Projeto A Gente na Copa – História de Gente que Faz o País do Futebol
Depoimento de Francisco Carlos da Silva
Entrevistado por Teresa Ruiz e Joice Paes
São Paulo, 16/12/2013
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV_436_Francisco Carlos da Silva
Transcrito por Mariana Wolff
P/1 – Então, primeiro Fran, vou pedir para você dizer para gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Francisco Carlos da Silva, nasci em 31 de agosto de 1971, tenho 42 anos, nasci no estado do Ceará, tenho o privilégio de dizer que sou um dos poucos que nasceu através de uma mão de uma parteira da minha geração, isso me deixa muito feliz.
P/1 – Qual que foi a cidade?
R – Potengi, no Ceará.
P/1 – E agora, o nome completo dos seus pais e se você souber também data e local de nascimento.
R – Sou filho de Francisca Rodrigues da Silva, nascida em Potengi, no Ceará também, Francisco José da Silva, que nasceu no estado de Pernambuco, numa cidade chamada Bodocó, meu pai é falecido e minha mãe ainda está viva.
P/1 – E o que é que os seus pais faziam?
R – O meu pai era caminhoneiro e a minha mãe era dona de casa e com a separação, aos dois anos de idade, minha mãe teve que se ver numa cidade como São Paulo, que nós chegamos aqui muito cedo e ela teve que trabalhar. Então, a minha mãe sempre foi para mim o maior exemplo que eu tive, porque uma pessoa analfabeta criar dois filhos numa metrópole como São Paulo e hoje nós sermos, assim, pessoas do bem, que eu digo que não é uma qualidade, é uma obrigação, porque nós somos criados no meio de uma selva, ser criado numa periferia, no meio de tudo que a gente conviveu. Então, eu posso dizer que eu sou uma pessoa abençoada por ter tido os valores que a minha mãe me passou quando garoto.
P/1 – E como é que você descreveria os seus pais? Assim, como que eles eram como pessoas? Como é que era o convívio familiar dentro de casa?
R – A lembrança que eu tive do meu pai é uma lembrança, assim, muito pouca, porque eles se separaram eu tinha um ano e 11 meses de idade e o meu irmão tinha 11 meses. Então, eu sempre tive na minha mãe a referência de pai, de mãe, de ídolo na verdade. Então, eu conheci meu pai aos 18 anos de idade, porque eu fui atrás, porque eu tinha essa vontade de conhecer o meu pai, queria saber da história dele, porque eu ouvia falar muitas coisas que ele fazia, a história do meu pai no Nordeste, uma pessoa que sempre viveu a vida como se vivesse o último dia. Então, isso fazia com que eu tivesse aquele desejo de conhecê-lo e quando chegou esse momento eu não tive coragem de falar para ele tudo o que eu tinha para dizer, ele faleceu o ano passado, a gente teve alguns momentos, assim, de eu querer falar para ele coisas que eu nunca tive coragem de falar, da importância que ele tinha para mim, mesmo ausente, quantas vezes eu fui competir e eu olhava os meus amigos lá com o pai, com a mãe, e eu não tinha ninguém ali para me dar um apoio assim. Então, a figura do meu pai sempre foi muito ausente na minha vida pessoal (emocionado), mas aqui dentro, eu queria provar o dia que eu conhecesse o meu pai, que eu tinha herdado dele a coragem, a valentia, a determinação e que hoje eu sinto assim, por não ter tido a oportunidade de passar para ele muitas das coisas que eu realizei.
P/1 – Ele te viu correr alguma vez?
R – Não, ele acompanhava muito por noticiário, assim, por matérias. A convivência que eu tive com ele sempre foi uma coisa, assim, muito fria, porque faltava aquela coisa da presença. Então, tanto que quando eu conheci o meu pai foi no período em que a minha esposa ficou grávida do meu filho, que a gente numa conversa, ele me perguntou se eu realmente queria me casar, que eu era muito garoto, que eu era muito novo, e que eu não precisaria me casar, e a única coisa que eu falei para ele, que acho que foi a única vez que eu cobrei do meu pai todos os anos de ausência na minha vida, que eu falei para ele: “Poxa pai, mas você quer que eu faça com o meu filho o que você fez comigo?” Talvez ele tenha falado isso nem tenha sido por maldade, mas foi uma coisa que me marcou muito assim, e eu tinha, assim, a convicção de que eu seria o melhor pai do mundo, por ter tido toda essa ausência, por não ter tido alguém que me acompanhasse, que me levasse nos jogos, ou que me levasse para lutar ou que me levasse nas competições de corrida e quando o meu filho nasceu, eu prometi para mim mesmo que eu seria o melhor pai do mundo e tenho tentado ser o melhor pai do mundo, mostrar para ele os valores que talvez o meu pai não tenha conseguido me transmitir, mas que eu vi na minha mãe todos os valores de caráter, de dignidade. Enquanto minha mãe trabalhava, uma mulher numa selva de pedra, como São Paulo, deixava os filhos com a minha avó e com a minha tia, minha mãe é analfabeta, saía para trabalhar e a única coisa que ela me pedia era que estudasse. Então, isso foi a minha lembrança de garoto era que eu tinha que ser o melhor aluno da sala de aula, porque se eu reprovasse de ano, a minha mãe não tinha condições de me dar o material novamente no ano seguinte, eu achava que assim, poxa, eu tenho que ser o melhor, porque tenho que dar essa alegria para minha mãe. Minha mãe saía de casa dez horas da manhã para trabalhar e retornava às 11 e meia da noite e quando ela chegava em casa, a primeira coisa que ela fazia era me abraçar, me dar um beijo e perguntar como é que tinha sido na aula (emocionado). Então, a referência que eu tinha da minha mãe era essa, de uma mulher guerreira, de uma mulher lutadora, que batalhava todos os dias, que ganhava um salário mínimo.
P/1 – Com o que é que ela trabalhava Fran?
R – A minha mãe era tecelã numa empresa chamada Guilherme Jorge.
P/1 – E ela chegou a comentar com você assim, você veio para cá muito pequeno, um ano, dois anos, foi isso que você disse?
R – Isso, muito criança.
P/1 – Mas ela comentou com você, chegou a te contar como foi a vinda para cá, como foi essa viagem? Qual foi a motivação da viagem? Por que é que ela veio?
R – Como todo nordestino, as pessoas viam São Paulo como uma terra de oportunidades, e os meus tios já moravam aqui, a minha mãe sofria muito no Nordeste, porque uma pessoa com dois filhos lá, recém-abandonada pelo marido, quantas e quantas vezes eu ouvi depois de adulto, a minha avó contando história de que ela pedia esmola para poder nos sustentar. Porque pode ter faltado tudo na minha vida, mas nunca faltou amor e carinho por parte da minha mãe, da minha avó e da minha tia que me criaram e essa determinação de poder tentar dar o melhor para gente. Então, eu trago comigo até hoje que essas histórias que a minha mãe me contava, que a minha avó me contava são combustível que me fazia querer mudar a minha vida e através da mudança da minha própria vida, mudar a vida da minha família. Eu costumo dizer às crianças do meu projeto que, assim, o destino de um ele pode ser compartilhado por todos, e eu sempre fiz questão de poder compartilhar o destino da minha família com o meu destino. Aos 12 anos de idade, eu me lembro como se fosse hoje assim, a minha mãe chorando, doente, indo trabalhar, muitas vezes pegava o ônibus errado, porque não sabia ler e aquilo foi me deixando, assim, meio que revoltado, porque eu via os meus amigos um pouco mais velhos ou da minha idade começando a ganhar dinheiro, fazendo as coisas erradas e eu só estudava e um dia eu virei para minha mãe e falei assim: “Poxa, mãe, eu vou parar de estudar, porque eu não acho justo a senhora se matar de trabalhar e a gente estar passando tanta necessidade aqui. Então, vou parar de estudar e vou trabalhar”, aí a minha mãe com lágrima nos olhos, olhou para mim e falou assim: “Poxa, filho, mas você quer ser como a sua mãe, que…” (choro/muita emoção) e assim, a minha mãe falava para mim assim: “Poxa, a única coisa que eu tenho na minha vida é o meu trabalho, um dia Deus vai me ajudar”, falei: “Poxa mãe, como que a senhora pode falar que Deus vai lhe ajudar?” “Não, um dia Deus vai me ajudar e eu vou ter a minha própria casa, a gente vai ter a nossa casa”, porque a gente vivia assim no bairro, pulando de galho em galho, como se fosse macaco.
P/1 – Deixa eu te perguntar isso, Fran. Para eu entender melhor essa coisa da sua infância, assim, vocês vêm morar em São Paulo, aonde vocês vêm morar? Qual que é o bairro ou a região?
R – Então, a minha vida inteira eu vivi em Itaquera. Quando a minha mãe saiu do nordeste, lá de Potengi no Ceará para vir para São Paulo, os meus tios já moravam aqui em Itaquera e a minha mãe, então o meu tio construiu uma casa, um cômodo, a gente morava em um cômodo, então morava eu, o meu irmão, a minha mãe, a minha avó, a minha tia e mais um primo meu que veio morar com a gente desde quando nasceu. Então, nós éramos em seis pessoas num cômodo, e eu via a luta da minha mãe diária para poder sair para trabalhar para pagar o aluguel, para pagar a água, para pagar a luz, nos dar educação.
P/1 – Você se lembra como é que era o bairro? A rua? Você tem uma memória forte assim?
R – Tenho, porque essa rua é a rua onde eu pintei hoje uma pista de atletismo no asfalto.
P/1 – É a mesma rua?
R – É a mesma rua, porque é a relação que eu tenho, e a identificação que eu tenho com as melhores lembranças da minha vida.
P/1 – E como é que era essa rua na época da sua infância? Assim, descreve para gente mesmo, era asfaltada, era uma rua de terra, tinha iluminação, como é que eram as casas?
R – Então, assim, nós morávamos num cômodo de cozinha que o meu tio construiu, uma rua asfaltada, onde nós jogávamos bola até três, quatro hortas da manhã, não tinha o problema do tráfego, não tinha o problema de polícia passando toda hora, a gente tinha liberdade para brincar na rua, mas ao mesmo tempo, tinha o cuidado das mães, que viviam chamando a gente para dentro de casa, mas como a gente estava na porta de casa, não oferecia perigo, e eu brinco que foi lá que eu aprendi a não ter medo da bola, porque a gente jogava bola no asfalto eu e os meus amigos, alguns começaram a mudar de caminho, começaram a se interessar por outras coisas, começaram a beber, outros começaram a usar drogas, porque também não é muito diferente nos dias de hoje, e eu sempre tive no esporte a questão de querer mudar a minha vida.
P/1 – O que é que vocês jogavam? Você fala “a gente jogava bola”, que jogo era? O quê vocês jogavam? Futebol?
R – É, jogava rachão valendo Itubaína, o time que perdesse, a gente apostava Itubaína, eu, meu irmão, meus primos.
P/1 – E quem que participava desse jogo? Como é que eram esses jogos? Eram na rua? Eram no campinho?
R – Não, não, nós jogávamos na rua, mesmo. Com o passar do tempo, nós construímos um campinho de terra e desse campinho de terra, só que no campinho de terra a gente podia jogar só até às seis horas da tarde por causa da luz. Acabava o jogo no campinho de terra, a gente ia jogar na rua e ficava madrugada a dentro jogando bola, e conversando e compartilhando sonhos. 90% dos meus amigos daquela época, hoje boa parte deles ou morreram ou estiveram presos, ou simplesmente, assim, desapareceram, por quê? Porque estamos falando de uma geração de 30 anos atrás, eu estou com 42 anos, isso era época de dez, 12 anos de idade, que foi quando a minha mãe chorando, veio falar para mim que precisava mudar, que ia mudar de casa, porque o aluguel tinha subido e a gente tinha essa questão de ficar pulando de galho em galho, e foi quando eu falei para ela que eu queria trabalhar, que era para poder ajudar e ela veio para mim e falou: “Poxa, mas você não precisa trabalhar, você vai ser igual a sua mãe, sabe? Analfabeto! Você tem que ter um futuro, a gente não pode continuar nessa vida, e você tem que estudar, porque eu não tive oportunidade de estudar, enquanto vida eu tiver, vocês vão estar estudando”, e foi quando eu falei assim: “Poxa mãe, a senhora vive falando: ‘Deus vai me ajudar, nós vamos ter uma casinha, Deus um dia vai me ajudar’, como Deus pode ajudar a senhora se a senhora ganha um salario mínimo por mês? A senhora já parou para fazer uma conta, quantos anos a senhora tem que trabalhar sem comprar roupa, sem pagar aluguel, sem pagar água, sem pagar luz, juntando dinheiro para poder comprar uma casa? A senhora vai trabalhar a sua vida inteira e a senhora nunca vai ter uma casa”, e ela repetiu novamente: “Não, mas um dia Deus vai me abençoar e eu vou ter a minha casa”. E o tempo foi passando, e eu fui descobrindo dentro do esporte a possibilidade de mudar a minha vida, foi quando eu conheci a minha esposa aos 18 anos de idade.
P/1 – Fran, posso só te interromper um minuto, porque a gente está assim, eu vou puxando para você, antes de você contar como você conheceu a sua esposa, contar um pouco mais da infância, daí eu vou te perguntando para gente poder ter uma ideia geral mesmo de como é que foi a sua trajetória e a sua vida.
R – Sim.
P/1 – Então, eu queria saber, voltando para questão da infância, você me falou dessa coisa de jogar bola, que parece que é bastante forte, do futebol, aí eu queria saber como é que era a relação com o futebol assim, na família, vocês torciam para algum time? Você torcia para algum time nessa fase?
R – Sim, eu sempre fui corintiano, desde garoto.
P/1 – E como que você se tornou corintiano? Você se lembra, assim, o momento?
R – Tinha uma pessoa no bairro, nós ficávamos jogando bola, fazia os rachões, inclusive, essa pessoa é padrinho do meu filho hoje, do Kauê, e ele foi uma pessoa que foi assim, muito presente na minha vida. Então, a gente ficava jogando bola na rua e ele dava doce para gente, refrigerante, gostava de ajudar a garotada do bairro, ele tinha um bar e um dia ele falou para mim: “Poxa, você vai ser corintiano, você vai jogar no Corinthians”, até então, eu devia ter aí para sete, oito anos de idade, não tinha interesse por futebol, mas pela questão daquela pessoa que nos ajudava, que dava doce para gente, a gente fazia o Judas lá, era no bar dele que a gente ia malhar o Judas, entendeu? Eu e os meus amigos, coisa que nem existe mais hoje, meus filhos talvez nem saibam assim, como era legal você construir o boneco, ir na porta do bar, chegar lá, ficar martelando o boneco, aí a pessoa vinha jogava aquele monte de bala na rua, a gente ficava catando as balas, eu e os meus amigos e por conta dessa pessoa eu acabei virando corintiano. E o meu sonho era jogar futebol no Corinthians, eu tive a oportunidade de jogar algumas vezes contra o Corinthians no futsal, e brincava, porque “Poxa, se eu não conseguir, vai o meu filho”.
P/1 – E você tinha algum ídolo, assim, do Corinthians? De jogador?
R – Eu nunca tive um ídolo no futebol, especificamente. Eu sempre assim, torcia muito para que o meu time ganhasse, mas eu sempre tive uma curiosidade, que eu achava que quando o time perdia a culpa era do goleiro, porque se o goleiro não tomasse gol o jogo seria zero a zero no mínimo seria um empate, que era o que, inclusive, me motivou inclusive a ser goleiro. Eu me lembro quando eu devia ter uns dez anos de idade, que a seleção de 82, que foi uma seleção assim, que encantou o mundo e eu como todos os meus amigos, a gente colecionava figurinha, sabe? A gente colava, na época, chiclete vinha com as figurinhas do jogador, a gente comprava aquele monte de chiclete, ou ia no bar desse meu amigo lá, ele arrumava os chicletes para gente. Você ia comprar dois chicletes, ele dava dez, porque ele gostava de ajudar a garotada. E a gente ficava colando as figurinhas nos álbuns. E quando o Brasil perdeu a Copa, foi eliminado em 82, eu falava assim: “Poxa, um dia eu vou ser um goleiro e o Brasil nunca vai perder uma Copa do Mundo” (risos), coisa de criança assim, sabe, porque eu achava que o goleiro que era o culpado por ter perdido, por ter tomado os gols.
P/1 – E essa Copa de 82, assim, você lembra de algum jogo específico?
R – Eu lembro o jogo que o Brasil foi eliminado, que a gente chorava muito, a garotada assim, quando perdemos lá, poxa.
P/1 – Onde você viu esse jogo? Você lembra com quem você estava?
R – Eu estava na casa da minha tia, porque a televisão em casa pegava muito ruim, era preta e branca, e eu fui assistir na casa da minha tia, com os meus primos, e quando o Brasil perdeu assim, foi aquela choradeira, eu lembro de amigos assim, mais velhos que soltavam balões, os balões, eles se batiam no ar, a quantidade de balão que tinha, aquele balão colorido, sabe? Com a bandeira do Brasil, balão verde e amarelo, as ruas todas pintadas, quantas e quantas noites eu virei desenhando no chão, eu desenhava, porque eu tinha facilidade para desenhar, os meus amigos iam lá e ficavam pintando os desenhos. A gente enfeitava.
P/1 – O que é que vocês desenhavam?
R – Desenhava bola, desenhava os jogadores, a seleção, pegava e reproduzia, pegava alguma figurinha, ia lá e reproduzia o desenho do jogador, reproduzia “Rumo ao Tetra”, que o Brasil era tri e esse tetra nunca chegava. Por quantas Copas do Mundo, eu e os meus amigos, a gente chorou, nós chegamos a sair batendo nas portas das casas. Você imagina um grupo de garotos aí de 13, 14 anos de idade, ia na porta do vizinho, batia palma para pedir dinheiro para enfeitar a rua, aí a gente ia lá na 25 de Março comprava aquele monte de fita amarela e verde, passava a noite inteira cortando, pedia ajuda para os pais, ia desenhar, pintava a rua, enfeitava a rua inteira e vinha a frustração, Brasil ia e perdia. Aí, eu sempre achando que a culpa era do goleiro (risos).
P/1 – E nessa Copa de 82, você não se lembra de nenhum jogador que você admirasse?
R – O Sócrates. Muito, até porque eu era corintiano, e ele jogava no Corinthians e foi uma das pessoas assim, que eu me lembro que todo mundo chamava ele de “Doutor” e um dia eu quis saber porque chamavam ele de “Doutor”, um cara que naquela época já tinha uma visão de que o jogador de futebol precisava estudar, precisava se formar, precisava ter uma carreira paralela a de futebol, porque quando ele parasse de jogar bola, ele tivesse condição de sobreviver. Então assim, eu via o Sócrates como um cara a frente da geração dele. Mesmo com a pouca idade que eu tinha, dez para 11 anos de idade, eu falava assim: “Poxa, o doutor Sócrates”, que era a esperança de todos nós assim, e é uma geração. Aí via lá o goleiro Valdir Perez, via o Zico na época, via outros jogadores assim, que encantavam o mundo e de repente, aquela seleção não emplacou e é uma seleção que todo mundo fala até hoje, porque eu tinha pouca idade me lembro dos jogos, me lembro da questão dos balões se batendo no ar, me lembro da questão do pessoal chorando na rua, as ruas todas enfeitadas.
P/1 – Muita frustração, assim, né?
R – É, frustrou, frustrou. E eu sempre fui um cara muito emotivo, assim, deu para você perceber, eu choro a toa, pô, eu me lembro que eu chorava compulsivamente, aí a minha mãe falava para mim assim: “Calma filho, calma, foi só um jogo”.
P/1 – E você se lembra Fran, você se lembra a primeira vez que você foi a um estádio, assistir um jogo?
R – Lembro, fui assistir Ponte Preta, não foi nem um jogo do Corinthians, que era o último jogo do campeonato paulista, acho que foi em 83 para 84, o meu tio Manoel que me levou, e eu lembro que quando eu entrei no campo lá no Canindé, que era o estádio da Portuguesa, que era Ponte Preta e Portuguesa, nossa, aquele campo lotado assim, e nem era o jogo do meu time e eu via o pessoal gritando, e eu imaginava os caras gritando o meu nome. Fiquei muito triste assim, porque eu falo até hoje, pelos clubes que eu passei, já passando dessa fase de 12, para 13, para 15 anos de idade, quando eu fui para o São Paulo.
P/1 – Quando você começou a jogar?
R – Eu comecei a jogar com oito, nove anos de idade nos rachão da rua. Só que eu era o menor da turma, sempre fui o menor da turma, então o menor vai para onde? Vai para o gol. Aí, os caras me colocavam no asfalto para pegar no gol e eu me jogava, ralava, arrancava o dedo do pé, a cabeça do dedo do pé, ralava o joelho, cotovelo. E um dia, um cara me descobriu jogando na rua, falou: “Poxa, você leva jeito, tal”.
P/1 – Quem era essa pessoa?
R – É um amigo, que inclusive, faleceu, ele era o treinador de um time juvenil que nós tínhamos, chamado “Falcão do Morro”. Um desses caras abnegado, um cara que não tem a menor condição, mas um cara que quer tentar oferecer alguma coisa para criança, para ver a alegria da garotada e nós começamos a jogar no juvenil do “Falcão do Morro” lá, e eu com 13 anos de idade, comecei a jogar no time de adultos do “Falcão do Morro”, eu entrava no campo para jogar, os caras falavam assim: “Pô, vocês vão colocar uma criança para jogar comigo?”, aí me vinha a lembrança: ‘poxa, mas o goleiro tem que ter um diferencial’, eu com 13 anos de idade, hoje eu tenho 1,69, você imagina eu com 13 anos de idade, qual que era o meu tamanho! E quando eu entrava para jogar com os adultos nos jogos de adultos, os caras falavam para mim assim: “Poxa, mas você vai colocar uma criança, vai machucar”, e eu virava para o cara e falava assim: “Quando tiver um pênalti, eu quero que você bata que eu vou te mostrar quem é a criança”, sabe? Essa questão de desde pequeno, você ter personalidade e se impor. E quantas e quantas vezes o Luiz, que é esse meu amigo que faleceu, me levava para jogar com 14, com 15 anos de idade nos times de adulto, porque o normal é um garoto que joga na linha, que seja um centroavante, que seja um lateral, que seja um ponta, que seja um meia-esquerda, ele jogar no meio dos adultos, mas um goleiro com 13 para 14 anos de idade, com a altura que eu tinha jogar no time de adultos, então assim, eu fui perdendo o medo, e adquirindo respeito, porque onde eu ia, os caras olhavam e falavam: “Pô, esse pequenininho aí, ele é danado!” E um dia, surgiu a oportunidade para ir no São Paulo. Eu e os meus amigos saímos de casa assim, coisa que essa geração não sabe o que é isso, sabe?
P/1 – Você estava com quantos anos? Quatorze? É isso?
R – Quinze para 16. A garotada de hoje sai às quatro horas da manhã, ou chega em casa às quatro horas da manhã para usar droga, para beber e eu saía com os meus amigos (choro/emoção) atrás dos nossos sonhos, alguns, inclusive, já faleceram. Pegava um ônibus às quatro horas da manhã, porque não tinha metrô, pedia para o cobrador para deixar a gente passar por baixo no ônibus, escondido da minha mãe, para poder ir lá no São Paulo (choro/emoção). Aí, eu fiquei alguns dias lá no São Paulo, o treinador me chamou e falou assim: “Pô, garoto”, primeiro, começou com um teste, chegamos lá, tinha mais de 500 garotos lá, chegamos de manhãzinha. Pegamos o ônibus, passamos por baixo da catraca, aí o cobrador falou assim: “Pô, mas onde vocês vão? Pô, quatro garotos, meu, a essa hora” “A gente vai lá no São Paulo, a gente vai fazer um teste no São Paulo”, daí, o cobrador: “Mas quem vai com vocês?” “Não, a gente vai sozinho” “Mas e a mãe de vocês?” “Nossa mãe não sabe, a gente combinou todo mundo, e saímos escondidos” “Mas como é que vocês vão para lá?” “A gente está só com o dinheiro da passagem” “Não, passa por baixo”, aí o cobrador deixou a gente passar por baixo, aí brincou: ‘Olha, quando vocês estiverem na seleção, lembra da gente”. Aí fomos, chegou lá no São Paulo, eu era o menor, no meio de sei lá, 300, 400 garotos, os caras: “Quem é ponta-direita?” Todo mundo levantava a mão. “Quem é ponta-esquerda?” Todo mundo levantava a mão, “Quem é goleiro?”, aí eu levantava a mão, “Vem você, vem você”, ia pegando assim, e dava uniforme, dava uniforme. Aí, eu fiquei no último time, porque eu era o menorzinho, os caras escolhiam os goleiros maiores e o meu time só ficou a garotada menor e chegou no último grupo com os jogadores maiores. Aí o cara falou assim: “Bom”, deu colete para todo mundo, aí chegou na minha vez, ele falou: “Você joga do quê?”, eu falei: “Eu sou goleiro” “Cadê a sua roupa?” eu falei assim: “Não, a minha roupa está aqui, eu trouxe a chuteira e o calção, e o meião”, ele falou: ‘Você vem para guerra e não traz arma?” eu falei para ele: “Mas as minhas armas estão aqui”, e apontei para as minhas duas mãos assim. Aí, ele falou para mim assim: “Bom, já que você não trouxe camisa, você vai jogar sem camisa”. Aí, os meus amigos me chamaram assim e falaram assim: “Olha”, eu falei assim: “Meu, que sacanagem, pô eu estava aqui desde manhã, a gente pega agora só um time de molequinho, vai jogar com outros caras que são marmanjos”, aí ele virou para mim e falou assim: “Eu nunca te vi jogar, mas eu confio em você, eu nunca vi ele jogar e eu confio em você”, que são os garotos que estavam lá fazendo teste, “E outra, os caras são tudo grandão, vamos para cima deles”, aquilo ali despertou aquela coisa de falar: “Caramba meu, é verdade, eu estou tendo a oportunidade da minha vida, e o cara primeiro está me criticando, porque está falando que eu não tenho camisa para jogar, não me deu nem sequer a camisa de goleiro, joguei sem camisa no gol” e quando começou o teste assim, a molecada do meu time era muito boa, muito boa e a gente começou e começou vim bola no gol e eu comecei a pegar, pegar, pegar, teve uma das bolas que eu peguei, eu lembro assim, a bola veio, eu peguei a bola, cai, ralei toda costela, porque estava sem camisa, era terra batida, não era como hoje, o campo granado, e quando acabou, o cara me chamou e falou assim: “Poxa, mas você é danado, né?” e eu fiquei um período no São Paulo e no dia que o cara me chamou para me mandar embora, ele falou assim: “Olha, Fran, eu nunca vi um goleiro tão ágil assim debaixo dos três paus como você”, porque eu tinha jogado minha vida inteira com adultos, eu ia jogar com os caras da minha idade, para mim era muito fácil, “Só que assim, goleiro é como jogador de basquete, se não crescer, não tem como, você já está com 15 para 16 anos de idade”, sabe? Não tinha acho que essas tecnologias que tem hoje, que falam, que injetam nos caras e os caras, sabe? E fui mandado embora, aquilo ali para mim foi como se eu tivesse, abrir um buraco no chão e eu me jogar lá, porque todo o meu sonho foi embora, acordei, falei: “Não quero mais saber de futebol, não quero mais saber de nada”, e fiquei assim, sei lá, quase quatro meses, cinco meses sem querer saber de jogar bola. Aí, um dia os amigos me chamaram para jogar futebol de salão. Aí, as coisas começam a acontecer assim, porque eu fui jogar futebol de salão num time de garoto lá na Igreja da Penha, e tinha um time que treinava lá, que disputava o campeonato paulista. E os caras me viram jogando e o dono do time me chamou e falou: ‘Quantos anos você tem?” eu falei: “Vou fazer 16 anos”, ele falou: “Pô, estou montando um juvenil, você não quer vir jogar para o meu time? A gente vai disputar a federação”, eu: “Federação?” não sabia nem o que era federação, não tinha ideia.
P/1 – E o time, qual que era o time?
R – Cabral Piratininga. Aí, eu falei assim: “Legal” “A gente treina aqui toda terça e quinta, e a gente vai disputar o campeonato”. E eu comecei a ir treinar lá e assim, o primeiro dia que eu cheguei para treinar, o cara veio com um saco de tênis assim, desse tamanho, despejou aquele monte de tênis assim, e tinha um tênis com uns nomes assim, do lado, ai ele falou assim: “Olha, você vai lá e pega um, vê o seu número, porque aqui, a roupa de goleiro está ali e tal,” falei: “Mas eu não ia treinar no juvenil?”, falou: “É, mas o juvenil a gente está montando, enquanto não monta o juvenil, você vem treinar aqui como principal”, que era o time de adultos. E comecei a treinar com os caras lá, eles me davam tudo. Acabava o treino tinha um bar, ele falava assim: “Vai lá no bar e pega o lanche”, eu nunca ia pegar o lanche, porque aquilo ali para mim era tudo muito novo. De repente, eu estou lá, o cara vem, me dá o lanche e eu falei: “Não, eu não quero” “Mas por quê que você não quer?” porque eu ficava com medo de o cara falar assim: “Pô esse juvenil vem aqui só para comer, meu, vou mandar ele embora”, então eu não queria dar despesa para os caras, quando os caras viraram para mim e falaram assim: “Olha, juvenil, não vai ter mais o juvenil, nós não vamos entrar mais com o juvenil, vai ter o principal”, eu falei: “Tá, mas e aí?” falou: “Não, mas vamos te federar, você vai ficar jogando com a gente no principal”, sabe? Aquilo ali para mim passou 30 dias, ele veio com, o envelope, deu na minha mão assim, tinha dinheiro dentro, aí eu falei para ele: “Mas o quê que é isso aqui?” com um agasalho bonito para caramba da equipe, falou assim: “A gente te federou, agora você vai começar a viajar com a gente, vai nos jogos com a gente, você vai ser o terceiro goleiro, porque você é juvenil” e tal, e eu: “Não, mas não precisa cara, eu quero jogar por prazer, eu não preciso disso”, porque eu tinha medo de pegar o dinheiro e as coisas, e os caras me mandarem embora, porque eu não tinha quem me orientasse.
P/1 – Você se lembra o que é que você fez com esse dinheiro?
R – Então, eu cheguei em casa com o envelope, com aquele agasalho debaixo do braço, todo feliz para mostrar para minha mãe às onze horas da noite, a minha mãe falou assim: “Mas quem te deu esse dinheiro?” “Não, mãe, eu ganhei jogando bola” “Eu quero saber de onde veio esse dinheiro, ninguém dá um dinheiro por dar” “Não, mãe eu assinei, eu sou federado, agora” e a minha mãe falava assim: “Não, esse dinheiro você pegou em algum lugar”, o medo da minha mãe de eu ter feito qualquer bobagem e ter pego aquele dinheiro. Aí, mostrei o agasalho para ela, mostrei a carteirinha da federação para ela, que os caras tinham me dado, que foi aonde eu comecei a desenvolver dentro do futebol.
P/1 – Você lembra assim, a primeira vez que a sua mãe te viu jogar?
R – A minha mãe me viu jogar na final do campeonato paulista em 2003, porque ela não tinha coragem de ir.
P/1 – Ela demorou muito, então?
R – Muito tempo, muito tempo! Até porque ela sempre trabalhou demais, a vida da minha mãe foi trabalhar. A minha tia, que é como se fosse minha mãe, e a minha avó, a qual eu dei para batizar o meu filho, o Kauê, e eu fiz essa promessa para ela quando eu tinha 12 anos de idade, minha vó faleceu em 2001, eu me lembro que aos 12 anos de idade, eu já saía assim, gostava de correr, vivia correndo, saltando na rua. Um dia o cara da Eletropaulo – a gente brincava, tinha duas madeiras assim, a gente colocava no chão, brincava de ir saltando, ia saltando, saltando – aí, parou um cara e ficou olhando, olhando assim, disse: “Garoto, eu quero falar com a sua mãe” “Mas eu não fiz nada! Eu não fiz nada, eu estou brincando”, porque eu tinha um respeito muito grande pela minha mãe e o medo de fazer alguma coisa errada, e a minha mãe trabalhando no serviço lá que todo dia ela chegava em casa e falava assim: “O maior medo que eu tenho é de um dia eu chegar em casa e ter a notícia de que vocês fizeram alguma coisa errada” e o cara falou assim: “Eu quero falar com a sua mãe, porque eu sou lá da Eletropaulo e eu vi que você salta muito bem e eu quero te levar para o clube da Eletropaulo”
P/1 – Que idade você tinha?
R – Doze para 13. Nessa mesma rua onde eu rachava, ficava brincando de jogar bola e eu tive sempre uma qualidade, assim, boa, por quê? Porque eu via no esporte a chance de mudar a minha vida, então eu queria fazer de tudo. Eu fiquei seis meses nesse mesmo período, eu ia todo dia para uma academia, sentava lá e ficava olhando os caras treinar e os caras ficavam treinando, com dez para 11 anos de idade. No dia seguinte, eu ia lá na academia e ficava olhando, aí um dia, o professor virou para mim e falou assim: “Escuta aqui garoto, o que é que você vem fazer aqui todo dia?”, aí eu falei para ele: “Não, eu só venho assistir” “Mas por que é que você não treina?” “Porque a minha mãe não tem dinheiro para pagar academia para mim” “E seu pai?” “Cara, eu não tenho pai” “Então, você vem treinar amanhã” “Mas eu não tenho grana, cara. Minha mãe não tem condições de pagar academia para mim treinar”, professor Simbah, mestre de capoeira.
P/1 – A academia, você se lembra o nome?
R – Não lembro.
P/1 – Não tem problema.
R – O Simbah virou para mim e falou: “Olha, Francisco”, depois que eu virei “Fran”, “Olha Francisco, é assim: existe um tipo de coragem que a gente nunca imagina ter. Até chegar um dia que ela é a única coisa que nós temos. Se você tem coragem para em seis meses ficar vindo aqui todos os dia, ficar observando, tenha coragem para começar a treinar com a gente”. Aí, na academia de capoeira eu virei o “Borracha”, que era o cara que tinha abertura negativa, fazia saltos perfeitos, e comecei a fazer capoeira e da capoeira comecei a correr, depois dessa frustração de ter ido para o São Paulo, ter sido mandado embora, acertado com o futsal, comecei a viajar com os caras, comecei a pegar experiência.
P/1 – E Fran, nessa fase você estava o tempo todo na escola?
R – O tempo todo estudando.
P/1 – Você começou a estudar com que idade?
R – Oito anos de idade, nunca reprovei. É o orgulho que eu tenho que dar para minha mãe.
P/1 – E onde você estudava?
R – Escola pública, estudei no Álvares de Azevedo, fiz o primário lá, de primeira a oitava, depois fui para Aparecida Rahal, fiz o colégio lá, terminei o colégio com 17 para 18.
P/1 – E onde ficavam essas duas escolas?
R – Itaquera.
P/1 – E nessa fase assim escolar, você se lembra de algum professor marcante?
R – Ah, eu tinha uma professora de História, professora Efi, que era uma pessoa fantástica, uma negra.
P/1 – Por que é que ela te marcou?
R – Eu sempre, desde garoto, fui muito preocupado com as questões sociais e a professora Efi era uma negrona, alta, bonita para caramba e que se empunha na sala de aula e ela sempre chegou para gente e falou assim: “Vocês nunca tenham vergonha da condição de vocês, nunca deixem que as pessoas menosprezem a sua sabedoria, ou menosprezem a sua capacidade de se adaptar. Isso é do brasileiro, nós somos uma raça que somos descendentes de negros, de africanos, tenham orgulho disso”. E um dia, uma pessoa virou para professora Efi: “Nossa, Efi, você é uma negra de alma branca”, e ela bateu na mesa e falou assim: “Por que é que eu não posso ser uma negra de alma negra? Qual a diferença entre uma alma branca e uma alma negra?” e isso me marcou muito, por quê? Porque desde garoto, eu sofri o preconceito, inclusive de familiares meus, que eu era o baianinho que veio do nordeste, o cabeça chata que ia virar bandido, e que a minha mãe quantas e quantas vezes chorava pedindo a Deus para que nunca um filho dela entrasse no mundo do crime e a discriminação, porque nós éramos criados sem pai, que a minha mãe precisava achar um homem, era esse o termo que usavam: “Você precisa arrumar um homem para educar seus filhos”. Minha mãe chorando quantas vezes, falava assim para mim: “Filho, eu nunca vou colocar um homem dentro de casa, porque o único que poderia estar dentro de casa que levantasse a mão para você seria o seu pai. Como o seu pai não está dentro de casa, nenhum outro homem vai levantar a mão para você”.
P/1 – E você gostava da escola, Fran?
R – Sempre fui um cara que estudou demais! Demais, até pela questão de assim, eu não poderia reprovar, qual era a alegria que eu poderia dar para minha mãe? Que trabalhava o dia inteiro, analfabeta, minha avó analfabeta, minha tia analfabeta, qual era a alegria que eu poderia dar para essas duas pessoas? Estudar. Ser o melhor aluno da sala, o cara que era comunicativo com todo mundo, sempre falei demais, demais assim, a minha mãe falava que as professoras me chamavam de “radinho de pilha”, porque eu falava muito, mas sempre fui um cara que estudei muito, muito.
P/1 – Você praticava esporte dentro também da escola, como é que era? Tinha Educação Física?
R – Tinha, mas a Educação Física era como nos dias de hoje, futebol, dava a bola e pronto. Não tinha essa questão de você ter outras modalidades. Então, o sonho de todo garoto da minha geração era ser jogador de futebol, que é o que eu estou tentando transformar nos dias de hoje, oferecer as pessoas outras opções que não sejam apenas o futebol, até porque, se você for analisar, todo mundo quer ser jogador de futebol, a fábula que o jogador de futebol ganha, mas não são todos que ganham essa fábula, é uma minoria muito pequena, que consegue ter valores assim, absurdos, quantos clubes nós temos no país e quantas pessoas querem ser jogador de futebol? Você imagina, teria que ter pelo menos, um milhão de vezes a mais o número de clubes, para atender todo mundo.
P/1 – Bom, você foi federado no futsal, e aí você não saiu mais?
R – Então, quando foi 18 para 19 anos, que eu conheci a mãe do meu filho, nessa época, assim, eu participei de um programa chamado Osen.
P/1 – O que é que é Osen?
R – Era um programa da Paróquia Nossa Senhora do Carmo, que foi implantado pelo padre Paulo, onde eu tinha a presença de uma pessoa assim, muito marcante, que era a tia Cida, que era a senhora que cuidava de todas as crianças, que procurava levar a gente para fazer o catecismo, que procurava colocar a gente dentro da doutrina de Deus, seguir, saber que existe o bem e o mal, foi com ela que eu aprendi essa diferença e ela nos reunia, a gente ia para o Cifa, onde o Cifa dava o café da manhã, dava o almoço, e nós tínhamos as atividades lá dentro: artesanato, esporte, teatro, assim, eu ia para lá, não só eu, mas acho que 99% da garotada ia lá para comer, por quê? Porque lá tinha a bolacha, tinha o Toddy, sabe? A macarronada, o frango, coisas que muitas de nós não tínhamos em casa. Então, a gente ia lá e lá eu aprendi, assim, a ter os valores. De 18 para 19 anos, eu fiz parte desse projeto e de 18 para 19 anos eu voltei para dar aula lá.
P/1 – Do que é que você dava aula?
R – Dava aula de esportes e de artesanato. Eu fui monitor do Osen. Eu fui aluno quando criança e voltei aos 18 anos de idade, como monitor. De 18 para 19, eu conheci a minha esposa, que trabalhava numa loja em frente ao Osen.
P/1 – Como é que vocês se conheceram? Conta a história para gente.
R – Ah, ela me paquerava, porque eu ficava dando aula lá, acho que ela gostou das minhas pernas, que ela dizia que eu tinha as pernas bonitas. Eu ficava dando aula lá para garotada, e ela ficava lá me paquerando, quando na verdade, teve um baile do Cifa, do Osen, e é engraçado, porque eu estava de paquera com a irmã dela, e de repente surgiu uma história de que eu era muito mulherengo, ela foi falar para irmã dela que eu era muito mulherengo, que não merecia, sabe? A irmã dela e tal, não sei o quê, mas acho que na verdade, essa história foi para poder separar da irmã dela e a gente está junto há 23 anos.
P/1 – Vocês começaram a namorar nesse baile, como é que foi?
R – Não, porque, assim, eu estava de paquera com a irmã dela e tinha um jogo que eu ia fazer acho que no dia seguinte, ou uma semana depois, não me recordo direito, onde as irmãs foram assistir e ela foi também e surgiu essa história, foi onde a irmã dela me deu um toco, falou que não queria nada comigo, que eu era muito mulherengo, que tinham falado para ela que eu era muito mulherengo e aí, eu descobri que quem tinha falado foi a Kátia, que é a minha atual esposa. Só que uma semana depois, eu recebi um bilhetinho dela, me mandou um bilhetinho, falando que queria conversar comigo, que queria encontrar comigo no metrô Penha, que era onde ela estudava, no Aprígio Gonzaga e eu fui lá, e de repente começamos a namorar, entendeu? Aí, acho que as irmãs ficaram um ano sem se falar por conta disso, mas assim, hoje, a gente é todo mundo amigo, as irmãs adoram ela, têm um carinho muito grande pelos meus filhos.
P/1 – Nesse tempo que você trabalhava no projeto, você parou de jogar futsal, ou você continuava jogando e trabalhando no projeto dando aula?
R – Eu continuava jogando e trabalhava, treinava e jogava. Só que assim, ser jogador de futebol no Brasil, é aquilo que eu te falei, no futebol de campo, já é complicado, no futsal então, é mais complicado ainda e eu comecei a fazer as artes marciais, eu já tinha uma bagagem que eu fazia antes, que eu tinha pego na capoeira, com o mestre Simbah e fui fazer o tal do Full Contact, porque era a sensação do momento, o filme ‘Dragão Branco” despertava em todo mundo a vontade de ser um Jean-Claude Van Damme e eu comecei a fazer o Full Contact, me formei faixa preta e assim, eu ganhava tão pouco, tão pouco, que quem pagou o meu exame de faixa preta foi a minha mulher, a Kátia, que me deu de presente o exame de faixa preta. E eu lembro que quando fui fazer o exame de faixa preta começou às três horas da tarde, foi acabar às oito horas da noite e nessa época, eu já saía para competir, para lutar e às vezes, eu chegava em casa machucado, olho roxo, orelha roxa, braço, a minha mãe chorava quando eu saía para ir competir, a minha avó, eu lembro assim que teve uma luta que eu fui fazer do campeonato paulista e eu falei assim: ‘Poxa mãe, queria tanto que a senhora me visse lutar”, já era faixa preta.
P/1 – Que idade isso?
R – Vinte anos. “Mãe, eu queria tanto que a senhora me visse lutar” “Não, meu filho, eu não tenho coragem”. A minha tia é analfabeta, está com 80 anos de idade, desde os meus oito anos de idade quando eu comecei no esporte, a minha tia que cuidava das minhas roupas. Ela não sabe a diferença entre um número e uma letra, mas todos os meus uniformes organizados: camisa de treino, roupa de treino, meia de treino, faixa de luta, tênis de corrida, camiseta de corrida “Tia, vai me ver lutar” “Não vou não que eu não tenho coragem” “Vó, vai me ver lutar” (choro/emoção) “Que Deus te acompanhe e Nossa Senhora Aparecida te proteja meu filho”. Eu chegava no ringue, eu olhava assim, os meus adversários, família toda lá. (choro)
P/1 – Elas deviam ter medo de que você se machucasse.
R – Eu subia no ringue e olhava para o lado, não tinha ninguém.
P/1 – A sua esposa foi te ver lutar alguma vez?
R – Nunca!
P/1 – Não tinha coragem de ir também? Durante quanto tempo você lutou?
R – Minha última luta que foi encerramento de carreira foi em 2011. Eu me formei faixa preta com 19 para 20, já faz um bocado de tempo.
P/1 – Lutou bastante tempo na verdade, você lutou bastante tempo.
R – Bastante tempo, quando o meu filho nasceu, eu comprei o kimono, primeiro que quando ele nasceu, o sonho era que ele fosse jogador de futebol, com quatro anos de idade, eu botei ele na escolinha, eu ia viajar para competir no futsal, levava ele junto, ele era o mascote do time, comprei um kimono, botava nele, treinava ele, fazia alongamento, fazia a preparação nele, comecei com quatro anos de idade preparar o meu filho, porque eu sonhava que ele, assim como eu, queria ser igual ao pai.
P/1 – É o seu primeiro filho?
R – O Kauê. Dezenove de julho de 95, quando a Kátia me ligou, um dia a gente namorava, eu estava desempregado e um amigo me chamou para jogar no time da Unimed, um campeonato que ia ter e todo jogo eu ia. O gerente da Unimed, Fukimoto, um amigo, achava que eu era bom, e um dia eu faltei no jogo, ele falou: “Pô, mas o goleiro não veio por quê?” “Pô, está desempregado, foi fazer um bico” e tal “Pô, o cara está desempregado, e ninguém me fala nada? Manda ele vim segunda feira na Unimed”, me contratou.
P/1 – Te contratou para qual função?
R – Para trabalhar no cadastro. Aí, comecei a ser funcionário da Unimed, o goleiro da Unimed, aí me dava tênis, me dava calça, me dava as coisas e um dia estou na Unimed, recebi uma ligação, 22 anos de idade: “Preciso falar com você”, só que na noite anterior, eu tinha sonhado que eu estava carregando um garotinho na mesma rua onde eu moro até hoje, nos braços e que ele me abraçava assim, me apertava, primeiro mês de trabalho na Unimed, recebi essa ligação da Kátia: “Pô, preciso falar com você”, mas na hora, nem pensei, eu respondi assim: ‘Você quer falar comigo o quê? Que você está grávida, que você vai ter um garoto, que ele vai se chamar Kauê e que ele é a razão da minha vida?” ela desligou o telefone na hora.
P/1 – Ficou assustada?
R – Desligou na hora, mas o porquê disso? Porque eu tinha sonhado com o garoto na noite anterior e quando ela me ligou, foi a primeira coisa que me veio na cabeça. No dia seguinte, ela me ligou chorando: “Estou grávida, como é que vai ser?”
P/1 – Vocês namoravam há quanto tempo?
R – Cinco anos. Dezoito para 22 ia fazer cinco anos. Eu lembro assim, o pai dela estava vivo na época, o seu Luiz, a família, família tradicional assim, lá de Minas, assim, bem rígida mesmo, tudo muito certinho, tudo muito certinho e de repente, eu cheguei em casa na maior alegria do mundo assim, fui falar para minha mãe: “Mãe, a Kátia está grávida”, nossa, a minha mãe fechou a cara na hora! A minha avó nasceu em 1905, imagina a cabeça da pessoa? “Como que você põe a perder a filha dos outros?” “Mãe, vó, eu vou ser o melhor pai do mundo” “Você começou a trabalhar agora”, a gente morava em casa de aluguel. “Vamos dar a notícia para sua família”, você imagina, os irmãos, irmãs, pai, mãe, se hoje aos 42 anos de idade, muita gente acha que eu tenho cara de moleque, imagina aos 22 anos de idade! A única coisa que eu tinha era sonhos e uma fé muito grande, que ecoava no meu ouvido assim: “Que Deus te acompanhe e Nossa senhora Aparecida te proteja”.
P/1 – Vocês foram juntos dar a notícia para a família dela?
R – Sim.
P/1 – E como é que foi?
R – Quando chegamos lá, a primeira coisa: “Dona Maria, eu preciso falar com a senhora”, estavam todos os irmãos na cozinha: seu Luiz, que Deus o tenha, na sala assistindo televisão, palmeirense roxo! Verde, né (risos)? Aí, chego na cozinha: “Sabe o que é que é dona Maria, tenho uma notícia para dar para senhora, a senhora vai ganhar mais um neto”, porque os filhos dela já tinham dado, mas na hora ela virou para Kátia e falou assim: “Como que você fez isso?” a Kátia já estava chorando, eu simplesmente virei e falei assim: “Olha, é assim: ou aceita agora, ou não aceita nunca mais”, porque criança é assim, antes de nascer: “Por quê que você fez isso? Por quê que você fez aquilo? Você é uma irresponsável, ele é um irresponsável, porque vocês não têm juízo, depois que a criança nasce, é o xodó da família, todo mundo quer beijar, todo mundo quer apertar, todo mundo quer “Ou aceita agora ou não aceita nunca mais”. E eu sempre tive um temperamento assim, muito explosivo, sabe? “Não, então, mas você não vai contar para o pai dela. O que é que vocês querem fazer?” “Eu vou casar” “Mas você não vai contar para o pai dela”, posso ter cara de moleque, atitude de menino, mas eu sou homem. Sai da cozinha, fui para sala: “Seu Luiz, preciso falar com você” “O que é que está acontecendo?” “Seu Luiz, sabe o que acontece? A Kátia está grávida”, todo mundo com medo da reação do seu Luiz, sabe o que o seu Luiz falou para mim? Não sei se ele não gostava da minha pessoa, mas ele virou para mim, o seu Luiz sempre foi uma pessoa muito calada, assim, nunca foi de conversar muito, ele falava para mim assim: “Mas isso nos dias de hoje é normal, se você não quiser casar, você não casa, você faz um contrato aí de cinco anos, se não deu certo, você está solteiro e ela também, ninguém vai obrigar vocês a casar”, simplesmente eu virei para ele e falei: ‘Seu Luiz, eu vou ser o melhor pai do mundo para o seu neto, enquanto vida eu tiver, vou cuidar da sua filha, aconteça o que acontecer”.
P/1 – E vocês se casaram?
R – Num domingo cinco horas da tarde, final do campeonato paulista, 1994.
P/1 – Quem que estava jogando na final?
R – Corinthians e Palmeiras e adivinha? Fui para o casamento com a bandeira dos gaviões no bolso do paletó, abri a bandeira lá dentro da igreja, na mesma igreja do padre, onde eu fiz parte no projeto, no Osen. Todo mundo achava louco, amigos meus foram no casamento, falou assim: “Eu vou lá, porque você não vai durar três meses casado”.
P/1 – Como é que foi o casamento? Assim, qual é a recordação?
R – Eu não tinha ideia do que estava fazendo. Não tinha ideia, 22 anos de idade!
P/1 – Mas a cerimônia, você tem recordação de como foi a cerimônia?
R – Tenho! A família toda presente, tanto a dela, quanto a minha. Aí, o menor dos problemas. Uma semana antes de casar, quando eu cheguei na Unimed, o pessoal fez assim, eu me lembro como se fosse hoje, eu ganhava 390 reais por mês, uma semana antes, o pessoal da Unimed fez uma vaquinha, por quê? Porque eu era o professor de Mai Tai do coordenador da Informática, eu era o goleiro da equipe, contratado pelo gerente do departamento, era o cara que todo mundo falava assim: ‘Pô, esse menino aí é diferente, o cara trabalha, o cara treina para caramba, o cara é bom”. Eles fizeram uma vaquinha lá, que nos dias de hoje, eu ganhava 390, juntou mil e quinhentos. “Olha isso aqui é para te ajudar no seu casamento”, aí o meu cunhado deu a mesa, meu irmão deu o sofá, um amigo meu, o Rone, o Ronaldo me deu o colchão, só que tudo isso uma semana antes do casamento.
P/1 – Onde vocês foram morar?
R – Eu não tinha casa para morar. Eu tinha um Passat 77, era o único bem que eu tinha na minha vida e eu virei para o gerente da informática, estava dando aula de Mai Tai para ele: “Celso, vou casar, cara” “Pô Fran, você é maluco, como que você vai casar, velho? Qual que é o teu salário no cadastro?”, falei: “Trezentos e noventa reais por mês” “Fran, faz o seguinte, se você fizer o vestibular e passar, eu te transfiro para Informática, só que você tem que fazer o vestibular na área de Informática” “Caramba, Celsão, como que eu vou pagar uma faculdade, irmão? Trezentos e noventa reais por mês de salário” “Não, o teu salário na Informática vai dobrar, vou te colocar” “Tá bom”, fui falar com o meu gerente que me contratou por causa do futebol, falei: ‘Fukimoto, vou casar irmão” “Você está maluco? Como que você vai casar? Você é um irresponsável, como que você vai cuidar de você, de uma mulher e de uma criança?” “Fuki eu sou um cara determinado irmão, sou um cara abençoado por Deus. Tudo na minha vida nunca foi fácil, desde garoto eu venho lutando contra todas as estatísticas que o mundo vem me oferecendo” “Você é louco”, brinquei com ele: “Não tem uma frase que diz que todo goleiro ou é louco ou é viado? Eu já fiz um filho, então, acho que só me resta uma alternativa” “Vamos ver se a gente consegue te ajudar”, que foi essa vaquinha que eles fizeram e falei: “O Celso me fez uma proposta, eu dou aula para ele na academia de Mai Tai, ele falou que se eu fizer o vestibular” “Não, você é louco ao cubo, não é nem ao quadrado. Como que você vai pagar aluguel, como que você vai pagar a faculdade, como que você vai sustentar a tua família?” “Eu tenho fé em Deus e Nossa Senhora Aparecida que eu não vou ficar desamparado”
P/1 – Você prestou o vestibular?
R – Fui para Unicsul.
P/1 – Que curso?
R – Informática. Cheguei na Unicsul, fiz a inscrição, fiz o vestibular, fui aprovado. Aí o Celso Ricardo falou para mim assim: “Olha, Fran, já vou dar entrada no pedido para você mudar de departamento”. Eu não tinha um ano de empresa. Casei, a festa muito simples, um bolo, refrigerante que a família deu, meus amigos.
P/1 – Na casa de quem?
R – Na casa do meu cunhado, inclusive, nós fomos morar lá nessa casa depois de um certo tempo.
P/1 – Logo que vocês se casaram, vocês foram morar onde?
R – Então, voltando ao caso, um Passat 77, já tinha feito vestibular, já tinha conseguido a transferência de departamento, fui casar e uma semana antes, eu não tinha casa para morar, botei uma placa de “Vende-se” no meu Passat 77, o cara foi lá para comprar o carro: “Mas por que é que você está vendendo esse carro?”, eu falei: “Porque eu vou casar domingo, falta uma semana para o meu casamento e eu não tenho onde morar, eu tenho que ter, vou alugar alguma casa aí, vou dar um depósito, alguma coisa” “Olha, vamos fazer o seguinte, eu não vou comprar o teu carro, mas tem uma rua ali na Campanela, chamada Rua das Boas Noites que tem uma casa para alugar”, olha que da hora! Vinte e dois para 23 anos, no auge da forma física, mulher bonitona, vai morar na Rua das Boas Noites? Alguma coisa está bacana! Lá vou eu falar com o dono da casa, “O aluguel, 350 reais. Dois meses de depósito, você pode mudar amanhã se você quiser”, uma escada gigantesca, porque a casa ficava em baixo e ele morava em cima, ele tinha dois pastores alemão que ficava no fundo aonde eu morava, aí dei o dinheiro para ele, 390 reais de salário, me sobrava 40 por mês: água, luz, ainda tinha a faculdade. “Celso, mudei” “Você começa segunda-feira no novo departamento, já fiz o pedido Fukimoto falou que você é louco” “Ele falou para mim também” “E agora?” “Agora vou trabalhar”, só conhecia de informática, digitação. Os caras me adotaram no departamento de TI da Unimed, sempre aprendi muito rápido as coisas. Pisei na Unicsul para fazer o vestibular, para fazer o vestibular não, para fazer a matrícula, porque era condição sine qua non, senão não mudava de departamento, vejo uma faixa gigante assim: “Atletas, bolsa de 100%, faça a sua inscrição para avaliação”, eu falei assim: “Acho que o homem lá de cima gosta de mim, e a mulher lá de cima também”. Foram os dois meses mais difíceis da minha vida, porque eu trabalhava, o treino era às 17 horas, eu cheguei para o gerente da Informática, que era o meu aluno do Mai Tai: “Celso, estou participando de uma seletiva na Unicsul, cara, bolsa de 100% e eu preciso sair todo dia três horas da tarde, porque é lá em São Miguel”, trabalhava no Paraiso. “Puta Fran, e agora?” “Cara, conversa com o Fuki, fala com o Expedito, que é o meu gerente”, os caras me adoravam. “Olha, Fran, vamos fazer assim, você vai começar a entrar às sete horas da manhã, você não tem mais uma hora e meia de almoço, você vai almoçar em meia hora e você vai sair às três, mas ninguém precisa saber disso por enquanto” “Está bom” “Até quando vai a seletiva?”, eu falei: “Em 15 dias só”, passaram dois meses.
P/1 – Foram dois meses de seletiva?
R – Quatrocentos e oitenta atletas no Futsal. Primeiro dia estou lá de 480 caiu para 60, meu nome está lá entre os 60. De 60, caiu para 30, o meu nome está lá entre os 30. Dos 30, caíram para 15, meu nome está entre os 15. Dez vagas de jogadores de linha, duas vagas para goleiro, nós estávamos em três. E treinando, treinando e de repente, o treinador falava assim: “Meu, eu preciso escolher um dos goleiros, eu tenho que mandar um embora, eu tenho que mandar um embora”. E eu chegava em casa todo dia olhava para o berço e via o Kauê.
P/1 – Ele já tinha nascido nessa época, então, quando você entrou na faculdade, ele já tinha nascido?
R – É, porque foi no segundo semestre, né?
P/1 – Ah tá!
R – Ele nasceu em julho e eu falava assim: “Minha Nossa Senhora Aparecida, não me abandona”. Eu olhava para o meu filho assim e eu falava assim: “Eu não sou mais responsável por mim”, olhava para minha esposa e falava assim: “Eu tirei a menina de dentro da casa dela onde ela tinha todo o conforto da família, ajuda dos irmãos. Eu saí de dentro da casa da minha mãe, que contava comigo para ajudar, não é justo que eu não consiga ser aprovado”, rezava, pedia, rezava, pedia, no último dia, o reitor foi na universidade e pressionou o treinador: “Eu preciso definir os doze atletas”, o treinador falou assim: “Meu, eu nunca vi um goleiro tão maluco igual a você, meu, vai lá e assina o contrato”, nossa, mas sabe quando parece que sai 500 quilos das suas costas? A primeira coisa que eu fiz foi ir dar a notícia para minha mãe e para minha avó, que estava rezando, fazendo promessa para todos os santos. Só que eu tinha um problema, eu trabalhava, cheguei no meu coordenador e falei: “Celso, fui aprovado cara. E agora? Tenho que treinar todos os dias” “Onde é o centro de treinamento Fran?” “Na Unicsul, São Miguel, só que já sentido Itaim, eu tenho que estar lá às cinco horas da tarde, todos os dias para treinar, o treino acaba às 19 e eu tenho que estar na faculdade às 19 e trinta”.
P/1 – Era muito puxado!
R – Foi a época que eu dormia duas horas e meia da minha vida, por quê? O Celso chamou o departamento, os caras e falou assim: “Olha, a partir de hoje, o Fran vai entrar a tal hora, e vai sair tal hora, porque a nossa empresa não dá bolsa e como ele é um atleta e conseguiu essa bolsa, a gente tem que ajudar”. Os caras compraram briga com o diretor por minha causa, Celso Ricardo e Fukimoto. E quando eu comecei a treinar e viajar para as competições, e descobriram que eu lutava, eu comecei a fazer lutas pela faculdade, comecei a jogar pela faculdade e quando eu terminei a minha faculdade, o reitor me chamou e falou: “Se você quiser fazer outra universidade, a gente te dá a bolsa”. É um cara que estava e assim, eu comecei a viajar muito pela área de TI, os caras começaram a me pagar por hora para implantar nas Unimeds, implantei acho que em 50, 60 cidades diferentes, só que o meu filho tinha três anos de idade, eu não via o meu filho, assim, desenvolvendo. Isso foi 1998, já era faixa preta, já lutava, já tinha competido, e eu falei assim: “Parei, chega!” comprei a minha casa.
P/1 – Você já tinha comprado a sua casa antes de sair do time, é isso?
R – Não!
P/1 – Não? Foi logo depois? Você terminou a faculdade então e não continuou?
R – No esporte?
P/1 – Não, no time da faculdade.
R – Eu não continuei porque eu me formei na área de informática, na área de TI, e falei assim: “Eu não vi o meu filho crescer, está com três anos de idade, uma vida de louco”, porque eu treinava o futsal, treinava as competições que eu lutava no Kickboxing, lutava no Mai Tai, lutava no Taekondo, lutava no Low Kick, lutava o Box propriamente dito. Então assim, o corpo já não aguentava mais, 26, 27 anos de idade, achava que estava na hora de parar, 1998. Aí, eu falei: “Vou montar um time de futebol para reunir meus amigos, para brincar de vez em quando”, aí foi onde nasceu o Kauê Fusal, “Vou dar o nome do meu filho, um moleque alegre, bonito para caramba, eu tenho que homenagear o meu filho”. Do time de futebol, nasceu a Associação esportiva e Cultural Kauê. Eu não parei de jogar em 98, joguei até 2008, competi durante mais dez anos. Então, assim, competi por mais dez anos até 2008, fui campeão paulista, campeão metropolitano, campeão da taça cidade de São Paulo, campeão paulista universitário.
P/1 – Você competia por que time?
R – Rodei, joguei em Mogi, joguei em Suzano, joguei no Internacional, joguei no Cabral, que foi onde eu comecei aos 16, depois peguei seleção paulista, peguei seleção brasileira da bola pesada, da bola fifusa, lutei campeonato paulista, campeonato brasileiro.
P/1 – E Fran, você enfim, teve uma vida toda de esportes e muitos esportes, e você costumava acompanhar ou costuma acompanhar Olimpíadas?
R – Sim.
P/1 – Sim?
R – Choro!
P/1 – Quais são as modalidades que você mais gosta nas Olimpíadas, normalmente, o que você mais acompanha?
R – Hoje em dia, o atletismo, até por conta do projeto.
P/1 – E tem alguém assim, do atletismo, um atleta que você goste mais? Ou acompanhe mais?
R – Haile Gebrselassie, um etíope.
P/1 – Por quê?
R – Um dia eu fui pesquisar a história do Haile e eu descobri que ele quando era garoto, seus seis, sete, oito anos de idade, ele lá no país dele, tem um filme que retrata a história dele, ele ficava sentado assim, no chão de terra batida, que era a minha visão que eu tinha na minha época, quando nós estávamos no Nordeste, assim, casa de barro, cobertura de palha e ele ficava em torno assim, com aquele monte de irmãos, e a mãe dele, raspando mandioca e fazendo aquela papa de mandioca para eles comerem, isso ele aos seis, sete, oito anos de idade. E na trajetória do filme mostra ele percorrendo seis milhas, para ir até a escola com o caderno debaixo do braço, descalço, correndo, chegava lá atrasado, ele já chegava atrasado, já abria a mão, o professor já pegava uma vara e batia na mão dele, ele sentava e ia estudar. Voltava correndo, quando chegava em casa, ia buscar água com a mãe nos potes de barro mais sete, oito milhas. Um dia, ele está indo com a mãe dele buscar água, a mãe dele passa mal e morre no meio do canavial. E com o passar do tempo, o Haile foi ou é até hoje, o recordista dos dez mil metros da Olimpíada, o cara que segurou não sei quantos anos o recorde da maratona e que hoje, vai lá no país dele e faz um monte de ações sociais com crianças, que como ele, a única coisa que tinha era sonhos. Então, é a história de um atleta que é assim, toda vez que eu vejo, eu me emociono, tem praticamente a mesma idade que eu, tem mais de 40 anos, que ainda consegue correr uma prova de 21 quilômetros abaixo de uma hora. E que continua sendo exemplo de superação no mundo inteiro e o porque assim, mesmo tendo sido um atleta que veio do futebol, que devo a minha formação ao futebol, eu falo sempre para minha esposa que ela não pode reclamar, porque querendo ou não, o futebol de salão me deu tudo o que eu tenho, porque se hoje eu tenho uma profissão, eu tenho uma consultoria, eu tenho o conhecimento dentro da área, é por conta do talento que Deus me deu e das bênçãos que Deus me deu também para ser selecionado no meio de 480 caras. Ter conseguido me formar, ter conseguido comprar a minha casa, então, foi por conta desse talento que Deus me deu e por causa do futebol. Mesmo com tudo que o futebol fez de transformação na minha vida, hoje eu posso falar para você que eu sou um cara frustrado com o futebol e sou um cara que planta sonhos numa pista de asfalto que nasceu de um time de futebol que eu quis homenagear o meu filho e que hoje, é uma entidade que já atendeu, sei lá, diretamente aí muito mais do que cinco mil pessoas nos 15 anos de projeto, nos 16 anos de projeto.
P/1 – Qual que é o trabalho da associação?
R – Então, a menina dos olhos da Associação, do projeto é a pista de atletismo que eu pintei no asfalto. Ela tem cinco raias, 200 metros, onde tem revelado os garotos que são promessas para Olimpíada de 2016, nós temos meninos lá, o Rafael, que é o meu filho branco, que é um menino que começou comigo aos 12 anos de idade, era o patinho feio da comunidade, menino que usava um óculos fundo de garrafa e que hoje é uma referência a nível nacional.
P/1 – Qual que é o sobrenome dele?
R – Rafael Soares Santeramo, o Galego. O Galego assim, ele saía para competir, Galego tem sete títulos brasileiros, ele saía para competir, ele chegava no hotel, ele me ligava: “Fran, já cheguei aqui, vou fazer um trote agora, vou competir amanhã” “Não Rafa, você não pode ligar para mim, tem que ligar para o teu pai, cara, tem que ligar para tua mãe”, aí você escuta do menino assim: “Mas meu pai perece que não liga, minha mãe parece que não liga. Quem me colocou aqui foi você”. Um dia, estou dando treino de atletismo na pista para as crianças, o Rafael, aos 12 anos estava sentado na calçada: “Vamos treinar” “Não quero, não gosto” “Como não gosta? Como você pode falar de uma coisa que você nunca experimentou?” “Ah não” “Deixa eu te contar um segredo: está vendo esse cara aqui? É o único inimigo que você tem dentro do atletismo, é contra ele que você tem que brigar todos os dias. Você não quer treinar porque você é o patinho feio na escola, você é o cara que todo mundo tira onda aqui na comunidade”, alemãozinho esquisito, magrelinho, todo cheio de espinha, “Vamos treinar comigo” “Que horas você vai treinar amanhã?” “Seis horas eu vou para o parque”, cinco e meia o Rafael estava tocando a campainha da minha casa. Primeiro mês, segundo mês, terceiro mês eu já não consegui acompanha-lo mais, a minha esposa falava assim: “O chatonildo está tocando a campainha. Caramba, meu, você marca com o menino às seis horas, ele vem às cinco e meia”, eu não posso reclamar, quem colocou ele nessa vida? Quem incentivou? Quem que convidou para vir? Sou eu!
P/1 – Era ânimo, né?
R – Como que eu posso criticar o menino que ele está tocando a campainha às cinco e meia da manhã? Vamos treinar! Passou seis meses, oito meses, Rafael começou a ganhar tudo que era prova que ia na categoria dele. As outras crianças do projeto, quando ele chegava, faziam o coro: “Ih, ferrou, o Galego chegou”, ganhamos uma prova na Aclimação, fomos selecionados para conhecer o Esporte Clube Pinheiros, a elite do atletismo brasileiro, cheguei no Pinheiros com aquele monte de criança da periferia em duas vans que o Pinheiros mandou buscar, a diretora do Pinheiros falou assim: ‘Puxa Fran, queria te parabenizar pelo seu trabalho, você vai ser o meu descobridor de talentos na periferia. Eu não conheço a garotada, a gente tem problemas aqui com o clube, sabe? Vem gente de tudo quanto e lugar, quando você tiver um atleta bom, traz aqui para mim, para gente fazer uma avaliação” “Por isso não, já tem esse daqui, 15 anos de idade”, todo estranho, alemãozinho, magricelo, todo esquisito, “Leva ele ali para falar com o Cláudio Castilho”, técnico da Adriana, campeã panamericana, atleta olímpica, treinador do José Teles, atleta olímpico, Gladson, sete, oito títulos do Troféu Brasil. “Professor, trouxe esse rapaz aqui para ele fazer uma avaliação com o senhor”, me chamou de canto: “Professor, quantos anos?” “Quinze anos” “Ele é esquisitinho, rosto tudo cheio de espinha, já passou da fase de desenvolvimento, transição. Prepara ele, quando ele tiver pronto, você me avisa”, só que o alemão ouviu, tirou o agasalho, tirou o shorts e falou: “Já estou preparado”, aí ele olhou assim, tinham uns garotos fazendo aquecimento, falou: “Vai lá e faz dois tiros de 200 metros com aqueles caras ali, e dois de 400”, ele fez o tiro de 200 na pista do Pinheiros, fez o primeiro tiro de 400, o cara já falou para ele assim: “Não precisa fazer o segundo, vem aqui, começa a treinar, vamos ver o que dá”. Seis meses depois, três meses depois o alemão ganhou o estadual, seis meses depois o Galego ganhou o brasileiro, campeão estadual credenciado para disputar o brasileiro, Fortaleza. Nunca tinha andado de avião, chegamos lá antes dele viajar, reuni todas as crianças do projeto, cada um fez uma cartinha desejando boa sorte para o Galego, sucesso, primeiro brasileiro, “Vai andar de avião”, o menininho que era o patinho feio da comunidade. Fiz um texto, escrevi, peguei a menina do projeto, dei todas as cartinhas na mão dela, falei: “Jenifer, faz como se fosse um livro para gente entregar para o Rafael”. Chega o Rafa, falei: “Rafa, vem aqui que nós vamos desejar boa sorte para você”, reuni todas as crianças, sentei todo mundo assim, fiquei de pé, chamei ele, abracei e comecei a ler o texto que eu tinha escrito para ele, entreguei na mão dele e falei assim: “Olha Rafa, você vai correr domingo por cada uma dessas crianças que está aqui, estão onde você começou, você não vai correr por você, o seu combustível está aqui, olha”, sabe? Um menino que era o patinho feio, que não tinha apoio. Quando chegou na competição no domingo, eu ficava na internet, no site da CBAT vendo os resultados. E de repente, sai o resultado lá: “Rafael Soares, segundo colocado”, puta comecei bem, fazia festa, gritava, pô, Galego é vice-campeão brasileiro. Aí, eu ligo para o professor Cláudio Castilho para agradecer: “Cláudio, estou te ligando para agradecer a confiança que você depositou no menino. Obrigado, cara pela oportunidade de poder fazer o garoto estar numa competição desse nível, tal” “Fran, eu que agradeço, cara. O que a gente admira nesse atleta que você mandou é que ele não respeita ninguém” (choro/emoção), porra, eu também não respeitava ninguém. Eu acho que ele aprendeu.
P/1 – Foi formado por você, né?
R – “Obrigado, o menino é vice-campeão” “Não, professor, como vice-campeão? O menino é campeão”. O primeiro era chileno, convidado que foi só para participar da prova, para puxar, “Ele não conta, o campeão brasileiro é o Rafael”.
P/1 – Incrível, né?
R – Sabe? Eu peguei todas as crianças do projeto, mais de 100 crianças, mandei fazer uma faixa gigante assim: “Parabéns Galego, orgulho da EC Kauê e de Itaquera”.
P/1 – Conta para mim como é que foi essa construção dessa pista no asfalto.
R – A primeira vez que eu fui levar o Kauê, o meu filho, para correr a versão mirim na São Silvestre, a São Silvestrinha, Kauê tinha seis anos de idade, raspou o cabelo, escreveu PAZ aqui, que era a época que estava tendo os conflitos lá na Arábia. Aí, levei ele para competir a versão mirim da São Silvestre e eu já estava apaixonado, já tinha sido picado pelo bichinho da corrida, que eu estava fazendo preparação para o campeonato que eu ia disputar e resolvi correr a São Silvestre e na subida da Brigadeiro, um cara começou a jogar água nas minhas pernas, começou a pegar água, me dava, me incentivando e eu já cansado, não aguentava mais correr e ele vinha: ‘Vamos, vamos terminar a prova, vamos terminar a prova” e eu ficava pensando assim, né: “Puxa, será que esse cara é homossexual?’ O cara está jogando água na minha perna, está me entregando água, caramba, eu só estava acostumado com o futebol e com as lutas, não via essa confraternização, essa solidariedade, essa preocupação. ‘Pô, o cara está competindo comigo e vem aqui me dar as coisas, sabe? Me dar água”, quando viramos na Paulista: “Vamos que faltam 500 metros”, terminou a linha de chegada, cruzamos a linha de chegada, ele me deu um abraço e falou: “Cara, você corre muito, parabéns”, isso faz 13 anos. Aos seis anos, eu levei o meu filho para correr a versão mirim da São Silvestre, a São Silvestrinha. Aí, comecei a treinar os garotos na rua, só que a criançada chegava para correr na pista, se assustava, aquele tapete vermelho, com aquelas faixas brancas, eles falavam, assim: “Caramba, mas como que funciona? Eu não posso sair de uma linha para outra? Qual que é a distância? ” porque eu treinava eles na rua.
P/1 – Quando que vocês fizeram a pista?
R – Em 2010, 2009.
P/1 – E quem que fez? Assim, como foi feito? E quem, que participou?
R – Então, nessa versão da São Silvestre, uma garotinha falou para mim que não saberia correr ali, porque ela não estava acostumada a correr e eu falei para ela: ‘Não, você vai ganhar uma pista de atletismo de presente”. Aí, eu fui no computador, peguei a rua, tirei uma foto, dividi ela no meio, fui lá no Photoshop com o meu amigo lá e montamos a pista na rua, pintou aquele tapetão vermelho, colocou as raias (choro/emoção), mostrei para os meus amigos: “Você está maluco, meu! Os caras vão prender a gente se fizer isso na rua” “É só a gente fazer sem que alguém perceba”.
P/1 – Vocês não pediram autorização?
R – Para quem?
P/1 – Subprefeitura, alguma coisa dessa natureza.
R – Não! Nem para os moradores. Nasci e cresci naquela rua.
P/1 – Qual que é o nome da rua?
R – Rua Nicolino Mastrocola, a rua mais famosa do Brasil, agora. Chegou eu e os meus amigos, tinta, um parto para conseguir dez latas de tinta vermelha e duas latas de tinta branca, junta SEME – Secretaria Municipal de Esportes. Hoje em dia eu escuto vereador falar assim: “Quem deu aquilo lá fui eu”, sabe como eu consegui as tintas? Doutora Alice Coutinho, que estava na inauguração da pista, minha madrinha, quando chegamos do Nordeste, minha mãe lavava roupa e a minha tia para família dela, me conhece desde que eu era desse tamanho. “Doutora, fiz um pedido para Seme de lata de tinta, apresentei para o Walter Feldman, gostou, comprou a ideia, me prometeu as tintas, vou fazer do meu jeito, já tem seis meses e as tintas não chegam” “Pera aí, Fran, que eu vou dar um jeito. Ela era chefe de gabinete da subprefeitura de Itaquera. Deu jeito, arrumou as tintas, me mandou as tintas, pintamos a rua.
P/1 – Quem pintou?
R – Eu e mais quatro amigos. Começamos às quatro horas da manhã de um dia, fomos terminar às nove do outro, de sábado para domingo. Quatro horas da manhã de sábado, terminamos às nove de domingo, paramos um pouquinho à noite, total deu 16 horas de trabalho, assim, se for contar horas trabalhando, cinco raias, 180 litros de tinta vermelha, 18 litros de tinta branca, um sonho na cabeça e um monte de promessas.
P/1 – E quantos metros?
R – Duzentos metros. Coloquei na pista toda a minha paixão, toda minha frustração, porque não é no asfalto que você pode trabalhar o alto rendimento, nós estamos prestes a viver um mega evento, daqui a dois anos e meio e o que está sendo feito pelos nossos atletas? O Rafa, agora, encerrou o contrato dele com o Pinheiros, está no São Paulo, quarta-feira passada eu estou subindo com o meu carro, o Rafael está treinando na pista, onde ele começou. Um atleta que tem potencial olímpico, que naquele dia não podia se deslocar até o São Paulo, nem até o Pinheiros, foi fazer o tiro na pista de asfalto, onde ele começou. Todos os anos, nós repintamos a pista, não vou atrás mais da Secretaria Municipal de Esportes, por quê? Porque as coisas no nosso país, elas são tão burocráticas, tão burocráticas, que é muito mais fácil você fazer sozinho do que você ir pedir para algum órgão público.
P/1 – E com que recursos vocês pintam novamente?
R – Dos amigos. Tem amigo meu que por três anos já, Deilton, da ATA Pinturas, por três anos, ele me doa as tintas, eu não preciso nem pedir, chega março, que é o período que a gente faz a repintura da pista, ele já liga para mim e já fala: “Quantas latas de tinta você precisa?” não me pede nada em troca, nada!
P/1 – E Fran, eu queria te perguntar, a gente precisa ir encaminhando para o fechamento, assim, para o encerramento, e tem umas perguntas finais. Eu queria te perguntar primeiro, você falou, enfim, que acompanha as Olimpíadas e hoje em dia, é atletismo o que você mais acompanha e que você se emociona muito, queria saber se você tem alguma recordação assim, especial de alguma prova que tenha ficado marcada, alguma prova que você tenha assistido.
R – Vanderlei Cordeiro de Lima.
P/1 – Como é que foi? Conta para gente.
R – Liderando a maratona da Olimpíada, não sei se foi Atlanta.
P/1 – Você lembra o ano?
R – Não sei se é 2008, mas assim, está liderando a maratona que é uma prova duríssima, 42 quilômetros, 195 metros e de repente, me sai o padre do meio da multidão e agarra o Vanderlei e segura ele. E o desespero do Vanderlei para tentar se soltar para poder continuar correndo. Só que assim, a maratona é uma prova duríssima, é uma prova que exige do mental, demais! E de repente, a pessoa está liderando uma maratona olímpica, de repente, a pessoa é agarrada, e ela perde toda a sua concentração e o Vanderlei consegue terminar a maratona em terceiro colocado. A hora que ele entra dentro do estádio olímpico, que todo mundo fica de pé e começa a aplaudi-lo, assim, bate aquela sensação de você falar assim: “Caramba cara, eu sou brasileiro”, porque as pessoas não têm ideia do que é o treinamento para maratona, não fazem ideia. Quem não é atleta não tem ideia do que é um treinamento para maratona. A gente costuma brincar que diz que um treinamento para maratona é onde um filho chora e a mãe não vê, porque só de olhar para planilha já começa a te dar câimbra. E de repente, você vê um cara que foi agarrado, que teve assim, o momento de desistir, de abandonar, foi ultrapassado, quem ganhou foi um italiano, mas ninguém sabe o nome do italiano, mas o Vanderlei Cordeiro todo mundo lembra, que foi o cara que foi agarrado no meio da multidão por um padre irlandês e que terminou a maratona em terceiro colocado e ganhou uma medalha de ouro e ele tem uma medalha, que eu não vou me recordar o nome, mas só existe ele e mais uma pessoa que tem essa medalha, que é uma medalha de méritos. Então assim, ele tem uma medalha que só tem ele e mais uma pessoa no mundo que tem. E conversando com o Vanderlei numa determinada ocasião, num evento onde nós estávamos, eu perguntava para ele: “Puxa, Vanderlei, deve ter sido muito frustrante para você, quantas vezes você pensou em desistir, cara? Porque você estava terminado a prova, faltava pouco para terminar a prova, você liderando a prova, a chance de ganhar uma medalha de ouro e de repente, cara, você ser agarrado”, sabe o que ele falou para mim? “Eu não tenho raiva Fran, sabe? Para mim, ganhar medalha de bronze numa olimpíada foi tão importante ou mais importante do que se eu tivesse ganhado a medalha de ouro”, pelo reconhecimento das pessoas, pela vontade, a determinação de fazer a parte dele e terminar o objetivo e representar o país dele e ver a bandeira do Brasil tremulando, enquanto a gente vê tantas pessoas idolatrando jogadores de futebol, que ganham milhões e que preferem gastar muito do que ganham nas baladas, nas noitadas e se esquecem que tem um monte de criança lá sonhando em um dia poder representar o país. O que as pessoas estão fazendo para que possam oferecer a essas crianças que sonham diariamente a oportunidade de realizar o sonho deles ou de transformar.
P/1 – Bom, a gente está falando de sonho, essa é uma pergunta que eu quero te fazer, assim, quais são os seus sonhos?
R – Eu falo que assim, eu sonho em ser presidente desse país um dia, todos os meus amigos falam assim: “Poxa Fran, a política é uma coisa tão podre, cara, é uma coisa tão suja, que se eu fosse você, eu não me envolvia com isso”, a minha resposta para os meus amigos é a seguinte: “Quando o bem não se manifesta, o mal prevalece”, as pessoas, elas não podem esquecer a origem de onde vieram, a história. Um homem pode acumular fortuna a vida inteira, a partir do momento que ele morreu, se ele não construiu uma história ele vai ser lembrado por três, quatro, cinco dias, mas a história que uma pessoa que muitas vezes não tem um real no bolso construiu ao longo da sua vida pode ser lembrada pela eternidade.
P/1 – Você pensa em fazer uma carreira política mesmo?
R – Eu não penso em fazer uma carreira política, eu penso em transformar algumas situações que eu vejo hoje que dependem da política. Se eu tiver que usar a política ou se eu tiver que me envolver na política mais do que teoricamente eu já estou envolvido, eu vou usar, não vai ser a política que vai me usar. Eu quero usar a política para poder oferecer para as pessoas algumas oportunidades que nós sabemos que politicamente é a solução, sem política não vai se resolver. Então assim, o destino está na mão de Deus, eu sempre falo isso, por quê? Eu acho que eu demorei tanto tempo para construir uma história positiva, que eu seria assim, muito ingênuo de imaginar que se um dia eu atingir esse objetivo, sabe? De ser vereador, ser deputado, ser senador, ou ser de repente presidente ou governador ou prefeito dessa cidade, eu seria muito ingênuo em imaginar que pessoas não iam querer destruir toda essa história que eu demorei para construir. Mas se você for verdadeiro, se você sonhar, se você acreditar e se você não esquecer da sua história, não há ninguém que possa destruir a sua vida ou a história que você construiu. Nós temos tantas pessoas boas que usaram da política para ajudar outras, perdemos agora, um dos últimos.
P/1 – Você já faz um trabalho que ajuda as pessoas, né?
R – É, você precisa só ampliar isso. O maior exemplo que eu recebi de uma pessoa, eu comentei a semana passada, que ficou quase três décadas presa, que quando saiu da prisão, não saiu com ódio no coração, não saiu com vontade de se vingar das pessoas que o maltrataram, que o julgaram, que desacreditaram da força que ele tinha chama-se Nelson Mandela. Esse foi um dos poucos, se não foi o último, dessa geração de sonhadores e de pessoas que usaram o coração, que usaram a inteligência, que usaram inclusive a política, para transformar o que eles acreditavam, sonhos em realidade. É assim, é injusto? É injusto, mas são pessoas que ou bem, ou mal, tiveram que perder, abrir mão de muitas coisas para poder lutar pelo o que eles acreditaram.
P/1 – Claro! E Fran, eu vou para última questão, só queria perguntar para Joyce antes se ela quer perguntar alguma coisa, que tenha ficado.
P/2 – Não.
P/1 – Não? Nada?
R – Já chorou aí, estava chorando.
P/1 – Então, vou para última pergunta que é: como foi contar a sua história? Assim, como foi essa experiência aqui? O que é que você achou? O que você sentiu?
R – Então, assim, vocês me proporcionaram uma coisa que assim, todas as vezes que eu toco nesse assunto, eu renovo a minha vontade de continuar lutando, que é de poder mostrar para as pessoas que quando só depende de nós, tudo é mais fácil. Eu costumo dizer assim: “Jamais tenha vergonha ou medo de contar a alguém os seus sonhos, por mais maluco que eles sejam. No começo, você pode até sonhar sozinho, mas com o passar dos anos, outras pessoas vão começar a sonhar junto com você e vão te ajudar a transformá-lo em realidade”. Eu sonho todos os dias, todos os dias. Cada vez que eu paro para conversar com alguém e contar o quanto foi sofrida a minha vida, o quanto de obstáculos eu tive que superar, o quanto “não” eu recebi e o quanto “sim” eu proporcionei, inclusive para as pessoas que desacreditaram na minha capacidade, é o que me fortalece, é o que me faz um cara melhor, é o que me faz continuar sonhando, acreditando, dividir com os meus amigos os meus sonhos, com a minha família, com a minha esposa, com os meus filhos. Eu brinco que eu estava morrendo, estava agonizando, estava na UTI, por quê? Porque o meu filho, o Kauê, que é o que eu sonhava que ia dar continuidade aos meus projetos, ele está tomando o rumo dele, ele está acreditando nas coisas dele, ele está seguindo o caminho dele e comecei a ficar fraco, e comecei a ficar na UTI, começaram a colocar balão de oxigênio na minha boca, aí Deus vem, e me dá de presente o Luca. Depois de 15 anos de idade, foi aquela injeção de ânimo, a minha perna esquerda, que é o meu canhoto, e agora eu falo que eu tenho duas pernas, a direita que é o Kauê e a esquerda, que é o Luca.
P/1 – E todas as crianças e jovens com os quais você trabalha na associação.
R – Sim! É isso que eu queria te colocar. Por quê? Porque além das duas pernas que eu tenho para me carregar, eu tenho os garotos do projeto, que fazem com que eu sonhe todos os dias e veio aquele, sabe? Aquele impulso de vida, de coisa, de falar assim: “Agora, continua sonhando em poder dar continuidade e poder ter um herdeiro das suas insanidades como atleta”, porque também já não estou aguentando mais, 42 anos de idade é difícil continuar fazendo as coisas que eu fiz durante 33 anos, que foi castigar o meu corpo todos os dias, não há um dia da minha vida que eu não sinta dor, não há um dia, por quê? Porque você quer continuar tentando fazer as coisas corretas, e o Luca veio para renovar, para herdar essa insanidade dentro do esporte. As crianças do projeto vêm para fazer com que eu continue sonhando todos os dias, se na raia um, na raia dois, na raia quatro tem uma criança que começou numa pista pintada no asfalto, que se não for em 2016, que seja em 2020, representando a Associação Esportiva Cultural Kauê, representando as sementes do asfalto, como são denominadas, representando a bandeira do país, onde eu tive a oportunidade de representar algumas vezes.
P/1 – Está certo Fran, obrigada.
R – É esse o meu combustível.
P/1 – Assim, muito obrigada e parabéns pelo trabalho.
R – Eu que agradeço.
P/1 – Espero que você tenha gostado, a gente encerra aqui.
R – Eu adorei. Parabéns a vocês.
P/1 – Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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