqueci sua outra pergunta.
P/1 – Eu queria saber quanto tempo vocês ficaram nesse cômodo. Assim, até vocês se mudarem pra uma casa de vocês, como foi isso?
R – No total, morando dentro da casa da minha tia e nesse cômodo, acho que foi um ano. Um ano que a gente ficou. Depois o meu pai conseguiu um emprego, ele começou a conhecer as pessoas. A minha mãe arrumou um trabalho numa casa de família, eu acho, e ela conheceu uma moça, que já é falecida, que falou pra ela: “Olha, vai atrás, vira e mexe aparece terreno vazio, tal, vá lá à prefeitura”. E ela deu muito apoio pra minha mãe. E a minha mãe levava a gente para o serviço, porque a gente não tinha com quem ficar. E aí a minha mãe passando um dia para o trabalho, ela viu um terreno vazio. E assim, as paredes estavam semilevantadas assim. Minha mãe foi saber de quem era e tinham falado: “Ah, era de alguém só que...”. Eu não sei direito a história. Tava vazio o terreno. E a minha mãe falou: “Não, esse terreno vai ser meu”. E aí ela começou a ir todos os dias à prefeitura de Osasco. Todos os dias batendo lá à porta, falando: “Olha, tem terreno vazio, eu vim de Pernambuco, eu estou com um filho aqui, eu preciso daquele terreno. Já que não tem ninguém morando, dê pra quem quer morar” “Não, porque a gente não pode, dona Maria” “Não, vai ter que me dar, sim”. E aí ficou nesse desenrolar acho que uns dois meses, mais ou menos, não lembro direito, e deram o terreno pra minha mãe, de tanto ela insistir assim. Ela foi muito chata, no melhor sentido da palavra. Aí deram o terreno, meu pai já tinha aprendido alguma coisa de pedreiro e ele mesmo começou a construir a casa. Foi juntando dinheiro, foi comprando material um pouco. Quando tinha dois cômodos construídos, bateu a laje, ele colocou um madeirite na frente, a gente foi pra dentro da casa do jeito que tava, sem reboco, sem piso, o banheiro também sem estar pronto, foi todo mundo pra dentro. Aí a gente saiu da casa da minha tia.
P/1 – E aí vocês passaram a morar nessa casa.
R – Passamos a morar nessa casa e ficamos até hoje. Os meus irmãos ainda moram lá. Eu não moro lá mais, mas os meus irmãos moram lá.
P/1 – E da escola, você falou que chegou aqui, demorou um pouco para os seus pais te matricularem, quais são as primeiras lembranças que você tem da escola aqui?
R – Nossa! Eu tive uma professora muito legal na primeira série, a professora Clara. Eu acho que essa foi uma das boas lembranças assim, que ela foi muito atenciosa. Estudei numa escola chamada Francisco Casabona...
P/1 – Como você ia e voltava?
R – Mas, assim, eu lembro que algumas crianças davam risada por conta do sotaque, que era muito arrastado, lógico, tinha acabado de chegar de Pernambuco. Mas eu não tenho coisas, lembram... Só lembranças boas. Assim, foi normal, na verdade. As crianças riam um pouco do sotaque, mas normal assim. Achavam estranho, eu acho. Hoje eu já faço outra leitura. Eu como professora já vou intervir de outra maneira, mas na época eu acho que... Inclusive eu fiz até muitas amizades por conta disso. “Ah, de onde você veio? Como era? Não sei o quê”. Não tinha tantas questões, tantos problemas.
P/1 – Como você ia e voltava da escola?
R – A pé. Minha mãe levava e buscava, ou o meu pai quando chegava do serviço, ele também buscava quando dava tempo. Que ele saía muito cedo de casa, acho que quatro e meia da manhã, cinco horas da manhã, mas a minha mãe levava, deixava a gente, buscava depois. Quando eu fui pra quinta série, sexta série, que hoje em dia já mudou, aí eu comecei a ir com os colegas pra escola. Aí eu já ia e voltava sozinha de vez em quando. No oitavo ano, na oitava série, aí eu já ia sozinha, aí já era mais tranquilo. Mas nos primeiros anos, minha mãe e meu pai sempre ficaram responsáveis por levar e buscar.
P/1 – E você fez todo o ensino básico nessa mesma escola?
R – Todo. Não. A primeira série, eu fiz no Casabona, a segunda e a terceira série eu fiz no Tobias Barreto, que é tudo ali pertinho, e depois eu voltei para o Casabona, aí eu cursei do quarto ano até o ensino médio lá. Da quarta série até o ensino médio.
P/1 – E essa professora que você citou, que você lembra mais forte assim, por que ela é marcante? Por que ela ficou marcada?
R – Eu não sei assim. Ela era ela. Ela era gente assim, ela não fazia diferença entre um e outro, ela sabia ouvir, se tinha que chamar atenção, sabia chamar atenção, não era grossa, não era agressiva. Ela tinha cuidado, então acho que isso me faz ter recordação boa dela. Ela e a professora Adriana, da terceira série também, que ela era uma artista, ela adorava dançar, criar coreografia com os alunos, lá do Tobias, a professora Adriana. A professora Clara, eu conheci no Casabona; e a professora Adriana, no Tobias. Eu lembro, inclusive, que com a professora Adriana teve uma época daquele grupo Spice Girls lá, aí a gente montou um grupo e ela superincentivou. Então tinha essas coisas que iam me fazendo mais presente na escola também.
P/1 – Você lembra, quando você era pequena, o que você queria ser quando crescesse?
R – Nossa, não lembro, não. Não lembro.
P/1 – Nem assim, nem criança, nem no começo da adolescência? Você nunca projetou nada?
R – Não, no começo da adolescência já foi diferente. No começo da adolescência eu comecei a perceber que eu podia brincar, assim, no sentido mais legal da palavra. Porque quando a gente veio pra Pernambuco, acabou todo o contato com a cultura popular de lá, só que a minha mãe era passista de frevo, era porta-bandeira de escola de samba e dançava pastoril. Quando a gente chegou a São Paulo, eu só ouvia as histórias. No início da minha adolescência, eu ficava perguntando sempre sobre como era. E meu pai falava: “Ah, eu adorava...”. Meu pai não dançava, mas ele falava que sempre ia pra rua pra ver os caboclinhos. Então eu ficava: “Como era, tal?”. Eu sempre perguntando. Eu era mais curiosa nesse sentido. Então eu ficava pensando: “Nossa, deve ser muito legal dançar e ganhar dinheiro, e tal”. Não tinha ali um raciocínio bem estruturado, uma ideia bem estruturada, mas eu ficava pensando: “Nossa, imagina dançar e ganhar dinheiro, pular Carnaval e ganhar dinheiro, e não sei o quê”. E eu ficava só com essas histórias que a minha contava, que meu pai contava, e tal. Mas eu não tinha nenhuma ideia formada, tanto é que quando eu entrei no Instituto Criar, com 14 anos, eu já dançava, mas assim, foi uma consequência mesmo, assim, não foi que “Ah, eu vou fazer isto”. Eu acho que se eu tivesse feito isso não tinha dado tão certo, ainda mais pensando em arte assim, num mundo artístico assim. Se eu tivesse falado “Não, vou ser dançarina”, eu acho que a minha caminhada não tinha sido tão bonita como tá sendo até agora pra mim.
P/1 – Mas você dançava... Quando você começou a ter gosto pela dança? Não digo nem profissionalmente, mas assim, quando você descobriu que gostava? Desde quando você dança?
R – Olha, quando a gente ia para as festas, eu sempre ousava dançar, e aí dançava tudo, era forró, qualquer música que tocasse, eu saía dançando igual uma destrambelhada. Mas eu acho que quando eu completei uns 13 anos me deu uma acordada assim, que aí o que acontece? Eu sempre ouvia as histórias da minha mãe e do meu pai e ficava perguntando por que a gente veio pra São Paulo, porque se a gente estivesse lá, eu ia ser uma passista de frevo, eu ia estar dançando maracatu, eu ia estar dançando coco, ciranda. Por que a gente veio? E aí eles entravam naquele processo de explicar, “Tinha que ser, não sei o quê, tal”. E em 99 abriu a ONG Eremim, lá no Rochdale. Em 2001, o Douglas Frassini e a Luanda Eliza apareceram lá na instituição pra dar aula de cultura popular. E o trabalho mais forte era com o Bumba-meu-boi maranhense, e em paralelo, o maracatu, a ciranda e o coco. Eu falei: “Pronto. Acho que tudo certo agora”. Eu falei: “É aqui mesmo”. E aí minha mãe fez a inscrição lá no Eremim, e de 2001 até 2004 eu fiz parte do núcleo de brincantes que tinha dentro da instituição, aí a gente trabalhava com alguns elementos da cultura popular brasileira. E quando eu saí, em 2004, que eu comecei a fazer o curso no Instituto Criar, eu continuei a pesquisa, sozinha. Continuei indo atrás, continuei buscando algumas informações. Fui pra Pernambuco, passei o Carnaval lá, sozinha, pra ter mais informação, pra ter mais contato. E de 2004 até agora não parei.
P/1 – Deixe-me só voltar um pouquinho. Eu vou querer falar com mais detalhe dessa sua experiência no Eremim, depois no Criar, mas só pra gente retomar, você falou que você questionava por que vocês tinham saído de Pernambuco, porque você queria ter contato com essa cultura, mas como você conhecia isso? Era de recordação? Era porque sua mãe trazia pra dentro de casa a dança e os ritmos?
R – Não, eu conheci... O meu contato foi por conta das histórias. A oralidade sempre foi muito presente em casa. O meu pai sempre contou muita história, minha mãe sempre contou muita história. Então assim, quando eu via as imagens na TV, aí fazia sentido pra mim, porque eu não tinha mais o contato, a gente não tinha fotografia das manifestações e tal, era sempre através das histórias contadas.
P/1 – E a sua mãe cantava ou dançava dentro de casa?
R – Olha, ela sempre foi muito festeira. Minha mãe adora uma festa, meu pai também, então assim, o frevo em específico ela não dançava porque não tinha como ali, mas de vez em quando ela cantarolava alguma coisa. Mas assim, forró, fato, rolava solto em casa. Mas o pastoril mesmo, de vez em quando eu perguntava: “Ai, mãe, como era tal passo?”. Aí de vez em quando ela fazia, mostrava e tal. O meu pai também às vezes cantava alguma música do caboclinho que ele ouvia passando na rua. Mas era só mesmo. O contato maior foi através da oralidade. Foi assim.
P/1 – Vou voltar só um pouquinho pra gente fechar uma coisa de infância, eu queria saber quais eram as brincadeiras de infância. Do quê você brincava e com quem você brincava?
R – Nossa! Olha, a gente costumava brincar muito, eu, meus irmãos e os meus primos, de escola. Agora, teve uma fase que a gente brincava de taco, queimada, tudo na rua, na frente de casa e tal. Taco, queimada, aí tinha corda, só que a gente não era muito chegado na corda, e amarelinha, esse era o desafio também, a gente brincava muito de amarelinha. E andar de bicicleta, que eu lembro que o meu tio, eu acho, conseguiu uma bicicleta uma vez, ela ganhou e deu pra gente uma bicicleta rosa, que tinha até um cestinha na frente, uma garupa, e a gente ficava andando de um lado para o outro com essa bicicleta. Eram as brincadeiras assim que a gente mais gostava.
P/1 – E quando você teve o seu primeiro contato com o Eremim, me conte um pouco como foi. Como vocês descobriram o Eremim? Que você falou que foi em 2001 que você entrou, né?
R – Não, em 99.
P/1 – Em 99.
R – Isso.
P/1 – Então como foi? Como você descobriu o Eremim? Como foi esse primeiro contato com esse curso de cultura popular? Quais foram suas impressões?
R –Eles colocaram uma faixa no clube falando que ia abrir vaga, inscrição, pra curso pra jovem e criança, e aí quem tivesse interesse ia lá fazer a inscrição. Minha mãe fez primeiro para o meu irmão, falou: “Olha, vou colocar seu irmão pra ver como é”. Que é o mais velho. Aí colocou, falou: “É legal, é bacana, não sei o quê. Ah, então, tem vaga para as meninas” “Ah, então vou colocar as meninas”. Aí colocou a minha irmã e eu. Depois eu acho que uns dois meses que o meu irmão já tava no projeto, aí a gente entrou, em 99, que foi o início mesmo.
P/1 – E qual a sua lembrança das suas primeiras impressões do curso, com esse contato com a cultura?
R – Então, do curso eu adorei. A primeira impressão, eu fiquei extasiada, porque primeiro assim, era dentro de um clube, tinha piscina, tinha quadra, então a primeira impressão que me veio foi que: “Nossa, a gente vai usar a piscina, vai usar a quadra quando a gente quiser, tem churrasqueira, um monte de coisa”. Então criou um mundo superfantástico. Depois não foi muito bem assim, porque a gente não podia usar a piscina e a quadra quando a gente queria, enfim, tinha que estar com o educador junto. Eu me lembro da educadora Érica, que foi minha primeira educadora lá dentro, um amor de pessoa, fantástica a Érica, muito atenciosa, muito competente no que ela se propunha a fazer. Era uma turma de mais ou menos 15 pessoas com a mesma idade que eu, tinha 14 anos, eu acho, 13 pra 14 mais ou menos. E ela era assim, incrível. Então o primeiro contato com o pessoal foi muito bom. Foi uma turma que realmente fez diferença, porque a gente era muito junto, muito unido assim. E tinha as divisões, então a gente entrava com aquela turma e ficava até o final do ano, não tinha essa de mudar, enfim. Então o processo era bem legal.
P/1 – Era um ano de curso, é isso?
R – Não, é assim, lá é dividido por cores. Como eu não estou mais com tanto contato com o Eremim assim, não sei se mudou alguma coisa agora. Mas assim, azul, verde, laranja, vermelho e preto. Azul, de sete, oito anos; verde, nove, dez anos; laranja, 11 e 12; vermelho, 13 e 14; e preto, de 15 até 18, eu acho, que era a turma de jovens. Então todo mundo sonhava em chegar à turma de jovens, porque era top a turma de jovens, viajava, fazia um monte de coisa. Então era dividido. Então você podia entrar no azul e ficar até o preto. Você ia passando de turma assim. Então tinha atividades específicas pra faixa etária, pra aquela cor.
P/1 – Mas quando você entrou lá e se inscreveu, você foi fazer um curso específico?
R – Eu fui direto para o vermelho por conta da minha idade. E aí do vermelho depois que eu fui para o preto. Então fui direto para o vermelho, que tinha as atividades específicas. Eu tava com 14 anos, então eu fiquei até completar 15 e fui para preto. Se eu tivesse entrado com 13, eu ia ficar com 13, 14, e depois mudar de turma.
P/1 – Mas não era só a dança então.
R – Não.
P/1 – Era uma série de atividades. O que você fazia, de maneira geral?
R – Tinha atividade... Quando eu entrei, assim que eu entrei, não tinha a dança ainda específica, tinha atividade física, incluindo a natação, tinha os debates, o ensino sobre DST, enfim, todas essas questões que envolvem a sexualidade, a preparação para o trabalho. Então a gente tinha aula de informática, tinha grupo de orientação, que era um grupo mais específico com jogos e dinâmicas, enfim, tudo pensando no mercado de trabalho também. Eram atividades assim. E aí tinha visita em museus, atividades mais específicas mesmo. Nossa, faz muito tempo!
P/1 – E a dança entrou em que momento?
R – A dança... Na verdade assim, a Márcia, que é uma educadora de muita referência pra mim, a Márcia, o Adriano e o Dingos são três educadores que fizeram muita diferença nesse meu processo, eu os tenho como referência até hoje e graças a Deus a amizade dos três também até hoje. A Márcia, ela dava algumas atividades de ginástica, então já tinha ali a dança envolvida, mas a dança mesmo da cultura popular inicia, se não me falha a memória, em 2001, quando cria o núcleo de brincantes. E aí eu lembro, inclusive, que assim que eles trouxeram a proposta do núcleo de brincantes, eles iam fazer uma viagem pra Olímpia, pra um festival. Nossa, eu fiquei: “Meu Deus, nossa, viajar, que legal”. Só que a minha mãe falou: “Não acho bom você ir, você é muito jovem”. E eu lembro que eu fiquei, eu e mais um amigo meu, o Thiago. A gente falou: “Poxa...”. Não, o Thiago foi. Tinha outro amigo que não tinha ido, a gente ficou: “Poxa, só nós ficamos de fora e tal”. Quando eles voltaram de Olímpia, eu comecei de fato a participar do núcleo de brincantes, então foi em 2001. Eu já estava no núcleo de jovens, no grupo de jovens. Eu já estava.
P/1 – E como foi essa experiência no núcleo de brincantes? Conta um pouco pra gente.
R – Foi muito boa. Assim, era tudo muito parceria. Tinha a coordenadora, a Kika, Kika Palma, fantástica, fantástica, fantástica, fantástica, também um exemplo de pessoa. Então ela era muito envolvida também. E o Douglas e a Luanda, eles eram assim, pau pra toda obra, vamos fazer, vamos junto. A gente ensaiava à noite, às sextas-feiras à noite, então chamava a comunidade pra participar. Então era um grupo de integração e interação também. Então era parceria total. Foi assim durante uns bons três, quatro anos, de parceria mesmo. Então a gente ensaiava, tinha os ensaios, a gente criava coreografia, a gente apresentava na rua, no palco, em tudo quanto era lugar. Então foi um momento assim, até o momento do Mapa Cultural Paulista, que aí a gente ganhou em primeiro lugar a fase regional, e foi incrível, uma experiência fantástica.
P/1 – Conta um pouco mais pra gente dessa experiência com o Mapa Cultural Paulista. Onde vocês se apresentaram? Qual era o evento?
R – É um concurso de dança, não sei se ainda tem hoje em dia. Um concurso de dança. Então tinha ali as categorias: categoria popular, categoria não sei o quê e tal. E a gente ganhou em uma das categorias. A gente se apresentou no Teatro Municipal de Osasco. O teatro tava lotado, tinha muita gente assim. E eu lembro que a minha ex-cunhada, a Cátia, ela tava com um barrigão gigantesco e dançou aos oito meses assim, quase já ganhando neném, então foi tudo muito bonito assim. Então a gente ficou durante três meses preparando uma coreografia só pra esse festival, pra mostra do Mapa Cultural. Mas como todo grupo, sempre tinha ali as confusões, os embates, mas tudo que faz parte do processo mesmo.
P/1 – E você lembra com você se sentiu nessa apresentação e com essa vitória?
R – Nossa, foi incrível! Eu não sei nem explicar. Não sei nem explicar, mas assim, eu lembro que a gente gritava horrores e chorava pra caramba. Foi a sensação, nossa, a gente cumpriu o dever, a gente veio aqui, a gente mostrou que cultura popular também tem valor. Hoje em dia um pouco menos porque já virou moda pra algumas pessoas, então é legalzinho dançar maracatu, por exemplo. Mas antes tinha um olhar super... Então a gente chegava ao camarim, tinha as pessoas do balé com a perna lá em cima, e a gente discreto na borboletinha, então já tinha certo distanciamento de algumas linguagens da dança para as manifestações populares. Então isso também já criou ali certo posicionamento também político e de valor, e tal. Foi incrível. Assim, o contato com outros grupos, com outras linguagens, o fato da dedicação durante três meses pra ensaiar uma coreografia, então tudo foi incrível, foi muito bom.
P/1 – E qual você acha que foi a importância do Eremim na sua vida e na sua formação?
R – Olha, eu acredito que o Eremim, assim, ele me deu a possibilidade, alguns educadores especificamente, porque o que fez a diferença, sendo muito sincera, foram alguns educadores, que me fizeram acordar, de ter postura e posicionamento mesmo. Eu acho que o primeiro contato, por exemplo, com a informática, que eu não tinha tido, foi lá no Eremim, então isso já me despertou também, “Opa, existem outras coisas aqui que eu preciso ter contato também”. Mas eu acho que foi muito importante, como outras coisas foram importantes também. Mas eu acho que o fato de ter contato com outras pessoas, com pessoas que tinham ideias muito diferentes das minhas, que tinham posições muito diferentes das minhas, me fez ter uma... E eu era assim, muito... Eu sempre fui muito grossa, muito fechada, e isso foi me dando a possibilidade de mudar, de me transformar um pouco, de falar “opa, não preciso estar o tempo inteiro na defensiva”.
P/1 – Você se lembra de alguma história, de algum episódio marcante assim nesse sentido? De aprendizado, ou de mudança, uma coisa que tenha se transformado?
R – Olha, tem muita coisa sim, mas pensando assim... Eu acho que o fato de eu ter virado noites no Eremim junto com o pessoal do núcleo de brincantes, queimando o dedo na cola quente confeccionando os figurinos, eu acho que isso marcou pra mim. Porque naquele momento a gente tinha... Não era só adolescente, a gente tinha mãe da comunidade, a gente tinha pai, a gente tinha criança. Comprava pão e mortadela pra poder comer à noite, porque a gente tinha daqui dois dias uma apresentação pra fazer e a gente usava retalho pra construir os figurinos. Então essa relação que existia ali, hoje em dia faz muito sentido pra mim. Então acho que esses momentos marcaram muito.
P/1 – E quando você saiu do Eremim, você saiu pra ir para o Criar? Como foi isso?
R – Foi. A Kika, um dia ela chegou falando que tinha parceria, que eles tinham entrado em contato com o Instituto Criar e que existia a parceria, ela mostrou o projeto pra gente, aí a gente cada um optou por uma oficina e a gente se inscreveu. Eu optei pela oficina de produção. E era assim, eu ia para o Instituto Criar de manhã, ficava lá até à tarde, saía de lá e ia para o Eremim. Só que chegou um tempo que não dava mais pra fazer isso, ficava muito corrido, muito puxado. Então eu saí do Eremim e fiquei no Instituto Criar.
P/1 – E quando você decidiu que ia fazer a faculdade de Dança? Conta um pouco quando foi essa decisão, se teve algum momento, uma situação específica que te fez tomar essa decisão e como foi o ingresso na faculdade de Dança.
R – Em 2004 eu fiz o curso, em 2005 fiz a monitoria no Instituto Criar, aí ingressei numa produtora. Trabalhei como assistente de produção lá e fui fazer cursinho pré-vestibular lá na USP, que tinha lá o núcleo de consciência negra, tinha o cursinho de graça, eu fui fazer. E lá eu ouvi uns sons, música, e eu fui atrás, e era a aula de capoeira que tinha do lado, e em seguida tinha aula de dança afro. E eu conversei com a professora, Kelly, e já fiquei, no mesmo dia eu já comecei a fazer a aula. Ela falou: “Não, vem, fica aqui, é tudo nosso, e vem fazer com a gente”. Eu falei: “Nossa, que legal, tipo, nem me conhece e já tá me tratando desse jeito”. Eu já fiquei lá mesmo. E em 2005 eu comecei a pesquisa em dança afro, afro-brasileira. Em 2006 eu conheci a Sala Crisantempo, o músico Abu Júnior e fiquei lá na Sala Crisantempo como bolsista tendo aula com o Irineu Nogueira e com a Luciane Ramos e a Janete, e em seguida com a Mariana. De 2006 até 2010 eu fiquei na Sala Crisantempo. E em paralelo trabalhando com produção. Eu não me identifiquei muito com a produção, porque não era o meu tempo, não era o meu ritmo. Era tudo muito pra ontem, era tudo muito já, e se dava errado era tudo culpa da produção, se dava certo foi o grupo inteiro, e assina isso, faz aquilo. Eu fiquei durante um tempo porque eu precisava trabalhar, depois eu falei: ”Não, vou fazer o que eu estou gostando de fazer, que era dançar. Então em 2009 eu fiquei pensando, falei: “Poxa, seria tão legal se eu conseguisse entrar numa faculdade de dança”. Aí eu fui procurar saber como era o processo da Unicamp. Aí era muito difícil, porque tinha que ter ali... Não sei como tesá hoje, mas tinha... Ah, tinha que ter ali aquela postura do balé, tinha que ter a formação clássica, e eu não me identifico com o balé. Nada contra, já fiz o balé pra ter a experiência, mas não me identifico. Eu falei: “Bom, então vou olhar a PUC”. Pra bolsa na PUC era bem difícil também e o curso extremamente caro, eu não sabia onde tinha outra faculdade. Eu falei: “Será que eu vou ter que ir pra Bahia? Porque é na Bahia que tem”. Aí eu descobri a FPA buscando mesmo no site. Passou o ano inteiro, passou 2010, eu falei: “Bom, vou começar uma faculdade, vou ver como é essa FPA aí”. Aí eu fui fazer o vestibular e entrei. Foi buscando na internet mesmo, eu encontrei a Faculdade Paulista de Artes, fiz o vestibular e entrei. E assim, foi incrível. Porque assim, antes disso, em 2007, os meus pais ficaram doentes. E em 2007 eu fiquei um período desempregada. Então o que aconteceu? Eu fui com os meus pais pra Pernambuco. Lá em Pernambuco, a gente foi pra Caruaru. Eu não conhecia Caruaru. E lá eu olhei um abê, um instrumento de percussão. Eu falei: “Nossa, olha que bonito”. Custava 80 reias. Cem reais. Meu pai olhou, falou assim: “Você gostou?”. Eu falei: “Gostei”. Aí meu pai: “Então pode pegar, é seu”. Eu falei: “Não, pai, é muito caro, tal, não sei o quê”. Ele: “Não, pode pegar, é seu”. Ele falou: “Eu vou saber se futuramente você não vai ser uma artista”. Isso foi em 2007. Ele me deu o abê, a gente voltou (choro). Em 2011, quando eu entrei, meu pai falou: “Tá vendo? Você está fazendo o que você gosta. Não é dança? Então vá fazer dança”. Desde esse dia ele ficava falando: “Ah, minha filha é professora de dança. Minha filha é professora de dança e tal”. Então o ingressar na faculdade foi mesmo um ato de resistência, porque na década de 90, quando a gente veio pra cá, a possibilidade de entrar na faculdade era uma em dez milhões, eu acho, diferente de hoje em dia. Uma menina, negra, nordestina, muito menos. Então assim, ingressar na faculdade teve esse ato mesmo. E na verdade assim, era um dever que eu tinha. Minha mãe não teve essa condição, meu pai não teve essa condição, mas eu vou ter e eu vou dar orgulho pra eles. Bem nesse sentido assim. Então foi assim... O primeiro dia de aula, eu lembro, eu cheguei atrasada, porque eu saí do trabalho, fui correndo direto pra lá assim, era aula de Anatomia, eu falei: “Meu Deus, o que é isso?”. Só que assim, quando eu sentei à mesa, eu falei: “Gente, não acredito”. E assim, eu pagava com o meu dinheiro. Tinha ali a porcentagem do desconto, que eu consegui a bolsa, uma porcentagem de bolsa, que é a faculdade particular. Hoje em dia a gente já consegue uma bolsa integral muito mais fácil, graças a Deus. Mas eu ficava: “Meu, não acredito”. Eu ingressei na faculdade, eu já tinha 23 anos. Eu falei: “É por aí que eu vou. É por aí que eu vou”. Então assim, entrar na faculdade foi mesmo um ato de resistência e pra quebrar esses preconceitos de ser nordestina, de ser mulher, de ser negra, de ter identificação com as religiões de matrizes afro. Então estar na academia, poder levar pra dentro da academia as manifestações de matriz afro-brasileira e dizer que é tão importante quanto, e aí ver que o meu pai e a minha mãe em casa estavam achando o máximo... Porque o meu irmão já tinha terminado a faculdade. Antes disso já tinha tido um ato de resistência dentro de casa. Então assim, eles achando o máximo, eu falei: “É isso mesmo. Perfeito. É por aí que eu vou”.
P/1 – E como foi a experiência na universidade, na faculdade?
R – Ah, foi de embate o tempo inteiro, mas foi muito bom. Eu amo a Faculdade Paulista de Artes, estou lá ainda, minha especialização é lá, mas esse mundo da dança é muito ainda europeizado, eurocêntrico. Então o que predomina é a técnica do balé e toda essa postura de estar retinha e bonitinha e tal. Então assim, a gente falou: “Não, vamos pensar que a gente está na América Latina. Quais são as nossas influências? Por que a nossa aula de cultura afro-brasileira tem que ser à distância? Não”. Então assim, existiam esses questionamentos, mas foi muito bom, porque eu conheci pessoas incríveis da dança do ventre, da dança contemporânea, do balé, do hip hop, do site specific, então o tempo inteiro a gente dialogava e a gente era muito junto. A gente entrava em uns embates bem complicados, mas ao mesmo tempo tava tudo certo, que era pensando mesmo na dança e pensando mesmo na educação. Mas foi muito bom. Foi muito bom.
P/1 – E quando foi que você começou a trabalhar como educadora?
R – Eu comecei em 2010. É. Em 2010 eu comecei.
P/1 – Como foi esse começo? Conta como surgiu a oportunidade, ou como você foi buscar, e qual o trabalho que você faz hoje.
R – Na verdade, assim, começar, começar mesmo, eu comecei em 2005, porque foi quando o professor Daniel lá do Instituto Criar me escolheu pra ser monitora da turma seguinte do Instituto Criar. Então assim, eu ficava ali na monitoria já como assistente de professor. Então ali já começou. Eu falei: “Nossa, é legal isso. Achei interessante. Esse negócio de dar aula é legal também”. E aí eu continuei a minha pesquisa em dança. Em 2010, eu entrei num site... Tinha um site de emprego, eu ficava entrando direto pra ver lá as possibilidades de trabalhar com dança e tal. E tinha uma divulgação lá do Eremim, aí eu falei: “Bom, vou mandar meu currículo”. Quem tava lá não era mais a Kika, já tinha mudado muitas pessoas, tinha um pessoal que eu não tinha tido tanto contato. Falei: “Bom, vou mandar. Eles vão ver lá que eu fiz um monte de cursos já no Eremim, tal, mas vamos ver como é”. E eu mandei. Aí eles me chamaram pra uma entrevista, e outras educadoras também, eu passei por um processo de seleção normal. Uns dias depois eles ligaram falando que eu tinha sido aprovada. Mas assim, eu já tinha mostrado um projeto, já tinha elaborado uma estrutura de aula, não muito bonitinha, porque eu não tinha esse padrão, eu não tinha noção de como seria, eu fui ter um pouco mais de noção quando eu entrei no Eremim, que o Adriano e a Márcia, que já eram assistentes de coordenação, na verdade eles eram os coordenadores, porque eles tocavam o Eremim, eles faziam lá o processo de formação e eles eram muito bons, eles são muito bons, então eles ajudavam pra caramba, explicavam e ensinavam. Então foi a partir de 2010 que eu comecei de fato a dar aula.
P/1 – E foi no Eremim?
R – Que eu comecei a dar aula? É, teve a experiência do Criar antes, mas no Eremim foi o oficial, não sei.
P/1 – E aí era aula de dança, no Eremim?
R – De dança. Eu entrei como responsável pelo núcleo de dança do Eremim. E o núcleo de dança, a gente trabalhava com as danças brasileiras. Porque qual era a intenção? Tentar lembrar um pouco do trabalho que foi feito de 2001 a 2004. Só que era muito difícil, porque as pessoas que tinham participado do processo já não estavam mais, então foi se renovando, mas ainda assim a gente fez coisas muito bacanas. A gente fez várias coreografias, apresentamos em vários lugares assim. E durante alguns anos teve esse trabalho. Então eram três núcleos: hip hop, dança e música. Então a gente trabalhava sempre na interação. Em 2011, dentro do núcleo de dança entrou a linguagem do hip hop. Dentro do núcleo de dança também. Então a gente misturava as linguagens. Foi aí que eu conheci o Abu também, o Nitiren, a Inaiara, a Camila, e a gente formou uma equipe muito bacana e o tempo inteiro era apresentação. E a criançada adorava também.
P/1 – Você ficou quanto tempo no Eremim como educadora?
R – Eu fiquei de 2010 a 2012.
P/1 – E depois que você saiu de lá, você saiu pra algum outro lugar?
R – Saí. Desde quando eu saí do Eremim, eu dou aula em escola, dentro da disciplina Artes. E está sendo um desafio muito legal, porque ainda existe o pensamento de que Artes é pintura e desenho somente, e aí chega uma professora que é formada em Dança e quer trazer um monte de coisa para o corpo. Mas está sendo uma experiência bem legal. Bem legal. Bem bacana.
P/1 – Você dá aula em escolas diferentes? É isso?
R – Sim.
P/1 – E como é...
R – Eu dou aula em escola particular e em escola pública.
P/1 – Fala um pouquinho dessa experiência, assim, como são suas aulas, o que você encontra em sala de aula, como tá sendo essa experiência.
R – Olha, são públicos diferentes. Eu acredito que na escola pública eu tenho um pouco mais de liberdade pra fazer as aulas, eu só não tenho estrutura adequada, porque não tem como dar um exercício, alguma coisa muito específica para o corpo com uma turma de 45 alunos e uma sala cheia de mesa e cadeira. Mas ainda assim eu tento, levo para o pátio, levo pra quadra, ainda assim eu dou um jeito. Na escola particular é muito mais tranquilo, porque são turmas de 20 pessoas, tem ali uma sala limpa, organizada, mas existe resistência, porque o pensamento deles é pintura e desenho. Se eles não pintam e não desenham, eles não estão fazendo aula de Artes.
P/1 – E como educadora teve alguma experiência marcante que você tenha vivido dentro de sala de aula, no exercício assim da profissão? Uma história, um episódio que tenha sido mais significativo pra você? Como educadora já.
R – Nossa, é que são tantos, mas lembrar assim...
P/1 – Uma situação com alguma criança, ou com o grupo.
R – Na verdade, assim, tem uma menina que... Só que assim, foi gradual, não foi uma coisa pontual. Ela alisava o cabelo, e quando eu comecei a dar aula pra ela, depois de um tempo ela deixou de alisar. Então assim, isso foi o que mais me chamou a atenção, porque eu não precisei dizer: “Olha, o seu cabelo é bonito crespo, você não precisa...”. Eu não precisei falar pra ela, ela foi percebendo e foi percebendo que eu estava nem aí para o que as pessoas falavam, que eu estava muito bem resolvida com o meu cabelo. E depois ela me contou isso, falou: “Ai professora, ai Vânia, eu resolvi deixar meu cabelo natural porque eu vi que você usava o seu natural também”. Então eu acho que de todos os acontecimentos, eu acho que esse foi o que mais gosto de lembrar assim, o que mais marcou.
P/1 – Vou voltar um pouquinho, fazer uma pergunta bem pontual. O seu primeiro emprego remunerado foi no Criar ou foi na produtora?
R – Foi no Criar.
P/1 – Foi no Criar. E aí queria que você falasse um pouco... Não sei se você se lembra disso, o que você fez com a sua primeira bolsa ou salário, se você conseguiu comprar alguma coisa que você queria.
R – Olha, era pouco, viu? (risos). Mas o primeiro salário, eu lembro que eu comprei acho que um presente pra minha mãe, acho que uma blusinha, uma camiseta para o meu pai. Acho que foi isso. E acho que eu comprei alguma blusinha pra minha irmã e uma camiseta para o meu irmão também. Eu peguei o dinheiro, o que aconteceu? Eu saí do Criar... Recebi o dinheiro, saí do Criar e passei no Largo de Osasco, que tem um monte de loja, e comprei um monte de roupa, um monte de coisa. Eu acho que foi a primeira coisa que eu fiz com o dinheiro, eu gastei tudo em roupa.
P/1 – E depois com os seus salários posteriores, tem alguma coisa que você queria muito, que você tenha juntado pra comprar? Que tenha mais significativo?
R – Olha, eu não juntei, mas eu parcelei um celular. Eu lembro que eu comprei um celular superbonito, que abria, que hoje em dia já nem é mais chique, mas abria assim. Eu parcelei um celular em seis vezes. Consegui pagar rapidinho, porque seis vezes, era chique parcelar só em seis. Então eu parcelei um celular, aí todo mês eu pagava. E eu sempre dava um valor pra minha mãe também pra ajudar em casa.
P/1 – Tá certo. Eu vou encaminhar para o final porque a gente está com dez minutinhos só.
R – Tá.
P/1 – Queria primeiro que você me dissesse assim, o que você sabe sobre... Vou falar sobre o Criança Esperança. Desde quando você conhece o Projeto Criança Esperança e o que você sabe sobre o Criança Esperança?
R – Ah, o que eu sei é o que eu vejo na TV (risos). O que eu vejo na TV, em 2012 eu tive um contato mais direto por conta do Eremim. Não foi dos melhores contatos, porque eu estava dando aula e o pessoal chegou pra gravar. E assim, interrompeu a aula que tava muito importante. Mas é esse contato. O que eu vejo é através da TV mesmo, nunca pesquisei a fundo, nunca fui atrás, e o contato mais direto foi em 2012, que foi quando o Eremim foi beneficiado pelo Criança Esperança e eles tinham que gravar, a instituição. Inclusive, eu dei entrevista e tal. Mas foi esse o contato mesmo.
P/1 – E você sabe como esses recursos que foram destinados pelo Criança Esperança foram utilizados no Eremim? Você tem conhecimento disso?
R – Não. Eu não sei. Eu não lembro se eles apresentaram alguma coisa assim pra gente, sendo bem sincera. Porque eles foram gravar em agosto, se não me falha a memória, de 2012, e aí no final do ano eu pedi pra me afastar, eu saí da instituição, então eu não sei o que foi feito com o valor e tal. Não sei se ficou para o ano seguinte.
P/1 – Você não acompanhou.
R – Não. Não acompanhei.
P/1 – E queria saber assim, se você acha... Pensando no Criança Esperança, se você acha que esse projeto tem alguma importância em termos sociais e pra sociedade, e para os projetos sociais que recebem o recurso, e se tem, por quê?
R – Tá (risos).
P/1 – É do seu ponto de vista mesmo. É bem pessoal a questão.
R – Tá bom.
P/1 – Se você vê importância nesse tipo de iniciativa. Você pode pensar do ponto de vista do Eremim mesmo, que é a instituição a qual você já esteve vinculada.
R – Pensando na trajetória, eu acredito que se fosse de outra maneira seria mais interessante. O que me incomoda é o fato da exposição, da exposição da necessidade e da dificuldade. Porque antes da necessidade e da dificuldade existem histórias e pessoas. Então às vezes isso acaba me incomodando um pouco, só a maneira. Talvez se fosse pensado de outra forma, se fosse usado outra estrutura e não como a gente conhece pela TV... Eu estou falando a partir do que eu conheço na TV e do pouco contato que eu tive. Eu acho que seria muito mais significativo. Não sei, de repente outro tipo de parceria. Eu acho que assim, o Terceiro Setor, os projetos sociais são muito importantes, mas eu acho que o desafio mesmo da nossa sociedade é que eles não existam. Porque eles existem porque existe a dificuldade e existe a diferença, e existe a desigualdade. E quando essa desigualdade é pega somente pra ser usufruída, não sei se essa é a palavra, não sei se me agrada. Inclusive, essa foi uma das questões que eu coloquei no Eremim. O que a gente quer de fato? O que vocês pensam de fato com as crianças que estão aqui? Mas acho que assim, os movimentos sociais, os projetos socais, eles têm papel importante. Eu acho que só precisa ser revisto o modo, o como e o porquê. Hoje em dia... É claro que na situação que a gente tá vivendo, a gente tem cada vez menos pessoas precisando desses projetos, graças a Deus, porque aí a gente tá percebendo que elas têm condições de se moverem sozinhas, e ter consciência. Mas eu acho que quando os movimentos sociais e os projetos se reverem, se reestruturarem, eu acho que vai ser mais significativo.
P/1 – No caso específico do Eremim, você vê mudança ou transformações nas crianças e jovens que participam?
R – Na turma passada, sim. Na turma que eu fiz parte como educanda, sim. De alguns anos pra cá, eu não sei porque eu não acompanhei muito mais, inclusive eu mudei. O morava no Rochdale, dava aula lá, morava no Rochdale, então eu tinha o tempo inteiro contato com as crianças e adolescentes. Hoje eu não tenho mais. Eu tenho pela internet, alguns ainda eu converso e tal. Mas de 99 até 2004, 2005, eu acho que se você encontrar... Inclusive, eu tenho um amigão, o Paulo, que é o codiretor de um longa agora, do Na Quebrada. Então assim, da mesma fase que eu. Então assim, foi com certeza muito considerável. Não que não tenha, tem sim, tem educandos que eu dei aula que estão super bem, estão na faculdade hoje em dia, estão super bem encaminhados. Mas eu acho que pelo afastamento, eu não consigo dizer.
P/1 – Não, mas pode ser considerando a sua turma mesmo, na sua época. Assim, se você acha que fez diferença pra você, para as pessoas que frequentaram junto com você, para o seu irmão, se você vê algum impacto na participação do Eremim.
R – Ah, sim, fez. Fez sim. Claro que teve toda a estrutura da minha casa, isso antes de qualquer coisa. Se eu não tivesse tido essa estrutura dentro de casa, com certeza a minha vida não teria tomado esse rumo, não teria tomado esse caminho. Mas o Eremim teve sim. Teve sim.
P/1 – Em que sentido você acha? Em que aspectos?
R – Eu acho que no sentido de formação humana mesmo. De ter postura, de ter decisão e tal. Porque as outras coisas, assim, fui eu e eu. Assim, eu fui atrás mesmo. A faculdade, outras coisas, eu fui dando a cara a tapa e fui indo. Mas assim, o Eremim, em questão de formação pessoal, pra saber lidar com as outras pessoas, pra saber chegar a um lugar, isso foi muito importante, fez muita diferença mesmo o Eremim.
P/1 – Tá certo. Eu vou encaminhar para as questões finais agora então.
R – Tá.
P/1 – São duas perguntas pra fechar. Eu queria saber, antes de fazer essas perguntas, se tem alguma coisa que eu não tenha perguntado e que você gostaria de deixar registrada.
R – Não. Acho que não.
P/1 – Não? Uma impressão, uma história, uma lembrança, nada que tenha ficado...
R – Não, eu quero dizer, reforçar a importância dos meus pais na minha vida. Eles são muito, muito, muito importantes na minha formação até hoje. E eu tenho certeza que se não fosse a dignidade, o caráter deles e a educação que eles deram, eu não sei como seria o meu caminho hoje em dia. E eu tenho muito orgulho deles, porque depois de 20 anos em São Paulo, eles puderam voltar pra Pernambuco de cabeça erguida, com dignidade, e na casa deles. Então assim, só reforçar isso mesmo. Que eu acho que esse processo de educação e de formação, e com o contato com as manifestações populares, começou dentro de casa mesmo. E talvez seja esse o motivo de eu ter me tornado professora hoje em dia. Eu acho que por conta dessa relação.
P/1 – Tá certo. Então a penúltima pergunta: quais são seus sonhos hoje?
R – Nossa, são tantos. Mas eu vou falar um que eu possa... (risos). Eu tenho um sonho de ter um filho, então poder educar alguém, poder orientar alguém e deixar para o mundão assim. E assim, como eu já sou noiva assim, eu acho que futuramente, em breve acontece, esse sonho se realiza.
P/1 – E por fim, como foi contar a sua história, um pedacinho da sua história?
R – Nossa, é difícil, né? É difícil contar a história. É difícil se lembrar das coisas, assim tão rápido. Mas é bom, traz lembranças boas. Com certeza eu vou sair daqui, eu vou me lembrar de um monte de coisa que eu deveria ter falado e: “Poxa, não falei isso”. Mas é bom. Passa um filme mesmo na cabeça. Eu gostei.
P/1 – Tá certo. Obrigada então, Gilvânia.
R – Obrigada você.
P/1 – A gente encerra aqui.
FINAL DA ENTREVISTARecolher