Projeto Memórias do Comércio de Ribeirão Preto 2020 e 2021
Entrevista História de Vida HV_034
Senhor Walter Feloni Alemão Alfaiate
Entrevistador por: Luís Paulo Domingues e Herika Aguiar
Transcrita por Selma Paiva
Bom, ‘seu’ Walter, pra começar eu queria que o senhor falasse o seu nome completo, a data de nascimento e o local que o senhor nasceu.
R1 – Walter Feloni. Eu nasci em Ribeirão Preto, dia 5 de junho de 1937. Só que houve uma pequena coisa na data do meu nascimento. Eu nasci 5 de junho, mas minha mãe entregou um dinheiro pro eu tio, pra me registrar no dia 5, ele não me registrou, foi me registrar dia 23 de dezembro de 1937. (risos) Quer dizer, depois de seis meses que ele vai me registrar. Mas a minha data de nascimento certa foi 5 de junho de 1937.
P1 – E o senhor comemora quando? No dia que foi registrado?
R1 – Em 5 de junho eu comemoro.
P1 – Tá legal. E qual o nome do seu pai e da sua mãe?
R1 – Meu pai chamava-se Ferdinando Feloni e minha mãe Olga Rigo Feloni.
P1 – E eles eram de Ribeirão também? Eles já estavam aí ou vieram de fora?
R1 – Estavam aqui em Ribeirão Preto. Descendentes de italianos. Meu avô veio da Itália, meus avós todos vieram da Itália, eles eram descendentes de italianos.
P1 – E o senhor chegou a conhecer seus avós, alguns deles?
R1 – Eu conheci uma avó por parte da minha mãe, o avô e minha avó por parte do meu pai. O avô por parte da minha mãe já estava falecido, quando eu cheguei aqui em Ribeirão Preto, porque... posso contar pequena história?
P1 – Claro, claro!
R1 - Minha história, eu com seis meses de idade, fui embora para o Rio de Janeiro. Meu pai foi trabalhar nas agências dos Correios e Telégrafos lá, pintando elas.
P1 – Sim.
R1 - Então, (nós ficamos) eu fiquei de seis anos, até oito anos de idade, fiquei no Rio de Janeiro. Aí, do Rio de Janeiro, nós voltamos pra Ribeirão Preto. Chegamos aqui em Ribeirão Preto quando estava acabando a guerra, em 1945. Então, ficamos em Ribeirão Preto, eu fui morar com a minha avó por parte do meu pai, depois morei com a avó por parte da minha mãe e ficamos aqui em Ribeirão Preto até a minha juventude, né, que eu lembro. Aí não mudei mais pra lugar nenhum.
P1 - O senhor conheceu seus avós? Eles eram o quê? Eles faziam o que de trabalho, assim?
R1 – O quê? Eu não entendi.
P1 – O senhor conheceu seus avós?
R1 – Conheci, conheci meus avós.
P1 – O senhor lembra?
R1 – O meu avô, por parte do meu pai, era pintor também de casa, igual meu pai. Pintavam casas.
P1 – Sei.
R1 – Na época da brocha, ainda. E meu avô eu não conheci. O meu outro avô, não. Eu conheci a minha vó, que era doméstica, né? Que era… que moravam aqui na Rua Onze de Agosto, onde que eu nasci, pra cima um pouquinho, numa casinha modesta lá. Então, eles moravam ali na Rua Onze de Agosto, numa casa muito grande, um quintal enorme. Quer dizer: então eles, a minha avó por parte da minha mãe eu conheci, mas meu avô, não. Só conheci o avô por parte do pai e a avó por parte do pai. Quer dizer: então, esses eu conheci.
P1 – E, ‘seu’ Walter, o senhor lembra o nome deles, pra gente deixar gravado?
R1 – Lembro. Um chamava-se Humberto Feloni, a outra chamava Hermínia Bertoni Feloni, a outra Josefina Rigo e Antônio Rigo. Chamavam meus avós.
P1 – Ai que bom. Vieram, todos, da Itália, né?
R1 – Isso. Meus avós vieram todos da Itália. Vieram pra cá, foram moram em Dumont, Dumont uma cidadezinha aqui perto de Ribeirão Preto. Não sei você a conhece ela, a cidade.
P1 – Sim.
R1 – É tipo um lugarejo, né, que eles vieram morar, né. Foram trabalhar na roça, quando vieram da Itália. Aí, depois, eles vieram pra Ribeirão Preto, esse meu avô por parte do meu pai foi pintor de casa, igual meu pai e um tio meu que também era pintor. E o outro avô eu não sabia, que eu vou ser honesto, que eu não sabia o que que ele fazia. Agora minha vó sim, minha vó era doméstica. Até tem uma fotografia dela na minha casa, que ela está sentadinha, com um avental, sabe? O dia que vocês vierem buscar, se quiser pegar aquela fotografia, eu entrego pros senhores.
P1 – Queremos, sim. E o seu pai e a sua mãe faziam o quê? Seu pai era pintor, né? E a sua mãe?
R1 – Pintor. Minha mãe era doméstica. A minha mãe era doméstica. Ela lavava muita roupa pra fora, naquela época, sabe? Trabalhava de..., lavava, passava e entregava pras famílias aqui de Ribeirão Preto, né, e cuidava da casa, ficava cuidando da casa e dos filhos, né. Quer dizer: a casa, que era, uma casa... hoje não tem mais, não tinha nem… o teto era o telhado, né, então ficava aquela coisa, tudo... Colchões era, colchão de palha de milho. Não tinha colchão como tem hoje, né? Hoje os colchões são todos modernos. Então, era uma vida simples, modesta e a gente ia vivendo, né? Não tinha esse negócio de comprar leite, os caras traziam o leite, criavam os porcos lá no fundo do quintal, a gente tinha galinhas, ovos, as hortas, tinha tudo no fundo do quintal. Então, era, no começo água de cisterna, depois que veio a água encanada. Quer dizer: banho frio, não tinha-se, quase, chuveiro, né. Era um banho frio todos os dias. Era calor ou frio, você tinha que tomar o banho frio, não tinha que na… E a pasta dental, de dente, era aquela cinza fininha, que meu avô fazia das coisas que sobravam do fogão da lenha, ele coava ela e aquilo ali era a pasta de dente que a gente usava. Era uma vida ‘meia’ sofisticada, assim… ‘meia’, ‘meia braba’, né?
P1 – Viu, ‘seu’ Walter, mas assim... a profissão do seu pai, que era pintor, ela tinha bastante serviço naquela época, né? O seu pai foi crescendo no trabalho porque, se ele foi chamado pra ir lá no Rio de Janeiro, já era uma coisa melhor no trabalho, não era?
R1 – Ele, realmente, era um bom profissional, (um bom profissional). Eu, depois que eu comecei a ficar com uns oito, nove anos de idade, eu ia ajudá-lo, eu ia pegar as tintas pra ele, que era tinta com cal, cal virgem. Você queria queimar o cal um dia, pra usar a massa no dia seguinte, você entendeu? Quer dizer: então você limpava, fazia os rodapés pra ele, como era que ele falava, né? Seus rodapé... Ele pintava na mão, na brocha mesmo, não tinha aquele negócio de rolete, não. Ele era um bom profissional, igual ao meu avô, que trabalhava junto com ele e um dos meus tios, que depois veio trabalhar, mas isso aí depois de muito tempo. Eles tinham bastante serviço, mesmo. Eles aqui em Ribeirão Preto eles eram muito procurados. Por isso que acho que ele foi indicado pelos Correios e Telégrafos, pra pintar as agências do Rio de Janeiro, onde que a gente foi, que eu fui com seis meses, meus irmãos foram com mais um pouquinho de idade, meu irmão e uma outra irmã, que era mais velha e a gente ficou lá oito anos e vivemos o tempo da guerra lá, que foi duro. Então, lá você não comia pão. E carne, então… eu vivia, eu e meu irmão, caçando rã pra gente comer. Rã, e minha mãe fazia. Na época, entraram dentro da minha casa e levaram tudo quanto foi coisa de alumínio, que era pra fazer material velho. Minha mãe cozinhava em panela de barro, sabe? Fazia polenta, fazia… essas coisas todas em panela... feijão preto, porque lá no Rio é feijão preto. A gente comia mais essas coisas. Jaca, então, eu comi tanto, que hoje eu não aguento nem ver o cheiro da jaca, pra você ter uma ideia. Foi uma coisa que hoje eu conto pros meus netos e falo assim: “Hoje vocês estão no céu, porque o que eu passei...”. Quer dizer, foi coisa… quer dizer, eu não tive esse negócio de muita coisa boa que tem hoje: carne, essas coisas todas. Eu levantava de manhã, era uma tirinha com polenta, um leite, um pouquinho de café, tomava e ia embora pra escola. Levava as bananas que davam no quintal, pra comer lá, de lanche.
P1 – Certo
R1- Quer dizer: foi uma vida ‘meia’, como diz o outro, bem pobre, mesmo, na época, né?
P1 – Certo!
R1- Hoje pouca coisa que você vê isso. Vê, mas não é assim, tão como era antigamente. Mas a gente vivia feliz.
P1 – Sim.
R1- Tinha uma felicidade muito boa entre a família.
P1 – Ok. Ô, ‘seu’ Walter, quando o senhor era bem criança, onde que o senhor morava em Ribeirão? Que rua que era?
R1 – Onde que eu morava?
P1 – É. Quando o senhor nasceu, quando o senhor era criança, era onde a casa?
R1 – Eu nasci na Rua Onze de Agosto. A casa não tinha número. Ficava entre a rua, hoje, que é Padre Euclides e Rio de Janeiro. Era uma casa muito modesta, no fundo de um quintal ali… um quintal enorme, uma casinha bem pequena, de acho que dois, se não me engano tinha uns três cômodos. Morava eu, meu pai, meus dois irmãos que são mais velhos do que eu e depois eu nasci. Eu nasci lá mesmo, não fui em lugar nenhum, em hospital, lugar nenhum... nasci naquela casa. Na mão de parteira.
P1 – Era parteira (?)
R1 – Nasci no dia 5 de junho de 1937, numa segunda-feira, às onze e quarenta e cinco. Isso minha irmã falou pra mim. Então, eu guardei bem na memória a data e a hora que eu nasci.
P1 – Sim, ô ‘seu’ Walter...? Pode falar.
R1 – Não. Dali depois eu morei em certos bairros aqui de Ribeirão Preto.
P1 – Sim.
R1 – Dalí, quando eu voltei do Rio, eu vim morar em outros bairros.
P1 – Sim. Só pra lembrar, o senhor foi pro Rio com quantos anos de idade, mesmo?
R1 – Com seis meses de idade.
P1 – Ah, com seis meses…
R1 – Eu nasci em junho e fui embora em dezembro.
P1 – Ah... E o senhor lembra do Rio de Janeiro, de alguma coisa de lá, ainda?
R1 – Eu lembro quando eu tinha meus sete, oito anos, eu lembro… eu lembro que meu pai levou num carnaval que não era feito lá na onde que é feito hoje. Era feito, não lembro o nome agora, mas ele me levava, me punha em cima das costas dele, eu lembro, no carnaval, eu fui na Quinta da Boa Vista, lá no Rio de Janeiro, quando era garoto, fui nas praias ali perto, eu lembro que fui no Leblon, essas coisas,né? Eu morei em São João do Meriti, morei em Pavuna, morei nas Laranjeiras. Isso eu lembro, que eu morava lá. Então, esses lugares a gente lembrava, que o meu irmão estudou onde que é hoje Niterói, que não era no Rio, eles falavam que era papa goiaba lá onde que ele estudava, lá, sabe? Então, eu não estudei lá no Rio. Eu vim estudar aqui em Ribeirão Preto. Eu fiquei meio ano estudando lá. Depois vim pra Ribeirão, quando eu estava com oito anos e pouco, entrei no primeiro ano aqui, mas eu passei, no meio do ano eu passei. Eu não repeti um ano. Então, eu tirei o diploma aqui em Ribeirão.
P1 – Certo. “Seu’ Walter, como era sua infância? O que o senhor lembra da sua infância? Do que o senhor brincava? Como era a rua que o senhor morava? O senhor tem essa lembrança na mente?
R1 – Bom, no Rio de Janeiro a minha lembrança é a seguinte: a gente saía, eu e meu irmão, nós íamos procurar coisa pra comer. Nós íamos caçar rã, ia ver se encontr... pegava jaca, né? Jaca você conhece aquele lá.
P1 – Conheço.
R1 – Trepava lá no pé de jaca. Pegava abiu, que tinha muito lá, cana caiana, laranja, já tinha naquela época. A gente saía pra aqueles morros lá onde que a gente morava perto, lá entendeu? E pegava essas coisas, né? Pegava um anzol, que onde eu morava, não sei foi em Pavuna, tinha um senhor que era marinheiro e, quando ele voltava de viagem, ele trazia uns peixes e dava pra minha mãe e tinha um outro que ia caçar lá na… na onde... gente, eu sempre esqueço o nome, eu sei que ele ia caçar, tudo quanto era parte de bicho ele trazia pra gente e dava um pedaço e a gente comia,. Quer dizer, então… era capivara, era tudo. Pra você ter uma ideia, onça eu cheguei a comer até onça, no Rio.
P1 –Sério?
R1 –Era quase tudo. Eu só me lembro uma coisa que aconteceu no Rio de Janeiro comigo que eu quase que eu fui… que eu morri, simplesmente. Tinha aqueles fogões de álcool que você fechava e apertava pra chama subir, então eu pegava, fui fazer aquilo ali, a água quente caiu toda em cima de mim. Então, eu me queimei todinho. Eu ____ (17:27) aqui no umbigo e eu queimei. Eu fiquei uma semana com febre, isso, aquilo e aquilo outro. Quem me tratou? Uma senhora que morava do lado onde que a gente morava, tinha diversas casas: a minha, outra aqui, outra, passava até um córregozinho no meio. Ela pegou folha de bananeira nova, passou manteiga, colocou em mim. Eu tomava muito, lá no Rio, homeopatia, porque lá tem a Seabra, no Rio de Janeiro e o meu pai conhecia muito esse negócio de homeopatia. Então, me deu homeopatia, eu tomei, eu acho que eu fui salvo por aquilo ali. Quer dizer: foi uma coisa que eu me lembro muito bem que eu me queimei muito forte. Saía até pele do corpo, assim. Então, foi uma queimadura muito forte, sabe? Isso daí eu lembro do Rio de Janeiro. E lembro que a gente foi passear nas praias, no carnaval eu fui ver, lá na… onde passava antes, na onde que passa hoje e nos lugares que eu fui lá. Quer dizer...
P1 – Já tinha o bondinho ou não ainda?
R1 – Tinha o bondinho da Lapa lá, né. Tinha. Depois de muito tempo eu fui lá no Rio de Janeiro, umas duas ou três vezes, conhecer a Lapa. Fui na Lapa, fui na Cinelândia, fui no Pão de Açúcar, fui no Cristo Redentor, fui nas praias famosas: Copacabana, no Leblon, Ipanema, eu fui em todas essas praias lá.
P1 – Que bom! Muito bom. ‘Seu’ Walter e em Ribeirão Preto, como foi sua infância? O que que o senhor fazia?
R1 – Quando eu cheguei aqui, aos oito anos e pouco, eu fui estudar, estudava aqui no segundo grupo, na Rua Amador Bueno, aqui quase no Centro de Ribeirão. Estudei ali até os quatro anos. Depois, quando eu estava com onze anos de idade, eu já fui trabalhar no comércio, em Ribeirão. Eu fui trabalhar no JB Alfaiate. Ainda existe até hoje aqui em Ribeirão. Ele era ali na General Osório, 331, perto do Centro ali. onde que só... Quando eu cheguei em Ribeirão só tinha aquele prédio Diederichsen aqui em Ribeirão. Não tinha outro prédio. Quer dizer: quando eu cheguei, só aquele prédio que tinha, tinha a Paulicéia velha e tinha o Pinguim do lado. Quer dizer: então, aquele Centro ali e o Pedro II, né, é na… chamavam de… Paulicéia, Pedro II... Hotel Brasil, na esquina.
P1 – Quarteirão, né? Quarteirão Paulista.
R1 – Quarteirão Paulista. Quarteirão Paulista. Isso.
P1 – Mas antes do senhor ir trabalhar no JB Alfaiate, como era a sua infância de brincadeira na rua? O senhor acordava cedo?
R1 – As brincadeiras eram muito boa, né?
P1 – Como que era?
R1 – Era… Fazia um campinho no meio da rua, aquela poeira danada, jogava bola. Quando chovia, você pegava um ferrinho, jogava o ferrinho, fechava os outros, sabe? Isso não existe, se você falar isso pros outros, ninguém existe: você pega um ferrinho, você vai pegando, você prende um aqui, ele tem que sair, sabe, lutar até chegar na casinha do outro lado e tinha um tal de jogo que se jogava, um tipo de um alçapão. Você tinha que passar correndo, se o cara pega você, você levava ‘cachuleta’, até chegar no ponto onde você tinha que parar, pra pegar os outros, sabe? Então, jogava bola. Eu joguei muita bola. Eu cheguei, quando eu era moleque, com onze anos de idade, eu jogava bola até em campo grande, já. Jogava bola. Depois fui indo, fui indo, cheguei jogar, fui campeão varzeano em Ribeirão Preto pela Marmoraria Brasil, que eu morei perto ali. Fui campeão com eles, jogava varzeano. Amador eu joguei na Fazenda Experimental, pegamos terceiro lugar em amador. E depois eu joguei bola em Franca. Eu fui trabalhar lá uns três, quatro meses, eu cheguei a jogar semiprofissional lá, (quer dizer) não amador. Então não tinha... Joguei no profissional seis vezes, depois houve um problema comigo de doença, eu tive uma apendicite, eu precisei vir embora pra Ribeirão Preto correndo, pra operar a apendicite, aí depois eu só jogava bola nos campos. Tinha um time que a gente tinha lá, um tal de Amazoninha, a gente jogava em todas as fazendas perto de Ribeirão Preto. Jogava ali, ia lá, jogava em quadra. Futebol de quadra era a minha paixão. Jogava futebol de quadra de segunda, quarta e sexta-feira. Quer dizer: então, era um divertimento da gente, sabe? E ia passear nas pracinhas, né? Alí, na Praça XV de Ribeirão Preto tinha três tipos de passeio: em frente da rua, perto da rua onde que tem o prédio Diederichsen, onde que eu trabalhei lá muito tempo, depois a gente vai chegar lá, tinha ali, era os mais riquinhos que nem falava na época. Na Praça XV, tinha em volta daquela… daquela fonte, eram os mais humildes. Em frente hoje, onde que é a Americanas passeavam as pessoas de cores, ali. Até eu achava engraçado porque eles não passeavam junto com a gente de lá. Eu nunca tive preconceito com cor. Eu tive muitos amigos que jogavam bola comigo, mas amigos mesmo, de cores, eu gostava muito deles e eles gostavam muito de mim. Depois que veio falar ‘alemão, alemão, alemão’, por causa que eu era branco, né, no meio deles. E eu nunca chamei nenhum deles de outra espécie, como falava pelo nome, por nome deles, sabe? Nunca tive essa maneira de falar isso e aquilo outro, como os outros falam. Eu sempre fui uma pessoa mais, desde criança, respeitava todas as pessoas. Nunca tive essas coisas de como os outros chamam, sabe? Eu nem gosto de falar. Eu tenho raiva disso.
P1 – ‘Seu’ Walter e como é que era Ribeirão naquela época? Era bem menor, né? Se o senhor fosse até ali na Vila Tibério, perto da USP, indo pra lá, já não tinha mais cidade? Como era?
R1 – Tinha a Vila Tibério... Vila Tibério tinha, né? Você passava a trilha do trem, tinha um trem, né, ali, a Mogiana passava por ali. E tinha uma parte na Rua Duque de Caxias, quando o trem estava passando, você passava por baixo. Tipo de um túnel ali, não sei se você ficou sabendo disso...
P1 – Sim.
R1 – ….aquele túnel que tinha, passava. Vila Tibério tinha, Campos Elíseos tinha, tinha uma parte do Ipiranga, uma parte da Vila Virgínia tinha também, o Alto da Cidade que todo mundo conhece, né? Aí depois, Ribeirão Preto foi expandindo, tomando rumo. Porque você vê hoje, até perto do aeroporto hoje, você conta quantos bairros que tem lá: um, dois... tem uns dez bairros, tudo por ali. Ipiranga, então, expandiu de uma tal maneira, que foi embora, que foi quase perto de Santa Cruz das Posses, que é um lugarejo que tem por ali. Ribeirão… um exemplo: aqui, que você vai pra Bonfim, está quase chegando em Bonfim, já. Expandiu muito.
P1 – E naquela época era tudo fazenda de café, ali, nessa parte?
R1 – Você subia o Barracão antigo, pra lá já tinha fazenda, fazenda dos Paiva, que estavam lá. Era café. Não tinha muita cana, não. Era mais a de café, mais produção de café lá, e eles… e a gente ia lá. Chupava café maduro. Ia apanhar café, café pra chupar, café maduro, sabe? Então eu... aquela parte ali eu conhecia, sim, de moleque, ia andando descalço por ali, sabe? Ia atrás de... hoje uma fruta que quase não existe, lá tinha muito, chamava jenipapo, você conhece, né?
P1 – Jenipapo, conheço.
R1 – Ia lá pra apanhar jenipapo, pegava café, pegava gabiroba. Quer dizer, então, a gente moleque saía e ia lá buscar melaço de cana, fazia os litros. Minha vó fazia até um pão com aquele melaço lá, sabe? Com aqueles fogões a lenha de... redondo, de fundo de quintal. Você chegou a ver isso, esse fogão…
P1 – Eu vi por foto.
R1 – … (fogão a lenha esquentava), era um fogão assim, ó, meio arredondado. Então, pegava, botava lenha dentro deles, esquentava ele, colocava as broas, os ‘pão’ lá dentro, tirava, era um tipo de um forno. Quer dizer, era interessante.
P1 – ‘Seu’ Walter, o senhor chegou a conhecer aqueles grandes fazendeiros de café, como da família Schmidt, Junqueira, o próprio senhor... o senhor os conheceu?
R1 – Junqueira eu conheci alguns, conheci alguns Junqueira sim. Que quando eu trabalhei lá no JB, eles faziam roupa lá. Você entendeu? Os Junqueiras, faziam lá. A elite de Ribeirão Preto fazia roupa no JB. Quer dizer: era o alfaiate da moda lá de Ribeirão. Sabe, Ribeirão… onde que você ia procurar a moda, melhor, em Ribeirão Preto, era lá no JB. Que você tinha, lá, as coisas. Vinha roupa, pra você ter uma ideia, eram casimiras inglesas. Eu cheguei a trabalhar com casimira. _______ (27:44) inglês, linho cento e vinte, que hoje não existe mais isso. O linho cento e vinte eram três cores: branco, bege e um cinza bem clarinho. Não tinha mais cor que isso, não. E a casimira inglesa vinha com a bandeira inglesa da Inglaterra em cima da peça dela. Isso aí cheguei a trabalhar muito lá. Quer dizer: então a elite de Ribeirão Preto ia lá. Eu cheguei a conhecer o Antônio Diederichsen, que doou o prédio na... aquele prédio Diederichsen que está lá, foi doado por ele. Eu cheguei a conhecer ele quando moleque, quando eu trabalhava ali, aos onze anos. Ele andava de charrete, com duas ‘japonesinhas’ que ele criava. Era um senhor claro, alto, sabe? De chapéu branco, vestido de branco, sabe? Cheguei a conhecê-lo, o vi muitas vezes ali na praça. E ele morava onde que é a biblioteca hoje, em frente a biblioteca.
P1 – A Sinhá Junqueira?
R1 – É, a Sinhá Junqueira. Era a Sinhá Junqueira. Ele morou ali naquela casa.
P1 – Legal! ‘Seu’ Walter, e da escola, o que o senhor achava, quando era criança? O senhor ia pra escola, era perto da sua casa? O senhor gostava da escola?
R1 – Eu sempre ia pra escola. Eu morava, por exemplo, nos Campos Elíseos, na Rua Alagoas. Pra mim chegar aonde eu estudava, eu andava mais ou menos como se fosse uns dois quilômetros, eu andava. Atravessava, entrava e ia lá. Todo dia na escola. Todo dia. Não tinha nada... Eu fiz quatro anos da escola que eu falo hoje pros meus netos, pros meus amigos mais novos, que os quatro anos que eu fiz hoje equivalem hoje até quase o colegial de hoje. Os quatro anos que eu fiz. Era muito rígido, bem forte. Eles falam em redação, que redação é difícil, aquilo outro. A professora colocava um quadro na parede e falava: “Faz uma redação daquilo ali em duas páginas cheias”. Você tinha que memorizar e fazer isso aquilo ali. Quer dizer: as quatro operações caíam nas coisas que você fazia, você tinha que saber certinho. Senão... História, tinha que ter uma boa lembrança de História, narrar alguma coisa. Quer dizer: então, foi uma aprendizagem muito boa, de quatro anos, que eu vivi no mundo. E minha média, pra você ter uma ideia, foi 86. Eu tirei 86.
P1 – Muito boa! E o senhor gostava mais de qual? Qual matéria o senhor gostava mais?
R1 – Gostava mais da História, daqueles trabalhos manuais também, sabe? Fazia muito trabalho manual, desenhava alguns… fazia alguns prédios assim, desenhava inteirinho, sabe? Ficava aquele... Aí você pintava ele. Eu tinha até quadro. Há pouco tempo eu tinha, mas hoje eu não tenho mais. Não sei, desapareceu, sabe? Então, eu gostava daquilo ali. Mas eu sempre fui um cara que as matérias eu tinha que fazer. Então, tinha que estudar e fazer aquilo ali, né? Quer dizer: Matemática era mais… era... que hoje, mesmo já… (fica meio ‘coisa’, né?). Mas eu lia na Matemática. Hoje, por exemplo, em vez de pegar essas... e fazer a conta na Matemática, essas 10% disso é tanto, por que você vai pegar.. vai pegar aí… é 5%, é tanto. Mas como? Pode fazer aí, ué! Então, essa coisa eu tenho na minha cabeça, sabe? Então, é uma coisa que eu trouxe lá de trás. Quer dizer: eu gostaria de ter me formado, mas não tive tempo porque, na época, eu precisei trabalhar pra ajudar minha mãe, os meus pais, né? Que aí eu comecei no comércio, com onze anos de idade, né?
P1 – Mas aí o senhor foi pra… O senhor fez até qual ano, aí parou?
R1 – Fiz quatro anos de grupo, um ano de admissão, que a gente falava, depois eu cheguei a fazer dois anos de… quase dois anos de ginásio. Tive que parar, porque não dava mais, porque eu tinha que trabalhar e ajudar em casa.
P1 – Aí o primeiro trabalho do senhor já foi no JB?
R1 – No JB. Primeiro trabalho. Entrei lá com onze anos de idade.
P1 – Como é que foi o trabalho? Como que foi? Conta como foi que o senhor chegou e conseguiu esse emprego e gostou de trabalhar como alfaiate.
R1 – Eu saía do grupo era umas onze horas e pouco, eu encontrava com uns rapazes que trabalhavam lá, eles trabalhavam lá no JB. Eles eram… naquela época chamava de oficiais de alfaiate. Então, eles faziam os paletós, faziam isso, cada um fazia uma coisa: um fazia uma calça, o outro fazia um paletó, o outro pregava manga. Quer dizer: um tipo de uma indústria, mas eram pessoas aperfeiçoadas e talentosas pra fazer isso. Eu conheci eles e falou: “Ó, está precisando de um menino lá pra fazer entrega pra fazer… officeboy” – como falam hoje - “pra limpar, isso e aquilo. Você não quer trabalhar lá?” Eu falei: “Eu vou tirar o diploma agora, semana que vem já vou sair”. “Então vai lá, que você vai trabalhar com a gente”. Aí eu fui pra lá. Eu comecei limpando vidro, entregando roupa, indo comprar retrós, indo comprar aviamentos, como a gente falava antigamente, né, e comecei lá. Fiquei dos onze anos trabalhando com entrega, aí eu conheci Ribeirão Preto inteirinho, que eu ia entregar a pé, entregava os paletós, ia até lá na avenida, entrava na Nove de Julho, vinha pra cá, pra lá. Quer dizer: conheci Ribeirão Preto tudo a pé, andando. Não ia de carro, de bicicleta, nem nada. Quer dizer: fui a pé Ribeirão Preto, os bairros, conheci a Vila Tibério, a Vila Virgínia, ia pra cá, pra lá, ia no Alto da Cidade, ia na Nove de Julho, que era famosa lá, que só tinha casas chiques, né? Na época, não como hoje. Hoje é mais comércio a Nove de Julho do que as casas, porque hoje todo mundo mora lá pra avenida, lá em cima, né?
P1 – Certo.
R1 – Lá na Fiusa. Foram tudo pra lá agora os prédios e tudo. Primeiro era ali na Nove de Julho e as adjacências dela. As outras ruas de cima são todas casas, se você ver em Ribeirão Preto, você vê que são casas, todas casas grandes, né? Eu entregava em todas essas casas aí.
P1 – E o senhor tinha que ir de terno também?
R1 – Não. Eu ia como estou aqui, eu ia. Quem ia trabalhar de terno eram os oficiais na… que trabalhavam lá dentro, que faziam os paletós. Eles iam de terno, gravata, tiravam e punham lá. Mas eu sempre fui assim, porque não... aí eu fiquei lá até os 14 anos. Quando eu ia sair de lá, que um senhor lá que fazia, que era lá da Força e Luz, o ‘seu’ Paulo Aulim, era o chefe lá. Mas ele queria me levar pra Força e Luz, pra eu trabalhar lá com ele, aos 14 anos. Aí meu patrão ficou sabendo: “Não, não, você não vai trabalhar pra ele. Você vai aprender o ofício, que você sabe muito bem. Você é muito esperto, você vai saber”. Aí, naquela época, sabe, o ofício de alfaiate era bem remunerado, né? Era bem remunerado.
P1 – Sim.
R1 – Eu peguei e falei: “Deixa eu ir lá, eu continuo o estudo lá” “Não, não, eu vou te pagar tanto”. Pra você ter uma ideia, eu ganhava trinta, ele falou: “Eu vou te pagar sessenta pra você ficar aqui”. Dobrou o salário. Mas aí, eu precisando desse dinheiro pra ajudar em casa, eu peguei e fiquei ali aprendendo a profissão. Aos 14 anos pra frente, aprendi a profissão. E continuava com os meus afazeres, né? Jogava bola, ia pra cá, ia pra lá. Tinha fazenda lá que me pagava, naquela época, duzentos mil reais por jogo. Quer dizer: era um dinheirinho que eu tinha no bolso, né? Eu jogava mais ou menos, aí um dia ele foi me ver jogar e falou: “Você é bom de bola, rapaz. Você devia tentar outra coisa”. Falei: “Não, deixa quieto”, não tinha essa intenção, né? Quer dizer, então, depois eu fiquei ali e tal, até meus 18 anos. Fui lá fazer o tiro de guerra. Aí houve um problema lá que ele era muito rígido, sabe, se desentendeu. Eu era um rapaz que não levava desaforo. Se eu achava que eu estava na minha razão, eu questionava ele. Eu questionei ele, ele pegou e me mandou embora. Vai me mandar embora? Aí eu falei: Ué, o senhor é o dono, o senhor que manda aqui, você vai me mandar embora? Fui embora. Aí fui trabalhar em outros lugares, e em outro lugar fui trabalhar num lugar lá com um rapaz, também não gostei, saí, fui pra um outro, aí eu fui trabalhar lá naquele prédio, no prédio que, depois do prédio da frente, depois do Umuarama Hotel. Tinha o Diederichsen, aí fizeram o Umuarama Hotel, foi o segundo prédio de Ribeirão Preto. O da frente, onde tinha o Diederichsen, o terceiro, o quarto, o da esquina. Aí depois foi subindo prédio. Quando você via, já tinha outro prédio lá, sabe? Você trabalhava, quando dava tempo, já tinha outro prédio alí. Você trabalhava no prédio da frente, no ‘seu’ João Mattioli, um alfaiate. Trabalhei uns tempos com ele lá, tal.
P1 – O senhor já sabia fazer roupa, né? Aí o senhor já não era...
R1 – Não. Com 18 anos eu já era oficial. Eu fazia os paletós, já.
P1 – Sim.
R1 – Não era ajudante, né? Ajudante, você fazia uma manga, fazia uma amostra, ajudava a arrematar o terno, mas ali não, ali eu já era oficial, já pegava um paletó e já fazia sozinho. Não tinha esse negócio. E eu me adaptei.
P1 – ‘Seu’ Walter, aí o senhor já estava com 18 anos, oficial de alfaiate, já tinha um salário melhor, o que o senhor fazia pra se divertir em Ribeirão Preto? Como é que era? O senhor ia tomar um chopp, ia passear onde?
R1 – Não, eu não era muito de chopp, não. Eu jovem... é aquilo: você bebia guaraná, um refrigerante, de vez em quando. Porque não era toda hora que você podia beber, não. Ah, você ia passear nas praças. Eu morava nos Campos Elíseos, é em frente a Santo Antônio, ali, aquela Igreja Santo Antônio, passava ali, né?
P1 – Sim.
R1 – Ficava vendo ali, como o pessoal falava na época, era o footing, né? Fazia o footing.
P1 – É o footing.
R1 – Ficava lá com a molecada lá, a gente jogava bola, se reunia ali e ficava ali. Tinha um cinema ali, Cine Santo Antônio; tinha o Pedro II, que tinha um cinema; tinha outro cinema, do outro lado; tinha mais um lá na esquina, o Bristol; tinha o Cine São Paulo, que era no prédio Diederichsen, do lado ali da Única, tinha o Cine São Paulo. A gente ficava ali, passeando, ia no cinema e passava o tempo, ia jogar bola e, pra você ter uma ideia, eu fui ver um baile, eu fui conhecer baile lá na Experimental, que eles faziam um baile de sábado lá e então uma vez nós fomos lá, que eles fizeram uma festa pra nós, que nós pegamos terceiro lugar, fui lá ver um baile. Mas era muito raro que eu saía de casa até madrugada da noite. Uma que não tinha perigo, porque naquela época não tinha perigo, mas eu não gostava muito, não. Eu gostava assim, de ir no cinema, não tinha coisa.
P1 – ‘Seu’ Walter, o senhor conheceu sua esposa nessa época ou mais tarde?
R1 – Não, agora vou te contar a história: eu trabalhava num prédio em frente, ela trabalhava na Única, sabe a Única, que tem até hoje, café?
P1 – Sim.
R1 – Ali, a Única era do ‘seu’ Oscar Zoega, era café e uma parte tinha doces. Muito bons doces. Eram doces de primeira linha, né? Ela trabalhava ali. Eu lá de cima, do segundo andar, ficava olhando, ficava cruzando os olhos, né? Aí tinha uma moça que trabalhava lá: “Você, você está olhando a menina lá na frente?” Eu falei assim: “Ah, está de frente pra mim, eu vou olhar, o que tem olhar? Não tem problema nenhum. Olhar não paga nada”, eu falei pra ela. A menina pegou e falou assim pra mim: “Você sabe que eu estou vendo que ela olha aqui pra cima também?” E tudo bem. Aí eu tinha costume, às vezes, de ir lá tomar um café, eu fumava naquela época, sabe? Então eu peguei e falei: “Talvez eu vou lá tomar café”. Um dia fui tomar café, aí um rapaz pegou e falou assim: “Vê a conta e um doce, que eu vou levar pra minha esposa”. Comi um doce, ela ficou olhando pra mim, ficou me olhando, tal. Aí, um dia, ela estava na pracinha Santo Antônio, que ela morava nos Campos Elíseos também, estava andando e ela estava andando com uma amiga dela. Eu estava parado, né? Eu olhei pra ela, ela ficou olhando pra mim, eu vi que ela entrou no cinema, no Cine Santo Antônio, eu peguei, entrei e falei assim: “Eu vou sentar perto dela”. Sentei perto dela: “Meu irmão está pra chegar”. Eu falei assim: “Ah, a hora que ele chegar, eu saio. Ficar aqui mesmo. Queria conversar com você, tal”. Daí foi surgindo, né e tal. Levei até lá perto da casa dela. E, no domingo eu ia jogar bola, não tinha hora pra chegar. Falei: “Ó, domingo não sei se a gente vai se encontrar. Se eu chegar cedo da Dumont, porque às vezes eu jogava, no Dumont, às vezes jogava no Garça, na Experimental, ia de carro e a gente ia lá e voltava. Naquele domingo jogamos na Experimental mesmo. Eu voltei cedo, umas sete horas eu estava em casa. Aí começou a se encontrar, começamos a namorar e ficamos namorando, até tinha acabado o tiro de guerra, ficamos aí namorando um bom tempo, né? Quer dizer, então até depois ela precisou ir embora pra Batatais, que o pai dela estava doente, ficou lá, eu ia todo fim de semana, eu ia lá, foi morar em Batatais. Quer dizer, eu saía de Ribeirão e ia pra Batatais. E pegava estrada de terra, viu? Não era asfalto, não. Tudo terra, até Batatais ainda. Era aquela poeirona, que Deus me livre! Quer dizer, então, a gente ficou assim, até a morte do pai dela, ela tornou a voltar pra Ribeirão Preto, começou a trabalhar, aqui em Ribeirão e um dia a gente estava assim, tal, eu falei pra ela: “Olha, como é que nós vamos fazer? A gente está numa vida meio brava né?”. Aconteceu um negócio lá, eu falei: “Sabe de uma coisa? Conversa com sua mãe, vê se dá certo, a gente casa. Fazer o quê? Eu estou trabalhando, você está trabalhando, você não precisa trabalhar, não. Nós vamos morar com a minha mãe, eu trabalho e te sustento”. Aí casamos, aqueles casamento simples, não é aqueles negócios que hoje os caras fazem, né? Modesto. Fui até em Campinas, ficamos três dias, quatro dias lá, voltei e batalhei. Aí nasceu a primeira filha minha, que é a mais velha, está com sessenta anos hoje.
P1 - Sim.
R1 - Uma luta danada. Nasceu prematura. Foi um desastre na vida, sabe? Então, moleque novo, não sabia nada, né? Então, só via trabalho na frente e isso e aquilo. Aí, um dia eu estava trabalhando num lugar lá e como diz o outro, o italiano aqui, neto de alemão também, não leva desaforo pra casa, desentendemos lá e saí e falei: “Sabe de uma coisa? Vou trabalhar por minha conta. Aí falei: “Vou enfiar a cara”. Você não conheceu, eu trabalhava lá no Diederichsen, lá no segundo andar. Fui pra lá e já era casado, com uma filha, cara e a coragem. Fui pra lá no começo de 1970. Quer dizer, quando eu abri a sala lá muitos amigos meus falavam assim: “Daqui quatro meses, cinco meses, você fecha”. Quer dizer: eu fui fechar lá, porque o prédio fechou, fiquei lá só 47 anos. Não foi um mês, dois meses. Quarenta e sete anos. Aí eu conheci muita gente, a nata de Ribeirão Preto. Eu fiz roupa até pra um dos prefeitos lá.
P1 – O Jábali?
R1 – Roberto Jábali. Fiz roupa pra ele, pro irmão dele, fiz roupa pra muitos professores da faculdade de Medicina. Lá na Medicina eu fiz roupa lá pra ele, bons professores lá, conheci muita gente, lá. Fiz smoking quando eu trabalhei lá ________ (45:51). Trabalhava smoking dia e noite, nas festas lá da Medicina. Tinha todo fim de ano uma formatura deles, né? Então, eu fazia smoking lá pra eles. Quer dizer: pros bailes deles, aqueles bailes famosos, lá. Então, tudo isso eu fui pegando em Ribeirão. Mas eu vivi uma vida em Ribeirão Preto, de, falar assim, de 11 anos de idade, até agora que eu saí, que faz uns quatro ou cinco meses que eu saí lá do Centro, a minha vida foi ali, naquele Centro lá, naquele comércio ali.
P1 – ‘Seu’ Walter, o senhor me contou, quando eu fui no seu escritório, que o senhor gostava muito de ir em comícios, o senhor assistiu vários comícios importantes, até do Getúlio Vargas, do Plínio Salgado… O senhor... Conta um pouquinho.
R1 – O Getúlio Vargas eu assisti um comício dele em frente a catedral. Ele estava em pé, baixinho, tal e tinha uns caras aqui em Ribeirão Preto, eu não vou citar nomes, porque eu sei os nomes deles, mas não vou citar, porque eu não quero me intrometer na vida deles, sabe? E em determinado momento apagaram a luz daquele pedaço, começaram a soltar foguete, isso e aquilo, aquilo outro, pensando que o Getúlio Vargas ia sair dali de cima do palanque. Quando acendeu a luz o baixinho, tava lá… como estava, ele ficou, em pé ali e continuou o comício dele. Quer dizer, eu falei: “O homem não tem medo. O homem é um gentleman, né? Uma pessoa de raça, de peito, de dedicação”. Quer dizer: está parecendo eu. Eu, quando sigo alguma coisa, eu vou em frente, eu não tenho medo. Quer dizer: tudo que eu construí na minha vida foi feito no meu trabalho e na minha dedicação. Quer dizer: tem até algumas coisas que eu fiz. Então, eu sou aquele cara: foge da minha conjuntura. Quer dizer, então, são coisas que eu vi. O Plínio Salgado foi no mesmo lugar. Só que eu não aguentei o homem falar. O homem falou mais de três horas. Plínio Salgado. Falava, que não parava, não parava. Aí, eu estava em pé, estava doendo, aí eu fui embora, eu fui embora, mas dizem que ele falou mais de meia hora ainda. E do Luiz Carlos Prestes, aquele que falavam que era comunista, né? Aí, eu acho que, sei lá, comunismo não existe, né? É uma maneira das pessoas se expressar, né? Ele estava em frente... eu estava no Pedro II e ele estava lá, em frente aquela estátua que tem na praça. Ele estava falando, falando, pôs a mão no peito: “Vocês estão diante de um comunista”. Eu nunca tinha ouvido aquela palavra, assim. Eu ouvia falar comunista, mas eu não sabia o que era o comunismo, né? Aí, depois que eu fui me inteirando, aí fui saber o que que era o comunismo, né? Era da Rússia, né? O comunismo era… veio de origem da Rússia, né? E uma parte da China, hoje, ainda tem o comunismo, né? Então, eu peguei, não me interessei muito por isso, não. Quer dizer: gostava de ouvir falar, fala, fala, fala e gostava de música e eu vi aqui na Praça XV, no mesmo lugar que eu estava, dois moleques, Chitãozinho e Xororó, quando começaram a cantar. Lá na Praça XV. Eles entraram e cantaram. Moacyr Franco vi cantar lá. Eu ia lá pra ver Jamelão. Esses caras eu gostava de ouvir cantar, sabe? Ia lá, sabe? Almir Sater eu ouvi até há pouco tempo, no Pedro II. Eu vi aquele senhor… Tango... E fui vendo essas coisas assim que eu gostava. Eu gosto de ver. Umas orquestras também.
P1 – É, eu ia perguntar isso: naquela época não tinha bastante orquestra, baile com orquestra? O senhor ia também?
R1 - Não. Tinha uns conjuntos. Não tinha orquestra. Tinha uns conjuntos que tocavam nos bailes, né? Mas não era orquestra, não. Era umas quatro, cinco pessoas. Uma pessoa cantando. Não era orquestra, não. Orquestra mesmo, que eu vim conhecer, foi no Pedro II.
P1 – Certo. ‘Seu’ Walter, mas pra voltar pra profissão do senhor, aí o senhor se casou e foi morar com a sua esposa, junto com a sua mãe, né, o senhor falou.
R1 – Isso, é.
P1 – E aí, como é que o senhor evoluiu a ponto de sair do seu trabalho como alfaiate, mas de um outro dono de comércio e abrir o seu comércio? Como que chegou a abrir o seu?
R1 – Olha, eu abri aquela sala, como eu falei pra você, na minha persistência, coragem e dedicação. Eu aprendi bem a minha profissão, comecei a trabalhar, na hora do almoço a minha esposa levava o almoço pra mim, eu almoçava, saía distribuindo meus cartõezinhos na cidade inteira. Quer dizer: eu fazia a minha propaganda. E comecei a trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar. No fim, eu comecei a não dar conta, precisei colocar umas pessoas pra me ajudar. No meu auge, como eu contei pra você lá na sala, em um ano, eu cheguei a fazer vinte ternos e umas setenta calças, trabalhando com outras pessoas, você entendeu? Dando serviço, trabalhando, mas eu era quem mais trabalhava. Pra você ter uma ideia, eu chegava cinco e meia, seis horas, saía de lá onze horas da noite, todo dia. Almoçava, já tomava um lanche lá mesmo e continuava, você entende? Quer dizer: não tinha medo do serviço. Enquanto os outros iam dormir, descansavam, eu estava trabalhando. Foi onde que eu consegui levantar na minha profissão. Foi indo... Quer dizer, então, a como diz o ditado, peguei um pequeno nome na cidade. Que até eu saí em livros, que eu te mostrei lá, não sei se eu mostrei aqui...
P1 - Eu lembro.
R1- ... tive livros, tive uma história na Revige, na capa do Jornal da Cidade, capa mesmo, não é... estampa na primeira página. Eu tenho ali guardado comigo e tem a minha história que eu contei pra moça, que ela fez um livro, está tudo guardado ali. Quer dizer, mas foi... não foi fácil, não foi fácil.
P1 – Sim.
P1 - Foi uma vida difícil no comércio, que eu tinha muitos concorrentes. Eu era um alfaiate, tinha o JB, tinha o Caprichoso, tinha o Orozimbo, tinha a Sanata, tinha o Irineu, tinha o Ramazini... mas tinha alfaiate que não acabava mais... você entende? E eu fui um dos mais novos que me encaixei no meio deles e consegui sobreviver.
P1 – Certo! E o... Aí o escritório já era lá no prédio Diedirichsen, né?
R1 – Diedirichsen. É, tinha uma sala. Depois eu consegui a sala do outro lado e consegui ficar com duas salas lá. Quer dizer...
P1 – E não era caro lá?
R1 – Não era.
P1 – Não era?
R1 – Não era caro, não. É que tem o seguinte: o Diedirichsen deixou um testamento que aquilo seria uma coisa pra beneficiar as pessoas idosas... eu não era idoso, mas eram pessoas que estavam começando na vida, mães solteiras, senhores velhos moravam lá, porque lá, primeiro e segundo andares era comércio; terceiro, quarto e quinto andar... terceiro e quarto... terceiro e quarto, era tudo apartamentos, moravam pessoas lá que eram as mulheres solteiras, as pessoas de idade. E o quinto andar era o hotel, o Grande Hotel, quinto andar. Quer dizer, então, aquela renda ali ia pra Santa Casa, como vai até hoje. A renda do prédio, total, vai pra Santa Casa. Eles não... Quer dizer: chega lá na Santa Casa, ninguém sabe onde que vai, onde que viu, você entendeu, mas vai pra lá.
P1 – Certo.
R1 – Eu também não quero saber. Eu sei que vai pra lá. Pra mim, eu lavo as mãos.
P1 – ‘Seu’ Walter, o senhor fazia propaganda no jornal, na rádio, do seu negócio ou não? Não precisava?
R1 – Não. Eu não fazia propaganda, eles que vinham me entrevistar.
P1 – Ah é?
R1 – A rádio vinha lá me entrevistar, como tem entrevista aí. Eu dei entrevista em todas as televisões de Ribeirão Preto: Bandeirantes, a Tathi e a Eptv foram me entrevistar lá. Fizeram entrevistas comigo lá, porque: “Alemão, Alemão, tal”. Todo mundo falava: “Alemão Alfaiate, tal”. Queriam saber da minha origem, como eu comecei, como eu estou falando pra você hoje. Quer dizer: eu trabalhei simplesmente no comércio de 11 anos de idade até 83, setenta anos que eu fiquei _________ (55:50). Não foi um dia, né? Foi quase um século, né?
P1 – Certo. E, naquela época, ‘seu’ Walter, mais pro passado, quando o senhor começou e depois pegou nome, dava pro senhor cobrar muito bem, né, no serviço seu, porque naquela época a alfaiataria era algo mais caro, pra gente que tivesse mais condições, não é? O senhor estava falando dos panos, por exemplo. Eram panos que vinham de fora, né? Então dava pro senhor cobrar bem, né?
R1 – Não. Na minha época, que eu fui pra lá, tinha esses panos ainda, mas eu não cheguei a trabalhar, assim, trabalhava quando as pessoas... eu trabalhava com a mão de obra. Eles me levavam os panos e eu trabalhava. Mas você não era assim, você não podia cobrar muito, não, porque você tinha diversos que trabalhavam também, né? Se você não se adequar no meio deles, você ficava pra trás, você entendeu? Não é igual hoje. Hoje a profissão acabou. Por quê? A roupa feita tomou conta. Muita gente chega e fala assim: “Eu vou lá e compro um terno”. Dali duas, três horas compra um terno. E eu, pra fazer um terno da minha maneira, como eu faço, que eu aprendi, eu demoro quatro dias. Como eu falei pra você aquele dia lá: uma calça você demora um dia pra fazer uma calça bem-feita. Você não pode chegar, igual lá na China... na China eles joga aqueles containers e mais containers aqui pro Brasil daquelas roupas todas feita da...
P1 – Certo!
P1 – ...num movimento só, começa aqui e acaba lá. É tudo feito pelo avesso. Eu desfiei um paletó daquele lá na hora, pra pessoa ver como é que é feito aquilo ali, tudo pelo avesso. Você não desfia um paletó meu, do jeito que eu faço.
P1 – Não desfia?
R1 – Da minha mão de obra... Não. Você não joga ele do avesso. Você tem que desmontar uma boa parte dele pra você virar e eu, com um simples corte desse tamanho aqui, eu puxo inteirinho pelo contrário, esse paletó aí. Quer dizer: tem confecções boas, não vou falar que não tem, tem, mas é tudo feito em máquina, começa aqui e termina lá.
P1 – Certo. ‘Seu’ Walter, o senhor acha que essa moda do passado, quando as pessoas faziam a roupa sob medida, pra cada pessoa, era mais bonito, era mais chique, o pessoal andava mais bem vestido ou hoje em dia o senhor já se acostumou com as roupas que se usa hoje?
R1 – Pra você ter uma ideia, a roupa que se era feita antes, à mão, manualmente, artesanal, vamos falar que era artesanal, era provada duas a três vezes. Ela ficava certinha. O ombro certo. Você não vê... Às vezes você olha na televisão e vê aqueles caras com aqueles baita ombros, fica grande. Lá não. Aquela seda que vai no smoking antigamente era colocada, todinha, à mão. Não tinha máquina aquilo ali. Era alinhavada. Depois de pronta era colocado um papel por cima, pra ela não quebrar, nem nada. Você não podia lavar aquilo. Você passava levemente. Tinha uns fitiro que vai na calça, no lado, hoje você não vê nesses smokings. Você fazia um tipo de uma coisa, que eu cheguei a fazer muito pra casamento, um paletó cinza chumbo, um colete cinza claro e aquela calça listada, com os fitiro. Isso aí eu cansei de fazer o cara casar com aquilo, entendeu?
P1 - Certo.
R1 - Quer dizer. Eram umas roupas bem diferente como hoje. Hoje tem, mas está fazendo naquilo ali? Ah, não. É um fraque, aquele que ele fica aberto atrás. Aquilo ali precisa ser muito bom alfaiate, pra fazer aquilo lá. Hoje não faz. Hoje faz porque modelaram e bolaram em máquina, nele... em máquina. Se você chegar perto, se você pegar o que o alfaiate fez e pegar, olhar um e olhar o outro, você que não sabe como é que é as coisas, você nota a diferença.
P1 - Certo.
R1- Você não vai falar: “Ai, esse daqui...”. Você põe os dois juntos e fala: “Esse aqui é feito na mão, esse aqui é ______ (01:00:36)”..
P1 - Sim.
R1 - ... entendeu? Essa é a diferença.
P1 - Certo.
R1- Uma calça que é feita por um alfaiate, você a vê ela, com o acabamento, o avesso é diferente daquela que você compra pronta. Forro vem com claro, vem com escuro, vem... não vem o forro da cor da calça. Quando eu faço uma calça, o forro é da cor dela.
P1 - Certo.
R1- Tem que ser da cor dela. Quer dizer... São acabamentos que hoje você não... porcamente você vê. Só aquelas... aquelas indústrias bem famosas que vem... talvez você encontra razoavelmente que vá parecer com aquilo que eu fazia e os outros colegas meus faziam.
P1 – Está certo. E o senhor... Que tipo de produto, além do terno, o senhor vendia? O senhor falou fraque, tinha colete. O que mais? Calça...
R1 – Calça; tinha colete; smoking, né? O meio smoking, que é aquele que eu te falei que é o cinza __________ (01:01:40), colete claro e aquela outra parte. Quer dizer, então, o alfaiate hoje é o jaquetão; o paletó de dois botões; paletó de três botões; paletó de um botão; o summer, que é aquela gola redonda, você já viu?
P1 – Sim.
R1 – Uma gola redonda, ela chama summer. Ele é abotoado aqui, é branco... ele é branco, tem uns que fazem branco, todinho; tem uns que faz transpassado; tem uns que não fazem. Então, é um smoking que você faz com a gola redonda e o outro você faz aquela gola de vinco. Quer dizer: são os estilos de alfaiate. É um botão, dois botões, três botões, jaquetão de seis botões, summer quatro botões. Quer dizer: são as roupas que você vê até hoje. Boca fina, boca larga. Uma hora é uma boca estreitinha, slim, outra hora é mais largo, é jaquetão, era saco. Quer dizer, então hoje não usa mais isso. Hoje usa mais o slim,
P1 – É, eu ia perguntar isso... Desculpa. Pode falar.
R1 – É, então tô falando... Hoje, usa mais paletó, o terno mais slim, mais estreitinho, mais curto. Tipo a moda italiana. Italiano faz paletó curtinho, quer dizer, não faz pra baixo da nádega, faz acima da nádega. Você pode ver. Os ternos sempre curtinhos. Você vê na televisão, você olha lá, está tudo aparecendo as nádegas. Curtinho o paletó. Quer dizer: a moda vai e volta, né? É igual moda de inverno, né? Um vestido, alguma coisa.
P1 – É, eu ia perguntar isso pro senhor, ‘seu’ Walter: o senhor começou na alfaiataria com onze anos, né, depois mais pra frente oficial, depois próprio alfaiate. Já passou, por esse tempo todo, mais de setenta anos, muitas modas. Então, teve uma época que, né, nos anos setenta, o terno era de um jeito; nos anos sessenta, de outro; aí nos oitenta de outro. Como que o senhor se atualizava? O senhor lia revista, ficava sabendo, via na televisão? Como que era?
R1 – Não, porque o alfaiate, ele corta o terno pelo esquadro. Ele não corta pelo modelo, você entendeu? Então, você esquadrejando ele, você faz do tamanho que você quer. Você diminui e aumenta, você entendeu? A gola, por exemplo, se quiser fazer ela estreita, você faz ela mais estreita. Você pode desenhar ele num papel e fazer o modelo, mas com esquadro. Você esquadreja primeiro, depois você faz o modelo e, naquele modelo, você põe a lapela larga, a lapela estreita, mais apertado, mais estreito, você entendeu? Quer dizer, então: você tira uma medida, você quer mais estreito, você diminui a medida aqui e fica mais justo.
P1 - Sei.
R1- Agora, você quer mais largo? Você aumenta a medida. Quer dizer: você quer um ombro mais largo, você aumenta o ombro; você quer mais estreito, você diminui. Quer dizer: é tudo ali na modelagem que você vai fazendo. Você tem que fazer o modelo, pra depois você adaptar no plano, porque senão, daí se você fizer só no plano, você pode se perder, quando muda o esquema da moda, entendeu?
P1 - Sim.
R1 - Quer dizer: igual vestido, vestido você tem que adaptar.
P1- Ta certo!
R1 - Se não adaptar, você não faz. A calça, você lembra das bocas largas?
P1 – Lembro.
R1 – Sabe aquelas calças jeans com a boca largona? Você fazia uma métrica nela, emendava por dentro e fazia a boca ficar desse tamanho, assim. Vinte e nove, trinta, trinta e dois, entendeu? Quer dizer: a quilo ali era tudo na memória da gente, no pensamento, naquilo que você ia fazer. Essa calça Lee, quando saiu, eu cheguei a consertar umas vinte calças por dia. A Lee. Comprava nos Estados Unidos, os caras compravam e traziam pra cá. Consertava. Era febre. Aquele courinho de Lee no cós era uma febre, entendeu? Era febre. Quer dizer, eu ficava assim, como você: você tem que se adequar na sua profissão, se você ficar pra trás, você não faz a origem dela evoluir.
P1 – Sim. E quem que eram seus principais clientes? Eram pessoas que iam casar? Era gente que usava terno no dia a dia? Como que eram seus clientes?
R1 – Olha, os meus clientes eram diversos, pra você ter uma ideia. Eram desde o começo dos jovens, que iam lá consertar uma calça Lee, iam fazer um conserto; os outros fregueses meus queriam fazer calças; e os outros que gostavam de terno e usavam terno. Era diversificado, né? Quer dizer, eu trabalhava pra três tipos de pessoas: as que gostavam de um terno bem-feito ou que gostava de uma calça bem-feita; tinham fregueses que saíam de São Paulo e traziam roupa pra mim fazer aqui. De outros lugares saíam e vinham fazer: “Ah, eu gosto... Eu gostei daquele terno que você fazia e vou fazer outro”. Quer dizer: eu já tinha as medidas dele, tinha o modelo, cortava, provava uma, duas vezes, quando ele vinha fazer um negócio aqui em Ribeirão e levava o terno pronto embora. Quer dizer: calça tirava medida, tirava a modelagem, modelava. O cara não precisava nem... se modelar a sua calça, você está em Bauru, você manda pra mim, eu te mando a calça pronta. Se eu modelar uma... você manda uma pra mim: “Eu gosto dessa calça aqui”, eu modelo ela, e faço quantas você quiser igual àquela, você entendeu? Quer dizer, eu a esquadrejo ela, modelo e mando a roupa pra você. Você manda o molde e manda o molde.
P1 – Tá legal! ‘Seu’ Walter e o que que mudou na sua profissão hoje, né? O pessoal não faz mais roupa pronta, mas também, o pessoal não faz mais roupa, né, sob medida e, além disso, ninguém mais usa terno? O que o senhor vê, assim, sobre a sua profissão?
R1 – Olha, hoje, quem usa terno? Vamos projetar. O advogado usa terno hoje pra quê? Pra ir no fórum. Do contrário, ele trabalha como eu estou aqui, como você está aí. Trabalha no escritório dele assim. Quando ele vai ter uma audiência, ele coloca um terno. O que que ele faz? Ele vai numa loja, compra um terninho mais ou menos, pra se apresentar lá. Agora, os outros... os promotores, juízes, essas coisas, vão lá, compram aqueles ternos mais sofisticados, né? Pra você ter uma ideia, os ternos hoje, nas lojas, custam quase três mil reais. Um terno, hoje. Quer dizer: se eu for fazer um terno pra você, hoje, vai ficar em dois mil e quinhentos reais. Minha mão de obra, com pano, que você comprar, é mais barato do que comprar lá. Quer dizer: não adianta. Eles vão comprar lá, porque já sai vestido de lá, faz uma barra, encurta uma manga, se estiver comprida. Isso aí eu fiz muito numa loja lá que eu trabalhava: encurtava manga, encurtava barra de calça, encurtava paletó. Quer dizer: é o que eu estava vivendo hoje fazendo consertos. Você tinha um paletó que estava um pouquinho largo, você ia lá, a gente apertava ele no seu corpo. Como muitos outros amigos meus lá, fregueses meus, eles queriam que eu arrumava os paletós. Invés de eu comprar um terno que vai custar setecentos, oitocentos reais, eu te pago duzentos aqui e você arruma pra mim. Quer dizer, então eu estava vivendo mais ou menos na base do conserto e algumas calças que eu fazia pra freguês meu que era... gostava da calça que eu fazia pra ele, entendeu? Então, hoje...
P1 - ... mudou muito. Mas e quanto a forma de pagamento? A gente sempre pergunta isso pros comerciantes. O pessoal pagava a dinheiro. Às vezes, no passado, também marcava na caderneta ou pagava em cheque. Como o senhor recebia?
R1 – Olha, honestamente, eu nunca tive esse negócio de marcar em caderneta. Às vezes tinha freguês meu que me dava um cheque e falava assim pra mim: “Espera amanhã, uns dez dias, depois você deposita”. A maior parte deles, honestamente, era dinheiro. Peguei muita gente, quando... Há pouco tempo atrás: “Você não passa cartão?” Falo: “Não. Se eu passar o cartão, vou ser obrigado a te cobrar mais”. Quer dizer: passar cartão num conserto de vinte reais, eu vou pagar quanto nesse cartão? Quer dizer: não era vantagem pra mim, entendeu? Quer dizer, então, é um comércio que você não podia fazer. Você tinha que ser no seu dinheiro.
P1 – Está certo. E, ‘seu’ Walter e os produtos, de onde vinham? Como é que o senhor comprava a casimira inglesa, o tweed, sei lá como chama os nomes mais sofisticados aí desses tecidos.
R1 – Quando eu trabalhava por minha conta, eu não tinha estoque, eu tinha pouco estoque de roupa, só pra fazer calças, pra terno eu nunca tive estoque, porque esses panos que você acabou de citar, eles vinham da Inglaterra, era importados pra cá. Então, são as pessoas que tinham a coisa pra importar ele e vendia pra aquele alfaiate que eu trabalhava lá, pra JB e pra outros alfaiates. Eu não tinha acesso a essas coisas. Eu só tinha acesso em roupas nacionais. Por exemplo: uma vez um freguês meu - eu vou contar uma história que você vai ficar assim – foi na Inglaterra, foi lá pra comprar um pano, chegou e falou: “Eu quero o melhor pano que você tem aqui, pra eu fazer um terno lá no Brasil”. O cara, sabe o que mostrou pra ele? Casimira Aurora, que era nossa.
P1 - Era nossa? Era o melhor?
R1 - “Essa aqui é lá do Brasil, um pano muito bom” “Mas eu queria um tecido inglês” “Você não está procurando tecido bom, está procurando a marca”, falaram pra ele. Quer dizer, pra você ver, né, nós tínhamos coisas boas naquela época, mas não dávamos o valor que tinha, entendeu?
P1 - Sim.
R1 - São coisas que a gente fica imaginando: brasileiro sabe fazer as coisas. Fazia aquele Braspérola, aquele linho muito bom, tipo o cento e vinte. Fechou a fábrica. Quer dizer: não faz mais. Hoje você vê todos os ternos hoje, paletós hoje, a maior parte tudo sintético, poliéster, muito pouca lã, não tem lã hoje.
P1 – E por que é ruim, mesmo, o poliéster? O tecido sintético, ele é de pior qualidade por que acaba mais rápido? Por quê?
R1 – Porque ele é quente, né? Você pega uma camisa que tem poliéster, é quente, não é? Você pega uma de algodão, é diferente, né?
P1 – Sim.
R1 – Poliéster esquenta muito. Você pega uma calça de poliéster, põe aqui em Ribeirão Preto, o calor que tem aqui, o que você acha? Ela vai esquentar. Agora, você põe uma de linho ou uma de brim, ele não esquenta.
R1 – É verdade.
R1 – O linho tem rami, né? O linho tem o rami, quer dizer, então, são coisas que você tem que ir imaginando, né?
R1 – ‘Seu’ Walter, o ano passado, quando eu fui lá falar com o senhor, o senhor tinha mudado pra frente do prédio da Diedirichsen.
R1 – Isso.
P1 – Conta como é que foi isso. O senhor tem o seu escritório ainda lá no Diedirichsen e mudou por causa da reforma? Como é que foi?
R1 – Eu saí lá do Diedirichsen porque eles falaram que iam reformar, mas até hoje não reformaram. Eu fui pra aquele prédio de frente, lá na Álvares Cabral, 464, eu fui... fiquei numa salinha pequena, né, eu sei que era uma salinha bem pequena, mas me acomodei ali pra não sair do Centro, porque eu tinha que fazer um serviço pra loja da Petrus Magazine, eu fazia muito serviço pra eles e aquela Loja da Mulher, bem perto do prédio ali, que eu fazia consertos de calça pra eles. Então, eu fiquei mais uns tempos ali. Mas agora, como têm essa pandemia, eu pagava uma certa quantia ali de condomínio, aluguel, estacionamento do carro, gasolina, isso e aquilo outro, na pandemia eu fiquei devendo.
P1 - Sei.
R1 - Não conseguia pagar aquilo ali pelo que eu fazia, está entendendo? Quer dizer, então, eu não ia ficar colocando dinheiro, jogando dinheiro do meu bolso em cima de uma coisa que eu não ia ter retorno. Você vê, até hoje não tem retorno. Começou em março, né, já estamos há um ano já, com isso daí. Quer dizer, então, eu tô... Eu saí de lá, vim pra minha casa, eu tenho uma casa aqui nos Campos Elíseos, é minha casa, tem uma sala dupla, montei na minha sala.
P1 – Ah, agora o senhor está trabalhando, então agora na sua casa?
R1 – Na minha casa. Quando as pessoas precisarem, vêm aqui e eu faço aqui na minha casa, você entendeu? Quer dizer, mas agora, com essa pandemia, não tem vindo muita gente, não.
P1- Ah sim.
R1 - Muita pouca gente que vem. Só aquelas pessoas que me conhecem, mesmo, quando eu estava lá no Centro, que me conhece e vem aqui: “Melhor aqui, eu estaciono aqui na sua casa”. Mas eu, como diz o ditado, eu acho que já preciso encerrar a carreira. Já é hora de encerrar a carreira (risos)
P1 – Já vai encerrar? Então, eu ia perguntar pro senhor o que que o senhor faz quando o senhor não está trabalhando? O que o senhor gosta de fazer hoje em dia? O senhor vai passear na praça? Gosta de ouvir música? O que o senhor gosta de fazer?
R1 – Eu não consigo passear na praça, por causa da pandemia, né?
P1 – Agora não pode.
R1 – Aqui em Ribeirão Preto está em lockdown, não tem nada aberto, só os postos, farmácias e os hospitais. Não tem nada aberto. Eu gosto de ler, muito. Eu gosto de ler.
P1 - O que?
R1 - Às vezes eu pego um livro e, se eu gostar do livro, eu termino ele em três, quatro dias. A minha filha me emprestou esses dias um livro aqui e eu gostei dele, eu fui embora, sabe? Ela falou que tem outro aqui, que vai me emprestar, pra eu ler. Do contrário, sabe essas máscaras? Eu sento lá na máquina, faço um punhado de máscaras lá e deixo lá pra dar pras filhas, pros amigos. Do contrário, fico ali no meu sofá, lá, vou ver um pouquinho de televisão.
P1 – Sim. ‘Seu’ Walter, pra... chegando mais, assim, pro final da nossa entrevista, eu queria que, se o senhor souber falar, que conselho que o senhor dá pros novos alfaiates?
R1 – Olha, honestamente, não tem, depois de uns anos pra cá, olha bastante, uns cinquenta anos, mais ou menos, eu não tenho visto ninguém aprender a profissão de alfaiate, não.
P1 - Ah, é?
R1 - Pra você ter uma ideia, aqui em Ribeirão Preto, se você contar nos dedos, tem uns quatro ou cinco alfaiates,
P1 - Trabalhando aí?
R1 - … Que ainda continuam fazendo alguma coisa. Uma cidade com setecentos mil habitantes, você vê que é muito pouco, né? Antigamente existia um monte. Por quê? Aquilo que eu falei: a profissão… ela pra aprender, ela você não aprende do dia pra noite. Pra você chegar onde que eu cheguei, precisa comer muita rapadura, viu? (risos) Porque é bem difícil pra fazer, manualmente. Bem difícil. Precisa ter muita vontade.
P1 – Eu vou refazer a pergunta: qual que é o segredo de um bom alfaiate? É a matemática, é prestar atenção no cliente, o que que é?
R1 – Primeiramente você tem que prestar atenção naquilo que você está fazendo. Um patrão meu falou assim: “O tempo que você leva pra costurar torto, você risca e costura reto e o freguês sempre tem razão, nunca você vai tirar a razão do freguês. Quer dizer, você vai falar pra ele aquilo que você está propondo fazer pra ele. Se ele achar: ‘Dá pra fazer isso assim, assim e assim, eu gosto assim, como aquele cara: ‘Olha, eu queria uma barra italiana’, aquela barra virada, que não usa há muito tempo, se ele gosta, vamos fazer a barra. ‘Eu quero uma barra original’, você tira esse pedacinho aqui da calça jeans, aquela barra original mesmo e coloca. Você entendeu? ‘Eu quero uma barra dobrada’, você faz a barra dobrada. ‘Eu quero uma barra por fora’, ele sempre tem razão. Se ele está querendo fazer aquilo, é porque ele gosta, não é verdade?” Aquele ditado: “Quem gosta da remela, não gosta dos olhos”. Então, você tem que entender as pessoas. Quer dizer: você vem aqui: “Olha, eu quero um terno seu nesse estilo aqui”. Não está usando aquele estilo que você quer, mas se você se acha bem com ele, eu vou fazer do jeito que você acha. Não do meu jeito, você entendeu?
P1 – Entendi. Está certo. ‘Seu’ Walter, o que o senhor achou de contar a sua história dentro do projeto que conta a história do comércio de Ribeirão Preto? O senhor gostou?
R1 – Olha, eu não sei, eu estou achando que eu disse pra você tudo aquilo que eu tenho em memória, que eu tenho guardado. Quer dizer, eu não sei. Eu acho que vocês que vão analisar a minha história, se vale a pena ter nos seus livros de comércio com aquilo que eu tenho guardado alí, você entendeu? Se você pegar aquilo que eu tenho guardado ali, você vai tirar um parâmetro naquilo que nós conversamos.
P1 – Sim. Nós vamos aí, o pessoal vai aí na sua casa, ligar pro senhor, pra pegar as suas recordações aí, a parte que saiu em jornal, as fotos que o senhor tem, porque aí nos vamos usar no livro e no site também. Herika, você quer fazer alguma consideração?
P2 – Só agradecer pelas histórias, as boas histórias, as belas histórias do ‘seu’ Walter, a gente aprende muito com ele. Só agradecer, mesmo. Muito encantada. Obrigada, viu, ‘seu’ Walter, por esse tempo que o senhor passou com a gente.
R1 – Viu, Herika, minha história é verdadeira. Não é história fantasia, não, viu? Tudo o que eu disse foi o que aconteceu comigo...
P1 - Tudo é verdade.
R2 - … É verdade. E está escrito aqui no livro e naquele que eu fiz, certo?
P2 – Sim. Muito lindo, viu, ‘seu’ Walter?
R1 – Eu não tenho coisa de mentir pras pessoas, entendeu?
P1 - Ah, tah certo.
R1 - Já sou uma pessoa com 83 anos, acho que a mentira é a coisa mais esdrúxula que eu acho, na minha vida. Eu acho. Eu acho que a verdade vale mais do que dez mentiras. Eu acho. É minha opinião.
P1 - Tah certo.
P2 – Verdade. Obrigada, ‘seu’ Walter!
P1 - Obrigado, Herika. O senhor tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de falar, que a gente não perguntou e o senhor queria falar?
R1 – Eu só falo assim: eu nasci num berço pobre, caminhei com a pobreza junto com meus pais, com a minha família, batalhei, sofri muito na minha infância, cheguei quase a passar fome no Rio de Janeiro, vim pra Ribeirão Preto, comecei a minha vida aqui, fui indo, fui indo, fui um batalhador, venci com as minhas próprias forças, ter o que eu tenho hoje eu devo a mim, não devo a pessoas de outros lados, não roubei o que eu tenho, consegui tudo através do meu trabalho, do meu esforço e da minha dedicação. Sempre fui um homem digno e honesto. Dizem que ser honesto hoje não é virtude, porque os desonestos que vivem melhor do que a gente, mas eu acho que a honestidade ainda é uma virtude pra gente. Eu acho.
P1 – Muito bom, ‘seu’ Walter! Eu queria agradecer muito o senhor pela entrevista, agradecer em nome do Sesc e do Museu da Pessoa.
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