PCSH_HV753_Marco Haurelio
ENTRVISTA DE MARCO HAURELIO
ENTREVISTADO POR JONAS SAMAÚMA
GRAVADO POR _______________
SÃO PAULO, 6 DE MAIO DE 2019
PROJETO AFINADORES DE OUVIDO DENTRO DO CONTE SUA HISTÓRIA
ENTREVISTA PCSH 753
TRANSCRITO POR SELMA PAIVA
P/1 – Marco, muito bem-vindo ao dia de hoje, que é sempre o dia que estamos! Eu queria que você começasse dizendo seu nome e o local e a data de nascimento.
R – O meu nome é Marco Haurelio, eu sou filho da Bahia. Ser poeta popular é minha grande alegria, pois vou tecendo o universo, em letras que viram versos, estrofes e poesia. Nasci em um lugar chamado Ponta da Serra, sertão da Bahia, no distante ano de 74 do milênio que se foi e nasci em um lugar que tinha só três casas: tinha a casa do meu pai, a casa da minha avó e a casa de um tio que, ou já havia morrido ou se mudado. É uma casa que eu usava como QG também, pra fabular minhas ideias e minha avó Luzia, mãe do meu pai, ficava do lado e então foi minha mestra. Digamos assim: aquela pessoa que, de alguma forma, junto com meu pai, junto com minha outra avó, Alaíde, também, mas que ficava um pouco distante, né, são pessoas que me abrem as portas da percepção e da sensibilidade.
P/1 – Nossa! Antes da gente entrar, eu ia pedir, como é um projeto de contadores, pra você contar um conto popular.
R – Opa! Então vou contar um conto bem curtinho, que minha vó me contava, que é da moça tecelona:
“Havia uma moça que trabalhava em um tear, em um galpão enorme, em que outras moças também trabalhavam e, dia após dia, ela sempre aguardava que as outras saíssem e aí ela sempre pegava um pedacinho do fio tecido por cada uma daquelas mulheres e de forma desonesta, ela ia aumentando a sua renda e a quantidade de fio tecido. O tempo passou, passou, passou e ela nunca perdeu o mau costume e, como acontece com todos nós, envelheceu e morreu. Quando ela morreu, ela viu que um fio enorme descia do céu e ela sentiu que devia subir por esse fio e ela subiu, subiu, subiu, subiu, subiu e, quando ela chegou ao topo, ela viu que tinha uma luz tão intensa, como ela nunca havia visto e aí ela tentou passar adiante, só que não conseguiu. Havia um monte de fios, um trançado de fios que a impediam de seguir adiante. Os fios que ela roubou das pessoas que trabalhavam com ela e que impediam que ela tivesse, naquele momento, acesso à luz.
P/1 – Nossa! E aí, Marco, como é que foi, quais são as primeiras memórias que você lembra da sua vida?
R – Rapaz, no fundo da casa do meu pai, da casa da minha avó, que estavam juntas, na mesma parede, tem um pé de umbu que, inclusive, eu gostava de ficar em cima dele e passar o tempo e, mais adiante, tem outro pé de umbu e, mais adiante, na confluência da manga - a manga é a pastagem, né? - com a mata que margeia a serra, tinha outro. Então, esse pé de umbu que fica bem perto da casa, umbu é bastante azedo e aí eu me recordo que tinha uma porca e essa porca morreu. Na minha idade eu imaginava essa porca gigantesca. Eu sei que essa porca foi enterrada debaixo desse pé de umbu e, na minha cabeça – olha o pensamento mítico! – o umbu ficou azedo por causa da porca. E depois, quando eu perguntei à minha mãe, ela me disse que eu tinha dois anos na época. A outra recordação da qual nunca me esqueço, porque a gente andava sempre com o pé descalço, aí metia o pé no carrapicho, né, cabeça de boi, nos espinhos e me recordo de uma sandália que eu ganhei. A gente chamava ‘cor de abroba’, (risos) a cor da dita cuja. E me recordo bem dessa sandália, como eu gostava dela e a gente usava a sandália até que ficava aquele rombo, né, no calcanhar. E a outra coisa de que me recordo é de uma porta que tinha em casa e acho que essa porta estava solta, não sei o que aconteceu e eu tentei abrir e ela caiu sobre mim. Então, até hoje, esse dedo... e os pregos acabaram, alguns, cravando na minha mão. Eu tinha quatro anos. Esse dedo, até hoje, é um pouquinho, digamos assim, diferente dos demais, por conta desse acidente. São as que eu tenho mais forte, além da minha avó, me recordo desde pequenininho, a gente ia todo fim de dia até o curral pegar bosta de gado, mas bosta de gado seca, o estrume, e botar fogo, pra espantar os mosquitos, porque às seis da tarde se juntava muito mosquito, no fim da tarde, no início da noite, é quando se juntava aqueles mosquitos que o pessoal chamava de mosquito de cu de cachorro e incomodava muito. Então, ela já mandava... o curral ficava logo abaixo da casa, depois do Cruzeiro e aí eu e meus irmãos íamos, aquela roda assim, você sabia: quando estava seca, você pegava e ela vinha toda. Então, essas são recordações que eu tenho e que ainda estão muito fortes, das quais eu não me esqueço um instante.
P/1 – E a sua avó? Você começou a falar dela, da avó Luzia. O que você lembra dela? Como era sua relação com ela?
R – Minha vó Luzia e meu avô Joaquim. Pai Quinca. A gente chamava de Inha. É minha madrinha também, né? Ela e meu avô, pai da minha mãe, padinho Lô. Então, a gente fazia essa permuta. Ou seja: meus avós são meus padrinhos. Mas não o avô casado com a avó. O cônjuge. (risos) E meu irmão também. O pai Quinca foi padrinho do meu irmão mais velho e a Alaíde, mãe da minha mãe, foi madrinha. Então, tinha esse acordo, essa combinação. Aí eu me recordo de pai Quinca muito pouca coisa. Eu sei que ele, um dia, estava acendendo um cigarro de palha, que é o que ele fumava e aí caiu um tição no pé dele. E aí conta-se que, por causa desse tição, ele acabou tendo que amputar o dedo. Roxeou o pé, ele teve que amputar o dedo e depois ele tinha que amputar o pé. E ele não quis amputar. Ele disse que não ia entrar no céu faltando o pé. Eu sei que eu me recordo que ele gemia muito e também me recordo de uma vez ter lido o cordel do João Soldado e ele ria. Tinha um verso que falava:
“João Soldado está me batendo com cipó de catuaba, batendo no capeta, no diabo”.
E ele ria muito. Tinha uma risada muito bonita, muito impactante e também me recordo ele chegando no cavalo. A roça ficava, assim, de um lado, do outro, do outro, tudo que ele havia herdado, a parte que lhe coube, mas poucas recordações, na verdade, porque ele morreu em 1980. 80, 81, uma coisa assim. Minha vó ainda ficou um ano e meio, dois anos, mas ela ficou muito impactada. Então, a gente não tinha dinheiro pra comprar carrinho, essas coisas, de brinquedo e aí me recordo que as caixas de remédio, os vidros de remédio dela que a gente usava e tinha muito, porque ela tomava muito remédio. A gente usava como se fosse brinquedo. E ela também tinha na casa dela um lugar em que ela guardava, um armário que ela guardava os folhetos de cordel e aí eu me recordo que, quando eu comecei a juntar A com B com C, enfim e, por meio do cordel, acabei me desenvolvendo, então antes eu a ouvia lendo e ela tinha também alguns cordéis na cabeça. Aí eu pegava, gostava de pegar, pegava dois, pegava três e subia nesse pé de umbu, o da porca e ficava ali. João Acaba Mundo e a Serpente Negra: Joãozinho, com 12 anos, é forte rapagão, na coragem era _______, na força era Sansão, o morro ____________ deles, (cangotava?) um leão. Eu viajava e, com sete anos, eu já sabia de cor o João Soldado, já sabia o Juvenal e o Dragão. Ele tinha um cachorro chamado Provedor. Olha só! Provedor. É o nome do cachorro do Juvenal, do cordel do Leandro Gomes de Barros:
“Cada um desses cachorros é um grande defensor, se acaba morre lutando, em defesa do senhor, são chamados Rompe Ferro, Ventania e Provedor”.
E aí me recordo que, quando ela morreu, no ano em que ela morreu, final de 82, acho que início do ano seguinte, ela tinha um cachorro chamado Azevique. O Provedor eu lembro que morreu, enterrou no fundo da igreja, feita por meu bisavô, Major Ramiro, que é o genro dela, de quem ela também contava um monte, um monte de história, né?
P/1 – Ela era uma contadora de história?
R – Nata, nata. Ela conseguia contar, passava, começava sete da noite, quando ia dormir mais tarde, aí emendava uma na outra e não conseguia terminar. Mas não só isso, ela cantava, tinha a voz muito bonita. Eu tinha que ter herdado a voz dela. E os romances, as rezas. Ainda me recordo dela rezando:
"Quem quiser ouvir e aprender o sonho da Santíssima Mãe de Deus sobre o Monte das Oliveiras, onde Jesus Cristo deu tão grande e alto suspiro. Deus chamando o anjo São Gabriel: “Ô, anjo São Gabriel, vai ver se minha mãe dorme ou se vigia”. “Filho meu, bento filho, não durmo, nem vigio, só assim sonhei um sonho que gente humana não sonharia. Vi cordas ________ amarrando, fel e vinagre que bebias, eu vi o sol gemer e a lua suspirar. Na porta da alma santa nasceu nosso bom Jesus. A alma santa perguntou: “Bom Jesus” “O que quer agora?” “Quero que entre comigo dentro da glória. Não quero em cama de ouro, nem cama de cortina, quero em uma manjedoura onde o boi bento lá comia com seu bafo. Nossa Senhora com dor, São José foi buscar luz, São José não é chegado, nasceu nosso Bom Jesus. Quem rezar essa ceia da paixão, seu pai e sua mãe tem cem anos de perdão, nessa vida vai ser rei, na outra é rei coroado, amém”.
E aí tinha outras:
“Santo Antônio pequenino, quando Deus era menino, sete sinos se tocava, sete livros se rezava, o senhor bom Jesus da Lapa seja meu padrinho, fez uma cruz na minha testa, me livre do demônio, de noite e de dia, no pino do meio dia, amém”.
E os benditos. Eu chamo bendito o poema litúrgico narrativo de São Sebastião, Santa Luzia, que a santa tinha uns quadros na casa dela de Santa Luzia, que é um dos que mais se destacavam, nos olhos, nas órbitas e os olhos no prato e aquela palma, né, que é da santidade. Aí tinha também um quadro de Getúlio Vargas, que eu me recordo bem e os folhetos, que me encantavam realmente. Eu pegava, lia, relia, recontava e aí comecei a escrever por causa disso também. Pegava os caderninhos que tinha lá, que meu pai havia deixado e começava a escrever. Achei uma revista antiga do Tio Patinhas também. Foi o contato que eu tive com gibi. Ficava na casa dela e acho que ela nunca tinha visto aquilo.
P/1 – Mas você estava na Bahia, tinha algum contato de ver repentista, de ver cordelista, assim?
R – Não. Repentista, não. Repentista, naquela região... o que tinha era um personagem, um senhor, chamado Chico Criatura. Tentar descrever, a grosso modo: era negro, alto, forte, devia ter uns 150 quilos, vendia requeijão, aquele que o pessoal chama queijo manteiga, né? Que se faz com a coalhada, depois se passa na manteiga, até ganha uma certa consistência, como tijolo. Tijolo é o doce feito no tacho, até que dá o corte. Aí ele cortava um pedaço do requeijão e um pedaço do tijolo, que eles chamavam casadinho. Ele vendia em Bom Jesus da Lapa e também na cidade que ficava mais perto da gente, né, em (Capoé?). E aí meu pai saía com ele no carro, um caminhão, aí, na carroça do caminhão meu pai ia e algumas vezes eu ia porque ficava um pouco longe, estrada muito ruim, ia fazer exame de vista. Foi quando eu fiz exame de vista acho que a primeira vez. E aí eu os via brincando de improvisar com uns cocos. O Chico, inclusive, quando da novela Velho Chico, que eu fui consultor, teve um personagem com esse nome, foi sugestão minha, do Gésio Amadeu. É que o Gésio é pequenininho, o Chico de verdade, enorme. E aí o Chico cantava uns cocos assim:
“Eu vou lhe contar um causo
Pode ser que ocê não queira
Rasto de muié bonita
Muito pouco, bota reia
Rasto de muié bonita
Muito pouco, bota reia
Da Bahia mandei vir
Uns vinte metros de chita
Rasto de muié bonita
Muito pouco, bota reia
Mas se vir um rasto fundo
Deve ser de um vagabundo
Pode olhar que a coisa é feia”
Eu sabia muito. Meu pai ainda tem de cor algumas coisas e aí eles ficavam brincando. Tinha um negócio lá: “Cachorro que bebe ovo”, um coco também. Aí pegava um refrãozinho e aí ia preenchendo. Aí tinha um tio meu, irmão do meu avô, minha avó já havia morrido, meu avô também e ele fez um Judas pra queimar no sábado de Aleluia e eu fiz o ABC do Judas todo em versos. Acho que 84. Eu tinha nove anos. Aí a gente, na calçada da casa que tinha sido da minha avó, que servia de base e o povo todo ali, que tem a missa na igreja que meu bisavô, o Major, havia feito e os nove dias de novena com o pessoal mascarado, que o pessoal chama de careta, com uns facões de pau batendo na meninada, batendo, mesmo. O negócio não é fácil, não. E aí eu me vingava com os versos, né, do testamento do Judas. Então, as recordações são assim, mas o repentista, enquanto improvisador, mesmo, naquela região não tem. Tinham pessoas que faziam cordéis que, às vezes, faziam no caderninho, tudo, mas o cordelista, mesmo, famoso, que eu conheci, foi quando eu já estava no Banco do Brasil, como menor auxiliar, que era um cargo que tinha uma função que tinha, que o filho dele foi caixa nesse Banco, em Serra do Ramalho. O cordelista Minelvino Francisco Silva, que vivia em Itabuna, mas ia sempre à Bom Jesus da Lapa, que é o autor de João Acaba Mundo e a Serpente Negra, um dos cordéis que eu mais gostava. Então, foi ele que eu conheci, assim, quando adolescente.
P/1 – E como foi encontrar com ele?
R – Ele não se apresentou como tal, né? O filho dele chama Antônio Francisco Silva. Chamava Mumu, já falecido. E o Mumu também, de vez em quando, brincava e, no Banco, o pessoal pedia pra fazer uns cordéis, brincando. Então tinha uma coisa assim meio apreensiva no Banco e tinha um pessoal do Rio Grande do Sul, um casal, que não gostava que o pessoal se levantasse das mesas e alguém foi e pediu pra fazer um cordel, eu fiz, eu botava uma capinha e botava onde se punha os avisos. Eu sei que isso deu um rebuliço danado. Então, quando ele chegou, assim, eu fiquei meio abobalhado, meio encabulado. Eu me recordo, assim, que alguém falou, apresentou: “Esse aqui é meu pai” e aí alguém falou: “É, o pai pode ser coisa boa, o filho não é”. Eu lembro que ele disse assim: “De mim não sai coisa que não presta, não”. (risos) Aí, depois, eu me recordo que tem uma sextilha do Minelvino que é assim... ele nasceu em Olhos D’Àgua de Belém, que acho que é município de Mundo Novo, na Bahia. Diz assim:
“Eu e Jesus de Belém” – ele nasceu no final de 90, início de dezembro, não me recordo – “nascemos quase no dia. Ele em Belém da Judéia, eu em Belém da Bahia; ele pregava o Evangelho e eu prego a poesia”.
P/1 – Nossa!
R – Então, é um poeta soberbo.
P/1 – Voltando a sua pequena infância, o que você lembra das tradições da cultura popular? Quais que chegaram até você?
R – Até mim? Ah, tem muitas. Eu já falei da queima de Judas, né? A Via Sacra. O meu bisavô, só porque eu falei dele, tinha uma igreja em frente da casa, que foi meu bisavô que fez, na qual estava enterrado. Ele morreu dez anos antes de eu nascer, então minha vó que contava os causos de quando ele brigou com o diabo, na forma de um gato preto. Então, isso me acompanhava porque...
P/1 – Qual que é esse causo?
E – É assim: estava na outra casa, porque essa casa em que eu nasci ficava no município de Riacho. Bonito, que hoje é (Capoé?), pertencia a Caitité e o Doutor Franco Fernandes não tinha um cliente, que é da nossa família também. É o mesmo sobrenome. Então, ele ficava doido e processou meu bisavô Major, por causa disso. Por volta de 1925. Levou um tempo até ele ser absolvido. Mas isso encheu tanto a paciência, que ele acabou se mudando pra Ponta da Serra, que pertencia a Riacho e fez essas casas lá como se fosse uma espécie de castelo. Fez a igreja, fez a casa, fez o cemitério, que servia toda a comunidade, que está até hoje, né? Eu acho absurdo que não se tenha na cidade nenhuma rua que o homenageie. E se tornou uma personagem, uma lenda na cabeça das pessoas. Mas esse fato específico, acho que foi início da década de 20, já tinha ido dormir o pessoal, ia dormir cedo, ia dormir com as galinhas e acordar com o galo e aí eu vi a batida na porta e a voz que ele reconheceu é de um certo Marcolino, tanto que ele disse: “Já vou, Marcolino”. Quando ele abre, pega a tranca, que abre, tinha um gato preto dos olhos de fogo prostrado na frente dele. Aí ele começa a bater com a tranca e o bicho tentando entrar: “Deixa eu entrar, deixa eu entrar, deixa eu entrar”. E ele batendo, batendo e rezando, ele não parava de rezar. Ele sabia que tinha que rezar. Quando acertava em uma reza boa, o bicho diminuía e depois voltava ao tamanho normal. Ou até maior. E o bicho cuspindo fogo: “Deixa eu entrar”. E aí, lá pelas tantas, ele acertou justamente a reza mais forte que tem, que o povo chama de Crê em Deus Pai, que é o Credo, né?
“Crê em Deus Pai, todo poderoso, criador do céu e da Terra e em Jesus Cristo, seu único filho, que nasceu da Virgem Maria, padeceu...”
Pá! E o bicho, poooooooou, explodiu, inchou, alastrou aquela catinga de enxofre. E depois eu fiz um cordel, muito tempo depois, com essa história. E aí contam-se muitas coisas a respeito dele: que foi o rezador mais famoso na barriga da mãe, ele já deu o vagido que o pessoal dizia antigamente e chorou na barriga da mãe e gente que chegava amarrada - naquela época chamava-se doido, hoje é um termo não muito adequado - nos cavalos, não dizendo coisa com coisa e voltavam pra casa totalmente sãos, sorrindo, enfim. Também quando ele não quisesse que você voltasse pra casa, você não conseguia nem subir no cavalo. O cavalo não deixava. Tinha dessas coisas o Major.
P/1 – Seu bisavô?
R – Meu bisavô, o Major.
P/1 – E ele é rezador, também?
R – Rezador. O rezador mais famoso, assim, de toda a região. Tanto que as pessoas ficavam... vinha gente até de fora do país se consultar com ele. Um rapaz me falou que já chegou de ver acampamento, assim, de mais de 15 dias em frente à casa, de tanto que ele foi conhecido, né? E até hoje, aí falando das tradições, eu lembro da Via Sacra, que foi ele que colocou a imagem do Bom Jesus Senhor dos Passos, bendito, que o pessoal, saía rezando as estações da Via Sacra. Lembro do bendito Bom Jesus Senhor dos Passos, que um verso falava assim:
“A lançada que vos deu São Longuinho, com sua mão, atingiu Jesus no peito, laiá, no coração”.
E aí tinha, lembro de Tidão, irmão da minha avó, cantando o ofício de Nossa Senhora da Conceição que, na verdade, a igreja é da Nossa Senhora da Conceição, apesar do Senhor dos Passos:
“Deus vos salve, Virgem da Trindade, tempo, alegria dos anjos, ______”.
E aí tinha:
“Deus vos salve, cidade, de torres guarnecida, de Davi com armas, bem fortalecida”.
Isso é espaçado:
“Deus vos salve trono do grão Salomão, arca do concerto _____de Gedeão”.
E aí tinha a parte _____:
“Nossa Senhora, rainha...”.
Aí eu já não sei todo. Eu sei que Tidão, que sabia o ofício, tinha uma voz bem... ele fala: “Ô, Marco, chegou o Marco”. Ele tinha a voz bem impostada. Tinha o Massu, irmão do meu avô, filho do meu bisavô, também rezador famosíssimo, né? Ele que continuou. Eu me recordo dele rezando meu avô, batendo raminho, ele também rezando no alto da serra, onde meu bisavô pôs a cruz, que até hoje, toda quinta santa ainda tem a procissão, assim. Então, essas são as coisas mais constantes. Recordo-me da minha avó cantando ABC da Fazenda Formosa. ABC é composição poética que começa cada letra do alfabeto. Assim:
“A Fazenda da Formosa é fazenda garantida
Deu a carreira no boi e foi parar na bebida
Morrendo de fome e frio, dando a viagem perdida”.
O ABC da onça da mão torta, que o A é o H. Na época o pessoal era muito mais o fonema:
“Havia um só valente nesse tempo de pulsão, comedeira de cachorro comia por devoção” – aí tinha a letra C – “Segura compadre Chico, que a onça é feroz, acabou com os cachorros, pode acabar com vós, se corrente velha morrer, meu Deus, o que vai ser de nós?”
E, no final, a onça começava a contar também a versão dela. Eu achava isso muito bonito. E aí tinha as superstições, as crendices. Me recordo quando a galinha começava a cantar, igual ao galo, o pessoal ficava doido, tinha que matar a galinha, que estava chamando morte pra casa. Aí a pobrezinha ia pra panela. Me recordo minha avó também, ela perguntava qual o melhor relógio e ela dizia: “O melhor relógio que tem no mundo é o cu do galo”. (risos) Que o cu do galo não falhava. Eu nunca soube porquê. Até fiz um artigo uma vez. Aí ela dizia também que tinha uns bichos fantásticos, mas ela falava que o bicho que tinha mais fantástico do mundo era a baleia, que a baleia tinha a carne de tudo quanto é animal, que quem tivesse a sorte – olha só! – de matar uma baleia, nunca mais passava fome. Porque a carne dela ia alimentar por toda a eternidade. Aí depois eu fui ver: tem uma lenda judaica do Leviatã, que é o peixe que vai ser servido no juízo final.
P/1 – Nossa!
R – Aí eu vi que tinha alguma conexão, por conta também das nossas raízes, né? A gente vai juntando muito tempo depois. Aí ela também dizia que tinha um bicho muito esquisito. Olha o nome do bicho! Elefante. E que esse bicho dormia encostado em um pé de pau e você não conseguia matar com bala, que o couro do bicho era muito forte e a bala não... mas aí bastava você cortar o pé de pau, pronto, que ele caía e não se levantava mais. Então, tinha uma coisa assim e, ao mesmo tempo, eu me recordo que é uma pessoa que nunca foi à escola, mas ela também sabia ler, tinha um básico, assim, em termos de conhecimento, mas amalgamado com tudo isso. Então, eu achava fantástico que ela, ao mesmo tempo, vivia séculos no passado, mas também imersa no nosso tempo. E lamentavelmente ela morreu quando eu tinha por volta de oito anos. Nem sei se eu tinha oito anos. Mas as recordações são muito fortes. E a minha outra avó, a Alaíde, é prima dela. Os pais são irmãos, né? Um chamava Manoel, o outro chamava José, o pai da vó Alaíde. Então, são da mesma família, mas bem mais jovens.
P1 – Eu só queria ____ o bisavô mais famoso, se você lembra mais algumas histórias dessas de __________ dele. Você lembra?
R – Sim, muitas. Lembro, sim. O povo me conta. João Guedes, irmão de Mané Guedes, que era casado com minha tia Isaurite, irmã do meu pai – são primos, né? Porque João Guedes e Mané Guedes eram filhos de Gustavo, irmão de Ladislau, pai de Major. Então, a mãe do Major chamava Angélica. O pai chamava Ladislau. Tem até uma foto, barbinha branquinha o pai dele. Fazia lembrar Dom Pedro II. E o Major bigodão, né? Na foto aquele bigodão bem Pancho Villa. Então, esse quadro, assim, ficou muito... meu avô, minha avó jovens ainda, né, na mesma fotografia. E aí João Guedes conta que estava com o irmão Manoel Guedes, jogando com o Major - que é tio dele, né, foi tio dele – carteado e lá pelas tantas tomando uma cachacinha. Aí Manoel falou: “Tio, tenho que ir”. Ele falou: “Não, Manoel, você não vai, não” “Não, tio, tenho que ir” “Não, Manoel, você não vai, não. Está cedo” “Não, tio”. Pediu a bênção e foi. Aí João se recorda - e João é o mais novo dos irmãos – que Manoel foi tentar montar na égua e não conseguia, porque ouvia só relinchando ihhhhhhhhhhhi e aquela coisa, aquela latomia e não conseguia sequer chegar perto. Daqui a pouco tudo se acalmou, um silêncio total e ele só escutando e aí o Major fez a seguinte fala, comentou: “É, eu me esqueci que eu tinha ensinado a ele como fazer pra desmanchar o enguiço. É uma reza que você faz”. Ele não diz qual a reza, mas aí o João se recorda que fazia uma reza, pegava um punhado de terra e jogava por cima do ombro esquerdo, de costas, né, para o animal. Aí, imediatamente o animal se acalmava e aí Manoel fez isso, montou e se foi. Aí eu me recordo desse tio Manoel Guedes, ainda guardou. O Major tinha muitos livros. Ele tinha muitas ervas, diz que tinha um monte de prateleiras com todo tipo de ervas, mas ele também tinha uns livros. E tinha um livro chamado... até eu fui pesquisar na internet, pra ver. Segundo ele chamava A Bruxa do Diabo, o nome do livro. Aí tinha desde o ofício de Nossa Senhora da Conceição, até as rezas mais terríveis. Tem outra também que uma mulher fugiu com um homem, deixando o esposo, lógico. Se ela fugiu... (risos) Mas o sujeito abandonado foi bater na casa de quem? Do Major. Falou: “Major, minha mulher me deixou, Major, só o senhor pode me ajudar” “Rapaz, vai buscar outra mulher pra você, que gosta...” “Não, Major, não sei o que, me ajuda”. E aí ele foi: “Então me mostra o rastro deles”. Aí mostrou. Ele pegou e fez um círculo em volta e falou: “Pode ir pra casa descansar”. E ele foi dormir também. Quando foi já de madrugada, ele ouviu batidas na porta. Aí atendeu, o casal fujão: “Major, me ajuda. Eu achei que já estava chegando em Macaúba, mas quando eu me dava conta, estava passando no mesmo pé de pau. Passei não sei quantas vezes. Não. Aí tem arte do Major Ramiro”. Ele olhou pra mulher e falou: “Olha, afinal o que você quer? Você quer ir com ele ou quer voltar para o seu esposo?” “Com ele, né? Foi por causa disso eu a gente fugiu”. Falou: “Então, tá bom. Pode ir que está...”. Aí o homem foi e, no outro dia, o sujeito chegou: “Mas, Major, confiei tanto no senhor, o senhor disse que ela ia voltar”. Falou: “Rapaz, um conselho: case de novo, busque uma mulher que goste de você, que essa aí você já perdeu. Deixa ela viver a vida dela”. E aí tem muitas outras, né? Eu até penso em reunir. Tem uma que eu acho muito bonita, de quando ainda era rapazote. Meu pai que me contou. Ele estava passando assim numa lagoa, do lado e um sujeito, um coronel, um bicho daqueles lá passou e deu uma lapada de chicote, deu uma chicotada. Teve uma discussão e, como ele estava a pé e o outro a cavalo, deu uma chicotada nele. Ele voltou em casa e disse: “Eu vou” – com o pai dele – “matar aquele sujeito”. E o velhinho era muito pacífico, só de reza. A mãe dele só vivia xingando, o pai só vivia rezando. Ele falou: “Não, meu filho, não faça um negócio desses, não compensa”. Eu sei que pouco tempo depois o homem acabou morrendo e não é que ele passa pelo mesmo local, pelo mesmo ermo e aí vê uma chama, um fogo começar a brotar do chão e aí vai, vai, vai, vai e toma proporção e ele vê dentro do fogo o mesmo sujeito, assim. A mesma imagem, a mesma... só que aquela coisa assombrosa. Aí o homem fala: “Major, Major, já estou na porta do inferno, Major, por sua causa. Se você não me perdoar, minha alma está perdida”. Ele disse: “Olha, quem te perdoa é Deus, mas por mim eu já esqueci faz tempo. Quando você morreu, eu já esqueci. Então, pode ir em paz”. E aí a coisa diminuiu, diminuiu, até sumir. Então, a gente tinha a cabeça povoada dessas coisas também, dessas narrativas. Eu nunca publiquei nada a respeito. E eu tenho vontade, sim. Ah, sim, e na casa em que eu nasci, só pra te explicar, meu pai foi em busca... eu fui o único que nasci nessa casa. Um irmão meu nasceu em Riacho, os outros em Bonito.
P/1 - Era casa de quê?
R – De adobe, né? A gente chamava adoba, adobão. Ainda está de pé. A da minha avó já caiu, a do tio _______ já caiu, ela está de pé, aguardando também quando ela vai cair, porque está totalmente abandonada. Meu pai já vendeu faz tempo. Aí, o que acontece? Meu pai foi em busca da parteira e minha mãe... eu nasci sozinho, né? Com a minha mãe e Deus e mais ninguém. Então, quando ela chegou, eu já tinha nascido. Só pra cortar o cordão, né, que foi enterrado na igreja. O povo tinha mania de enterrar em frente. E meu pai costumava sair à noite. Então estavam os forrós e teve uma noite... eu sou o segundo filho, tinha apenas o meu irmão mais velho, (Eda?) e eu e minha mãe disse que a candeia já estava acabando o combustível, né? O fifó – o fio de algodão que embebe no gás. O gás é o querosene – estava já acabando e ela no quarto com esses dois meninos. Quando a luz finalmente apagou ela diz que olhou e viu: o quarto foi tomado por uma luz roxeada e viu um monte de sombra e um samba batendo, aquele batuque, aquela coisa e ela começou a ficar agoniada e começou a rezar. De vez em quando olhava e via se a gente estava bem. Então, tem dessas coisas também. E à noite, quando a gente abriu a janela, noite que não tinha lua, não tinha nada e olhava assim e só via o breu, não via mais nada. Aquele breu, aquela coisa. E aí começava a ficar povoado. Não tinha nada, mas você via tudo. Você começava a ver umas cabeças voando, uns negócios esquisitos. Quem nasceu na roça, assim, conhece bem o que é isso. Olhava para o mato e tem uma coisa que eu me recordo, ainda bem menino também: minha mãe... começou a vir uma chuva, como a serra ficava perto, assim, era um clima muito bom o clima desse lugar, da Ponta da Serra, mas de vez em quando vinha uns ventos que dava a impressão que ia derrubar tudo, que tem um pé de coco na parte da frente, mesmo, entre a casa e a igreja, você o via dançando ao sabor do vento. Só que o vento vinha principalmente da serra, aquele vento que cantava, que conversava, dava ideia que estava (aguando?). Aí eu me recordo que uma vez minha mãe pegou um punhado... abriu a janela e, quando abriu, veio aquela lufada de água e tudo e jogou a farinha, né e pouco tempo depois o vento se acalmou. Então, são retalhos das muitas recordações que a gente tem.
P/1 – Nossa! Gratidão. Muito forte. E o que você gostava de brincar?
R – A gente brincava de muita coisa. Tinha uma que a gente chamava de boca de forno. Que aí uma pessoa ficava sentada em um menino e os outros meninos e meninas iam cumprir. Você falava assim: “Boca de forno”. Todo mundo: “Forno” “Se eu mandar” “Tem que ir” “Se não for?” “Apanha” “Quantos bolos?” Aí escolhia: “Dois” ou “Quatro. Dois de pai e dois de mãe” “O rei senhor mandou você ir, não sei o que, pegar não sei o que e fazer não sei o que”. Aí, quem chegava por último, tomava bolo, mas era só... Boca de Forno, tinha uma chamada Mãe da Rua, que fazia um risco, podia ser em uma calçada. Um ficava em uma calçada baixa, ficava em uma parte em cima e a outra embaixo. Aí você ficava puxando. Aí, quem conseguia puxar todos, no final, ganhava. Aí tinha guarda e ladrão, que aqui é pique e esconde, né? Tinha uma chamada Bandeinha: “Bandeinha guerreou, o pinico da véia estourou”. Você pegava um pedacinho de pau, colocava aqui em um montico de terra, ali também e o objetivo é roubar aquilo ali, sem ser detido. Bastou tocar, você... e aí tinha também de jogar versos, tinha a do anel, o Passa Anel, Caiu no Poço, tinha um monte.
P/1 – Como é de jogar versos?
R – É assim: você faz a roda. Meninas, femininas, faziam a roda e aí, quem fosse para o centro da roda, tinha que jogar um verso. Se ele não conseguisse jogar, saía. Tinha: “Fubá subiu, _____pegar, fubá caiu” ou então: “Chora, bananeira, bananeira, chora, chora, bananeira, que eu já vou me embora”. Aí você fazia o refrão, né? “Sai, letra Gi – gi é o jota, né – sai na janela, sua mãe tá boa, dá lembrança à ela”. Aí a pessoa ia pro meio, tinha que falar: “Eu subi no pé de pinha, comi pinha sem querer, namorei com um pé de pinha, pensando que era você”. Minha avó sabia umas bonitas.
“Amarrei o meu cavalo, amarrei às nove horas, esperando meu benzinho, meu benzinho até agora. Soltei meu cavalo n’água, ele n’água se perdeu, nesse mundo não existe um amor igual ao meu”.
Só que isso cantado. Então, tinha essas coisas também. A gente tinha mais poesia, né, na nossa infância.
P/1 – Quais eram as suas brincadeiras favoritas?
R – Eu gostava de brincar, mas eu gostava muito de ficar só também, de ficar comigo mesmo, então não tinha uma que eu pudesse dizer: “Dessa que eu mais gosto”.
P/1 – Você ficava só, onde?
R – Porque teve na Ponta da Serra e teve na cidade também, quando meu pai se mudou, uma região assim, tinha um vizinho chamado Antônio Delegado. Apesar do nome ele nunca... aí tinha as meninas: a Zezé, a Rosinha, a Nena; os meninos: Léo, que foi meu professor de Desenho; Danda, que hoje é casado com minha tia Dona; e Marquinhos, irmão deles. Então, foi um pessoal que esteve muito perto da gente também, na cidade. Mas é uma cidade muito pequena. Então, lá a gente acabava brincando mais. Na roça não tinha tanto porquê porque quando meus primos – na verdade, filhos da minha prima Lurdes, filha de tia Isaurite e do Mané Guedes, aquele de quem eu falei – Cléber e Ebinho, a gente brincava, mas na roça não tinha muito menino que se reunia sempre. Aí, de vez em quando, a gente ia nadar no tanque – tanque é uma lagoa – da estrada, que dava água ao gado, mas de vez em quando ia nadar, quando saía estava aquele sanguessuga, tinha que também tomar cuidado. Mesmo assim, sabendo que tinha o diabo do sanguessuga, a gente entrava e tomava banho. Menino não tinha juízo, né? Mas também trabalhava. A gente ia pegar água, ia ajudar nas coisas de casa, mas em um ritmo assim bem leve.
P/1 – E quando foi que você começou a ir pra escola?
R – Na cidade. Foi, acho que eu tinha de cinco pra seis anos. Chamava Hugo Baltazar o nome da escola. Hugo Baltazar da Silveira, é o nome de um professor. Já na cidade. Então, eu me recordo que eu fui. Teve um tempo que eu fugi pra roça, pra ficar de novo junto com minha avó. Peguei a fronha do travesseiro, enchi de roupa e voltei, fiquei mais de um mês longe da escola. Então, acho que eu me assustei. Não estava me sentindo muito bem e aí fui ler os cordéis, tinha uns rudimentos de escrita, foi quando eu realmente peguei os cordéis e comecei a juntar lé com cré e desenvolvi-me como leitor nessa época. Meu avô já havia morrido, Pai Quinca e minha avó vivia com uma moça chamada Rosa, que hoje vive com minha tia, a gente chamava de Tia Rosa, que a ajudava a pegar água, limpar a casa, essas coisas, né? Ela já estava bem idosa. Então, a escola foi isso. Aí retornei, quase ninguém se recordava de mim na escola, um negócio meio esquisito porque eu me lembrava o rosto daquela turma toda e quando eu comecei a estudar, tinha o primeiro ano adiantado e tinha o atrasado também. Então, tinha dois. Depois você ia para o segundo. Aí, no quarto ano, meu pai já estava novamente na roça, né? Então a gente ia pra estrada pegar carro, ia a pé, ia de bicicleta junto com meu irmão e eu me recordo que o salão onde meu pai vendia bebida, na semana também se tornava uma escola. Só que tinha gente desse tamanho e minha tia Dona que dava aula. Ela vinha e voltava quase todo dia e eu tinha que ajudá-la a passar pelo cemitério, que ela tinha medo. Eu pequeno é que a ajudava a passar pela estrada, que só tinha um cemitério, a mata de um lado, de outro, então não tinha mais nada e uma estradinha bem curta, aquele cheiro forte de alho do mato e as cercas, assim cheias, também, de maracujá do mato. Era uma coisa muito bonita.
P/1 – Eu ia te perguntar qual foi o seu primeiro amor de vida. O que você lembra disso?
R – Não. É que a gente confunde muito essas coisas, né? O que a gente pensa ser amor, é mais uma coisa muito idealizada. Tinha uma menina lá na roça... é uma coisa meio doida, né? Essa Rosa tinha umas verrugas e ia na casa de um homem chamado Gordo, pra benzer as verrugas e tinha uma filha. No fim não tinha nada a ver com isso. A gente não tinha a mínima noção. Os meninos ficavam: “Eu namoro com fulana de tal, a filha de Didão”. O outro, eu não sei quem: “Não quero, não, esse é muito feio”, as meninas diziam, mas era uma coisa muito ingênua, não tinha muito a ver. Então, era muito mais o espírito da época, mesmo.
P/1 – E da transição, assim, da roça pra cidade, que você foi de pé. Como era o nome?
R – Ponta da Serra.
P/1 – De Ponta da Serra pra onde você foi?
R - A gente foi, em 1979, 80, pra Igaporã, que ficava a uma légua. Uma légua são seis quilômetros e pouco. Aí fiquei. Meu pai comprou uma casa, depois ele voltou pra roça novamente, em 84, aí voltou pra cidade em 85, quando eu fui cursar o quinto ano, no Colégio Cenecista. Foi derrubado, não tem mais nada. Aí, em 86, no início de 86, meu pai vivia de vender doce, cachaça, bebida. Saía numa C10, ia em Bom Jesus da Lapa, atravessou o Rio São Francisco, foi na outra margem do rio, Serra do Ramalho, as agrovilas. Ele começou a ir nesse lugar e gostou. Na época nem município, ainda pertencia a Bom Jesus da Lapa. Ele falou: “Vamos mudar para as agrovilas”. Minha mãe: “Não, vai acabar nas tábuas de Moisés. Não vamos, não sei o que” e acabou indo. Aí em 86, eu me recordo, ele subiu nessa C10 e colocou todos os móveis, o sofá ficou lá em cima e a gente foi sentado em cima desse sofá. Eu e meus irmãos, né? A gente acabou se mudando, em 86, pra Serra do Ramalho, aí sim a gente foi tomar contato com outra terra, tinha gente que veio de outros estados do nordeste do país e a gente também começou a pulsar em outra dinâmica, porque do pé de serra, né, aí a gente foi entender a cultura do povo da beira do rio, da margem do rio São Francisco. Não ficava bem perto do rio, assim. Ficava a uma légua, mais ou menos, a sede, mas aí, quase todo fim de semana, a gente ia a pé pra tomar banho no rio. Juntava uma turma, enfim e foi em Serra do Ramalho, numa casa que ele alugou, tinha três flamboyants na frente da casa, que a gente usava também, a gente brincava em cima deles, com as meninas. Brincava de pegar em cima dele. Igual macaco. Ficava pulando de um galho pro outro e não caía. Você vê como é que são as coisas. E foi lá que eu fiz esse cordel aqui: “Debaixo do flamboyant...” eu comecei a escrever, tinha assistido um filme chamado Fúria de Titãs, né, Clash of ________. Assisti no Super Cine, que tinha o Lawrence Oliver como Zeus. O meu pai falava de Teseu. Meu pai falava algumas coisas da mitologia que eu havia lido e aí eu comecei a ficar fascinado. E tinha uma enciclopédia chamada (Dip?) e tinha uns verbetes sobre mitologia e quando eu fui pra Serra do Ramalho, eu já tinha, como eu havia mostrado antes à você, feito alguns cordéis assim, de menino, seis, sete, oito anos. Esse aqui eu fiz ainda na Ponta da Serra. Tem até uma cena que é meio mitológica: um gigante com um monte de olhos. Pra economizar, lógico, eu dividia a folha em dois e esses caderninhos aqui, normalmente, eu comprava com... a gente subia a serra pra pegar osso de gado pra vender. Tinha uma mulher que vendia osso de gado porque o pessoal usava pra fabricar, principalmente, cabo de canivete, de faca, essas coisas. E, quando eu fui pra Serra do Ramalho, eu fiz esse aqui, falei: “Esse aqui eu vou publicar” e eu sentia que esse aqui realmente valia a pena. O desenho também é meu. Essa capa aqui é do Klévisson Viana. A Montanha Negra. Aí eu já estava com aquelas coisas na cabeça, aí comecei realmente a me sentir em casa. E Serra do Ramalho foi muito bom porque foi o local em que eu passei mais tempo da minha vida. Meus pais até hoje vivem lá, né? Meus irmãos estão todos lá também. Tenho muitos amigos, muita gente, fiz minha militância por lá também. A gente enfrentou muitas coisas boas, muitas coisas ruins também.
P/1 – Tipo o quê?
R – Os políticos, né? Eu criei um jornal chamado Vigilantes, comunitário, quando eu tinha 19 anos, jornal mimeografado, então, quando já havia me formado e esse jornal a gente rodava no mimeógrafo, não sei se você conhece: coloca-se numa esponja o álcool, a folha, o estêncil e a folha vai passando, vai passando. E os políticos não pagavam em dia os servidores, enfim, deixavam a cidade abandonada, saúde, educação. Aí teve um dia, eu me recordo, até uma coisa muito engraçada: na escola em que a gente rodava o álcool tinha acabado e tinha um boteco que ficava na esquina e teve um sujeito lá que ajudava a gente: “Não, vou arrumar álcool, pode deixar”. Aí ele foi e voltou com um copo de cachaça e despejou aquela cachaça lá na esponja e a gente rodou o jornal daquele dia, que não dava mais de cem, porque era em torno de quatro folhas, só frente. Não podia ser frente e verso, porque às vezes vazava o álcool e acho que foi a edição que fez mais sucesso. O pessoal viciou no jornal a partir desse dia. Então, tem dessas coisas todas também.
P/1 – Como assim? O pessoal se viciou no quê?
R – No jornal.
P/1 – Mas por quê?
R – Acho que porque foi rodado com cachaça, né? Acabou o álcool, o pessoal usou a cachaça pra rodar.
P/1 – E esse cordel você publicou quando, na época?
R – Não, Jonas, esse cordel eu só publiquei em 2006. Eu acho que é meu marco inicial, por quê? Porque os outros ainda estão muito incipientes. Aí, em 2005, eu terminei meu curso, né, de Letras, na Uneb de Caitité e vim aqui pra São Paulo. Aí fui trabalhar na Luzeiro, nessa editora tradicional de cordel. E o Gregório me acolheu e aí eu publiquei outros, no formato pequeno e esse aqui também. Aí hoje ele está no livro chamado Meus Romances de Cordel, que é da Global. É o que abre, inclusive, porque é o mais antigo, né? É de 1987. A versão mesmo, inicial, a matriz dele, é de 1987.
P/1 – Mas o primeiro que você publicou foi quando?
R – Foi em 1994. Eu fiz um ano antes. Eu tenho um exemplar, Até Onde Nós Viemos. Foi uma entidade chamada FAP, Fraternidade Apostólica da Palavra, da igreja católica. O padre esteve em Serra do Ramalho. A sede ficava no Rio Grande do Sul, né? Acho que em Santa Cruz do Sul. E aí vi umas cenas, assim terríveis, do pessoal defecando nas latrinas, muita pobreza, diarreia matando muitas crianças. Enfim, uma total falta de assistência com a população e falei: “A gente tem que fazer alguma coisa” e aí eu acabei fazendo esse cordel, que tinha a parte de Serra do Ramalho que chamava - olha só! Serra do Ramalho - Microcosmo Brasil. Eu falei: “Que diabo de título feio danado”, hoje, olhando, né? Mas eu falei:
“Eu vou falar de um Brasil de dimensões reduzidas,
onde a fome e a miséria deixam as suas feridas
num número sempre crescente de desamparadas vidas
Lá não existem palmeiras, muito menos sabiás,
a injustiça mesquinha sempre presente se faz,
trazendo mais incerteza, onde não existe paz.
Mas como em nosso país
há um mecanismo falho,
há também quem acredita na força e no trabalho
e, sobre essa base forte, nasceu Serra do Ramalho”.
E aí ia passando. Eu tinha 18 anos quando eu fiz. Aí foi publicado, eu fiquei muito feliz, o pessoal rodou mil. A maior parte eu acabei dando, besta que só, ao invés de vender, né? Porque quando a pessoa paga, ela dá mais valor. Eu acabei distribuindo muitos e hoje só me resta um único exemplar, que não foi nem eu quem guardou. Quem guardou foi a Lucélia, que é minha esposa, né, que na época eu nem conhecia. Ela falou: “Olha aqui, olha”. Pois não tenho mais um exemplar! “Olha aqui, eu tenho um”. É o que está no nosso acervo.
P/1 – Nossa! E, ainda nesse período da adolescência, o que mais você lembra de história, que te marcou bastante?
R - Olha, a adolescência, escola, as descobertas, né? Eu me recordo que, ainda menino, um homem bateu à porta da casa do meu pai, na Ponta da Serra, vendendo livro e ele comprou uma coleção, acho que da José Olympio. Tinha outras, mas eu lembro da José Olympio, que estava LOG, tinha uma logomarca e aí tinha alguns títulos, da Nova Aguilar também, o Garcia Lorca. Comecei a ler, achava fantástico. O Sá Carneiro, Castro Alves minha mãe gostava muito. Tinha um poema do qual ela gostava:
“Minha mãe, a noite é fria
Nessa neblina sombria
Geme o riacho no val
E a bananeira farfalha
Como o som de uma mortalha
Que rasga o gênio do mal”
Aquilo acabava com a gente. E, ao mesmo tempo, achava tão bonito! E aí eu me recordo da minha adolescência, muito, Júlio Verne. Nossa, como eu gostava! Gostava, não, como eu gosto! E eu comecei a ler, não tinha em casa. Na biblioteca da Escola Castro Alves, onde eu estudava, eu descobri Júlio Verne, Viagem ao Centro da Terra. Um sujeito genial. Da terra, um capitão de 15 anos. Aí, como eu já tinha dinheiro, né, passei no concurso do Banco do Brasil, com 14 anos eu comecei a trabalhar e eu comecei a comprar também. A Volta ao Mundo em 80 dias. Não, Viagem ao Centro da Terra, 20 Mil Léguas Submarinas. Esse eu comprei. Cinco Semanas no Balão também. E aí soube que um professor tinha A Volta ao Mundo em 80 Dias. Fui na casa dele, bati, meu pai tinha a Ilíada e Odisséia, que eu li também. Eu gostava muito dos gibis, gostava, principalmente, do Conan. A Espada Selvagem do Conan, achava aquilo fantástico. Também foi uma base, né, desse cordel aqui. A mitologia me fascinava muito. Eu até me recordo da chamada da Globo, quando passou Fúria de Titãs, naquela versão Stop Motion, do Ray Harryhausen. Então, essas coisas assim estão, ainda, muito presentes.
P/1 – Eu queria te perguntar – estou vendo que você lia muito – se repara que tem, por exemplo na mitologia grega, mitologia celta, mas quase como se fosse uma mitologia nordestina também?
R – Sim. Principalmente.
P/1 – E quais que eram os seres dessa mitologia que mais te tocavam, te entregavam?
R – Rapaz, tinha um chamado Berrador. Minha vó chamava Gritador, né, mas depois eu fui recolhendo, a maior parte chama de Berrador. Que é um menino que foi amaldiçoado pela mãe, é o ciclo da maldição materna, porque o pai na roça e a mãe fala: “Meu filho, vai levar uma marmita pra teu pai”. E no dia ela matou um capão bonito e tudo. Só que o infeliz do menino comeu toda a carne e levou só os ossos para o pai e disse: “Minha mãe, a carne ela deu pra um sujeito que está lá em casa”. Aí o homem chega, pega a mulher – cenas fortes – dá uma surra na mulher, a deixa quase morta e aí ela sabe que foi o filho que havia feito isso, então ela o amaldiçoa. Na linguagem do povo o menino foi excomungado. E aí se transforma em um bicho, que é metade gente e metade jumento. E, ao meio dia, debaixo dos pés de umbu, é onde ele paga a penitência. Isso foi muito forte. Eu me lembro que quando a gente se mudou pra cidade também, ainda menino, meu pai tinha ido junto com outros homens no alto do Cruzeiro, porque tinha um menino que havia virado bicho. Nunca perguntei a ele. Eu tenho que me recordar e perguntar, quando eu for à Bahia. E estava – olha só! – atrás da geladeira e ninguém conseguia tirar esse menino desse local.
P/1 – E o menino?
R – Virou bicho, né?
P/1 – Virou bicho?
R – Diz que virou bicho e estava amuado atrás da geladeira e ninguém conseguia. (risos) Então, isso aí é uma coisa bem forte, assim, essa lembrança, só que eu nunca perguntei para o meu pai. Eu tinha medo só de saber... tinha medo... até, em casa, a geladeira era novidade tecnológica, quando a gente mudou pra cidade, porque na roça não tinha. O pessoal pegava carne salgada e botava em um pau, que ficava na dispensa, né, aquela coisa assim, até pra dobrar é difícil, né? Estava totalmente dessecada, né, assim, sem água. Desidratada.
P/1 – Ia perguntar se tem mais algum outro personagem nesse tempo de infância e de adolescência, que te pegou bastante. Algum do nordeste.
R – Sim. Lampião. Quando eu era pequeno a gente ouvia as histórias de Lampião, o pessoal contava e aí eu desenhava muito Lampião, gostava, achava bonito, aquela estética, o chapéu, tudo e aí passava. Eu me recordo que, no cordel do Lampião com o Dioguinho e o pessoal cantando Lampião no Inferno e as cantigas também, né?
“Levanta, Maria Bonita
Acorda, vai fazer café
O dia já vem raiando
E a polícia já está de pé”
Meu avô, o padinho Lô, é quem gostava muito dessa cantiga. E o Bernardo de Brito. É o fundador do Arraial do Bonito. A casa de pedra dele, que hoje está desabando, que ficava na Fazenda Santo Antônio. Tinha um primo, Cassiano, primo da minha mãe, que vivia nessa casa e aí a gente ia, menino, brincar com os filhos dele e tinha uma mancha preta na parede e diziam que é uma mão de sangue da filha dele, que foi morta porque tinha caso com um escravo. Ele a matou e ela, antes de morrer, pôs a mão no peito e a mão ali e essa mancha, por mais que se lavasse, ela sumia e no outro dia estava de volta. Mas isso é mito, né? Ele nunca matou uma filha, na verdade. Mas aí conta-se também que, quando ele morreu, de tão ruim que foi, o caixão dele teve que ser enterrado com umas pedras. Porque o diabo o tinha levado, de corpo e alma, para o inferno. Também, assim, eu estou quebrando todo o encanto, né, mas óbvio que também tem o lado histórico da coisa, mas lógico que, quando a gente vai fazer um registro, a gente coloca tal e qual as pessoas os contam e, depois, em nota, a gente explica quem foi esse personagem. Foi ele que fez a igreja em 1877, que está no centro da cidade, enfim, o núcleo de povoação em torno da cidade foi a partir dele. Enfim, então Bernardo de Brito também é um personagem do qual ouvia-se contar muitas coisas. A partir disso a gente ouvia outras histórias, de gente que morria, mas não tinha vontade de ser enterrado, né? Então, o caixão, por mais que as pessoas tentassem levantar, não conseguiam. Aí você sabe o que faziam? Pegavam o cipó e davam uma surra no caixão e aí o caixão ficava leve. (risos) Qualquer pessoa podia levar. Eu me recordo disso por quê? Por causa dessa história do Bernardo de Brito e aí tinha coisa do enterrado, alma do outro mundo que vinha pra entregar e você tinha que ter muita coragem, porque tinha que ir à noite, tinha que rezar, não podia falar nome feio, senão, ao invés das moedas, você encontrava um monte de molambo fedendo, pano velho, essas coisas, papel velho. Eu me recordo do meu avô, do padinho Lô, saindo pra desenterrar, lá na Vargem Grande, né, que é a roça dele, muito tarde. Tem muitas recordações nesse sentido. Tinha que juntar assim, acho que eu ia levar muito tempo só pra tomar nota de tudo, de todas as histórias que me contavam.
P/1 – Mas pode falar.
R – Vargem Grande, inclusive, que é a terra do meu avô materno, padinho Lô. A casa, assim, também, tinha fama de mal assombrada, né? Minha avó mesmo conta que, uma vez era uma ventania que ela achava que tinha arrancado todas as telhas, que a cancela deu uma batida, assim, que foi tão forte, que parecia que um caminhão tinha batido ali e no outro dia acordava, olhava, estava tudo no lugar. Aí depois conversei com o seu Elcias, já falecido. Encontrei seu Elcias, dono do posto de gasolina na cidade, ele que vendeu a Vargem Grande para o meu avô. Aliás, meu bisavô, né, que chamava Joaquim, por parte de mãe. Padinho Joaquim. Padinho Lô, Florisvaldo, que é o pai da minha mãe. E a história é que fugiu uma vaca, uma novilha do padinho Joaquim e meu avô veio descendo, né, da Chapada Diamantina, da região de seara, aí ele ouviu a notícia: “Essa vaca passou aqui”. A vaca foi dar justamente no lugar onde hoje é a Vargem Grande. E aí meu bisavô veio, padinho Joaquim e madinha, madinha, viu? Não é madrinha, não. É madinha. Madinha Josefa. A véia Josefa. Também acabam se fixando. Aí tem gente que conta, eu não sei com certeza, que ele veio com um diamante e, com esse diamante, é que ele compra, né, a região da Vargem Grande. Aí tem gente que conta também que ele chegou com um caminhão e ninguém conhecia caminhão e o pessoal saía correndo, rezando pra São Sebastião, pra São Benedito, o santo que estava mais perto, né, naquele momento e ele conheceu minha avó, minha avó estava, acho, que na casa do Doutor Franco, né? Esse Franco Fernandes, o mesmo que encrespou com meu bisavô, o Major. E ela estava sem um fio de cabelo na cabeça. “Vamos visitar que tem uma moça que está morrendo”. E aí ele começou a conversar com ela e quando ele saiu: “Essa aí não escapa mais”. E aí ele voltou outras vezes, né? Falou: “Coitada daquela moça”. Aí ele ia fazer sala pra ela, não sei o que. Eu sei que ela escapou, né, tanto escapou que os dois acabam se casando, mas se conhecem nessas circunstâncias inusitadas. E não a viu bonita, pegando água, como as histórias que a gente que a gente ouviu. A viu na cama, calva, sem um fio de cabelo na cabeça e desenganada. E aí que a relação deles acaba se firmando, né? Alaíde, que a gente chama de Dinha e padinho Lô. Então, tem essas histórias também.
P/1 – Nossa, gratidão. Mas fala mais alguma dessas que estão, todas, no imaginário, que você viveu, ouvia eles contando.
R – Às vezes... minha avó eu te falei: a Alaíde é prima da Luzia. Alaíde é Dinha. A Luzia é Inha. Então, tudo acho que é corruptela de madinha, madrinha. E quando minha avó Alaíde... minha mãe que conta essa história. O pai dela chama José Farias, que é irmão de Manoel Farias, como eu te disse. E aí acho, não me recordo com certeza, que o pessoal fez um bolo e foi levar pra mãe dele, acredito eu e eu sei que ele se perdeu. Ele quis encurtar caminho e entrou por dentro do mato e se perdeu e dizem que, nesse tempo, por três dias caiu uma chuva tão forte, daquelas chuvas que normalmente enchem uma lagoa. Quando a lagoa enche, que transborda um rio, você diz que está sangrando. Não sei se você já ouviu esse termo. Ou (reve?). A lagoa que (reve?) é a lagoa que bota água além daquilo que ela comporta e simplesmente o pessoal, todo mundo, foi em busca dele: meus tios, todo mundo e ele foi dado por perdido, porque três dias depois ninguém conseguia achá-lo, né? Então falaram: “O padinho Zé não volta mais”. E não é que três dias depois ele voltou seco, sem dar sinal que ele tinha tomado uma gota daquela chuva. Aí ele disse que, no meio da mata, que ele, perdido, assim, ficou meio variado, disse que uma mulher apareceu com um manto e que ela pôs o manto sobre a cabeça dele e que o guardou esses dias, por isso que ele não se molhou, não se resfriou, não teve nada. Aí o pessoal disse que essa mulher é a Virgem Santa, né?
P/1 – Nossa! O povo acreditava muito no Padre Cícero?
R – Não. Lá, não. Já tinha o Major Ramiro, então (risos) não precisava. Sabiam, sim, da existência dele. Ainda bem que você perguntou, porque tem uma história muito bonita também e que se passou na Chapada Diamantina, né? Essa beata aqui, a beata Maria Nilza. Então, esse cordel foi um pessoal que saiu da família da minha avó na década de 50, pra conhecer, em uma região... olha o Minelvino aqui, o Minelvino é que é o autor, falei dele antes, né? E a _________ também é dele. Olha só!
“Nossa Senhora das Graças, dai-me santa inspiração
Minha irmã maria Nilza também peço permissão
Pra contar nossos milagres pra essa multidão
Tanta doença que existe nosso povo a devastar
Espírito mal e moléstia que ninguém sabe curar
Nossa Senhora das Graças agora vem nos salvar
No arraial de Alagoas, Itaberaba, Bahia
Tem uma pobre donzela que luta por noite e dia
Por ordem de Jesus Cristo e a Santa Virgem Maria
Maria Nilza é o nome dessa donzela falada
Que foi, por Nossa Senhora, escolhida e enviada
Pra curar os pecadores nessa vida amargurada
Milhares de aleijados que vão pra esse lugar
Irmã Maria Nilza é bastante lhe olhar
E da água de beber todos saem a caminhar”
Então, o pessoal tinha também os seus santos, a sua devoção e o local, mesmo, de afluência é Bom Jesus da Lapa, onde tem a gruta, que é a igreja, que é a mais antiga romaria desse país, desde 1691, quando Francisco Mendonça saiu de Salvador com a imagem do Bom Jesus e se internou no sertão. Então, essa diversidade, né? Juazeiro estava muito longe. A gente conhecia o padinho Padre Cícero pelos folhetos de cordel. Mas a gente tinha também os nossos santos, as nossas devoções, né, quem fazia as nossas rezas, então a gente estava bem guarnecido, nesse ponto.
P/1 – Eu queria te perguntar basicamente como é que você adentrou nesse universo da pesquisa da cultura popular. Ou foi mais tarde?
R – Foi mais tarde. Quando eu tinha 14 anos tinha um conto que minha vó Luzia contava, chamado (Belas Frontes?), que depois eu fiz um cordel e eu achava assim tão bonito e eu começava a viajar. Aí, tempos depois, trabalhando no Banco, comprei um livro chamado O Livro De Ouro da Mitologia, do Thomas Bulfinch, que é The Age of the Fable, né? A Idade da Fábula. Só que aí aqui teve esse título, assim, que não tem nada a ver. E tinha o conto mítico Amor e Psiquê, Eros e Psiquê, Cupido e Psiquê. E tinha o episódio da moça que viu o rapaz dormindo, né, o noivo encantado e aí deixa cair um pingo da vela, né, quente, da cera quente. A mesma coisa que tinha no conto que minha avó narrava. Aí eu comecei, falei: “Então tem uma conexão”. Isso ainda adolescente. Só que aí eu fui, gostei muito, sempre, da mitologia e comecei a fazer conexões. E aí, quando eu estava terminando meu curso de Letras na Uneb, na Universidade do Estado da Bahia, eu já lia o Câmara Cascudo, mas eu comecei a ver com mais profundidade. Aí descobri o livro Contos Tradicionais do Brasil. Aí tinha a mulher torta e minha avó também contava, tinha um monte, o Sílvio Romero também. Eu falei: “Não, espera aí, eu conheço pelo menos umas 50 histórias que estão aqui nesses...”. E as pessoas continuavam a me contar. Meu avô, padinho Lô, contava; a Dinha também contava; meu pai fala: “E aí, Jonas, quer ouvir uma história?” Então meu pai também, tia Lili, todo mundo, eu falei: “Meu Deus do céu!”. Eu contava pros meus sobrinhos, mas não sei como é que vai ser essa... eu falei: “Eu tenho que registrar isso também”. E aí, em 2005, eu encontrei com um professor da Universidade do Algarve em João Pessoa, em um encontro internacional de cordel, o senhor José Joaquim Dias Marques. Me deixou contato e eu mandei os contos e já estava trabalhando na escola também, fui em busca de novas pessoas que também contavam, também narravam e falei: “Não posso deixar que isso morra” e mandei, enviei pra ele e ele falou: “Eu tenho uma amiga que é especialista em contos populares, que é Izabel Cardíacos, só que a Izabel estava muito ocupada e um mês depois eu recebo um e-mail, Paulo Correa, todos os contos classificados. Aí eu já estava aqui em São Paulo. Aí falei: “Não, tenho que publicar”. Não consegui fazer, tentei fazer via projeto, estava com a cabeça meio... não consegui fazer e deixei esse livro em algumas casas publicadoras e o pessoal: “Ah, não, essas histórias são violentas”. Eu falei: “São contos, né? Os irmãos Grimm também são violentos” “Não, mas as crianças, a sensibilidade”. No conto da Borralheira mesmo a menina vai tentar convencer o pai a casar com a viúva e o pai diz: “Só me caso com a viúva no dia em que o porco cagar toucinho”. “Cagar não pode falar”. “Então, pô, todo mundo caga, vamos dar um desconto”. E aí deixei na Paulus, não é? E aí o editor também falou: “Não, vamos... esse negócio de cagar toucinho aqui...” porque ainda tem que a viúva ainda empurra toucinho no fiofó do porco, né, pra convencer o sujeito a casar-se com ela. Eu falei: “Não pode mudar, porque eu recolhi assim. Minha avó contava assim”. “Então tá bom” e manteve. Depois o livro foi pra NBE, né, foi adotado no Programa Nacional Biblioteca da Escola, a Minha Biblioteca aqui em São Paulo, kit não sei o que, kit contagem e escolas e tudo o mais. Nunca aconteceu nada por quê? Porque ali não tem nada demais. Então, as pessoas também começam a lidar com algo e aí eu descobri que as pessoas, muitas, publicavam textos, supostamente contos tradicionais, mas não da fonte. Iam pegar o Cascudo, outro autor. E aí dava uma higienizada, uma limpada, dava uma aformoseada, não sei nem se esse termo existe, mas, se não existir, a gente está aqui consignando. Eu falei: “Não, a minha vontade é trabalhar realmente com a fonte. Trabalhar com texto da fonte, que tenha modificações mínimas. Lógico, ele está fixado no papel. E aí comecei a trabalhar com o conto, com o canto popular, de forma a levar também a minha vivência e isso acho que foi muito positivo pra mim, porque até então nunca se havia publicado infanto-juvenil a partir das fontes, mesmo. Tem o Contos Tradicionais do Cascudo pra jovens, da Global, só que aí já é uma adaptação, foi uma coisa pensada e pinçada, a partir de um texto de referência. No meu caso, não. No meu caso foi infanto-juvenil, mesmo, os contos folclóricos, a parti de textos coligidos da fonte. A moça tecelona, que eu narrei no início, está nesse livro, né, está nessa obra.
P/1 – Na verdade, a gente deu um pulo gigante, né? Porque você ainda estava lá na Bahia.
R – Poxa! É que eu estou, o tempo todo, lá e cá, né?
P/1 – Mas a universidade foi importante no seu caminho?
R – Foi, com certeza. E num certo sentido. O que me disciplinou mais no sentido da pesquisa, dos objetos, de eu ter em mente. Minha mente é muito analógica, em todos os sentidos, mas no sentido da analogia, óbvio, quando eu vejo o conto de Jesus que vai com São Pedro no lugar, aí tem o ferreiro: “Eu sou o mestre dos mestres”. E aí Jesus pega a mãe do ferreiro, que é uma velha, bota no fole, bota no fogo, bota na forja e sai uma moça. Aí o ferreiro, quando sai, o sujeito fala: “Ah, não, também vou fazer uma”. Aí pega uma velha lá e coloca, aí queima tudo. Quando Jesus chega, não tem mais jeito. No caso ele pega a própria mãe, o ferreiro. Ele fala: “Não dá mais pra fazer a mulher, só dá pra fazer uma macaca”. E aí, coitada, a pobre da velha se transforma em uma macaca. Então, tem um conto dos irmãos Grimm, que é O Fogo Rejuvenescedor, mas aí eu vou além, eu me recordo de Medeia, na corte do rei Peias, (Peguezão?), pai de Jasão, bota dentro do tacho e ele sai rejuvenescido e o Peias é o que manda o Jasão pra morte, né, em busca do velocino. Você também bota, mas passa do ponto, ele acaba morrendo. Então, eu faço muito essas associações, essas analogias. Por isso que eu digo que a minha mente é analógica em todos os sentidos. Eu acho que a gente tem que estar, o tempo todo, buscando os correspondentes, buscando as fontes, até porque hoje as coisas são muito banalizadas. Nós achamos que nós já sabemos tudo e que o conhecimento daqueles que nos antecedem não é tão importante, não. Na verdade, eles são a base. A gente está fincado sobre essa base. Independentemente desse conhecimento estar fixado no papel, né, ele está, ainda, vivo, correndo, nas vozes da tradição. Então, isso, pra mim, é muito importante. E também não hierarquizar esse conhecimento. Não achar que aquilo que está no papel é mais importante, aquilo que é letra é mais importante do que aquilo que é voz, porque no fundo, no fundo, tudo se conversa, tudo se converge, né, tudo faz parte, são elos da mesma cadeia.
P/1 – Nossa! E você ficou lá na Bahia até... quando foi que você mudou pra cá?
R – Eu vim inicialmente em 97. Aí fiquei até o final de 99, fui em algumas editoras, mas eu não tinha, com um monte de caderninho - tem outros cadernos de poema e tudo – noção do que eu ia fazer. Aí, na época, fiz uns cordéis sobre o Raul Seixas, né? Depois acabei publicando um livro sobre ele, com alguns ensaios, algumas coisas assim meio malucas. Na época eu lia muito Eliphas Levi, Helena Blavatsky, os ocultistas. Até hoje eu gosto muito. Principalmente esses dois. ____________, Papus, que a gente chama de Papus. Aleister Crowley também. O Livro da Lei, ________, do Crowley, que aqui se chamou O Equinócio dos Deuses, na tradução do Marcelo Motta, que foi parceiro de Raul e Paulo Coelho. E aí eu consegui fazer esse trabalho, também, na época. O cordelista com quem eu tive contato aqui foi o Costa Senna, né? Na década de 90. Foi o Costa. O Costa fazia aquela poesia mais urbana, mais pedagógica, mais didática. Também humor, trabalhava muito com humor. Estava começando a fazer música. Aí tinha o Edvaldo Lopes, que depois mudou o nome pra Cacá Lopes. Também conheci nessa época. E achava peculiar, porque o Cacá teve pólio e então, um braço dele, praticamente, serve só de apoio. O jeito dele tocar violão, o jeito que ele achou de vender a sua arte, de se sustentar da arte, com todas as dificuldades. Então, essas duas pessoas eu conheci nessa época. Aí, depois, no retorno, em 2005, além do Cacá e do Costa, eu conheci uma pessoa que hoje é um grande amigo, o João Gomes de Sá Pedro Monteiro. São esses que são os esteios, que são os mais próximos. E aí também mantive contato com o Rouxinol, com o Klévisson, com o Evaldo, todos de Fortaleza, que se tornam amigos muito próximos também. Nezite Alencar, Josenir Lacerda, Arlene Holanda. Eu tenho essa ligação muito forte com o pessoal do Ceará, principalmente o pessoal que está baseado em Fortaleza. E aí a gente foi aumentando esses laços, essa rede.
P/1 – Nossa, esses aí são poderosos, mesmo. Tem alguma história que você viveu com algum deles? Que aqui a gente gosta de gravar, muito, a história.
R – Sim. O Costa foi, na década de 90, usava um bip. Eu me encontrava com ele, normalmente a gente marcava ali na Praça dos Correios, né? O Correio ainda funcionava e ele tinha uma caixa postal ali no Anhangabaú. Hoje não funciona mais como Correio. Aí a gente ia pra 24 de Maio, pra Galeria do Rock, tinha o fã clube do Zé Geraldo, o Viagens & Versos, que era o Zé Roberto. Então, a gente, normalmente, se encontrava por ali. Depois conhecemos... ele já conhecia, eu conheci o Sílvio Passos, do fã clube também. Aí eu me recordo, né? O Costa fez um livro chamado Meu Milhão de Amigos e botava o nome do amigo e o amigo comprava, né? Tinha um monte de olho na capa. E nesse lançamento do Meu Milhão de Amigos o Pedro estava presente, só que eu não o conheci nesse dia, não me recordo de tê-lo visto. E aí a gente, depois, fez um livro sobre Jesus em cordel, que a gente lançou em 2002 e a Nieda estrava presente, ela que fez a capa, foi quando a conheci. E o Alexandre, que hoje cursa Música na Unicamp, filho dela, caçula, estava na barriga. Eu a conheci nessas circunstâncias. Depois ela fez algumas capas e também foi a Canção do Tio Dito e O Príncipe que Via Defeito em Tudo, tem dois infantis meus nos quais ela trabalhou. Então, tem essas energias, né? No caso do Klévisson, em 2005 ele não estava no evento. Eu o acabei conhecendo aqui em São Paulo. Ele esteve aqui. Foi onde eu tive contato, realmente, com ele. Então eu me identifiquei muito, assim, porque os cordelistas de São Paulo, muito meus amigos, mas eu me identificava mais com o que o pessoal de Fortaleza fazia, porque eles contavam histórias como eu. Poemas narrativos. É o cordel enquanto poesia bárdica, que é o que me encanta. Eu, com sete anos, já sabia de cor Juvenal e o Dragão. Então eu tinha João Soldado, João de Calais eu sabia boa parte. Dimas e Madalena, que minha vó gostava tanto:
“Deus senhor onipotente, encaminhai minha pena,
enviai as musas santas, minha lógica serena,
que foi descrever a vida de Dimas e Madalena.
Helena, virgem dos sonhos...”
Isso que me encantava. (A Batalha de Oliveira com o Ferro Atrás?), o Cachorro dos Mortos. E aí eu vi, o Rouxinol tinha feito O Guarda Floresta e o Capitão de Ladrões. O Evaldo tinha algumas histórias nesse sentido e o Klévisson também. O Príncipe do Oriente e o Pássaro Misterioso. João da Viola. E outras mais. E falei: “Não. Então, esse pessoal aqui ainda está fazendo romance. E quando eu comecei, alguns cordelistas daqui de São Paulo diziam: “Ah, se fizer um cordel com mais de 70 estrofes, não vai vender”. E todos os meus tinham mais de 70. Tinham 120, 150. (Bela Estante?) tinha 160. Então, não vou vender nada.
P/1 – 160?
R – É. O Conde de Monte Cristo, na versão que eu publiquei, tem 240. Tristão e Isolda, recentemente lançado, acho que tem 308. O Roldão, que ainda está inédito... Roldão é o sobrinho de Carlos Magno. Rolan, da _______ Rolan, está com 300 e tantas. Aí eu comecei a fazer e depois eu vi que esse pessoal também começou a fazer romances, começou a escrever também, fazer os cordéis narrativos ou não fazer o cordel tão curto, mas a minha identificação, principalmente o Rouxinol, foi imediata, porque tinha um cordel chamado Donar, o Matador de Dragões. Mitologia nórdica, né? Donar é um guerreiro, mas a gente sabe que é o nome do Thor e eu tinha feito um cordel que depois se tornou livro, né? O Cavaleiro de Prata. Aqui já é a segunda escrita. E eu gostava:
“Sei que o velho soberano
Sentindo perto seu fim
Por sua família e súditos
Pedia auxílio de Odin
Que enviasse um guerreiro
Pra vencer o monstro ruim”
Então, as minhas coisas são assim. Aqui dialoga com a Canção do Nibelungo, dialoga com as sagas:
“O monstro disse: “Palerma, já bebeste além da conta
Tua pira funerária, essa noite, vai estar pronta
E minha espada terá um asno em sua outra ponta”
Eu gosto dessas coisas, né, dessa pegada. Esse aqui que eu mostrei pra vocês, não sei, eu tinha oito, nove anos, eu não me recordo. Eu sei que é de 1984, então são nove anos. O Alce Misterioso. É só dar uma olhada aqui, é em setilha, mas aqui também tem, ainda, essa raiz mítica e daí eu ter me identificado tanto com essas pessoas, né, e com as coisas que eles publicavam também. Porque também remetiam àquilo que eu li na minha infância. Eu falei: “Não, então o cordel narrativo não morreu. Não existe só cordel normativo pedagógico didático”. Aí eu fiz O Cavalo Pensamento, na época, também, em 2005, porque eu gostava muito da canção Agalopada do Zé Ramalho:
“Foi um tempo, que o tempo não esquece...”.
Eu achava aquilo muito rico, aquela visão apocalíptica, escatológica. Ao mesmo tempo o fim do mundo e o começo de um mundo novo e aí Viagem ao Mundo da Ideia, fiz O Cavalo Pensamento, que é o Pégasus, a imaginação poética. O Pégasus, o coice dele faz nascer a fonte de ______, a fonte do cavalo, que é o jorro da imaginação da poesia. E aí vi que tinha Josenir Lacerda, tinha Nezite Alencar, tinha um monte de mulher fazendo cordel que, na minha infância, não conheci muito, conquanto minha vó me contasse da velha Olímpia, que fazia o ABC dos Revoltosos, mas eu não a conheci. Em 1926 o pessoal já a chamava de velha Olímpia, né?
“Olímpia, por ser devota, mandou rezar a novena
Aconselhou senhora azul ir à casa de Morena
Até passar a revolta, acabar a cantalena”
Cantalena é cantilena. Senhora azul é a mãe da minha vó Luzia, Josefina. Morena é a tia de meu pai. Minha tia avó também, irmã da minha avó, chamava Durvalina. Que tinha mais de 400 afilhados. Mas eu não conheci a velha Olímpia, né? E tinha só esse ABC. Depois eu acabei registrando, assim, um pouco estropiado, né, porque em menino eu não tive como tomar nota. O ABC dos Revoltosos, que falava da Coluna Prestes. Mas aí eu vi que tinha essas pessoas escrevendo e publicando, vi a Josenir e eu falei: “Nossa, que coisa fantástica!” Aí vi que tinha um outro tipo de cordel também, com uma pegada mais filosófica, mais de contestação, do Antônio Francisco, um poeta muito bom, do Rio Grande do Norte. Eu vi que tinha gente muito boa fazendo. A Socorro, né, eu conheci com um CD chamado Intersecções, que não fazia cordel, mas tinha Martelo Agalopado:
“Galho velho encurvado da madeira”.
Eu falei: “Não. Tem coisa muito boa sendo feita e hoje, né, também. Então não vamos esquecer o passado de forma nenhuma, porque é ele que nos mantém, que nos sustenta. A água que jorra, que ajuda, que fermenta e fomenta a nossa imaginação. Mas vamos também dar vez e voz pra essas pessoas que estão aí”.
P/1 – E como foi que você tomou conhecimento de todas as diferentes formas do cordel, né? As métricas. Foi em que pedaço? Foi o Martelo Agalopado...
R – O Martelo foi quando eu comecei a ouvir o Zé Ramalho, não foi pelos repentistas. Foi pelo Zé Ramalho. Os repentistas eu vim ouvir aqui em São Paulo. O Sebastião, né, nosso Bastião Marinho, foi um professor e aí, com o Zé Ramalho, eu conheci o Martelo Agalopado, Galope à Beira-Mar. Isso, início da década de 90, né? Eu ouvia, menino, Amelinha cantando, do Otacílio Batista, que também contribui:
“Uma luta entre gregos e troianos...”
Quando eu ouvi Amelinha cantando aquilo, eu fiquei doido, porque falava da Ilíada, né? Helena, mulher de Menelau, o cavalo de pau, enfim, eu achava aquilo tão fantástico e aí estava na minissérie Lampião e Maria Bonita, né?
“Virgulino Ferreira Lampião,
bandoleiro das selvas nordestinas
Sem temer apegos nem ruínas,
foi o rei do cangaço no sertão
Mas um dia sentiu no coração
o feitiço atrativo do amor
a mulata da terra do condor
dominava uma fera perigosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
faz o homem gemer sem sentir dor”
Otacílio Batista, né? Mote bem antigo, que tem um folheto do José Luiz Júnior, que já tem esse mote, mas Zé Luiz foi um grande poeta também que viveu aqui em São Paulo, né?
“O rio Tietê canta quando São Paulo adormece”.
Acho que Tonico e Tinoco acabaram gravando. Mas no cordel também tinha essas modalidades. ____________ do Zé Pretinho não tem decassílabos, mas tem parcela, naquela coisa de um ofender o outro, que é pesadíssimo, mas muito bonito em termos de narrativa. Aí tinha os cordéis do Manoel de Almeida, a peleja de Manoel de Almeida com Rodolfo Cavalcante. João Martins de Athayde, peleja de João de Athayde com Pelado do Sul, já tinha o Martelo também, mas eu nunca tinha dado muita atenção, até que o Zé Ramalho começa a cantar. E aí, nas entrevistas, ele falando e tudo o mais. Aí tinha o Alceu também:
“Nessa rua, sem sol, sem horizonte
Foi um rio de águas cristalinas”
Então, eu achava aquilo muito forte, muito pulsante, muito pungente. Chico César, que veio muito depois:
“Os olhos cegos da fita rodando no gravador”.
É sextilha. O Raul, que tinha:
“Meus amigos, essa noite eu tive uma alucinação
Sonhei com um bando de números
Invadindo meu sertão
Vi tanta coincidência
Que eu fiz essa canção”
Essa pegada. Então, tudo isso foi se juntando e desaguando. Aí não é um rio que desagua no mar. Desagua no mesmo caldeirão. É bom que a gente mexe e dá o ponto que a gente quer. Então, essa turma toda. O Bráulio Tavares, com que eu fiz uma peleja. Nossa, quando eu ouvi a Elba cantando, né, Caldeirão de Mitos e depois Temporal.
“Quem viu a terra gemer
Nos dentes brancos do mar
A laje fria da espuma
A sete palmos do olhar
Tocou as curvas do mapa
E o raio do sol nascente
Tocou as cordas da harpa
De aço incandescente
A mais cruel armadilha
Encruzilhada dos (fisios?)
Alicerce das ilhas
Roída pelos cupins”.
Achava aquilo assim também tão forte, tão pungente. E essa turma com a qual a gente, de alguma forma, convive hoje em dia, mas em termos de imagem, mesmo, de imagética. Minha querida amiga que nos deixou recentemente, a professora Gerusa, dizia que às vezes, hoje, a performance também, tem muito poeta performático, mas que quando você olha no papel, não passam aquela imagética, aquela força. Não tem aquela carga arquetípica de outros tempos. Então, pra mim, essa coisa da imagem é muito forte. Muito forte, mesmo. Por exemplo: no cordel do (Belas Frontes?), o filho do pescador, tem uma parte que o rei que tem a moça aprisionada na torre, o rapaz está na forma dele mesmo, né? Mas ele se transforma em uma formiga, porque ele ajudou o rei das formigas, que é o motivo que ecoa o conto mítico de Amor e Psiquê e ele se esconde debaixo da perna da mesa. E aí eu coloco: “Isso deve ser a alma do purgatório, querendo fazer pedido”. Então, essas coisas são presentes por quê? Porque eu vi o pessoal rezando, devoto das santas almas. As pessoas contavam histórias que viam uma procissão passando, só que a procissão dos mortos, né? O vivo reconhece cada um daqueles que vão ali. Isso é da Idade Média, o exército ______ da Alemanha, mas a gente tem nos países do Mediterrâneo também, a tradição também, que o Caminho de Santiago é um caminho das almas, né? As almas é que estão passando por isso, deixam aquele rastro no céu. Então, isso a gente tem que ter e isso é muito forte, porque isso dá suporte e dá legitimidade ao que a gente faz.
P/1 – Nossa! Qual foi a vez que você contou uma história que, pra você, fez sentido?
R – Em cordel?
P/1 – Não. História, mesmo e depois o cordel.
R – É porque é muito mais do ouvir do que do contar, né? Mas eu acho assim: quando eu fui fazer o meu TCC, foi sobre o Tom Zé: os motivos populares na poética do Tom Zé. Porque tinha que fazer um autor baiano. Adonias Filho e Jorge Amado já estava tudo muito manjado. Ou fazia sobre um cordelista ou fazia sobre um músico. E Caetano também já estava meio manjado. E o Gil, apesar de gostar muito do Gil, também todo mundo já tinha falado alguma coisa do Gil, né? Aí, quando eu realmente me encontrei, falei: “Não, vou pegar o Tom Zé, porque o Tom Zé vai beber muito no Cascudo, nos nossos mestres, nos nossos etnógrafos e ao mesmo ele nos devolve uma coisa tão dele, tão original e acho que foi aí que eu cheguei junto do meu pai, junto da minha tia, aí eu me reencontro, né, com essas coisas, porque a gente se afasta também, não é a vida toda que você está ligado a essas matrizes. Tem um tempo que você se torna meio que iconoclasta. A gente vai ler Nietzsche, vai ler Kierkegaard, vai ler Schopenhauer, _______, aí você pega tudo e aí você meio que se afasta e fala: “Não, mas isso aí é de matriz católica, não sei o que”. Aí depois você tem que se reencontrar, por quê? Porque você vê que não se trata do catolicismo de Roma, se trata da religiosidade popular e que muitas vezes transcende o catolicismo romano. O próprio arquétipo da Virgem é o arquétipo da deusa mãe. Todo deus é filho de Virgem, de Krishna, Dionísio. Todos, todos. Hórus. Eu acho que, quando eu me reencontrei, tem umas histórias que há uma velhinha que a Virgem, só que o pessoal não sabe, tem um conto que ela está, que é o conto de José e Maria, que é o conto de Hänsel und Gretel, Joãzinho e Maria dos irmãos Grimm e essa história eu ouvi o Jacinto contando. O Jacinto é irmão de Mané Guedes e de João Guedes. A gente tem sempre que falar filho de Gustavo Guedes e irmão do Major Ramiro, pra que o pessoal se localize. Irmão, não. Gustavo é irmão de Major Ramiro, pra o pessoal se localizar. Então, essa história, pra mim, foi muito interessante, por quê? Porque ela é muito maior do que os irmãos Grimm contam. Depois que a bruxa é jogada no fogo, ela não morre. Dois cachorros saem das cinzas dela e vão ajudar o rapaz a matar a serpente, né? E a cumprir a sua jornada. E ele me contava isso na infância e eu não dava muita atenção, porque é uma coisa funcional. A gente gostava muito, ficava embevecido. Só que quando ele me recontou eu vi, assim, um monte de símbolos nessa narrativa, que depois eu acabei registrando. E ele me conta assim, descascando feijão catadô. Feijão catadô é o que o povo chama aqui de feijão de corda. Muita gente não sabe desse nome, mas quando ouve a música Arrumação, do Elomar:
“Futuca a tuia, olha o catadô
Vamos plantar feijão no pó”
Que é uma sinfonia, né? E o catadô é isso. Por que é o catadô? Porque ele você tira, mas você pode deixar pro ano seguinte. E o outro feijão, aquele que a gente come normalmente, que come machucado - o catadô, não. O catadô sempre você come com farofa – é o feijão de arranque, chama feijão de arranque, que a gente arrancava. E ele, catando feijão, foi que ele me contou isso aí. Então, isso veio, assim. Óbvio, teve mais outros contos e eu estava sem o gravador. Talvez a coisa mais rica é porque eu não me preocupei com mais nada. Estava com um caderninho, anotando e depois pedia que ele recontasse. E ele, na casinha dele, com uma cerca de quiabento... quiabento é uma planta espinhosa, usada como cerca viva. Um espinho desse tamanho, que tem que se tomar muito cuidado, mas uma flor muito bonita. Aí você tem que abaixar pra passar e a muralha da casa dele é a própria serra. O irmão Antônio ficava do lado, mas isso ficou muito forte, por quê? Porque eu passei por um portal novamente, eu tive que fazer esse rito de passagem, como se fosse um umbral e você encontra aquele homem humilde, né, na época com mais de 70 anos, que você conheceu muito bem na sua infância, um homem que nunca se casou, né, nunca teve esposa, viveu o celibato a vida toda e, ao mesmo tempo, tido, todas as pessoas o tinham como ingênuo, como tonto, mas um mestre na sua definição perfeita, por quê? Porque ele estava pronto e acabado desde sempre. E aí ele é, na família, até o Mané Guedes, casado com minha tia, já falecido, tio Neco, disse: “Não. Pra contar história e contar causo, é com Jacinto”. Então, naquele momento, eu me reencontro assim com toda certeza e falo: “Isso é o que me move. É isso que eu vou continuar a fazer, vou continuar a passar adiante e, de alguma forma, usando esse cabedal que é meu também, mas ao mesmo tempo a essência de tudo tem que ser o conto. É o conto que conta tudo isso”.
P/1 – Nossa! Isso, pra mim, é um fechamento maravilhoso! Mas eu queria saber se tem alguma coisa mais na sua história de vida que você quer contar, porque essa história aí, nossa!
R – Olha, Jonas, eu digo assim, tem dois momentos: o pé da serra e o rio. O rio São Francisco. No pé da serra você tem os seus mitos, tem as suas lendas. O rio São Francisco nós tínhamos o compadre d’água, temos o compadre d’água. O pessoal chama de nego d’água ou caboclo d’água, só que o povo do rio só chama de compadre d’água, porque é uma forma de criar um laço, um pacto. Então, ninguém ia botar a canoa no rio, se não deixasse no toco um pedaço de fumo para o compadre d’água. Na época em que o vapor passava ainda, tinha os portos, mas não era porto como a gente conhece. Porto porque alguém cavou um barranco ali e o pessoal pegava lenha, que ficava empilhada, né? Pagava-se e ficava com a lenha. Aí uma pessoa me contou, não vou nem dizer o nome do sujeito, mas ficava em Campinhos, no município de Serra do Ramalho. Ele tinha um barco que ficava ali perto do rio e ele pegou e começou a quebrar um monte de garrafas e jogar dentro do rio. Disse que era para o compadre d’água estrepar os pés. E ele não entrava no rio, tinha raiva do compadre d’água, porque disse que afundava as embarcações. O filho dele, um menino, se tornando rapazinho, entrou com outro pescador na canoa de longe e ele viu e ele não conseguia... gritava e o menino não ouvia. E lá pelo meio do rio, ele viu uma mão saindo e emborcando a canoa e o filho dele se foi. Ele gritava, agoniado e nada. Aí, quando o corpo vem à tona, está todo cravejado com os cacos de vidro que ele jogou no fundo do rio. Todos, assim. O corpo veio à tona. Essa é a parte mais assustadora. E tem o outro lado, que são muitos compadres d’água, que eles ficavam nos pés de manga e, quando alguém chegava, os pés de manga margeando o rio, se afundavam no rio. E tem aquela também que o pessoal diz que à meia noite, que é o momento dos encantados, que o rio deixa de correr, o rio dorme. Eu até fiz um poema do rio que dorme por alguns instantes, né? Eu não sei todo:
“O rio que dorme por alguns minutos
Para despertar todos os encantados
Enquanto a mãe d’água conclama alguns vultos
Ao grito medonho de mil afogados”
P/1 – Nossa!
R – Então, todas as almas. E aí tem uma coisa, assim, muito bonita do rio São Francisco também, que quando as pessoas se afogavam, pegava-se uma peça de tecido, que aquela pessoa havia usado recentemente, que ainda estava com o fluido do corpo dela e colocava-se no lugar. E o cadáver vinha à tona justamente naquele local em que se punha a roupa. Helena Blavatsky, eu tenho que me recordar onde eu li isso, dizia que os camponeses do Volga faziam a mesma coisa. Porque a roupa ainda estava impregnada do magnetismo da pessoa viva. E muitas outras, assim.
P/1 – Você viveu alguma história com algum desses seres mitológicos? Passou por alguma encantaria?
R – Não. Mas Dona Maria, bisavó de Lucélia, conta que quando menina, nunca esqueceu um menino negro. Menino, não. O descrevia assim: a cabeça grande, pelada, negra, do lado dela. E a Dona Valdelice, a vó de Lucélia, conta também que, tratando os peixes do rio, chegou um cachorro enorme e esse cachorro não comia os peixes, comia apenas as entranhas. Um lobisomem. Então, a gente conhece uma gama de histórias, mas aconteceu de um dia estar com uns primos meus, da gente ir até o Capão Preto, com o professor Nivaldo, de História, de Caitité e o pessoal: a Alice, na época casada com o Joaquim, os dois viviam no povoado de Palma. E aí esse primo meu: “Mas isso é bobagem, isso não sei o que”. Ela olhou pra ele assim muito séria e falou: “Deixa o povo do rio em paz”. Mas foi tão, que ele, no momento... aí o carro quebrou, no meio do ermo, do nada, o nosso carro furou o pneu, teve um monte de contratempo nessa viagem, depois. Então, há, realmente, nessa região alagadiça, é região em que o rio, quando tinha seu leito expandido, ele jogava água e o pessoal mudava. Tinha casa ali, mas se mudava pra casas mais distantes. Na parte mais alta.
P/1 – E eu ia perguntar: nessas suas viagens de pesquisa, que você é um grande pesquisador, qual foi, além desse que você contou, um grande contador popular que você conheceu?
R – Eu conheci muitos, assim. É uma injustiça falar de um só...
P/1 – Fala dois, então. Não precisa ser grande, o maior.
R – Eu conheci... ele não tem nem 50 anos ainda, Zé Alexandrino. A mulher dele trabalhava em casa e a filha dele, a Lucélia, gravou no celular sete histórias que estão no livro Vozes da Tradição, que vai sair. Sete. E quando eu fui, eu ouvi a voz por causa do gravador: “Oi, Dona Maria! Tem que fazer isso, Dona Maria?” Eu reconheci a voz imediatamente. E aí eu comecei a conversar com ele, ele começou a contar história, eu o ajudando a carregar as plantas da minha mãe, ele estava fazendo uma limpeza: “Vocês têm que ir em casa à noite, que aí eu vou contar muita história”. Contou mais de 30, um contador fantástico. O outro é o senhor Clóvis, da Tabua, que o professor Rogério, de Caitité, da Uneb, que é meu amigo de infância, hoje professor da Uneb, que batizou um grupo de estudos chamado Vozes da Tradição, em homenagem ao nosso trabalho, me apresentou. 82 anos. Uma voz calma, uma serenidade. Mas quando ele conta, se transforma. As outras, Dona Jesuína, Dona Rosa, já falecidas, que estão devidamente registradas no meu livro, e seu Zé Cabeça. Lucélia foi que registrou as histórias dele. Estava com 107 anos, quando ele contou. Aí, no ano seguinte, ele já não contava mais. Ele recordava do título, mas não do conto como um todo.
P/1 – Cento e sete?
R – Ainda está vivo, só que não levanta mais da cama. Fantástico também. José Marques de Souza, o seu Zé Cabeça.
P/1 – Nossa! Qual outro?
R – O Jacinto, de quem eu já falei.
P/1 – Outra, na verdade. Uma mulher.
R – Dona Enedina, do povoado de Palma. Dona Enedina também está no livro Vozes da Tradição. Dona Enedina cantou _______, contou histórias muito bonitas:
“Eu estava numa roda
Uma moça me chamou
Me disse: “Vem cá, vem cá”
Falei: “Vou”
“Dá licença de dar notícia do meu bem”
Eu falei: “Dou”
“Diz que ela vai se casar”
Eu falei: “Qua qua qua” (risos)
A vozinha dela é bem assim. E os contos, ela contando da festa do céu, que o sapo teve, depois os bichos todos abandonam o sapo e a faxineira do céu está lá varrendo, aí de repente vem o sapo atrás da porta e dá uma... e o sapo começa a cair e aí o povo lá embaixo está batendo roupa, né? As mulheres estão batendo roupa e o sapo vem - “Pai Nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome...” – rezando. Fala: “Quem é que vem lá?” Aí o sapo, pra se salvar: “É nosso senhor Jesus Cristo”. Aí as mulheres estendem o pano pra nosso Senhor, quando chega: “É só um sapo”, joga, o sapo cai bem debaixo da pata do cavalo. Aí aquela massa de vez achata e aí o coelho chega: “Ô, sapo, o que você está fazendo aí?” “Você não está vendo que eu estou apeando o cavalo?” Não dá o braço a torcer, né? “Mas esse negócio escorrendo de sua boca?” “Isso aqui é merda de fumo, porque eu gosto de mascar fumo” (risos) Não é. Aí o cavalo percebe. Então, ela é fantástica também, assim, muito boa. E a gente, felizmente, conseguiu filmar, no caso dela. Dela, do seu Zé, do seu Clóvis, já que os mais antigos, por não dispor de equipamento, a gente tinha só as fitinhas analógicas. Dona Rosa... e duas irmãs cegas também, de (Capoé?): Valnice e Valmira. Inezinhas, como elas são conhecidas. Uma é rezadeira, fantástica. Me levou lá para o quarto dela, pra mesa branca, bateu com a cruz na minha cabeça, falei: “Vai me matar”. E ela falando: “Seu escritório”. Foi descrevendo. Uma reza muito bonita, toda rimada. Então, essas pessoas são pessoas com as quais a gente tem uma conexão, continua em conexão. Está com a gente, está nos registros, mas acima de tudo, estão conectadas com a gente.
P/1 – Nossa! E o cordel? Qual foi o cordel que você escreveu, que foi mais desafiador, assim, pra você? Ou te levou pra um lugar muito além do que você imaginou?
R – Eu gosto muito da Montanha Negra, porque quando eu fazia, eu viajava. Ainda estava adolescente.
“Naquela negra montanha
Nascia o riacho eterno
Descia numa caverna
E desaguava no inferno
Com suas águas ferventes,
Que percorriam o averno”
Então, a sua imaginação fica muito solta. Quando eu fiz a versão de Tristão e Isolda, por ser uma história que eu gosto muito, de alguma forma também eu me senti, quase uma auto-homenagem. Mas tem um chamado, Florentino e Mariquinha no Tribunal do Destino, que é a história de um feminicídio, que depois é punido, mas não pela justiça da Terra, pela Justiça imanente e transcendente, que não deixa que nada passe. Esse eu gosto bastante. Eu tive que ir à Bahia pra fazê-lo, porque não tinha aqui, por mais que eu tentasse, estava com tudo na cabeça, mas não saía a contento. Aí lá eu fiz, não chovia há bastante tempo, deixei em um alpendre no fundo da casa do meu pai, em cima da mesa, não tinha ninguém na casa e de repente veio uma chuva e a água veio e molhou todo o caderninho. Falei: “Meu Deus”. Aí tive que esperar secar e passar, folha por folha. E felizmente o caderninho está lá, todo enrugadinho, mas eu consegui salvá-lo, então... e a história testemunha das gotas de chuva. A chuva que testemunha o homicídio, porque ninguém mais consegue ver e a mulher diz: “Essa água, essa chuva, essas gotas de chuva é que um dia vão te denunciar” e aí veio a chuva e quase acaba com o trabalho. Tem uma coisa meio de magia, né? Magia simpática, de atração dessas coisas. Então, esse eu gosto bastante.
P/1 – Eu ia só pedir, pra gente fechar, pra você contar um pouquinho também da sua relação, do seu filho, como que foi que...
R – Sim. Eu conhecia a Lucélia assim, mas a gente não tinha nenhuma intimidade. Aí, em 1999, eu voltei com o Costa Senna, a gente ia lançar um livro chamado Tributo à Jesus. Um livro muito mal feito, feito em uma gráfica de fundo de quintal, mas eu sei que teve um público muito... e ele foi pra Serra do Ramalho e aí ela estava se formando e tudo, aí foi quando a gente se aproximou. E estamos juntos até hoje. 99. Eu tinha 25 anos e ela tinha 18. E ela concluiu, eu concluí um ano antes o meu curso, ela concluiu um ano depois, aí o pai dela morreu. Na verdade, é o bisavô, que o pai dela ela viu uma vez na vida, uma pessoa com quem ela não teve qualquer contato e a mãe acabou deixando-a com a bisavó, Dona Maria Magalhães, também contava muitas... uma pessoa fantástica, absolutamente excepcional. E o esposo, o bisavô, Cupertino, o velho Cuba, como o povo chamava. E quando o pai, bisavô que é pai, acabou falecendo, a mãe morreu em 2004 e o pai em 2006, ela acabou vindo também pra São Paulo. Aí, em 2008, nasceu o Pedro Ivo. O Pedro nasceu e antes disso a gente já estava vivendo junto numa casa, na zona leste e assim, de pequenininho, a gente via que ele tinha uma tendência, gostava muito de desenhar. Riscou a casa toda, assim, não deixou um espaço que... aí identificava Patrick, Bob Esponja nos riscos dele. Se tinha um cone era o Patrick; se tinha um ângulo, Bob Esponja. Aí um dia a gente viu, na casa do meu irmão, que ficava na parte da frente, o Garfield e o John. Dava pra ver perfeitamente, identificar perfeitamente. Ele tinha três anos de idade. A gente sentiu, realmente. Desde então, folhas e mais folhas, ele começou a usar o computador cedo e tudo o mais e hoje faz animação. Ele mesmo baixa e faz. Óbvio, a gente tem que municiar, mas ele tem um talento muito... e a Lucélia começou a fazer _____ também, ele falou: “Não, mamãe, eu vou mexer só no computador. Não vou fazer... dá muito trabalho”. Então, ele tem essa vocação, realmente, esse chamado. Tanto que ele gosta das HQs, principalmente e dos desenhos, dos cartuns. E tem uma coisa com ele, que toda noite a gente tem que ler um livro infantil ou contar uma história pra ele dormir. Ele diz que só dorme bem assim. Essa é a pegada.
P/1 – Aí eu ia te pedir, pra gente fechar, pra você contar mais um conto popular.
R – Vamos lá! Deixa eu ver um que seja bem bacana:
“Tinha um homem, um sujeito tão preguiçoso, mas tão preguiçoso, que passava o dia todo na rede, enquanto a mulher fazia tudo, tudo mesmo. E a mulher ia e pedia: “Amor da minha vida, vai na roça arrancar uma mandioca” “Ô, mulher, você quer meu mal, é? Você já pensou? Eu vou com a enxada e, de repente, a enxada, ao invés de acertar na mandioca, acerta no meu pé e a tragédia é na certa” “Então vai caçar um tatu pra gente fazer um ensopado” “Eita, aí você está pedindo pra eu morrer, mesmo. Já pensou? Eu meto a mão na cova do tatu e, ao invés de tatu, tem uma cascavel. Olha isso aí, desejando a minha morte” “Mas vai fazer qualquer coisa, pelo amor de Deus, mas qualquer coisa que possa nos ajudar, pra comprar uma roupinha pros nossos filhinhos” “É, mulher, o que tem que vir, vai vir, mulher, não precisa a gente fazer isso” “Marido desgraçado, pior do que você não há de ter! Cachorro antes de latir, cobra antes de morder, eu vou te enterrar vivo, é isso que eu vou fazer”. Aí, o preguiçoso na rede ficou muito feliz, porque ele não ia levantar nem pra fazer as necessidades, né? E aí segue o cortejo. Só pega a rede, coloca a rede num (garanjal?) e os homens vão levando. Ela chamou os vizinhos e vão levando pra enterrar. Daqui a pouco o pessoal vai cantando aquelas incelências, daqui a pouco passa um compadre dele: “Ê, meu compadre morreu e eu não soube” “Morreu, não, compadre, mas essa praga, essa miséria, prefere ser enterrado do que ter que fazer qualquer coisa”. O homem ficou penalizado. Ele falou: “Não, não faça isso com meu compadre, não. Eu vou fazer o seguinte: eu vou dar um saco de feijão e um cacho de banana, só pra não enterrar meu compadre”. Aí o preguiçoso estica o pescoção da rede: “Essa banana e esse feijão é com casca ou sem casca?” Aí o compadre: “É com casca”. E aí ele volta: “Prossegue o enterro”. (risos) É isso.
P/1 – E como foi pra você contar sua história aqui, hoje?
R – Eu gosto muito, porque nos cursos, eu dou alguns cursos e hoje eu falo mais de contos, do que de cordel. Ainda bem! Porque tem tanta gente falando de cordel. E a gente acaba levando uma outra visão do conto, que normalmente as pessoas não têm. Eu me sinto muito à vontade, porque eu não sou um contador profissional. Eu passo da forma como... é como o Cascudo diz: “Assim me contaram e assim vos contei”. Então, eu acho que é isso que me move: tentar passar, sendo correio, sendo o elo dessas correntes. Hoje, por exemplo, eu devo conhecer mais de 200 histórias assim, de cor, pelo fato de já ter esse repertório desde a infância, mas de tê-lo ampliado a partir do que as pessoas me contam. E estou falando apenas daquilo que eu ouvi. Do que eu li nas coletâneas de contos daqui, de Portugal e de outros países, eu já não... que são, na verdade, versões das histórias que a gente ouve, né? O conto é a forma de expressão verbal mais universal que existe. Mais do que o mito, mais do que a lenda. O mito e a lenda são localizáveis no tempo e no espaço. O conto é universal. Nós estamos contando um conto que conta-se também na Índia. Logicamente que com a cor, com o sabor local. Mas a gente está contando a mesmíssima narrativa, na mesmíssima história.
P/1 – Eu ia fechar, mas teve uma coisa que soprou no meu ouvido aqui, pra te perguntar se você tem alguma história sua com a obra do Câmara Cascudo. Se ele representou alguma coisa no seu caminho, te levou a algum lugar?
R – Ele foi uma bússola, né? Eu já tinha dito antes os Contos Tradicionais, mas tem também os ABCs que ele reproduziu em Vaqueiros e Cantadores. Eu lembro que meu pai cantava muita cantiga que não estão... algumas que eu maltratei o ouvido de vocês aqui, mas o Rio Preto:
“Rio Preto foi um negro escravo de sujeição,
Mas depois da liberdade, ele deu pra valentão
Armado de cartucheira, de espingarda e mosquitão”
E aí eu vi que está no Vaqueiros e Cantadores do Cascudo e tem um livro chamado A Língua e a Bacia do Rio São Francisco, do Edilberto Trigueiros também, que há também esse romance. O poema narrativo. Antecessor do cordel. Então, Cascudo, sim, eu li também Superstição no Brasil, tem um ensaio chamado Anúbis. Ele falando do motivo do Tribunal Celeste. E a gente tinha os autos, ouvia as histórias, que São Miguel pesava as almas. O diabo acusava. Nossa Senhora defendia. Jesus julgava. Isso tem no Tribunal Celeste do antigo Egito, mas ele o faz assim de uma forma, ao mesmo tempo, tão profunda, mas que nos é tão familiar! Outro também é dos cachorros, como guia dos mortos, que está em São Lázaro: “Quem maltrata um cachorro não vai para o céu, porque erra a casa. São Lázaro não dá água, vai muito sedento, passa na casa do santo e o santo não o acolhe”. Então, tudo isso eu me senti tão representado, tão irmanado, mas tem uma do Coisas que o Povo Diz, do Cascudo, que ele cita a mãe da lua. A mãe da lua é uma ave, uma ave não canta, geme e, quando menino, ele diz que ouviu a mãe da lua cantando e aquilo foi muito assustador e eu também, a gente estava indo e eu não me recordo até hoje, mas eu acho que foi na Vargem Grande, porque na Vargem Grande a gente ia muito pras casas andando por dentro das roças, no meio do toco, das árvores e aí eu via aquela coisa assim e aquilo te arrepia, aquilo entra na sua alma, assim, porque você está no meio da noite, mesmo acompanhado. Então, você tinha medo, o pessoal ficava contando do lobisomem, do homem que foi com a mulher e o filho e aí depois ele some e aí vem um cachorrão pra tentar pegar a mulher e o menino e a mulher sobe numa árvore e arranca o xale, morde o xale e no outro dia a mulher está com o esposo deitado no colo. Quando ele sorri, ela vê que, no dente dele estão pedaços, fios do xale e aí você ficava olhando aquilo e falava: “Opa, daqui a pouco vem...”. Tinha uns cachorros meio doidos, umas raposas, uns bichos assim, você ficava com medo, né? Você achava que existia, realmente. O sétimo filho da minha tia, da tia da minha mãe, minha tia avó, tia Lô, se chama Adão. Por que chama Adão? Pra não se tornar lobisomem, né? Se é o sétimo filho, você tem que batizar como Adão, pra não... então, as pessoas acreditavam nisso. E quando menino, você também acredita. Depois você começa a ver, você começa a pesar mais as coisas. Não deixa de crer, mas ao mesmo tempo há um certo freio racionalista em tudo isso. E o Cascudo foi essa bússola, realmente. Porque os etnógrafos que o antecedem dão um tratamento muito científico, muito racionalista, muito positivista àquilo que eles retratam. Cascudo, não. Em momento nenhum ele descrê, coloca que os informantes passam pra ele de uma forma que ele não diz: “Eu creio”, mas ele também não diz: “Eu descreio”. Então, isso eu acho muito forte. Tem um escritor já falecido, né, grande autor negro, Joel Rufino dos Santos, quando eu li o Zumbi, ele diz que esteve na Serra da Barriga e que viu um homem com roupas antigas, com arcabouço e que dava um tiro com esse arcabouço. E ele diz textualmente que é o fantasma de Domingos Jorge Velho. Acho isso fantástico! Você não ter medo de quem vai lhe apontar o dedo, achando que você está sendo supersticioso. Essas pessoas são libertas e, nesse ponto, o Cascudo foi uma pessoa liberta de todos os dogmas, né, do seu tempo e de outros tempos também.
P/1 – E só a última coisa, que você tem um causo muito bom, quando você foi para a Arábia.
R – É, da Sharjah. A ______ me chamou pra participar de uma mesa com o Doutor (Abdul Aziz Almossalan?), do Institute for Raritate, Instituto para o Patrimônio de Sharjah, que o painel ia se chamar (Foxtails?). E aí acabaram chegando ao meu nome. Eu falei: “Por que tem meu nome?” “Porque você vai na fonte, os outros vão no que já está posto”. Então aceitei, foi muito bom e aí, na mesa mesmo, o Doutor Abdul Aziz me convidou pra ir e aí eu fui, falei: “Olha, também, se possível, com a minha esposa” “Não, tudo bem, está tranquilo”. Falei: “Que coisa boa”. A Lucélia nem passaporte tinha, né? A gente foi em setembro. Foi em agosto, a nossa mesa em setembro e a gente viajou e eu fui pra... juntamente com o Fábio Lisboa e a esposa dele, a Bianca também, que estava. O Fábio estava comigo, né, naquele momento, então, tudo convergiu. Ele acabou indo também. E lá eu fui chamado pra contar uma história. Só que tinha que ser em inglês, língua que eu leio razoavelmente bem, mas eu não falo tão bem e, pior ainda, eu ainda tenho dificuldade de entender muitas coisas. Eu hoje assisto cada vez mais filmes, pra tentar entender melhor. Mas eu não me senti à vontade pra contar em inglês, porque as crianças, lá, desde cedo, aprendem a língua nativa, o árabe, e o inglês. Só que aí eu conheci um rapaz, o Nemer Salamun, que nasceu na Síria, mas viveu muito tempo na Espanha. E que compreendia perfeitamente o português. E ele me disse: “Se entende espanhol, eu puedo traduzir-lhe”. Aí, então, eu escolhi um conto, O Príncipe Cavalinho, que Dona Jesuína me contou, está no livro Contos de Fadas. El Príncipe Cavalito. E aí eu narrava assim, um pedaço e ele, um ator fantástico, dava a deixa, eu já sabia quando dava a deixa, que ela já fazia assim e aí os meninos todos, todos, assim, enfeitiçados e aí eu retomava:
“O príncipe casa com três princesas e as duas primeiras não o reconhecem como homem e sim como um cavalo. E ele pá, mata-as de um coice. E a última, que o reconhece como homem, acaba por se casar”.
Então, um conto que é muito simbólico, né? Ou seja: aquelas que não reconhecem a humanidade, acabam se deixando morrer pelo lado animal do companheiro, que a gente pode chamar de animus, né? Que a gente falou de animal, o animus, esse aspecto masculino, né, da personalidade, do inconsciente. E ele foi absolutamente sedutor, foi uma pessoa muito importante nesse particular e aí eu acabei descobrindo: o Doutor Abdul Aziz pesquisa os seres fantásticos. E aí tem o camelo sem cabeça, o without head camel, com um saco, que rapta a crianças dentro de um saco. Tem um personagem, que é uma espécie de (din?), de demônio, que pisa. A pessoa está dormindo, ele puxa a língua e pisa na barriga das pessoas. Aqui a gente tem a pisadeira. Então, a gente achou muitas equivalências. Parece que é (bussuvala?), que é uma espécie de chacal, mas que está muito perto do nosso lobisomem. Então, a gente foi achando alguns liames, assim, muito ricos. Eu tenho esse livro dele, inclusive uma versão em português que foi comercializada na Bienal, mas também o original em inglês e em árabe. Então, foi, assim, uma experiência muito positiva, porque a gente descobre o que nos irmana, apesar de termos todas essas diferenças, barreiras e tudo o mais. Mas o que nos irmana, o que nos aproxima, o que faz da humanidade uma mesma família.
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