P/1 – Oi Adriana, tudo bem?
R – Tudo bem.
P/1 – Você poderia, por favor, começar falando seu nome completo, sua idade e o local onde você nasceu?
R – Meu nome completo e minha idade… Meu nome completo é Adriana Vilela Campos Reis, eu tenho 46 anos e moro em São Paulo, em um bair...Continuar leitura
P/1 – Oi Adriana, tudo bem?
R – Tudo bem.
P/1 – Você poderia, por favor, começar falando seu nome completo, sua idade e o local onde você nasceu?
R – Meu nome completo e minha idade… Meu nome completo é Adriana Vilela Campos Reis, eu tenho 46 anos e moro em São Paulo, em um bairro da zona norte.
P/1 – E você sabe a origem da sua família, de onde sua família veio?
R – Sei. A origem da minha família… No caso, somos de uma descendência de italianos, portugueses e escravos (risos). Uma saladinha.
P/1 – Você sabe alguma história da origem deles?
R – Sei, sei sim (risos). Tem uma história assim… A história que eu sei é que a minha avó italiana viu o meu avô… Ela italianona, com aqueles olhos azuis (risos), viu aquele… É até engraçado, eu fico só dando risada com a minha mãe contando para nós, "aquele negão zulu" (risos). E o que aconteceu? Foi amor à primeira vista. Ela com aqueles olhões azuis, gostou dele de cara (risos). Os dois se casaram e dessa união, começou, vamos falar assim, a família Soares Vilela. E do meu pai, ele é do interior, do norte de Minas, de Anaúba, ou seja, Espinoza. Ele veio para São Paulo quando já era rapaz, depois das guerras. Filho de seu Ronaldo Xavier. O seu Ronaldo Xavier trabalhava em uma casa em uma fazenda de Alambique, onde faziam bebidas e tudo mais. Meu pai foi criado por um padrinho dele, ele foi um pouco distante, aquela coisa do distanciamento. Ele teve a criação bem assim, fechada. Meus pais não são muito de falar, eles não eram muito de falar algumas coisas para nós, mas porque tinha muito aquela coisa do tradicionalismo, do respeito, do olho no olho. Aquela coisa da mãe olhar assim para você com aquele olhar 43 (risos), e isso era uma coisa muito forte na criação dela e na criação dele.
P/1 – Como que era o nome dos seus pais?
R – O nome do meu pai era Manoel Xavier Campos, o nome da minha mãe é Maria Conceição Vilela. Seria Soares Vilela, mas tirou o Soares e ficou só o Vilela.
P/1 – E eles fazem ou faziam o quê?
R – Meu pai trabalhou em uma empresa na Santa Terezinha, a antiga Tramontina se não me engano. Era uma fábrica de utensílios assim, era mais ou menos isso que ele me falava. Meu pai era muito reservado, muito reservado. Raramente você ouvia ele dar um berro dentro de casa, nunca ouvi meu pai dando um berro (risos). Só assobiando. Ele trabalhou nessa empresa, Santa Terezinha, por muitos anos, pelo que eu entendi foram mais de 30 anos, ele se aposentou naquela empresa. Ele entrou naquela empresa como auxiliar, e meu pai era uma pessoa muito correta. Se eu lembro do meu pai, eu lembro dele com a bicicleta dele amarela indo trabalhar. De bicicleta. Você imagina uma pessoa ir da zona norte até Jabaguara de bicicleta, até a Tiradentes, até a Brigadeiro Luiz Antônio… Meu pai andava muito pela cidade de bicicleta. "Por que seu pai andava de bicicleta, Adriana?", você me pergunta. Porque ele queria ajudar a família que ele tinha, e a família que ele ganhou (risos). Hoje ele é falecido.
P/1 – Ele faleceu?
R – Sim.
P/1 – Faz quanto tempo? Foi em que ano?
R – Ele faleceu… O ano certo eu não sei, só sei o período, ele estava mais ou menos com 93 anos. Imagine.
P/1 – E a sua mãe, é viva?
R – Minha mãe é aposentada.
P/1 – Ela fazia o quê?
R – Ela era empregada doméstica, trabalhou próximo da Santa Terezinha, ali na Augusto Tolle. Ela trabalhou com um casal (ela professora, e ele soldado), e ficou nessa casa trabalhando, digamos assim, até os 40 anos. Ela se aposentou ali também. Ela era uma pessoa assim, muito trabalhadora, muito dedicada.
P/1 – Hoje ela fica em casa?
R – Hoje ela fica em casa. Hoje ela está com 83 anos. Ela fica em casa com meu irmão especial. Quando ela casou com meu pai, minha mãe criou esse jovenzinho que era de uma amiga dela, de uma comadre dela. Ele era especial e ela ficou com ele. Ficou até hoje, ele está com 66 ou 67 anos.
P/1 – E aí, você tem outros… Você considera ele um irmão?
R – Com certeza. Nossa! (Risos). Ele se chama José, mas nós em casa chamamos ele de Zominho, porque ele é um 'hominho' pequeno. Ele é descendente de índios e também escravos. Ele é uma pessoa assim, elegante, forte. Ele foi ao médico, e tem um problema de ter a capacidade de uma criança de sete anos. Ele era muito violento, muito violento. Ele estudou, estudou até a quarta série e começou a dar problema na escola. A escola era uma escola municipal na Vila Dionisía, zona norte também. Gosto muito daqui.
P/1 – E você tem outros irmãos?
R – Tenho (risos).
P/1 – Quantos e quais os nomes?
R – Vou tentar (risos). Se eu falhar, vocês me perdoem (risos). Bom, eu tenho… Meu primeiro irmão, da minha mãe, do primeiro casamento, era o José Carlos, o Carlinhos. O segundo irmão depois dele, é o José Cícero. Depois do Cícero, tem o Antônio. E do meu pai, tinham outros, Juraci… Ai Jesus, são muitos nomes. Eu não tenho mais contato com esses irmãos, porque eles já eram grandes quando meu pai e minha mãe se casaram, já eram grandinhos já. Era um homem, o Fidélis, a Angelina e a Juraci. Ele já tinha eles e minha mãe já tinha o Zominho. E o que aconteceu? Juntou. Posso contar?
P/1 – Ao todo eram quantos?
R – Ficaram uns 10 ou 11, por aí (risos).
P/1 – E vivia todo mundo na mesma casa?
R – Todo mundo na mesma casa. Você imagine todo mundo na mesma casa. E o que acontece? Muitas lembranças. Hoje, eu e minha mãe conversamos muito. Esse tempo de pandemia está sendo terrível para nós (risos). E ela me fala e falava coisas que aconteciam. Antes ela não me falava, porque eu era uma criança, e hoje ela me fala as coisas que aconteciam. Por isso que eu falo que minha mãe é uma guerreira, porque quando eles se conheceram, ele morava ali perto da Conselheiro, próximo da Santa Terezinha, passava na frente da casa dela de bicicleta e via aquela mulher toda assim, com os tapetes lá, toda dedicada. Ele perguntou para um compadre quem era ela, e o compadre falou, "ah, aquela é a Conceição", "mas quem é a Conceição?", "ah, ela é viúva". Minha mãe era uma pessoa assim, ela fala que não dava abertura para ninguém, porque era uma viúva com filhos, então assim, um relacionamento era meio complicado. Naquela época já era complicado um relacionamento. Quando ele chegou, criou coragem e foi conversar com ela (risos), naquela rua, ele falou, "você é a Conceição e tal", e minha mãe falando, "sim, e tal". E aí, já chegou direto no ponto, "eu quero me casar com você" (risos), tipo assim, "não tem enrolação, não vou pensar, não vamos pensar, não vamos pedir para os nossos pais, nem nada. Eu quero me casar com você", e ela falou, "você quer casar comigo? Como assim casar comigo? Não, não, não, espera aí. Veio com esse negócio de casar comigo, mas primeiro você tem que casar com os meus filhos, porque eu tenho filhos". Ela diz que meu pai falou assim, "pois bem, eu vou cuidar dos seus filhos e vou cuidar de você também. Vamos todos ficar juntos, porque eu também tenho filhos, sou viúvo também". Acho que no fundo, no fundo, ela também sabia de alguma coisa dele assim, porque não é possível, naquela rua passando de bicicleta… E aí, o que aconteceu? Eles casaram na igreja de Santa Terezinha, na igreja católica. Eu não me recordo o nome da rua, mas é perto da Conselheiro também. Então meu pai pegou, se casou com a minha mãe e foi um casamento assim… O casamento estava cheio (risos). Eu tenho uma foto do casamento… É a única foto que eu tenho assim do casamento deles. Aquela foto, meu Deus, é marcante, porque é assim, os dois no centro da foto, o meu avô lá no cantinho, o chapéu do meu avô lá em cima do guarda-roupa, os dois aqui na frente, aquele bolo de fubá e outro bolo de creme, e aquela turma de filhos em volta da mesa. Ali eles selaram a união e o amor deles. Se casaram e eu nunca vi meu pai brigar com a minha mãe, discutir com a minha mãe, nunca vi meu pai gritar com ela, nunca vi minha mãe gritar com ele, nunca vi. Hoje ela me fala, "Adriana, você não via as coisas, porque nós conversávamos lá no quarto, era entre eu e ele, ninguém precisava ficar sabendo". Eles dois eram assim, ele trabalhava na Santa Terezinha, ela ficava e cuidava da casa… Mas o que acontece? Precisa entrar dinheiro na casa. Minha mãe pegou e teve uma ideia. A ideia dela foi o que? "Vou pegar e costuras as roupas dos funcionários", porque eles usavam macacões, a roupa sujava muito de graxa, por conta dos maquinários e tudo mais, e eles não tinham uma pessoa para cuidar. Então meu pai pegou e… Porque ele tinha todo zelo com a minha mãe, nossa. Por ele ser 23 anos mais velho que a minha mãe. Ela fazia a costura, mas precisava… a mulher sempre tem uma coisinha a mais para agregar. Um lacinho, um paninho, uma coisa diferente… E o meu pai era assim. Um exemplo de como ele era assim… Ele ía para a feira. Engraçado que falamos, que poxa vida, hoje temos tantas frutas, laranja, banana, abacaxi, kiwi, morango… Tantas frutas maravilhosas, mas no meu caso, a gente não tinha muitas condições financeiras, e meu pai comprava o que? Penca de banana e laranja, e nós comíamos. "Ah, mas porque? Temos tantas frutas, seu pai não tinha criatividade?", mas não é isso. Com um monte de criança ali, querendo as coisas, ele fazia isso. Ele tinha um jeitinho também de quando chegava do trabalho, com o bolso dele cheio de balas para gente. Bala de mel, ele falava, "bala de meli" (risos). E era muita alegria quando ele chegava do trabalho. Minha mãe esquentava água, pegava uma bacia e lavava os pés dele. Eu era doida para lavar os pés do meu pai. Eu lavava os pés dele e, "para menina, está fazendo cócega no meu pé", "não pai, deixa eu lavar seu pé, deixa eu lavar, pai". E eu pequenininha assim, com os dois coquinhos na cabeça, com os chinelos errados… Eu tinha uma mania de andar com o chinelo errado, menina. Ô gente! Eu tinha mania de andar com o chinelo do meu pai e da minha mãe. Se eu visse um chinelo grande, já estava eu lá socando meu pezinho, pequeninho e andando desse jeito, não importava como. Se o chinelo fosse velho ou pé de um e pé de outro, eu não estava nem aí. E era muito assim, meu pai sempre foi muito presente, e ela também. Eu vejo que o amor dele foi muito grande. E o respeito dos meninos. Os meninos respeitavam muito ele, os filhos dela. E as meninas tinham seu gênio, seu jeito, já eram adolescentes, já eram moças, com 13, 14 ou 15 anos.
P/1 – E como era na casa? Como era sua casa? Já era na zona norte?
R – Depois do casamento, ele comprou um terreno na zona norte, na rua Antônio Bento, número 15. Hoje é rua Nóbrega de Souza Coutinho. Minha mãe está lá, no mesmo lugar. E meu pai assim, construiu uma casinha simples lá. Eu lembro de ser uma casinha simples de três cômodos. Dormiam os grandes em um quarto só nas beliches, eram três ou quatro beliches. Eu e os menores, os filhos caçulas, dormíamos com os dois.
P/1 – E o que você lembra da sua casa? Como que era a relação com os irmãos? De que vocês brincavam?
R – Eu lembro assim, que meus irmãos brincavam muito. Eles não tinham brinquedos, eles inventavam os brinquedos deles. Eles faziam o que? Faziam carrinho de rolimã, faziam carrinhos pequenos de latinha de sardinha, de latinha de molho de tomate… Eles pegavam as latas e faziam cavalo de pau, faziam pernas de pau também e eles… Nossa, era muito incrível. Eu não podia entrar na brincadeira dos meus irmãos. Uma porque eu era menina, e eu era muito pequena (risos). Ainda estava com a minha chupeta lá (risos).
P/1 – E você ficava olhando e...
R – Eu ficava olhando, sempre no cantinho observando o que estava acontecendo ali. E os grandes, o respeito… Eu lembro que eles tinham uns amigos que… Nosso quintal de casa era de barro, barro batido, terra batida assim. Tinha um poço… Eles pegavam, faziam com os barros assim, faziam, faziam e inventavam bonequinhos. Sabe esses bonequinhos que hoje têm de plástico pequenininho? Eles faziam bonecos, faziam índios… E ficava muito bonito.
P/1 – E você?
R – E eu? Nossa, eu era pequena, mas por incrível que pareça, eu tinha o meu mundo, e meu mundo era bem diferente. Eu brincava de casinha, de boneca, pegava tampinha de suco, de lata de leite e inventava as comidinhas. Um lugar que eu gostava muito de brincar, que era meu lugar predileto, era de baixo de um pé de manga, manga coquinho. Eu ficava ali debaixo daquele pé de manga coquinho, se deixasse, o dia inteiro, mexendo em papéis, desenhando...
P/1 – Sozinha?
R – Sozinha. Ou sozinha ou às vezes com meu irmão Luiz, meu irmão caçula. Às vezes até a Elza, que era a menor na época, mas a Elza não queria muito assim... Só que quando a brincadeira era mais bagunça, ela queria também estar junto. Mas na maioria das vezes, era só eu.
P/1 – Você era a única que era filha dos dois?
R – Não. Os filhos dos dois são, eu que sou a caçula, o Luiz que é o caçula dos meninos, a Elza, Aurenir, a Lena… A Lela faleceu com cinco anos de idade, com pneumonia. Foi um choque muito grande para a minha mãe. E é isso aí.
P/1 – E nessa época, você já pensava em ser… O que você queria ser quando crescesse? O que você pensava?
R – Nessa época eu queria ser assim… Se você chegasse e perguntasse para mim, "Adriana, o que você quer ser quando crescer?", eu falava assim, "ah, eu quero ser uma grande desenhista". Minha mãe ficava doida comigo, "o que é isso, menina? Isso não dá dinheiro, não coloca arroz e feijão na mesa. Desenho? Que desenho, Adriana? Desce, tira essa cabeça da nuvem", "ah mãe, quando crescer eu quero desenhar, quero ser desenhista". O meu sonho era entrar no Museu de Artes e Ofícios, no Senai e tecnologia… Eu queria fazer desenho, não importava, queria fazer desenho.
P/1 – Você desenhava bem?
R – Olha, acho que para a minha idade eu desenhava bem. Eu aprendi a me virar com o que eu tinha. E assim, às vezes eu estava com uma caixa de papelão… Era doida para ter uma pasta, "poxa vida, queria tanto guardar meus desenhos em um lugar. Poxa vida, onde vou guardar meus desenhos?", e aí, "já sei, vou fazer uma pasta". Eu pegava o papelão, dobrava… "Ah, mas precisa de um elástico", e aí pegava o elástico… E eu percebi como era a pasta, porque eu não tinha percebido como era a pasta. As coisas foram acontecendo e eu lembro. Eu era pequena, mas eu lembro disso. Eu comecei a desenhar, a inventar coisas com papéis, a criar… Esses eram os meus… Tinha dia que eu ficava no pé da árvore e inventava cada coisa, às vezes pegava e picava o papel tão pequenininho, tão pequenininho… "O que vai acontecer se esse papel ficar bem pequenininho? Será que vai ficar como neve?" (Risos). Era desse jeito. Eu brincava e eles brincavam com as coisas deles.
P/1 – Na rua?
R – Na rua, mas quando chegava em casa, ía todo mundo apanhar em fila (risos).
P/1 – Por que? Não podia?
R – Não, nossa! Era meio complicado ir para a rua naquele tempo, porque naquele tempo, o bairro da zona norte estava meio perigoso. Ninguém podia escutar… A baratinha já saía correndo, principalmente as crianças. "A baratinha, a baratinha", e não era aquela barata do chão (risos). E a gente respeitava também a polícia, a gente foi criado com respeito às autoridades. Minha mãe queria ter os filhos ali… Hoje eu vejo que o negócio para ela era ter os filhos… Mesmo que ela não pudesse pegar todo mundo no colo, agarrar, beijar, porque se não viria um monte em cima dela, mas ela procurava enxergar todos.
P/1 – E a sua primeira escola? Do que você lembra?
R – Ah, minha primeira escola, nossa! Eu lembro da primeira vez que eu entrei na escola, quando minha mãe foi fazer minha matrícula (risos). Foi muito engraçado. Chegamos lá umas sete horas da manhã e em um frio, frio, frio. Ô tempinho frio! Eu sentei em um murinho… Acho que lembro mais por causa disso. Sentei em um murinho, coloquei a mão em um bicho, urgh (risos), e entrei na escola, Escola Municipal de Primeiro Grau Osvaldo Quirino Simões, na rua… Esqueci o nome da rua. Mas enfim, cheguei nessa escola e foi um desafio para mim. Eu nunca tinha visto uma estátua na minha vida. Eu já entrei na escola no dia da matrícula, olhando aquele homem careca, imponente, aquela estátua. Chegou um homem e perguntou assim, "você está vendo quem ele é?", e eu saí correndo para perto da minha mãe. No primeiro dia de aula, foi um pouco difícil, porque eu nasci em junho e não consegui entrar… Se eu entrasse, iria entrar com cinco ou seis anos e não fiz pré-escola, então tive que entrar um pouco a mais, entrei direto. Eu comecei a aprender a escrever, meu primeiro contato com a leitura foi em casa, com a minha irmã mais velha e minhas cunhadas. Meus pais não eram alfabetizados, os dois não conseguiram ir para a escola, porque tinham que trabalhar na roça e cuidar da fazenda. Na escola, no dia em que começaram as aulas, eles prepararam toda aquela turma seis horas da manhã, naquele frio. A gente entrava às sete e saía às onze e meia ou meio dia. Ir para a escola era meio complicado naquele tempo, mas era uma boa escola, porque ela tinha uma base que dava alimento para o aluno, era uma escola muito boa que tinha biblioteca, tinha sala de artes, tinha sala de laboratório… Era uma escola muito grande. Eu tinha medo de me perder ali (risos) e tinha medo do livro negro. Meu nome não podia chegar naquele livro negro (risos).
P/1 – Tinha um livro negro?
R – Tinha um livro negro.
P/1 – O que era? Quem se comportava mal...
R – Quem se comportava mal, iria para aquele livro e para um quartinho que tinha lá na escola. Tinha uma história na escola da loira de algodão, que aparecia nos banheiros de repente (risos). Era terrível, porque eu era pequena, era a primeira da fila, nossa! Eu detestava ser a primeira da fila. Era a primeira da fila, era a primeira da lista, era a primeira a ir para a lousa, na tabuada...
P/1 – E tem algum momento assim, dessa fase da escola que te marcou muito?
R – Dois momentos assim, que me marcaram muito.
P/1 – Quais?
R – O primeiro momento que me marcou na escola foi com uma professora que eu tive, Maria Bezerra, eu lembro do nome dela. Ela era uma pessoa muito… Logo que a gente entrava na sala de aula, a gente rezava, e o que aconteceu? Eu não tinha lápis de cor e pintei um carrinho de lápis de grafite e ela não gostou. Ela fez uma cara de quem não gostou. E era o que eu tinha, porque nós não tínhamos condições… No primeiro dia de aula, eu levei um lápis, um caderno e uma borracha. A gente não tinha feito ainda a lista de material. A lista de material veio umas semanas depois para o aluno levar para casa, mas a professora já chegou assim. Ela foi muito grossa. E outro fato marcante para mim… Mas mesmo assim, eu tinha o meu mundo, tudo ficava lá… Hoje até que eu falo para caramba (risos), mas antes, eu tinha muita dificuldade para falar. Eu gaguejava na leitura, falava baixo, e tinha muito medo, muito medo mesmo de ficar em pé no canto da lousa, ir para a diretoria ou ir parar naquele livro. Na escola tinha um padrão de comportamento. O padrão de comportamento era um quadro que tinha todos os deveres que o aluno tinha que cumprir. E eu fazia de tudo para cumprir aquilo ali, porque eu já não era, não me considerava uma aluna top 10 e excelente, mas era uma aluna esforçada, embora eu não tenha tido a base do pré, porque a pré-escola é o primeiro contato que a pessoa tem com o lápis e com o papel, e eu não tive esse contato da escrita. Eu já brincava ali em casa com as minhas coisas, mas o outro contato, não. E aí foi desse jeito, vou falar assim, de certa forma foi uma catástrofe (risos). Não fiz muito sucesso, não foi aquele sucesso que as pessoas costumam ver nos filmes e tudo mais no primeiro dia de aula. Eu era pequenininha, com as duas trancinhas, dois coquinhos, aquela saia toda prensadinha azul escuro, o Conga azul, a meia até o joelho, com a camisetinha do logotipo da escola e lá ia eu para a escola. Eu não tinha… No primeiro dia de aula, você não tem muitos amigos. Todo mundo está com medo no primeiro dia de aula, é terrível, e foi assim. Outro choque que eu tive foi na quarta série. Até a terceira série, eu gostava muito de fazer as coisas da área de Exatas, que todo mundo fala. Eu me esforçava ao máximo para fazer as coisas, fazia os numerais… Mas foi um choque que teve na escola, nós mudamos de professora. Começou a ter dois professores: um professor para a parte de humanas e outros professores para parte de exatas. Português, Educação Artística,
Ciências
(Biologia, vamos dizer assim) e outro para Matemática. O meu professor… Eu estudei com um professor que se chamava José. Quando eu vi o José, era uma coisa assim, de respeito, né? Ele falava muito assim, era rígido, e me falaram que o José tinha mania de tacar apagador nos alunos ou então dava reguada. "Nossa, ele faz isso?", foi o que eu escutei, né? Aluno acaba escutando de tudo sobre os professores. Eu era pequenininha e já ficava com aquela coisa, já tremendo (risos). Chegou os dias das aulas com ele, e ele tinha aquela mania de, "vamos pegar a tabuada, vocês vão fazer a tabuada cinco vezes a do 2, cinco vezes a do 3, e assim por diante". E meu outro tempo difícil, por estudar em uma escola tradicional… Minha escola era tradicional. Eu acho que minha escola era tradicional, porque nós tínhamos o respeito, que acho que hoje não tem. Nós tínhamos que formar fila para entrar, formar fila para sair e em todos os momentos que fossem necessários. E seguíamos o padrão do comportamento, tinha ordens, disciplina. Não podia falar na sala de aula, exceto que fosse algo importante, tínhamos leituras silenciosas e tínhamos leituras que o professor tomava da gente, no caso, de uma pessoa só. E eu tinha essa dificuldade de leitura, e era muito difícil de expor essa dificuldade que eu tinha. Em Matemática, com esse professor, ele chegou de uma forma muito violenta, porque ele começou a apelidar os alunos, batia se o aluno errasse na tabuada… Batia mesmo, não estou brincando. Eu pensava que… Eu ouvia falar nisso e não acreditava muito, aquela coisa de, respeito ao professor. Eu nunca pensei que um professor pudesse fazer aquilo. Ele era desse jeito, e sempre dizia, "fala alto". Ele fazia isso com os alunos, até que levantaram um abaixo assinado e ele foi mandado embora pelo comportamento dele. Eu lembro que ele tinha um problema na perna, e eu ainda respeitava ele, mas ele era tão ruim… Ele poderia ser um pouco mais calmo, mas não, ele era ruim. Não estou dizendo que ele deveria ser calminho por conta do machucado na perna dele, porque ele tinha uma perninha maior do que a outra, mas ele poderia ser bonzinho, igual a professora Maria de Lourdes. Tinha umas professoras que caso um professor faltasse, elas eram as substitutas. E ela eram tão boas… Mas tinha os professores bons, como tinha os professores ruins, entendeu?
P/1 – E dos bons o que você lembra? Tem uma boa lembrança?
R – Ah, nossa! Boa, ótima lembrança. Inclusive, há pouco tempo, eu fiquei sabendo que a professora que eu mais amava faleceu. Eu a encontrei no Facebook e foi uma alegria tão grande.
P/1 – Fala um pouquinho dela. Ela era professora de que? Por que você gostava dela?
R – Eu gostava dela… Eu falei assim, "nossa, quando eu crescer, quero ser assim também, desse jeito". Ela era professora de leitura, da sala de leitura. Fomos até a biblioteca, a professora chegou e falou assim, "olha gente, vocês vão sair da sala em silêncio, vão formar a fila para ir lá para biblioteca", "biblioteca?", eu nunca tinha ido a uma biblioteca na minha vida. E fomos. Chegando lá, era aquele lugar calmo, com várias mesas. Eu lembro daqueles livros na parede e aquela mulher com cabelo meio vermelho, branquinha assim, com a voz suave. Ela falava assim, "gente, nós vamos ler um livro" e começava a contar histórias. Quando ela contava histórias, era incrível, era como se eu entrasse na história mesmo. E ela me apresentou aos livros dos contos, Monteiro Lobato, a tantas coisas bonitas do nosso país. E ela também, além de ser uma professora de biblioteca, sabe o que ela fazia? Ela cantava, cantava sobre o livro e falava muitas coisas sobre o livro, de como o livro é bom para nós, e que os livros nos levam para longe. Eu via aquela professora e toda vez que eu ia naquela biblioteca, era uma maravilha, o clima de lá já era gostoso, aquele geladinho, uma coisa tão gostosa e aquele lugar calmo. E ela cantava uma música… Eu lembro da primeira música que ela cantou (risos).
P/1 – Como era?
R – Eu gosto do livro, do livro querido para se ler. Eu me divirto, ao mesmo tempo vou aprender. E quando o livro é bom, eu vou estudar, e com as histórias vou me encantar. É um amigo de todas as horas, em qualquer lugar. Eu gosto do livro, do livro bendito (risos).
P/1 – Nossa, linda música e instigante. Sua voz é muito boa!
R – (Risos). Eu gostei, eu gostei, eu me encantei também pela música. Essa professora abriu assim, a minha cabeça, abriu meus olhos. E vou te contar uma coisa, ela era uma professora muito, muito boa. Ela percebeu que eu tinha problemas de leitura. Um dia, eu estava indo para o intervalo, ela chegou e falou assim, "Adriana, quando você quiser, você pode vir aqui na biblioteca", e eu "como?", "quando você quiser, dá uma batidinha na porta assim, eu vou saber que é você e você pode entrar". E eu fui. Ali ela me ensinou, sabe o que? A ler. Eu não lia só com os olhos, porque na minha dificuldade de leitura, de gaguejar, eu não conseguia resolver esse problema, era muito tímida, falava muito baixo e ela me ajudou. Eu lia tantos livros lá, lia livro de Pinóquio, lia livros assim, maravilhosos e aprendi também o quanto você… Ela falava para nós assim, quando ela dava explicação de alguma coisa, fluía porque ela falava, "quando você for levar o seu livro para casa…", "nós vamos poder levar o livro para casa, professora?", "vão, só que vocês vão levar em um saquinho plástico e vão guardar direitinho. Esse livro não pode sujar e tudo mais, e você devolve na data certa", e aí a gente começou a ter uma noção. Era uma professora que passava muita paz, muita confiança. Eu tenho certeza que foi por essa professora que eu adquiri o hábito de ler, escrever e de cantar. Eu comecei a cantar, comecei a cantar em casa, comecei a falar poesia nas escolinhas dominicais e fui aprendendo. E era muito difícil para mim, era um desafio (risos). Uma menina que nunca ninguém ouviu a voz dela direito em casa (risos) ter que cantar para um monte de gente na igreja, foi difícil.
P/1 – É incrível a diferença que um professora pode fazer na vida de uma criança.
R – É, e essa professora faleceu agora. Eu consegui pegar contato com a família dela e tudo mais, e eu queria ter falado para ela, não deu, mas eu falei para os filhos dela, "olha, vocês não sabem a diferença que a mãe de vocês fez na minha vida, naquele bairro carente, naquele monte de criança. Alguém me escutar do jeito que ela me escutou…"
P/1 – E da sua adolescência, o que você lembra?
R – Da minha adolescência, eu lembro do meu primeiro livro, meu primeiro livro de adolescente (risos). O livro foi "A turma da rua 15", não sei se você já ouviu falar desse livro. Eu li esse livro umas seis vezes
(rio). E eu me encantei quando descobri que o Tietê era bonito, que crianças podiam brincar na beirada do Tietê. Na minha adolescência, eu descobri que poderia ter um mundo na leitura
(risos). Falam que eu viajava, eu não acho que viajava. A minha adolescência eu aproveitei muito não em questão de rua, nós não íamos tanto assim para a rua. Minha mãe preferia que os amigos dos meus irmãos viessem brincar no terreno - porque o terreno era grande - do que meus irmãos irem para a rua. E as meninas, ali perto dela. Eu ficava muito perto da minha mãe. Às vezes minha mãe estava lá com a pilha dela, lavando um monte de roupas, e eu estava perto dela. Então assim, me desligar foi um pouco difícil também por uma parte, porque minha mãe não era muito de soltar a rédea. Mas como eu falei, eu tinha meu mundo nos livros e foi aberta uma porta para mim na igreja. Apareceu uma outra professora e hoje ela é minha madrinha de casamento, Leonice. A Leonice foi minha professora na Escola Bíblica Dominical, na primeira igreja que eu participei. Sabe o que ela fazia? Ela era uma jovem dinâmica, determinada. Ela pegava, enchia o carro do pai dela de crianças para gente sair (risos) e íamos para o Horto, aquela turminha ia toda para o Horto de carro com o pai dela. Ou assim, tinha alguns lugares que ela conhecia que eu não conhecia e ela me apresentou. São acampamentos de adolescentes, e o que aconteceu? Eu comecei a ir para acampamentos nas férias. Foi tão difícil, foi tão difícil de eu falar para a minha mãe que queria ir ao acampamento. Ela só falava assim, "não é não, que não sei o que" e encrencava. "Mas mãe…", mas não falava muito se não ia apanhar. Mas enfim, a Leonice era tão boa professora, tão boa educadora cristã, que ela convencia, e eu fui para o primeiro Acampamento Nova Vida… Não, Acampamento Boas Novas. Eu fui e me diverti muito nesse acampamento. Eu tinha as dificuldades, mas eu comecei a perceber que tinha outras pessoas que tinham dificuldade também. E aí, juntava uma com a outra que tinha, e ia ficando as duas ou as três desse jeito. Nesses acampamentos, a gente não podia levar gibi, não podia levar livro, não podia levar nada para distrair. Lá a gente brincava de trilha, de canoagem, e tinha serenata também, os meninos faziam serenata para as meninas no penúltimo dia da semana. A gente ficava uma semana lá, e era gostoso, porque quem dirigia os acampamentos era a Teen do Brasil, era uma associação canadense. Eles iam para Atibaia, ficavam lá e ensinavam muitas coisas diferentes para nós. E aí, foi meu contato, minha adolescência. Na minha adolescência eu fiquei indo muito para os acampamentos. Eu fiquei indo tanto aos acampamentos, que depois, de acampante, eu me tornei equipante, eu já estava caducando (risos). "Você está caducando, está velha, quer ir para acampamento?", "não, quero ir para acampamento, quero ser da equipe". Eu fui para o acampamento e foi bom...
P/1 – Você se tornou tipo uma monitora?
R – Isso, monitora, monitora junior, auxiliar de monitor.
P/1 – Você acha que essa história de interesse pelos livros que essa professora despertou, fez uma diferença e te diferenciou de outras pessoas?
R – Sim, diferenciou.
P/1 – Minha pergunta não entra, lembra? Se você puder...
R – Sim, sim. A entrada do livro na minha vida, se me diferenciou das outras pessoas, se me deu alguma reação negativa ou positiva… Os livros na minha vida tiveram uma reação muito positiva. Tanto nos livros, quanto abriu outros recursos do tempo, que era o livro, revista, gibi, almanaques, revistas também de novelas… E abriu para esse ponto e foi muito bom para mim, porque eu aprendi que quanto mais você lê, mais você aprende, você pega o gosto pela leitura, e se você ler em voz alta, você vai ler para você e para outras pessoas, você vai passar o conhecimento para outras pessoas, vai passar aquilo que você aprendeu. Essa parte de leitura, fez a diferença para mim, porque eu comecei a falar um pouquinho mais alto, comecei a parar de gaguejar porque eu gaguejava na leitura. Eu tinha uns irmãos que também gaguejavam na leitura e eles não prosseguiram nos estudos. Eu fui a única que prosseguiu nos estudos.
P/1 – E aí, você prosseguiu por onde? Depois do ensino médio, você acabou e foi fazer o quê?
R – Eu falei, "mãe, mãe, mãe, quero fazer uma faculdade", "faculdade, menina? Não tenho dinheiro para a faculdade. Vai lavar a louça, vai fazer isso". Meu pai já era velhinho também. Eu não vi meu pai de cabelo preto. Eu vi meu pai de cabelo preto nas fotos, mas pessoalmente… Quando meu pai ia nas reuniões, falavam que ele era meu avô.
P/1 – Ele te teve com que idade, você sabe?
R – Ah, Jesus!
P/1 – Quantos anos ele era mais velho que você?
R – Ah, ele morreu com 93 anos, a mãe casou com ele… Olha, graças a esse professor eu fiquei péssima em exatas, porque travou minha vida (risos). A gente acaba pegando gosto para leitura e acaba não gostando muito das outras coisas, mas assim, meu pai tinha uma diferença da minha mãe de mais ou menos 23 ou 24 anos.
P/1 – Daí você foi estudar?
R – Então, o que aconteceu? Eu queria estudar e falei, "mãe, quero estudar desenho, quero estudar desenho", "não, você vai fazer um corte e costura, vai ser professora", "não, quero ser desenhista". E aí, o que aconteceu? Uma tia minha tinha curso de corte e costura e fazia modelagem, e eu fui fazer modelagem só para ficar perto do lápis de desenho (risos). Foi legal, até que foi legalzinho o tempo que ficou, mas aconteceram coisas muito tristes na vida da minha mãe e da minha tia, e minha tia pegou e fechou para o desenho, para a modelagem. Minha avó faleceu. Minha tia era filha caçula da minha avó e ela faleceu em um sábado em que fui na casa da minha tia fazer o curso. E aí, ela parou de dar o curso de desenho e eu falei, "ai, ai, ai e agora?". Eu peguei e fiz um curso de datilografia na Escola Itapemirim, meu primeiro diploma (risos). Depois do curso de datilografia… Isso com uns 15 ou 16 anos, eu comecei a trabalhar. Minha irmã do meio começou a trabalhar em uma loja de sapato e eu queria trabalhar com ela, porque ela não era registrada, mas ganhava o dinheirinho dela. Quanto mais ela vendia, mais ganhava. Eu falei, "eu posso fazer isso também, porque eu não posso fazer isso?". Eu fui lá, comecei a trabalhar lá, mas não deu certo, porque o patrão explorava muito e eu via a exploração dele. Não deu para mim, eu era nova...
P/1 – Mas você lembra de ter aproveitado esses meses? O que você fez com esse salário que você ganhou?
R – Ah, com esse salário que eu ganhei, comprei… Eu lembro que dei um dinheiro para a mãe e que comprei alguma coisa. Não lembro o que eu comprei, mas assim, eu estava fazendo muitos planos, lembro que fiz muitos planos, mas o dinheiro não era tanto assim. Mas você pensa que eu peguei e parei por aí? Um dia minha mãe chegou em casa falando que a filha da patroa dela estava precisando de uma babá para ir dormir lá na casa, de quarta-feira a sexta-feira para cuidar das crianças. E aí, o que aconteceu? Eu tinha acabado de entrar no mercado, saí da loja de sapatos e fui trabalhar no mercado, meu primeiro trabalho registrado, no Dias Pastorinho, lá em Santana. Comecei a trabalhar de pacoteira, e aí comecei a pegar no batente, empurrar caixa, empacotar, fazer devolução, mão na massa. E de noite, um pouco a frente do Pastorinho, em Santana, tem a Voluntários da Pátria e a filha da patroa da minha mãe morava ali, atrás do colégio de Santana. E eu ficava lá. Já trabalhava de dia e ia para dormir lá a noite, e desse jeito a vida foi seguindo. Às vezes eu participava das reuniões dos adolescentes e jovens de domingo, porque meu domingo era assim, com a família, macarronada, Silvio Santos, frango e a igreja (risos), e os meus papéis, minhas coisas. Mas depois, quando eu fiquei com mais ou menos 18 ou 19 anos, eu não tinha tempo de mexer nos meus papéis e meu sonho ficou um pouquinho longe.
P/1 – Por que?
R – Porque eu comecei a perceber que eu não conseguiria… Que minha mãe não… Eu percebi que ninguém iria me ajudar a fazer alguma coisa se eu não arregaçasse as minhas mangas para fazer. E o que aconteceu? Eu trabalhei no Pastorinho e trabalhei na filha da patroa da minha mãe que se chamava Tais. E na casa da Taís, ela me ajudou muito, porque ela era assim, uma mulher muito determinada, uma jovem mãe determinada, que tinha dois filhos. Ela trabalhava de dia na Cruz Azul, e à noite trabalhava em um restaurante para pagar as contas de casa, separada, com dois filhos pequenos. E ela me incentivava a crescer, a buscar meu sonho, "ah Adriana, você vai fazer faculdade e você vai buscar seus sonhos", e sabe o que a Taís fez? Ela falou, "Adriana, tem um trabalho perto de uma amiga minha que tem uma escola técnica, lá na Casa Verde, que chama Colégio Centenário. Você não gostaria de fazer um curso técnico?", eu falei "o que, um curso técnico?", para mim curso técnico era Protec, era Museu de Artes e Ofícios, "você vai fazer esse curso e eu vou te ajudar a pagar. Enquanto você cuida das crianças, eu vou te ajudar a pagar, e vou te dar alguns livros também", eu falei "o que?". Ela era muito boa, e não era só pela religião. Pela religião e pelo jeito dela também. Ela sabia se virar, fazia muita caridade, era uma pessoa… É uma pessoa maravilhosa, até hoje a gente tem contato. Eu tenho ela como uma irmã para mim. Eu me inspiro nela, é uma mulher em que me inspiro. Ela fazia isso, eu dormia na casa dela, cuidava dos meninos como se fossem meus filhos… Eu era uma menina de 19 ou 20 anos cuidando dos meninos pequenos, um menino de quatro ou cinco anos e uma menina de dois ou três anos. E aí, eu comecei a fazer um curso técnico, fiz o curso de magistério e falei, "meu Deus, estou no magistério. Não era desenho que eu queria fazer?" (Risos). Eu fiz o curso de magistério na Casa Verde, no Colégio Centenário. Foi um desafio terminar os meus estudos em uma escola técnica, mas eu busquei, busquei. Demorou e eu sabia que iria demorar, mas eu consegui me formar (risos). Tinha uns professores ótimos lá também, e eu lembro de um professor que tinha lá. Esse é um outro professor que fez assim, muito na minha vida, professor Celso. Ele costumava chamar a gente de, "menina, menina", "menino, menino". Logo que ele entrava na sala de aula à noite, sabe o que ele fazia? Ele colocava o pensamento do dia. Todo dia antes da aula de Literatura da Língua Portuguesa, Literatura Infantil, ele falava um pensamento do dia. Eu lembro de um pensamento que ele colocou, "nossas derrotas se escrevem no bronze, nossas vitórias na areia" e ele fazia a gente pensar também. Ele incentivava a cultura, falava assim, "meninos, eu quero…". Ele tinha aquela mania de falar assim, "vocês vão assistir um programa na Cultura, o "Nossa Língua Portuguesa" do professor Pascoal e ele tem um programa também na rádio. Ele fala de um minuto de correção das músicas brasileiras, todas as curiosidades, e eu quero que vocês anotem. Se você anotar, vai ganhar um ponto" (risos). Ganhar um ponto. O que é um ponto? Um pontinho é aquela coisa pequenininha. Meio ponto seria aquela vírgula da frase (risos), mas a gente ganhava o ponto. Esse professor era muito bom e ele trabalha até hoje, na Infraero, no aeroporto de Congonhas. Ele dá aula de português aos comissários e aeromoças. Ele está lá ainda. Lembro de um dia que eu estava passeando lá em Santana, e de repente, dou de cara com quem? Com o professor Celso. "Nossa, ô mestre", eu chamava ele de mestre. Todos tinham respeito por esse professor, era um professor que passava muito respeito. Ele fez a marca dele também. Vou falar para você, ele é um professor caladão, reservadão, não é muito de falar, e descontava ponto de qualquer coisa. "Ah, você esqueceu da vírgula", cortou um ponto, "mas como você assistiu "Nossa Língua Portuguesa", você vai ganhar um ponto". E esse professor fez a diferença no magistério. E o que aconteceu? No magistério, eu tinha que fazer estágio, e tive que sair do Pastorinho e entrar em uma escola. Como eu iria entrar na escola se não tinha experiência? Entrei pelo CIEE em uma escolinha lá em Santana, perto do trabalho da minha mãe, e a escolinha que essas crianças que eu cuidei, estudaram, Escola de Educação Infantil Miudinho. Hoje é o segmento Miudinho, fica lá no mesmo lugar. Era tipo uma escolinha fazendinha, escola com galinha, escola com pintinho, escola com pato, com pônei… Uma escola diferente, né?! Abriu minha cabeça para outras coisas. Eu era auxiliar de sala de aula, e eu acho que tive algumas dificuldades que todo mundo tem, algumas limitações. Algumas vencidas como eu falei, e outras assim… Eu fiquei sendo auxiliar geral,
auxiliava cada professora, e me colocaram em dois horários, de manhã e de tarde para trabalhar, mas eu ganharia mais, só que sem vínculo empregatício. Lá na escola, eu fazia o quê? Fazia ampliações de desenho… Comecei a desenhar na escola, "opa, eu sei desenhar isso". Tinha umas professoras que tinham habilidades manuais para fazer flores de papel, decoração e eu ajudava elas também a fazerem essas coisas, fazer bandeirinhas para as festas juninas, para as festas que tinham na escola, ajudava as crianças, me colocavam também na sala pedagógica. Nessa escola tinham coisas boas, como também tinham coisas ruins. Eu tive um pouco de discriminação pelo meu tamanho, pela minha estatura, pela minha cor, era claro que eu percebia isso, era claro.
P/1 – Teve alguma vez específica em que aconteceu alguma coisa nesse sentido?
R – Sim, teve sim. Foi um momento muito triste. Lá teve uma palestra com pais e professores, e me chamaram para ficar com as crianças a noite, tipo assim, umas seis ou sete horas, e dava para eu ficar. E o que aconteceu? Eu fiquei com as crianças e eu lembro que entrou uma professora, a Alda, toda com aquele jeito meio siciliano assim. Ela chegou, pegou e deu os lápis para as crianças, e não era para dar os lápis para as crianças na salinha. Ela deu e nos fez perder o controle das crianças. Estava eu e outro auxiliar, depois ela chegou e fez uma bagunça. Quando foi no outro dia, eu fui chamada na diretoria e a diretora falou que disseram que fui eu que dei os lápis para as crianças, que eu tinha autorizado dar os lápis para as crianças, mas eu falei, "não fui eu que fiz isso, foi a fulana de tal", mas ela não quis escutar. Ela meio que gritou comigo e falou, "Adriana, não dá, desse jeito não dá" e eu desmoronei, desmoronei. A diretora chegar em mim e falar desse jeito?! Ela falou muitas coisas e eu fiquei muito triste, e o que aconteceu? Eu tinha uma companheira lá da escola. Eu cheguei a ser estagiária de Educação Física, foi um dos últimos que teve. A minha companheira falou para mim que eu só estava lá na escola porque ela queria, tipo não pela minha capacidade, mas porque ela queria. Ela falou assim, claramente. Daquele dia em diante, se tornou um peso para mim ficar ali na escola. Eu fazia as minhas coisas, todas as minhas obrigações eu sempre fiz direito, mas assim, começou a se tornar um peso. Às vezes eu acordava… Hoje eu vejo que meu lado emocional ficava abalado, ficava até com dor de barriga. Você imagina ficar dois períodos com dor de barriga na escolinha com um monte de criança e você tendo que ajudar. E eu estava lá, estava lá porque eu aprendi que a gente tem que fazer a diferença na vida da pessoa e tinha umas pessoinhas lá que foram assim, incríveis, eu vejo que fiz a diferença na vida daquelas crianças, eu não era incapaz. Eu comecei a gostar daquilo que eu estava fazendo, porque eu pensava assim, "você me ensinou a não ser o que você é"... Não sei se você me entendeu. A pessoa me ensinou a não ser como ela, a ser melhor que ela. A gente pode pegar, crescer e superar as coisas. A gente pode passar por cima dessas coisas e dessas pessoas que falam isso. Um dia eu escutei lá no magistério que o aluno não é uma tábula rasa, que ele não é somente uma coisa que… Ele pode te passar informações, como você pode passar informações para ele também. O aluno não pode ficar quieto só escutando, escutando, escutando, ele pode expor também. E eu estava vendo isso, eu vi isso na minha vida no magistério, dentro daquele estágio. Foi um tempo… Eu fiquei nessa escola durante uns seis anos, mas jogaram para cinco anos, me registraram como cinco anos, sem vínculo empregatício, sem fundo de garantia, sem décimo terceiro, sem férias, sem nada. Mas eu continuava fazendo… Eu trabalhava lá e procurava fazer a diferença na vida daquelas crianças, porque eu comecei a pegar amor por aquelas crianças. Tinha crianças que eram muito tristes, crianças que tinham problemas, então eu quis fazer a diferença. Eu pensei, "então tá bom, vou ficar no magistério, mas por que não posso ser uma professora de educação artística ou desenhar também sendo professora?", e aí comecei a pensar nessas coisas. Com a cara e a coragem eu tentei fazer um curso no Senac, na Voluntários da Pátria, um curso de desenho básico. Eu tinha ganhado uma bolsa e fiz esse curso, mas era só uma introdução, não era um curso total. Fiz a introdução e não deu para prosseguir. Mas a minha vida sempre foi com essas coisas. E a música também entrou na minha vida, então assim, aquela professora lá fez a diferença também. Eu lembro sempre dela no meu coração, daquilo que ela me ensinou sobre a leitura, sobre apreciação da vida e eu fui resistindo a muitas coisas. Eu comecei a trabalhar, comecei a… Quando eu saí do Miudinho, que eu não tinha vínculo empregatício, eu tinha que procurar outros trabalhos, tinha que procurar alguém que me quisesse. O que acontecia? Eu moro na zona norte, ali perto do Horto Florestal, mas ia lá para Santo André, conheci São Bernardo, conhecia… Eu ia em cada lugar, que meus irmãos falavam, "o que você está fazendo, Adriana?", "não, eu tenho que ir". E sabe o que me proporcionou essa questão de ir, essa coragem? Os acampamentos que eu fui, nesses… Eu já fui mais velha aos acampamento também, acampamento de jovens, encontro de jovens. E nesse encontro de jovens, eu conheci muitas pessoas, conheci outras pessoas também… Coraçãozinho (risos). E a vida seguia nesse sentido. Eu peguei… Pode falar.
P/1 – Não, continua você, pode falar.
R – Eu peguei e fui trabalhar em outro local, no Shopping Eldorado.
P/1 – Fazendo o que?
R – A minha amiga, Taís, a que me deu emprego de babá, me colocou em um restaurante lá, no Palladium, acredita? Foi a primeira vez que eu trabalhei de noite. Foi a maior coisa para eu falar para a minha mãe. Eu pegava o ônibus elétrico… Não sei se você lembra. Pegava o ônibus elétrico, pegava um outro ônibus, e aí o que aconteceu? Eu estava no período de experiência e o Palladium estava fechando as portas. Mas eu cheguei a ver alguns grupos lá, _________[01:26:54], Dercy Gonçalves…. Eu estava lá nos bastidores, mas estava me divertindo, porque sempre que eu entro em um trabalho, eu entro de cabeça, para fazer a diferença mesmo, para poder crescer mesmo. Eu acho assim, se você entra no trabalho, você não entra somente para fazer uma coisa, você entra para se dar para fazer outras coisas também, porque é uma equipe.
P/1 – Você fazia o que lá?
R – Lá eu mexi nas filipetas, eu as organizava, as comandas dos garçons eu separava a de cada um para depois eles ganharem a comissão deles. Essa era minha função lá. O Palladium fechou, e eu falei, "e agora?" e fui trabalhar sabe onde? Fui para o McDonald's (risos).
P/1 – Lá mesmo, no shopping?
R – Lá mesmo no shopping, no terceiro andar. Gostaram de mim, nossa! Disseram que eu era a cara do McDonald's. Sempre falaram, "nossa, você atende muito bem os clientes, muito bom". Mas tem o tempo certo de você ficar em um lugar, né? Eu fiquei lá por mais ou menos um ano, e minha mãe começou a ficar chateada, porque ela não via o dinheiro do McDonald's (risos). Comecei a crescer e os olhos começaram também a crescer um pouquinho. O McDonald's pagava os funcionários de uma maneira que hoje eu vejo que era muito ruim, eles pagavam diretamente na conta, e no dia que eles queriam, eu ia lá e sacava com a conta do Bradesco. Eu só trabalhava, trabalhava, de segunda a segunda, em feriado, e não tinha tempo para ficar com a família, não tinha tempo para brincar com os irmãos, não tinha tempo para ter uma comunhão com Deus, não tinha tempo para nada. E aí, a casa caiu e minha mãe falou, "você vai sair desse emprego. Esse emprego está te levando para baixo. Ao invés de te levar para cima, está te levando para baixo", porque eu não tinha mais comunicação com a minha mãe, com meu pai, com meus irmãos… E a gente era uma família tradicional, não era muito de se tocar e coisa assim. Começou a ficar estreita a situação. Minha vida começou a ir para caminhos que eu falei, "gente, meu Deus, eu quero fazer minha faculdade", mas não… Eu acabava entrando em cada ninho de gato, minha mãe fala que é balaio de gato, e eu não conseguia… Eu estava fazendo as outras pessoas felizes, mas eu não estava feliz, eu via a minha infelicidade claramente e eu comecei a me fechar para algumas coisas e falei, "nossa, vai ser difícil. Onde que eu vou chegar? Como que eu vou chegar?". O que aconteceu? Eu falei, "mãe, não vai ter jeito, eu vou ter que fazer faculdade", brigamos para eu fazer faculdade. Fui parar no São Camilo, a faculdade São Camilo.
P/1 – Para fazer o que?
R – Fazer Letras. Lá estava eu, no meio de playboy, dos filhinhos de papai (risos), porque eu sempre ralei, sempre lavei minha roupa, sempre fiz minhas coisas. A gente crescia fazendo nossas coisas em casa, porque a mãe não tinha tempo de cuidar de todo mundo, então cada um tinha que cuidar das suas coisas. Comecei a fazer Letras lá, e ganhei uma bolsa lá também. Eu batalhava pela bolsa, não tinha esse negócio de entrar em vestibulinho e não sei o que, tinha uma prova para você entrar na bolsa. Você ganhava essa bolsa de 75% ou você não ganhava bolsa. Eu entrei e ganhei uma bolsa de 75%, só que o que aconteceu? A São Camilo é 100%... Não sei se hoje ainda, mas era 100% de humanas, eles dão ênfase à saúde. E aí, eles começaram a ter algumas mudanças, e nessas mudanças, as mensalidades começaram a ficar caras e eu não pude pagar, sujei meu nome… Ali que fui descobrir o que é SPC, Serasa (risos). E fui fazer a faculdade, "nossa, que difícil", era totalmente mais difícil que a escola, do que o magistério, era outra vida, uma vida acadêmica. Olha que palavra forte. Tinha o reitor… Esqueci o nome dele. Era Luiz e um sobrenome lá. Tinha o coordenador do curso, e os professores eram muito sérios. Tinha uma professora de inglês britânico, "meu Deus, será que eu vou conseguir falar esse inglês britânico do jeito que ela quer que eu fale?" (Risos). Mas enfim, eu cantei também nessa faculdade, acredita? Para não perder minha bolsa, eu fui capaz de cantar no coral camiliano.
P/1 – Você trabalhava ao mesmo tempo ou só estudava?
R – Trabalhava.
P/1 – Com o que nessa época?
R – Nessa época, eu comecei a trabalhar… Aí foi uma coisa legal. Perto do São Camilo, ali na Pompeia, tem tipo uma casa de cultura, uma loja de cultura, Pintar Materiais Artísticos. Entrei naquela loja como estagiária. Nessa loja, eu conheci o seu Ronaldo Dimitre, uma pessoa que eu falei, "gente, esse é o patrão" (risos). Esse Ronaldo Dimitre tem descendência canadense ou australiana e a maioria dos produtos que ele tem lá são produtos artísticos. Entrei na arte. Eu ficava lá limpando aquelas tintas, limpando aquele chão… Porque eu era balconista estagiária, então fazia de tudo lá dentro. O seu Ronaldo era incrível, porque ele tinha o prazer de me falar sobre aquelas tintas, sobre aquelas pincéis, "ah, esse lápis é da Faber Castell. A Faber Castell é assim". E eu comecei também a pesquisar sobre a Faber Castell, "estou no meu mundo, estou no meu mundo". Foi muito bom o tempo que eu fiquei lá. Foi muito doloroso ter saído de lá, eu não queria ter saído, mas eu tive que...
P/1 – E quando você estava lá, você aproveitava o material para desenhar?
R – Ah, sim, sim, eu aproveitava o material para desenhar. Eu sempre tive esse pensamento de que o conhecimento é para todos, que não importa quem você seja, você tem a informação. Seja você assim, seja você assim… Para mim a pirâmide não existe. Na minha cabeça, essa pirâmide não existe, não adianta. Eu acabei fazendo amizade com os clientes. Os clientes eram artistas, professores, mulheres que estavam tristes e estavam indo para a arte, desenhar, fazer arte terapia… Eu acabava conversando com elas e elas acabavam gostando de mim de um jeito assim. Eram muito mais do que clientes, se tornavam amigos. Eu tinha uma empatia e chamava a atenção. Só que… Eu não sabia, não sabia que nessa Terra existem pessoas boas e pessoas ruins, pessoas que querem seu bem e que querem seu mal. Eu não pensava que existem pessoas que pensam positivo para você ou pensam negativo para você, te querem ver de pé ou querem te ver no chão, e infelizmente aconteceu lá. Uma senhora pela qual eu tinha muito respeito, ela era muito inteligente, e era toda assim, o jeito dela andar e tudo, ela explicava, porque era a mais velha da loja… E um dia ela falou que não gostava de mim. Eu perguntei, "por que você não gosta de mim?", "eu não gosto de você, porque você parece com o meu ex marido e você é desse jeito" (risos), e eu falei, "mas eu não fiz nada para você". E o seu Ronaldo sempre me… Ele gostava de me ensinar, como gostava de ensinar todas as pessoas, e eu queria aprender. Se eu tivesse a oportunidade de aprender com alguém, eu iria aprender com alguém, não iria desperdiçar esse conhecimento. E ela era muito inteligente, eu queria agradá-la de algum jeito, e eu respeitava ela como pessoa e profissional, mas ela não me respeitava. O que aconteceu? Ela pegou e meio que me puxou o tapete. Não foi puxar o tapete, ela meio que me desqualificou. Os olhos dela falavam e você via pelas coisas que ela fazia, que eu não tinha capacidade nenhuma para estar ali, que eu não era nada, que eu tinha que ficar ali limpando o chão, quietinha, sem falar com ninguém, sem sorrir, desse jeito. Mas eu seguia, seguia. Eu não sou uma pessoa… Eu aprendi isso também, que a gente não pode pegar e ficar judiando dos outros, ficar maltratando. A gente tem que saber viver em equipe, saber viver em família. Pela minha família grande também, eu já fui aprendendo que a gente tem que saber viver com todos. Só que têm pessoas que não sabem dividir, não sabem dividir o conhecimento. E tiveram momentos lá que me causaram muita tristeza, "poxa vida, como ela é tão inteligente… Como na escola os professores falavam tanta coisa sobre professor… Paulo Freire falou tanta coisa do professor, Maria Montessori. O construtivismo em alta, aquela coisa do aluno brincar, ficar a vontade, não acontecia isso. Eu estava lá fazendo Letras e trabalhando na Pintar. Com o tempo, não sei o que aconteceu, tudo desmoronou.
P/1 – Foi alguma coisa específica ou foi acontecendo?
R – Foi acontecendo. Ela tipo assim, eu creio que ela fez o que ela queria, ela me diminuiu mesmo assim como ela fazia. Mas eu de maneira nenhuma retruquei, nunca retruquei, nunca. Hoje eu tenho até contato com eles lá. O meu chefe perguntou porque eu iria sair, e eu falei… Ele sabia. Eu vi nos olhos dele que ele sabia que era por causa disso, mas ele não falou nada. Ele apenas falou para mim assim, "a hora dela vai chegar, ela não pode fazer isso". Eu não sei quando a hora dela chegou, mas chegou. Eu peguei e saí de lá, e fiquei muito triste quando saí de lá. Eu tive contato com algumas outras pessoas que acabei conhecendo lá. Eu conheci algumas pessoas da Casa do Artista, algumas pessoas do meio da arte, e abriu o meu caminho, porque eu comecei a visitar ao museu que tem, o Itaú Cultural… Comecei a ver essas coisas e comecei a participar de palestras, vi algumas informações interessantes, e isso foi me amadurecendo. Aconteceram muitas coisas. Eu pensei que iriam parar as dores, as coisas que acontecem na nossa vida (risos), mas elas só começaram. Eu achava muito bonitos esses trabalhos assim, sempre admirei essas pessoas, esses artistas que são para fazer a diferença mesmo na vida da pessoa e são diferenças demais. Têm artistas que eu falo, "meu Deus, essa pessoa não tem pés, tem rodinha nos pés. Essa pessoa tem sempre uma carta". Já viu aquela pessoa que tem sempre uma.... Pá! Uma coisa assim, ela faz florescer.
P/1 – Quem, por exemplo? Teve algum artista que teve uma história que você conheceu? Algum artista que frequentava lá?
R – Teve uma artista, que ela é uma pessoa pela qual eu tenho muito respeito.
Ela tem uma história de vida também, Regina, uma aquarelista. Ela trabalhou por muitos anos na faculdade de artes em Santa Cecília, mas eu não sabia, mas ela tinha o conhecimento dela e sempre falava alguma coisa para mim. No tempo em que eu não trabalhava, eu procurava conversar, procurava ir para um lugar de cultura, fazer alguma coisa relacionada às coisas que aprendi a gostar, que gosto, que aprendi a me encaixar. E aprendi a ficar com pessoas que me respeitam e aprendi a tentar me defender, porque eu não sabia (risos). Mas enfim, a Regina foi uma cliente lá da loja que foi tão amável comigo, ela me respeitou como pessoa e eu via que ela sempre me procurava para alguma coisa. Tinha muitos outros professores lá, o Poiares, que era um senhor de idade que ensinava pinturas com tinta acrílica e óleo. Ele sempre falava alguma coisa para mim relacionada aquilo que a gente quer realmente, a não desistir, a buscar. Pela maturidade dele, ele tinha essa forma de falar com as pessoas. Sempre nesses lugares que eu fui e frequentei, eu fui pegando um pouquinho, mas eu falava assim, "nossa, quando vai chegar?". Até que assim, eu fui parar em outra faculdade, na Anhembi Morumbi.
P/1 – Você foi fazer o que?
R – Cara de pau, maior cara de pau. "Eu não ganhei uma bolsa na São Camilo? Por que eu não posso ganhar uma bolsa na Anhembi Morumbi também? Eu sei que não fiz vestibular, não fiz Enem", naquele tempo não tinha esse negócio que tem hoje. Eu lembro de dias e dias eu indo para o Centro Cultural de São Paulo, para a biblioteca municipal, ia para todas as bibliotecas… E continuava minha vida na biblioteca ainda. Escrevia e folha de papel almaço, lia e tudo, procurava saber das coisas à minha maneira. Apareceu uma oportunidade de prestar vestibular lá e eu fui prestar. Eu estava saindo da Pintar.
P/1 – Para fazer o que?
R – Para fazer Letras. O que aconteceu? Eu fui lá, consegui uma bolsa, entrei e não parei por aí. A gente acaba aprendendo a falar, a se expressar, a levantar, a caminhar e eu trabalhei na livraria dentro da Anhembi Morumbi, na livraria Horizonte. E dentro da livraria Horizonte, eu acabei conhecendo muitas pessoas, pessoas boas, pessoas ruins, pessoas alegres, pessoas tristes, pessoas de todos os tipos. Como na vida aparece para gente, a gente acaba vendo que tem essas coisas. E lá, eu conheci um outro mundo também diferente, eu via alunos que estudavam, via alunos que não estudavam, via alunos dedicados, não dedicados, vi também o que você pode e o que não podia fazer, o que você podia aceitar ou você podia negar, mas eu preferi seguir, até que se tornou muito difícil para mim, eu fiquei com uma dívida de R$32.000,00 reais (risos). Faz parte da cultura isso? Faz parte da cultura do Brasil?! Eu fiquei doida, falei, "gente, como que eu vou conseguir dormir desse jeito?", mas eu estava lá trabalhando na livraria. Eu consegui meu lugar lá na livraria também.
P/1 – O que?
R – Assim, lá na livraria, as pessoas me viam também como a pequenininha, porque eu não mostro muito a idade que eu tenho. Eu tenho 46. E eu sou assim, a gente aprende a dar no lugar de uma cara amarga, um sorriso. "Ah Adriana, você é desse jeito", bola para frente, "não estou nem aí", seguia minha vida e me fazia de desentendida, mas estava vendo que as pessoas estavam me machucando. Às vezes eu não conseguia me defender, porque era tão triste, que não tinha argumento. Lá foi muito gostoso, eu conheci a Regininha, conheci várias pessoas naquela livraria. E tinha esses negócios que alguns lugares têm, aqueles preconceitos camuflados. Hoje a gente fala disso abertamente, hoje mudou e a gente pode falar no sentido de colocar nomes em cada problemática. Uma vez, o que aconteceu? Teve uma chuva muito forte naquela região e era um tempo em que teve um feriado prolongado, emendaram. Naquele lugar tinha mulheres que… Eram mulheres que trabalhavam ali. Tinha só dois meninos e o resto eram todas mulheres. Elas tinham mania de gritar. Para quê? "Ah, Adriana!", "vai lá Adriana levar isso aqui para mim", "vai Adriana pegar isso para mim", "ah! Vai descarregar aquelas caixas", "ah! Vai fazer a contagem dos livros", desse jeito e eu ia lá, tudo bem. Vou te falar uma coisa, às vezes eu dormia no banheiro da faculdade. Eu acabei estudando lá também. De noite eu estudava lá porque ganhei a bolsa, e de dia trabalhava na livraria. O que eu fazia? Acabei conquistando também… Lá eu tinha um lugar para tomar banho, às vezes tirar um cochilinho e estava vivendo. Até que deu a chuva forte lá na Mooca, e naquele período, todo mundo pegou praia, cada um foi para um lado e eu fiquei em casa. Eu estou em casa e fiquei assim, "será que tem alguém na faculdade hoje?", liguei para a faculdade e quem era? A dona da livraria. "Alô, quem é que está falando?", "ah, aqui é fulana de tal", "por que você está ligando para cá, Adriana?", "ah, estou ligando para aí, porque quero saber se nós vamos trabalhar", "não, não tem ninguém aqui". Eu queria ganhar um extra, porque ela tinha uns negócios que ela fazia uns extras, uns trabalhos fora em que eu me encaixava, me encaixava porque ela me convidava. Ela era muito legal também, uma pessoa boa, carrancuda, mas uma pessoa que eu dizia, "que pessoa". Ela não sorria muito. Mas as outras eram muito assim desse jeito que falei, dominavam. E o que aconteceu foi que eu acabei ganhando a confiança dela naquele dia. Eu saí de casa e fui lá na Mooca ajudá-la. Perdemos muitos livros caros, ela chamava uma, chamava outra, a encarregada, a supervisora, os mais velhos, e ninguém foi ajudá-la. Lá fui eu ajudá-la. Quando foi na outra semana, as meninas perguntaram, "Adriana, o que deu em você para ligar para a Márcia?", "liguei porque eu quis ligar, e daí? Me deu vontade de ligar". E ela falou, "Adriana, que bom que você ligou, porque estou tentando falar com as outras meninas e não estou conseguindo falar para alguém vir aqui me ajudar a socorrer os livros", e eu falei, "não, estou indo aí", larguei tudo em casa e fui para lá. Ela ficou assim, e viu, "posso contar com você" (risos).
P/1 – Aí você subiu de posto?
R – Eu não subi de posto, mas subi de conceito (risos), subi no conceito delas todas. Ali elas começaram a entender que a gente merece ser respeitado também, eu vi que elas mudaram. Eu consegui viver minha vida lá dentro, e mesmo saindo da faculdade, saindo da livraria, porque a livraria teve que fechar, por falta de apoio da faculdade para renovar um acordo que eu não sei qual era, porque era uma livraria de fora dentro da faculdade. Eu tinha contato com ela, contato particular de ajudá-la com coisas dela mesmo, da família dela, com relação a se desfazer de alguns projetos… Essas coisas assim. E assim eu segui minha vida para ganhar o meu dinheirinho e para conhecer as coisas, para o conhecimento chegar até mim. Foi muito bom! Eu saí de lá, mas foi difícil sair da livraria.
P/1 – De lá, você foi para onde depois, trabalhou onde?
R – De lá, em uma noite eu estava indo para casa e sofri um acidente. Já estava com a minha conta na faculdade, eu já morava lá praticamente. Eu sofri um acidente e tive que parar. Minhas professoras perguntavam, "Adriana, o que está acontecendo com você? Você não é desse jeito. Você vai ter que parar", e parei por livre e espontânea pressão, porque se não, eu continuaria lá. Eu comecei a entender que não era só eu que tinha problemas, que carregava DP, tinha outras pessoas que carregavam nove DPs, doze DPs e estavam vivendo lá dentro ou em outras faculdades também, e que essas pessoas não pararam de lutar, de batalhar por aquilo que queriam. E o que aconteceu? Eu saí de lá e comecei a trabalhar em outras coisas. Eu comecei a trabalhar no cuidado.
P/1 – Como foi que você começou a trabalhar com isso?
R – Eu comecei a trabalhar com o cuidado creio que nos acampamentos, lá na adolescência. Comecei a cuidar dos adolescentes, das crianças, dos jovens e tudo mais. Só que eu entrei no cuidado quando o meu pai faleceu. Eu me vi tendo que dar banho nele, uma pessoa que nunca vi pelada na minha vida, nunca tinha visto. Cuidei do meu pai e tive que trocá-lo, reconhecer o corpo dele. Para mim foi uma coisa que… Na minha cabeça, na cabeça da neguinha - meus irmãos me chamavam de neguinha - quem iria cuidar das coisas eram os mais velhos, só que quem teve que cuidar e reconhecer o corpo fui eu. Fui reconhecer o corpo do meu pai no necrotério da Vila Nova Cachoeirinha. Eu fui vestir… Quando eu entrei naquele necrotério, eu olhei para o meu pai… Aquela cena de ver seu pai deitado naquela cama gelada, naquela maca gelada, e eu senti no meu coração… Eu não sei, mas eu senti no meu coração, escutei no meu coração, "não chores, porque ele não está aí, mas eu estou com você", e eu engoli aquele choro todinho, aquele choro sumiu. Eu só sei que lá no cemitério, me falaram que "a Adriana não foi ao cemitério, não foi ao enterro do pai dela", me falaram isso, mas eu estava lá. É porque eles conheceram uma Adriana que eles nunca viram. Eu cuidei de tudo e fui me aproximando dessa parte do cuidado. Eu percebi que eu era capaz de cuidar dessas coisas, "vou ser cuidadora".
P/1 –
E como é que você começou a trabalhar com isso?
R – Eu comecei a trabalhar com isso graças à minha amiga Taís, que cuidei dos filhos dela. Ela era mais do que a minha patroa, era minha amiga.
P/1 – Mas aí era cuidar de criança… Depois você mudou um pouco e começou...
R – Não… Aí eu comecei a cuidar de adulto. Ela me convidou para cuidar de uma senhora na Cruz Azul. Eu cuidei dessa senhora na Cruz Azul, ficava lá no hospital… De lá, eu comecei a trabalhar também no São Camilo a noite cuidando das pessoas e comecei a ver também o trabalho das outras acompanhantes. Eu comecei a perceber algumas coisas, porque a gente começa a ver algumas coisas também. Eu comecei a ser tocada pela morte, por um lado que ninguém falava, ninguém fala muito sobre a morte. Todo mundo gosta de falar sobre a vida, mas sobre a morte ninguém fala. Eu comecei a chegar perto disso e comecei a falar com as pessoas e essas pessoas começaram a falar comigo também, os pacientes começaram a falar comigo também, se sentiam à vontade comigo. Eu percebi que de alguma forma isso faz parte da minha vida, de quem eu sou, de como eu fui criada e de como eu vivi e tenho vivido. Eu peguei, comecei a trabalhar de cuidadora, comecei a ver os pontos positivos e os pontos negativos também, comecei a respeitar muito mais ainda e a colocar em prática tudo aquilo que meus pais sempre ensinavam, o respeito… O respeito que eu também tinha pelos meus pais. Pelas coisas que eu via e pelas coisas que eu lia também, as coisas que eu via de às vezes as pessoas terem o prazer de machucarem as outras, o prazer das pessoas verem uma pessoa bem, o prazer de você ver uma criança que tem medo de pular corda aprender a pular pela primeira vez, a ficar emocionado, o prazer de você ver uma jovem que não consegue cantar e canta… E assim eu comecei a pensar. Depois do acidente que eu tive, eu comecei a pensar em muitas coisas da nossa vida, tipo assim, "se eu partir daqui, o que vai acontecer? Se partir, partiu. Alguém vai se importar comigo? Se eu não me importar comigo, ninguém vai se importar comigo. Então eu tenho que me importar", e aí eu comecei a entender e me elucidar, porque nesse período que eu estava na Anhembi Morumbi (risos), eu conheci uma pessoa também. Porque também tem essa parte da nossa conversa. E essa pessoa que fez parte da minha vida, nós não estávamos mais juntos e eu falei assim, "olha, preciso da sua ajuda, preciso de um apoio", e essa pessoa me apresentou a um apoio de terapia. Eu comecei a estudar mais, me programar, e conheci o Senac de Tiradentes e fiz o curso de cuidadora lá. Eu ia fazer um outro curso, mas acabei fazendo o curso de cuidadora, porque falei, "não, é esse curso que eu quero fazer". Fui lá e fiz o curso de cuidadora. Por que eu fiz? Porque não me bastava somente estar ali com eles, com a experiência no meu currículo e tudo mais, eu queria fazer o melhor. Esse foi sempre o meu pensamento, dar o melhor para as pessoas, de ajudar, auxiliar, de estar ali com elas. E aconteceu que eu acabei entrando na profissão de cuidadora, mas falei assim… Agora estou com 46, a gente amadurece. "Por que eu não posso ser uma cuidadora com arte, uma cuidadora com cultura, uma cuidadora para fazer a diferença na vida dessa pessoa? Não importa quem seja. Eu posso ser uma cuidadora daquele que se encontra incapaz naquele momento, eu posso ser a cuidadora daquele que precisa de mim". Você fala, "ah, eu cuido de quem? Eu cuido de velho e de velha", a gente não pode tratar as pessoas desse jeito, eu aprendi que a gente não pode tratar as pessoas assim. Você sabe o que significa "velho"? Procure no dicionário o que significa "velho". Ninguém é velho. Um empresário, uma mãe, ou um pai que deu tanto tempo para cuidar de um filho, não pode ser considerado como algo descartável e que não presta. Ele tem que ser cuidado com carinho e com amor. O ser humano tem que ser cuidado com amor, a gente tem que dar valor. Eu comecei a pensar e falei, "quer saber? Eu vou fazer do meu cuidado um cuidado com cultura e arte. Eu vou levar para essas pessoas tudo o que eu puder para proporcionar a elas, a nós, aquele momento agradável. Vou falar de futebol, falar de política, vou cantar junto com a pessoa. Nós cantamos, podemos ler juntos também". Quando a pessoa está doente, está ali acamada, a pessoa está morrendo… E aí, a vida acabou para a pessoa? E como que a pessoa vai se apegar em uma… A pessoa não tem esperança. Sabe a pessoa chegar assim e… Te tratarem normalmente como nada, já é horrível, imagina quando você está doente, quando você está ali naquela situação em que você se vê com uma pessoa estranha tendo que cuidar de você, tendo que trocar a sua fralda, tendo que dar banho em você. "Quem é você que me dá banho e vem aqui mexer comigo? Quem é essa pessoa, essa mulher que vem mexer com o meu marido?", não, quando eu entro nessa família e na vida dessa pessoa, eu peço licença, eu me apresento. "Por que você se apresenta?", a gente tem que fazer isso, tem que respeitar as pessoas, a gente tem que respeitar ao próximo como a si mesmo. Se eu não me respeitar e não der valor a minha pessoa, eu não vou dar valor às outras pessoas. Nós acabamos criando um vínculo e esse vínculo é muito bonito também, porque a gente vê como nós somos importantes e como ninguém é melhor do que ninguém nessa Terra. Dá para você fazer a diferença do seu jeito, você não precisa agradar ninguém, você não está aqui para agradar outra pessoa com seu cabelinho, com seu jeitinho, com seu jeitinho de falar, com sua religião, não. Você pode agradar do jeito que você quiser. Você pode fazer o que você quiser, mas tem que tratar as pessoas como quer que te tratem. As pessoas merecem dignidade, as pessoas merecem o amor e o respeito. Eu aprendi e tenho aprendido isso, o que é importante na vida das pessoas. O importante é isso, o conversar, o dialogar, a troca. Ninguém é melhor do que ninguém. No final, todo mundo vai para o mesmo lugar. Já ouviu falar muito sobre isso, não é verdade? Já deve ter escutado falar muito sobre esse tipo de coisa, "no final todo mundo vai para o mesmo lugar". Sabe o que é uma boa? Uma coisa boa é quando você lembra da pessoa com saudade, dá aquela respirada e puxada a saudade. Que saudade que eu tenho! E lembrar das coisas boas, das coisas em que você cresceu. Vou te falar assim, eu não tenho raiva. Hoje eu aprendi, como falei, a não ser como essas pessoas, porque às vezes a pessoa está fazendo isso por algum motivo. "Não sei qual o motivo, mas se você quiser, você pode me falar. Por que você está agindo desse jeito?", então eu vou buscar compreender a pessoa, respeitar a pessoa, respeitar a partida, você vai respeitar a sua posição, e você vai aprender a fazer o que? Algum paciente chega falando, "você não sabe?! Eu estou com câncer, estou aqui morrendo, moça, e você está aí dando risada?", mas não, você pode fazer o seguinte… Eu, na posição que estou, não tenho o direito de tirar a vida dessa pessoa, diminuindo, desrespeitando, machucando, agredindo. Eu posso melhorar da melhor maneira possível. Eu falo assim para os meus amigos, "olha, você tem todo o direito de chutar o pau da barraca, pode chutar. Você tem todo direito de xingar e fazer tudo que você quiser, você está no seu direito. Você tem que lutar, porque o nosso legado é lutar. Se a gente não lutar, se a gente não batalhar, se a gente não fizer essa diferença, a gente não vive, porque vivemos para isso". Algumas pessoas são para cortar, outros são para plantar, então você tem que saber isso. Às vezes estou com uma paciente e estou cantando com ela, estou dando risada, estou passando batom, estou penteando cabelo, estamos tomando banho juntas (risos).
P/1 – Você vai na casa da pessoa?
R – É, hoje eu vou na casa da pessoa. Antes eu ficava muito no hospital. Eu posso ficar no hospital de dia, de noite eu não posso. Hoje eu estou casada (risos).
P/1 – Teve alguma dessas pessoas que você cuidou… Tem alguma história que mais te marcou dessas pessoas que você cuidou? Algo importante que tenha acontecido...
R – Tem sim. Foram duas histórias, na verdade. Posso falar? Duas histórias que me marcaram muito. Uma foi a história de um senhor, o… Vou falar um sobrenome, o senhor Silva. Ele era um senhor super independente. Ele não era um pai de família, mas era um senhor super independente, porque ele viajava, trabalhava com sapatos, tinha muitas coisas, tinha a própria renda dele, viajava para lugares longe, lugares perto, e às vezes até a própria esposa viajava com ele também. Com o tempo, o relacionamento deles… Eles se distanciaram. O seu Silva ficou doente e estava separado dela. O que aconteceu? Os filhos, junto com ela, me contrataram para cuidar dele no hospital, porque os filhos não podiam cuidar, porque cada um tinha que cuidar da sua casa, da sua família… Cada um tinha os seus motivos. Na cabeça deles era, "você está sendo paga para fazer isso, para cuidar do meu pai", mas para mim não, você sabe o meu jeito, "tá bom, tudo bem". Eu estava conversando com uma amiga minha falando sobre esse tipo de coisa. Posso citar o nome? Eu estava conversando com uma amiga minha, Débora (risos)... Eu fui em um curso de Mulheres 1000 e falaram, "o que você está fazendo aqui nesse curso de Mulheres 1000?"
P/1 – 1000 Mulheres.
R – 1000 Mulheres empreendedoras. "Você não é balconista, não é feirante, não é não sei o que", as meninas me falando e eu falei, "não, mas eu sou cuidadora". Porque tem uma parte do cuidado que é muito difícil para mim, a parte burocrática. A parte burocrática é a mais difícil, porque você tem que falar de pagamento. Eu não sou dessa parte de exatas, essa parte racional. A minha parte é mais simples, o cuidado mesmo. O meu marido é da parte de exatas, nem pensa nessas coisas, já pensa na outra parte (risos). Lá em casa é assim. Eu fui cuidar desse senhor nesse hospital e eu fiquei lá com ele em todo o processo. Tinha filhos que não queriam ir ver, tinha filhos magoados, tinha a mulher magoada, tinha coisas assim que… Eu tenho essa cumplicidade com o paciente, eu tenho isso: o que fica ali dentro, fica ali dentro. Eu tenho respeito ao paciente e tenho respeito à família. Quando eu entro naquele local, quando eu entro na situação da pessoa, eu visto a camisa dela, vamos dizer assim, para ficar mais fácil de entender. Se eu estou vendo que uma enfermeira está maltratando o meu paciente, o meu amigo, eu vou falar assim, "cuida dele direitinho, não é assim". O doutor passa para mim, eu vou e passo para a família. O seu Silva marcou muito a minha vida, porque quando ele partiu… Eu nunca tinha visto uma pessoa partir assim tão… Foi difícil a partida dele. Foi em uma madrugada. Tem cuidadora que dorme. Têm cuidadores e cuidadores, eu não sou essa cuidadora. Eu não sei o que acontece comigo, que eu funciono tão perfeitamente na noite (risos). Eu senti e chamei a enfermeira. A enfermeira já falou, "se afasta, se afasta, se afasta", eu peguei e me afastei. Daqui a pouco se juntaram todos, colocaram aquilo no peito… Vou te falar, eu senti uma coisa que eu tinha sentido lá com o meu pai. Eu vi como que o ser humano não é nada. Não assim… Quando a morte chega, você quer lutar, você vê a luta. Eu vi a luta daquela pessoa, o desespero de partir e de ir. Foi tremendo, foi tremendo, porque graças a Deus quando ele partiu, já tinha conversado com a ex esposa, já tinha conversado com os filhos… Aquele clima de tristeza e outras coisas mais, tinha sumido, sumiu. Ele pôde partir e a família pôde ficar. Ela, uma senhora de idade avançada, hoje eu vejo que ela pode viver, respirar e lembrar dos momentos bons que ela viveu com ele. Um relacionamento não é feito só de coisas ruins, mas de coisas boas também. Às vezes é muito fácil as pessoas olharem o lado ruim das coisas e não o lado bom delas. Eu vi ele partindo e foi algo que me marcou muito. E uma outra pessoa que me marcou também foi uma senhora, Vanda. Ela era viúva, tinha somente um filho e era uma pessoa totalmente dependente do filho. Ela adorava o Roberto Carlos (risos), ele era tudo na vida para ela. Ela gostava das músicas dele e tinha aquele jeito todo estabanadão. Quando ela ficou doente… Eu vi quando ela ficou doente, porque eu a conhecia, ela era uma amiga. Ela ficou doente e ficou internada em um hospital da USP. Ela ficou sozinha no hospital. Às vezes a irmã ia visitá-la, o filho ia visitar… A gente vê que algumas pessoas gostam de se fechar tipo assim, "estou sentindo dor? Estou sentindo dor. Se você está me magoando? Está me magoando", mas têm pessoas que preferem maquiar. Se você quer confortar, vai. Eu aprendi que têm pessoas que estão ali naquela condição e estão lutando, "por que eu estou aqui?", mas está ali. Eu acho que se tiver que passar, passa, mas não fica. Eu quero melhorar isso. Eu percebo hoje que eu posso levar isso. Quando ela partiu, foi muito… Eu tive que vestí-la. Ela falava assim, "ai, Adrianinha, Adrianinha, Adrianinha. Se eu partir um dia, eu não quero sair com a cara limpa" (risos). Ela pediu para que eu a vestisse e maquiasse. Você vê… Mas era o jeito dela e eu respeitei. Vou fazer o que? A gente tem que respeitar as pessoas como elas têm que nos respeitar também e temos que mostrar isso, estar sempre mostrando isso. Trabalhando com cuidado, eu quero fazer isso, quero ajudar as pessoas. Quem pensa em cuidado, como eu falei, pensa no idoso, mo velhinho, mas não, aquela pessoa que está ao seu lado, às vezes você não sabe, mas precisa de cuidado, de um abraço, de uma palavra amiga, de um sorriso, de uma esperança. Infelizmente hoje a gente está vivendo um tempo que está… Por mais que a gente queira que todo mundo esteja junto, as pessoas estão se afastando. Eu vejo que nesse momento que estamos vivendo de quarentena e pandemia, algumas coisas estão servindo de desculpa para as pessoas se distanciarem das outras. "Ah, eu não vou na sua casa por causa da pandemia". Se você tem que falar com a pessoa que você se importa com ela, que ela é importante na sua vida, que aquela birra gostosa dela de "eu não gosto de ser abraçada, mas eu gosto de abraçar você assim mesmo"... Eu não quero que a gente no final diga, "eu podia ter abraçado, beijado e não fiz isso". Você tem informações, você pode passar essas informações. Essas informações vêm de muitas formas, com o olhar, com o tocar… Essa informação não vem só com… Eu gosto de ler e escrever, mas a comunicação pode também chegar com um toque. Um toque faz a diferença, um toque e um olhar fazem a diferença, não fazem? Às vezes a pessoa nem fala muita coisa e o simples fato da pessoa estar ali, já dá aquele suspiro gostoso. É um suspiro docinho (risos), traz um doce para a vida da pessoa e é esse doce que eu quero proporcionar (risos). Meu projeto… Eu tenho um projeto no meu coração. Eu tenho o projeto de abrir um local. Se eu tivesse condições, queria abrir uma casa de cultura para todos. Se tiver dança, não vai ser só dança para a melhor idade, vai ser dança para todas as idades. Se tiver o momento da cultura, de um livro, o livro é para todo mundo. Por que eu não posso levar poesia e declamar? Por que eu não posso falar também? Você pode falar. Tem muita coisa que a gente pode criar hoje, a gente pode dar a vida como pode dar a morte também para as pessoas, é uma escolha. Enquanto eu viver, eu quero proporcionar vida para as pessoas. Eu já tive momentos muito, muito particulares com a morte, mas eu também tive momento particulares com o dono da vida. Existe um dono da vida e um dono da morte? Eu quero ir para a vida. E eu não posso seguir esse caminho, a minha trajetória de vida, se eu não estiver com Ele, porque Ele tem feito a diferença na minha vida pessoal, como mulher, hoje como esposa, como guerreira, porque eu vejo que sou uma guerreira e que existem outras guerreiras também. Eu já passei… Às vezes a pessoa pensa, "você nunca passou pelo que eu estou passando", você não sabe. A gente tem que parar para escutar. Eu estou vivendo uma nova fase agora, a fase esposa, a fase mulher de casa. Com essa pandemia, é tudo dentro de casa. Tem sido um desafio, porque a gente tem que ser amiga também. Não adianta só você ser a mulher, a amante, a empresária e tudo mais, você tem que ser amiga também do seu marido e ele tem que ser seu amigo também. Não adianta barganhar. Se a gente tem alguma coisa para resolver, a gente tem que resolver agora. Eu trato dessas coisas também nessas conversas.
P/1 – Você é casada há muito tempo?
R – Eu sou casada há… Vai fazer sete anos.
P/1 – E vocês não têm filhos?
R – Nós tivemos dois filhos. Foi um momento assim, de… Assim que eu entrei em um relacionamento com ele, eu já entrei para ter filho, porque como eu tinha uma vida de universitária, não me sobrou muito tempo para pensar em família. Era trabalho, escola, trabalho, escola, e quando nós nos encontramos, foi muito engraçado e intenso, porque nós estudamos juntos na mesma escola. Sabe aquela coisa que você pensa que nunca vai acontecer? Estudamos juntos na mesma escola. Eu era a primeira da fila, ele ficava lá nos últimos, ele tinha cara de bravo, e eu era calada, quieta, pequenininha. Eu nunca conversei com ele, até que um dia a gente se reencontrou. A gente se reencontrou em um dia em que eu estava parando para fazer essa avaliação da minha vida. A gente decidiu, "vamos nos ver". Nisso, nós acabamos tendo um filho, e o que aconteceu? Nós já tínhamos um nome para ele, era um menino, eu sabia que era um menino, eu sentia dentro de mim. A gente chamava ele de Fábio. O Fabinho era amado, nossa! Eu sentia
um amor, uma paz tão gostosa, aquela… Só aquela possibilidade de você saber, "poxa vida, eu, mãe, tão pequena?" As pessoas às vezes me falam tanta coisa, ou não falam nada, ou diminuem. Acham que eu não tenho a capacidade de terminar os estudos. Ser mãe?!", e de repente você escutar, você sentir, só de você saber que tem uma vida dentro de você… É uma vida! Quando eu vi o coraçãozinho dele bater e vi as costinhas dele ali no ultrassom, eu já amei mais. Minha gestação foi até os seis meses, cinco meses e meio e tive um aborto espontâneo. Espontâneo?! Não foi espontâneo, porque eu não queria, mas aconteceu. Eu fui levada para o hospital, tive que ficar internada, fui para o Hospital Maternidade Escola Vila Nova Cachoeirinha e fiquei lá. Chorei, chorei, chorei, chorei e chorei muito. Eu falava, "moça, pelo amor de Deus, doutora, pelo amor de Deus, ajuda meu filho". Sabe quando você sente o coração bater dentro de você e mexer? Ele sentia o que eu estava sentindo, "doutora, doutora, doutora, ajuda, ajuda". Falaram para mim assim, "vamos ter que colocar esse remédio em você para você ter contrações", e eu não sabia o que era. Colocaram aqueles cinco ou seis remédios dentro de mim, e quando foi por volta de umas oito horas, eu tive a contração e desmontei. Desmontei mais porque uma médica falou para mim, "ele não vai chorar, ele não vai sofrer, pode ficar tranquila, não se preocupa, as coisas são desse jeito mesmo. Se você não puder, você adota, ou então você compra um cachorrinho". E eu clamando, "pelo amor de Deus, me ajuda, me ajuda, eu quero meu filho". E aí falar que meu filho não iria sofrer porque ele era menor do que um hambúrguer do Burger King… Menor do que um hambúrguer, pode se falar assim. Eu chorando, chorando, chorando. Aquela cena terrível, terrível, terrível. A enfermeira chegou em mim assim, colocando de mal jeito, machucando. Teve uma hora que eu falei assim, "moça, está doendo, está machucando". E eu entendi e falei, sabe o que eu falei? "Eu não estou aqui porque eu quero, eu queria, eu quero meu filho", aí reclamaram e me colocaram em isolamento, mas eu fiquei junto com outras mulheres que gritavam também, xingavam. Eu ouvia choro de criança nascendo e não ouvia o choro do meu filho. Tive que passar pela curetagem, fiz a curetagem e fiquei internada naquele quarto com aquelas cinco mulheres, cada uma com a sua história de vida. Não importa, eu respeitei cada uma delas, porque cada uma tinha a sua história, mas foi difícil para mim. Saí daquele hospital procurando alguma coisa, sentindo que tinha esquecido alguma coisa, estava faltando alguma coisa assim e fui para casa desse jeito. Foi muito difícil, porque é difícil o luto, é difícil a morte, é difícil a partida. E você vê as coisas mais concretas assim, porque você não entende, mas vê as coisas mais concretas. Eu queria saber o que tinha acontecido com o meu filho e o que tinha acontecido comigo e não me deram nenhuma resposta. Eu falei, "mas eu não sou mãe de padrão de alto risco? Então tinha que ter cuidado", porque era uma escola que era referência. E o que aconteceu foi que eu fiquei sem saber o que tinha acontecido e fui buscar a autópsia. Quando eu fui buscar, eu vi as meninas que estavam lá e as meninas saíram da sala com uma cara de decepção, com o papel na mão, sem resposta. Eu queria sair dali com a
resposta do que tinha acontecido e o que aconteceu pelo tratamento, porque me trataram daquele jeito. Perguntaram se eu queria abrir reclamação e eu abri reclamação. Falaram assim… Isso foi a direção que falou, "olha mãe, infelizmente 99% das mulheres que estão aqui nesse hospital não querem seus filhos, você é uma exceção". Então assim, eu fiquei admirada porque aquelas pessoas, aqueles profissionais, aquelas pessoas que fizeram juramentos da passagem da vela e tudo certo para cuidar da vida, estavam assim… Estavam mais mortos do que o próprio morto, porque estavam tratando as pessoas de qualquer jeito. Você escutar uma pessoa letrada falar isso, "infelizmente 99% das mulheres que está o aqui não querem seus filhos, você é uma exceção"... Eu fiquei sem resposta. Até que uma amiga minha, Lilian… Lilian era uma jovenzinha muito boa, ela fazia um curso na Unifesp, me apresentou o Hospital São Paulo e eu descobri o que eu tinha. Então a gente tem que… Você fala assim, "ah, ela é muito criança para conversar comigo", você tem que abrir sua cabeça para qualquer idade. Quando eu abri a minha cabeça para escutar o que aquela jovem estudante estava querendo falar para mim, ela disse, "olha, minha professora é muito inteligente, ela é assim, e sabe sobre a parte de gestação, a parte dos bebês do hospital, então você pode conversar um pouquinho com ela, Adriana", e eu falei, "eu vou". Eu estava tão assim, tão decepcionada, tão decepcionada, mas eu fui. Chegando lá, é só você se colocar para fazer exames, fiz um monte de exames. Passei em um "acalentamento", um "acalentamento" de verdade, porque passar e a pessoa falar para você comprar um cachorrinho… Não tenho nada contra os cachorrinhos (risos), amo, amo, mas eu amo a vida, a vida de todos. Eu fui cuidada lá no hospital, fiz vários exames e foi constatado que eu tinha incompetência ultra cervical, só que o hospital não poderia me ajuda por falta de verba. Por falta de verba eu não podia...
P/1 – Tinha o que?
R – Incompetência ultra cervical. Quer dizer assim, quando eu engravidar, vou ter que fazer uma ciclagem, uma pequena cirurgia e repouso para conseguir fazer o processo da criança, todos os processos direitinho, o tratamento, acompanhamento médico, pré-natal… E o hospital infelizmente não tinha condições de me ajudar. Você se apega aquilo que você tem, e eu me apego hoje ao que eu tenho. Hoje eu não tenho filhos, mas eu tenho amores, são os amores que eu pego por cada um dos meus amigos, minhas amigas, que eu cuido, que eu auxilio, que eu acompanho, é isso.
P/1 – E o programa Mil Mulheres, o que você tirou dele? Deu uma mudança na sua vida depois que você fez? Você teve um aprendizado?
R – Tive, tive um aprendizado, porque o meu problema… Não é o meu problema, é porque é meio chato você pegar e… Posso dar um exemplo? Uma diferença. Quando você vai chegar… É uma coisa muito triste. Quando você vai comprar um caixão e uma pessoa dá um preço absurdo, a pessoa vai totalmente sem coração e se aproveita da sua fragilidade e joga aquela parte comercial. Eu acho que não é simplesmente você pegar e jogar a parte comercial na pessoa. O Mil Mulheres também trabalha com essa parte de você se organizar financeiramente, organizar suas finanças, como você montar um cronograma, como você se organizar para poder ter o seu trabalho. É um trabalho para mim, mas creio que acima de um trabalho, eu vejo como um propósito, porque vou te falar assim… Eu estava falando para ela, essa minha amiga, que eu não gosto de chegar na pessoa e falar, "olha, para eu cuidar e estar com o senhor Pedro, você vai precisar pagar x", porque entra em contradição aquilo que estou fazendo com o meu trabalho. É a mesma coisa do tipo que falei, aquilo que eu gosto… Porque isso é o que eu gosto. Eu gosto de estar ali com aquela pessoa, de desenhar com aquela pessoa, de cantar com aquela pessoa, de dar risada com aquela pessoa, de falar para ela "chuta o pau da barraca mesmo, meu filho, você tem todo o direito de fazer o que você quiser. Está sujo? Vamos limpar. Sujou a cama? Troca o lençol, não tem importância. Você vai ficar preocupado com esse lençol? Eu estou aqui para você. Vamos brincar aqui. Quer comer um chocolate? O médico liberou, então vamos comer um chocolate" (risos). O Mil Mulheres me serviu e tem me servido, porque eu acho que não vou parar por aí, acho que vou querer fazer outros cursos também, porque é como falei, conhecimento é importante, a gente não pode nunca achar… Eu falo, "ah, me aposentei". A gente não pode aposentar, gente. A pessoa pensa que aposentar é morrer (risos).
P/1 – Você se considera uma empreendedora?
R – Me considero uma empreendedora sim.
P/1 – Por que?
R – Porque para mim, quando eu penso na palavra empreendedor, eu vejo como lutador. Quando eu escuto sobre empreendedor, fazer a diferença, sabe? Eu vejo isso. Então a gente tem que buscar isso. Eu também falo uma coisa para eles assim, "meu amigo, enquanto você tiver fôlego de vida, lute. Você tem todo direito de lutar". Eu me considero empreendedora, porque… E eu considero minha mãe, meu pai empreendedores também.
P/1 – Quais são as características, o que você acha que precisa para ser uma empreendedora?
R – Bom, você perguntou se eu me considero uma empreendedora.
P/1 – É, e se sim, o que te caracteriza como empreendedora? O que uma mulher precisa para ser empreendedora?
R – Se eu me considero uma pessoa empreendedora… Eu me considero uma pessoa empreendedora sim, porque eu sei que nós estamos vivendo em um país, em que temos uma Pátria, em que temos constituições, em que temos leis e a gente tem que… Para gente poder seguir… Eu sei que faz parte da nossa vida isso, porque nós temos que buscar isso de certa forma, esse empreender, porque esse empreender traz vida. Eu acho que todo mundo, todo mundo tem o empreendedorismo dentro de si, então o que acontece? A única coisa que acontece assim… Eu me considero empreendedora, mas às vezes não existem… Tem que ter o meio, o caminho, não sei se dá para entender, os recursos. E para você ser um empreendedor, eu vejo que hoje a gente precisa de cultura, a gente precisa estudar, a gente precisa se qualificar, precisa de família, precisa de um sustento, de uma base. Eu até conversei sobre isso no 1000 Mulheres, porque eu falei que tenho uma dificuldade de chegar e mostrar para a pessoa que tem que ter um processo. É o que está regendo o nosso país, é preciso dinheiro. A gente precisa de dinheiro, precisa de sustento, esse é o momento que estamos vivendo, em que precisamos trabalhar. Eu preciso me alimentar, e se eu não me alimentar, eu vou ficar fraca. E a mesma coisa é, se eu não me alimentar com a leitura, com a cultura e tudo isso, eu não vou poder passar para as pessoas. A gente tem que buscar isso, buscar esse empreender. Mesmo que você fale, "estou assim com essa dor", se tem possibilidade de você vender um sorvete (risos) para o vizinho, venda o sorvete para o vizinho. Se você tem a possibilidade de fazer, vá e faça. Você tem a sua mão, faça. Eu acho que você tem que fazer… Acho melhor você ter feito do que falar, "poxa vida, eu não fiz nada". Não sei se dá para entender o que eu passei. Porque no empreendedorismo não adianta… Tá bom, você quer vender cachorro-quente. Lá tinha pessoas que queriam vender cachorro-quente. Não adianta você querer vender cachorro-quente se você não está com isso e isso bons, porque isso e isso comandam você. Então você tem que fazer, tem que buscar. Tinha um pensador que falava assim, "se você não puder andar, se arraste. Se não puder se arrastar, se mexa. Se não puder se mexer, pisque. Faça alguma coisa (risos), mas não deixe o que você tem para fazer… Se você acha… Você sabe que você tem a capacidade, então não se sabote". Posso dar um exemplo de empreendedorismo, mas empreendedorismo de criatividade? A professora falou para gente fazer um cartaz. Eu estava vendo o cartaz na minha frente e não estava conseguindo fazer, mas peguei, fui lá, "é assim, assim, assim", mas veio "é desse jeito", "desse jeito". Só que você tem que pelo menos buscar. Se você buscar, é melhor, não é? Se você buscar fazer o melhor para você. Você tem que fazer o melhor sempre para você, para se sentir bem, para levar para as outras pessoas... Eu acho que a vida é feita disso, a vida é feita de fracassos, e de vitórias também. Se a gente não tentar, não vai acontecer. Tantas pessoas foram empreendedoras que a gente sabe e estão na história, tentaram com a tecnologia, com papel, com recursos, falharam, mas depois viram que poderia dar certo com outras coisas, é assim. Eu sempre me desafio a fazer outras coisas, porque eu acho que o ser humano está em constante aprendizagem e sempre tem algo para aprender. Você não é uma tábula rasa, você tem conhecimento. Se a gente parar para olhar, parar para escutar, tem, tem sim. Ah, têm outras coisas mais. Hoje eu fiz uma coisa diferente, me atrevi a fazer um curso.
Você tem que querer, querer fazer alguma coisa. Se der certo, deu, se não der certo, você tentou e foi. Eu fui fazer um curso no Senai de restauradora. Lá estava eu no Senai para fazer restauro de documentos, mexendo com papéis. "Nossa, para quê isso?", é importante, tudo é importante. Você pode usar isso, para quê? Para conservar uma coisa que você tem. "Ah, eu vou usar esse curso para quê?", se esse curso chegou a mim, me proporcionaram e tudo mais, vai ser bom. "Eu não tenho condições de fazer esse curso", mas você pode indicar outra pessoa para fazer. Ao invés de matar a pessoa com o que você fala, você pode levar vida para a pessoa. "Não, vai lá, tenta, se forma", é assim.
P/1 – E o que você achou de contar a sua história hoje aqui?
R – Ai, ai, olha aí. Eu estava justamente pensando nisso lá no banheiro agora. Olha que rapidinho. Eu acho assim, tenho certeza, que é uma coisa muito bonita. Uma vez que passei por uma situação difícil lá quando estava no hospital, internada, sozinha no isolamento, eu falei para Deus, "olha Senhor, meu desejo é que ninguém passe pelo que eu passei. Se as pessoas passarem, me dê uma forma de ajudar essas pessoas a enfrentarem". Lá nas reuniões da igreja, é falado que a gente tem que testemunhar, servir de testemunho para outras pessoas. Quando eu fiquei no hospital, eu falei assim, "olha, eu não desejo que nenhuma menina passe o que eu passei". Ninguém merece isso, não é verdade? Vida é vida, a vida é importante para todos. Então assim, se eu puder falar para outras meninas não sofrerem o que eu sofri nesse hospital, e se essa menina… Porque eu não sou igual a ela, nem ela é igual a mim, ninguém é igual a ninguém, você não pode julgar ninguém. Eu aprendi que têm pessoas que às vezes querem falar uma coisa e não conseguem. Não é porque não conseguem, é porque é difícil mesmo. Eu queria uma oportunidade de falar e deixar isso para as futuras empreendedoras, para as futuras jovens estudantes, para os sonhadores, para não desistirem dos seus sonhos. A gente tem um caminho certo e falar que não existe a perfeição nas pessoas. E falar para as pessoas que às vezes nos cobramos muito. "Você tem que ser assim", por que tem que ser assim? Por que não pode ser do seu jeito? Eu estava querendo passar, porque se um médico chegar em uma situação de não sentir mais o juramento, que ele saia, porque se você não está legal, fale. Não deixe chegar em uma situação difícil, de ter que pegar e… Se você tem a oportunidade de pegar e ajudar uma criança a nascer, você pode ajudar. O que te impede? Você não se formou para isso? E assim, a mesma coisa também é que se eu não fosse, eu não teria o direito de tratar as pessoas… A gente tem que tratar as pessoas com amor, é o meu jeito, (risos), é o meu cuidar, meu viver. Se eu pudesse, eu teria uma pessoa para empreender, "você empreende e eu cuido dos papéis", eu falo para a Débora, "vamos fazer o seguinte, você cuida dos papéis e eu cuido da outra parte", mas ela falou para mim que a gente precisa. Eu posso chegar com um documento explicadinho sobre todos, descrevendo o meu trabalho e a importância que ele tem. O Sebrae ajuda nisso também, ajuda você a amadurecer algumas coisas e dá um rumo também. No final de tudo isso, eu entendi que sou uma comunicadora, uma empreendedora comunicadora (risos) e artista, arteira. Eu não posso ser outra pessoa, eu sou isso. Se você quiser que eu fale sério, eu falo sério. Se quiser que eu brinque, eu brinco. É isso.
P/1 – Tá bom.
R – E tomara que sirva, que ajude (risos). Espero que ajude. Eu quero isso, o meu desejo é esse, porque nossa meu Deus, eu queria tanto que outras jovens não passassem pelas coisas que eu passei. Têm outras coisas também… Estou resumindo, entendeu? Têm outras coisas também que eu já passei e foram muito marcantes para mim, porque na nossa vida não existe somente o empreendedorismo e o acadêmico, existe também o lado sentimental.
P/1 – Tem alguma coisa que você gostaria de contar e que você não contou sobre esse lado?
R – Bom, falar aí para os jovens que não existe o príncipe e a princesa encantada. Às vezes cobramos muito das pessoas, mas não façam isso, porque ninguém é perfeito. Você não pode pegar e jogar as suas expectativas para a pessoa, nem ela pode jogar as expectativas dela em cima de você. A falha das pessoas hoje é isso, colocar muita expectativa em cima das pessoas. Eu digo assim, sempre fui assim, sempre foquei muito o lado do acadêmico e trabalho e deixei essa parte assim… Até que quando… É que eu não contei, mas depois que eu sofri o acidente foi que eu reencontrei com meu marido (risos), porque eu parei para pensar na vida. "Será que é só vida acadêmica? Que a vida é só trabalho? A vida é família também", e eu comecei a ver as pessoas que estavam ao meu redor, porque não adianta nada você estar com a pessoa, você pegar… Você está namorando com a pessoa, a pessoa está ficando com você, ou vice versa. Você tem que saber que está lidando com uma vida, com sentimento. Você tem que saber que "não" é "não". Não é a melhor coisa, não é o momento. Eu falo assim, porque eu tive poucos… Isso aqui é uma parte, se quiser colocar isso, você coloca. Eu tive poucos namorados por causa disso, trabalho e estudo. Eu já me encantei, já namorei sem estar namorando. Eu estava enamorada, interessada, mas a pessoa nem aí comigo. Existem pessoas que querem se aproveitar também. Sabem que existem essas pessoas e querem se aproveitar. Cada um tem a sua sensualidade. O homem tem a sensualidade dele, a mulher tem a sensualidade dela. Aí é que está, você tem que aprender a se respeitar e a respeitar a pessoa também, e saber que você está lidando com outra vida. Eu nova, não era mais criança, eu tinha… Eu sempre pensei nisso, se algum dia desse tempo e eu estivesse com uma pessoa, eu queria estar com essa pessoa de corpo inteiro. Por incrível que pareça, eu queria estar plena com ele, virgem. Aquele sonho assim do casamento, de estar com a pessoa, e não importava, a pessoa não precisava ter muita coisa. Eu nunca pensei em coisas materiais, mas o importante era estar com a pessoa. O que acontece? Eu me interessei por uma pessoa e ele viu que eu me interessei. Ele estava fazendo faculdade de Direito, percebeu que eu fiquei meio encantada… Percebeu, lógico que percebe. Não percebe? O cara percebe, tipo, "a mina balançou". Sem brincadeira, existem pessoas ruins, existem pessoas que são para levar você para… Ia falar um negócio aqui. Vieram para levar você para a fossa, para não falar outra coisa. E têm pessoas que te levam para cima. Eu quero andar com as pessoas que me levem para cima. E o que aconteceu? Essa pessoa, esse jovem era um pouquinho mais velho que eu… Por incrível que pareça… Hoje, se você falar que é virgem, você é o que? Babaca, outra coisa, desantenada… Falam um monte de coisa. Mas se você quer se guardar para uma pessoa que você ama… O que acontece? Eu tinha isso no meu coração de me presentear nesse sentido para o meu marido. Como a gente se engana! Às vezes você escuta, não é, mas você escuta, você acredita. A pessoa está falando "não" e você está escutando "sim", está falando "não" e você escutando "sim". E o que acontece? A pessoa acaba desrespeitando a outra. Uma noite ele me convidou para tomar um suco com os amigos, os amigos furaram e eu fui. "Ah, mas eu vou ter que passar em casa para pegar um negócio lá com a minha mãe", "tá bom, beleza". Quando cheguei lá, a mãe dele não estava. "Você não quer entrar?", eu peguei e entrei. Tinha dois cachorros na casa dele, um pequeninho e um pitbull. Sabe o que ele fez? Ele segurou o pitbull pra eu entrar lá do outro lado, e quando eu entrei, ele soltou o pitbull no quintal e eu fiquei lá com ele. O que aconteceu? Eu falei "não", falei "não" e ele me estuprou. Ele me estuprou. Ele rasgou a minha roupa, rasgou minha meia calça, pegou, me arrastou para o quarto da mãe dele e me estuprou. No momento eu só pensava em uma coisa, que aquilo acabasse. Ele pegou, saiu para o banheiro, todo sujo de sangue, e falou que eu não era virgem. O que aconteceu? Ele fez isso comigo, falou para mim que eu não era e se gabou. Na época ele fazia faculdade na PUC. O cara tinha uma consciência, não tinha? Ele pegou um lenço amassado, desamassou o lenço e falou, "toma, coloca aí". Ele me levou para o caminho de casa e falou para mim assim… Na hora eu não entendi, mas ele falou, "olha, é assim, se você sentir saudade de mim, eu estou aqui, ou então…" - eu vou falar uma coisa que eu nunca falei perto de um homem - "...Você tem suas mãos". Assim, ele me desrespeitou totalmente. Mais tarde, bem mais tarde, passou um tempo, eu o vi e saí correndo, fiquei morrendo de medo. Eu voltei para casa. Quando eu voltei para casa, o meu pai me olhou somente com aqueles olhos dele e eu abaixei a cabeça. Não falei nada nem para ele, nem para ela, mas eu sabia que o meu pai sabia. Eu fui contar para a minha mãe há cinco meses. Na época, eu tinha 32 anos. "Opa, mas você era adulta. Você era consciente, foi consciente", não foi consciente. "Opa, você não era mais criança". Eu acabei aprendendo pelas coisas que não existe a pessoa perfeita, você faz a pessoa perfeita. Quando eu e meu marido nos encontramos… Ele é totalmente o oposto de mim, mas uma coisa foi certa, naquele momento em que eu mais precisei dele naquele hospital, ele com todas as suas incapacidades estava ali. Às vezes você fica pensando em status, carros, profissões e tudo mais, mas não vê que não tem nada a ver, tem a ver com o coração, a cabeça e com o respeito. E assim, eu acho que deveria falar isso também, isso que estou falando sobre o estupro, porque vejo que sofri essas duas violências em tempos diferentes. Eu conversei com a minha mãe, ela já está velhinha, e ela ficou assim, "ah, minha filha", hoje ela fala.... Na época ela iria falar outra coisa, eu tenho certeza. Já foi tão difícil olhar para o meu pai com aqueles olhos dele.
P/1 – Você nunca falou para ninguém?
R – Falei. Eu falei para outras pessoas. Não muitas pessoas, mas as poucas pessoas para quem falei e demonstrei, eu indiquei.
Às vezes a gente cobra muitas emoções e cobra muito da pessoa,
sabe? Mesmo que você já esteja casada há 30, 40, 50, você coloca muito as suas expectativas na pessoa, eu já percebi isso. Você não pode colocar suas expectativas na pessoa. Você tem que ter uma sabedoria de saber que essa pessoa é uma pessoa falha também assim como você. O ser humano realmente está em constante aprendizagem, nós estamos em constante aprendizagem. Somos feitos da matéria mesmo. Eu sempre falei para a mãe assim, "mãe, seus filhos e suas filhas, ninguém é melhor do que ninguém. Ninguém é igual a ninguém. A única coisa que nos faz iguais é a mão que nos sustenta. Essa aqui que sustenta. Às vezes você cobra muito dos seus filhos, cobra muito das suas filhas algumas coisas". Porque às vezes nós colocamos aquela esperança assim, "ai, eu achava que você iria ser uma médica". Se o seu sonho é ser uma médica, não adianta depositar a esperança de que sua filha vai ser uma médica. Seu filho não leva jeito para medicina… Então existem essas coisas, essas pessoas, mas eu também conto para que tenha as pessoas sensíveis e que elas não percam essa sensibilidade e esse toque de falar que têm essas coisas. Eu acho que não posso mudar o mundo, eu posso mudar aqui, eu posso mudar aqui. Quem é que está aqui no meu mundo? É a recuperação? O luto só vai acabar se você quiser que ele acabe. Eu vou falar para você, eu aprendi que às vezes a culpa não é sua, existe o mau caráter mesmo, existe o egoísta mesmo. Ele foi egoísta, pensou
somente nele. Não podemos ser assim, pensarmos somente em nós, temos que pensar nas pessoas. Eu nunca contei isso para muitas pessoas. Eu contei para a minha irmã mais velha, a Aureni, cheguei a contar para um namorado que eu tive e eu percebi que ele levou em conta, mas era tipo, "passou, passou".
P/1 – Você não deu queixa?
R – Eu queria ter dado queixa. Sabe o que ele falou? Que se eu desse queixa, quem iria acreditar? Que eu não era de menor e ele era advogado. O que eu poderia fazer contra um advogado? E detalhe, eu sei o nome dele completo. Tem coisa que a gente apaga da nossa mente, não tem? Não têm umas coisas que a gente "pluft"? Não sei você aí, do outro lado da câmera. Tem coisa que você quer lembrar, mas não… Mas têm coisas que você queria deletar da sua vida para sempre, mas não dá, não dá. Só que quando não dá, eu descobri que essas marcas podem se tornar medalhas e a gente pode polir cada uma. Quando o inimigo olhar, o mau caráter olhar, vai ofuscar e ele vai ficar cego (risos). Olha como a nossa mente é, entendeu? Uma coisa que eu aprendi com a música, com um louvor, é que a gente tem que falar aquilo que a gente vive. Temos que falar, temos que viver isso. Eu falei sobre o livro, porque eu gosto do livro mesmo, eu vi que gosto do livro mesmo e peguei aquela mensagem do livro para mim, da professora Vilma, lá do comecinho da minha história. Tudo é desse jeito. Se for para passar, eu vou falar para outras pessoas que não passem por esse tipo de coisa. Eu vou passar essa mensagem para essas pessoas, para que elas não depositem sua confiança nas pessoas, mas que elas depositem toda a sua confiança em Deus, porque hoje eu vejo que o homem sem Filosofia, sem Sociologia não é nada. Um parêntese aqui entre nós (risos). Se quiser cortar, corta essa. Era tão chata essa parte da Filosofia e Sociologia na escola, mas a pessoa precisa, a pessoa precisa disso. Eu falei, "eu só vou conseguir andar em 2020 se o Senhor estiver comigo. Se não estiver comigo, eu não vou conseguir ir", porque eu não vou andar em 2020 só com o meu marido, com a minha mãe, com a minha irmã, com os meus coleguinhas de escola, nada. Eu só vou para 2020 se a presença dEle e a paz dele estiverem comigo, se não, eu não consigo nem sair de casa, fico me apegando às notícias ruins da televisão.
P/1 – E Adriana, quais são os seus sonhos?
R – Ah, o meu sonho… Meu sonho hoje é o sonho de outra pessoa também, mas tá tudo bem, se eu ver essa pessoa bem, está ótimo. Mas assim, meu sonho hoje casada, que hoje eu não posso pensar sozinha, penso em comprar um terreninho… Um terreno. Ter uma casa própria, ter uma qualidade de vida… Não precisa ser perfeita, mas pelo menos se alimentando bem. Se alimentando bem, dormindo bem… As dívidas já estão todas pagas, todas as minhas e as dele (risos), não devemos nada. Eu já tenho olhado. Antes eu não tinha, porque me foi tirado isso. Naquele momento do estupro, me foi tirado tudo isso, que alguém pudesse me compreender, me amar, que eu pudesse me amar e me valorizar, porque eu senti que me foi roubado. A minha vida, minha infância, minha juventude. Eu não falei, mas eu fiquei com medo. Hoje eu falo, "você pode estar em toda e qualquer denominação, etnia, credos e tudo mais, nada disso é importante se você tiver a sua comunhão com Deus, e tiver a paz consigo. Se você tiver sua paz com Deus, você tem sua paz com você". Eu quero uma casinha… Olha, já estou pensando. Eu quero um terreno, um lugar bem light, não importa se for em São Paulo, Minas Gerais, o lugar eu não sei. Um lugar que eu possa ser reconhecida nesse sentido, respeitada como mulher e como pessoa. É isso que eu quero. Não importa a casa. Uma casa gostosa, onde eu possa receber aquele que me recebe. Desejo assim, uma casa desse jeito. Com a cozinha e sala grandes (risos).
P/1 – Tá bom. Muito bom.
R – Não penso em piscina (risos). Antigamente as pessoas pensavam, "quero uma casa com piscina, que não sei o que". Não, não quero nada disso, porque eu vejo que para gente ser feliz, não precisa de muita coisa. A gente só precisa de paz, respeito, compreensão, mas a gente só consegue tudo isso com essa caminhada. Às vezes a gente até pensa que vai conseguir isso no trabalho, mas não é no trabalho que vamos conseguir, porque têm muitas coisas que precisam ser preenchidas e essas coisas eu também converso com meus amigos e minhas amigas que eu cuido. Posso dar um exemplo? Tinha um paciente que tinha medo de fazer as necessidades na cama, porque a mulher iria ficar nervosa. Ele com câncer, fase terminal e não queria magoar a esposa por causa disso, ele tinha esse peso, mas a gente vai mostrando que não é assim não, filho. Vou falar igual a Dercy Gonçalves, "corta tudo. Se quiser cortar, corta tudo", agora é papo de amiga. Quando você casa, você sabe… Você é casada? Você sabe. Você é? Não? Então está bom. Quando você casa com uma pessoa, você não casa somente com a sogra, mas você casa com a pessoa. Respeita, e se você respeitar, essa pessoa vai te respeitar também. Se você amar, ela vai amar. Não coloque toda a sua confiança nessa pessoa, não deposite toda a sua confiança em uma pessoa, porque em alguma hora ela vai pisar na bola com você e você vai ter que ter estrutura para poder perdoar. Perdoar é amar também. Ao perdoar, eu estou me perdoando também. A gente faz esse tipo de coisa de ficar depositando a confiança na pessoa. "Ah, se não deu certo, separa", então não se casa. Quando você entra em um relacionamento é para viver com a pessoa, com um amigo. Não posso pegar e depositar tudo isso nesse amigo. Ah, é tanta coisa que a gente vai aprendendo. A gente vê que acertou, que errou, e vai assim… Vê que não existe a pessoa certa, porque temos que viver cada dia. Eu acho assim, é um passo de cada vez e cada dia eu vou lá, "obrigado por esse passinho de hoje". Eu agradeço essa oportunidade de estar… Eu agradeço a Deus e agradeço a vocês também por me proporcionarem isso.
P/1 – A gente que agradece a você, muito obrigada por ter compartilhado a sua história com a gente.Recolher