P/1 – Então, primeiro, José, eu quero que você diga pra gente seu nome completo, data e local de nascimento
R – José Ruy Ferreira Gandra. Nasci em São Paulo, dia 17 de março de 1957, portanto, 56 anos
P/1 – Agora, o nome completo dos seus pais e se você souber também, data e local de...Continuar leitura
P/1 – Então, primeiro, José, eu quero que você diga pra gente seu nome completo, data e local de nascimento
R – José Ruy Ferreira Gandra. Nasci em São Paulo, dia 17 de março de 1957, portanto, 56 anos
P/1 – Agora, o nome completo dos seus pais e se você souber também, data e local de nascimento
R – Meu pai se chamava Ruy Ferreira Gandra, nasceu em Taquaritinga, interior de São Paulo e minha mãe, Eurípedes Belmonte Ferreira Gandra, nasceu em São Paulo também.
P/1 – E como é que você descreveria, José, os seus pais? Conta um pouco pra gente como era o seu pai, como era a sua mãe, tanto fisicamente, como de temperamento…
R – Como eu descreveria? Olha, a própria etnia deles já criava… já criou muita diferença, minha mãe é a caçula de uma família de nove irmãos filhos de calabreses, tanto meu avô materno como paterno eram calabreses. Então, minha mãe é uma figura muito serena, muito equilibrada, depois de tanto aprendizado que os pais tiveram antes de criá-la, a ultima, teve oito antes e foi assim a princesinha de uma família calabresa pobre, tá, então os outros todos trabalhavam, ela foi a única que fez faculdade, fez Letras na Maria Antônia num tempo que era muito incomum mulher estudar, fazer faculdade, anos 50, fim dos anos 40. Já o meu pai não, meu pai já era de uma família mais tradicional, de origem portuguesa, mas que já tá há muitas gerações no Brasil, era delegado de policia, era uma pessoa muito boa, mas uma pessoa muito tensa com a profissão que escolheu e uma pessoa que faleceu cedo, também, muito em função desse estresse todo também, da profissão e da vida, então… naquele tempo, as pessoas não se cuidavam muito não era muito… tão… a prevenção não era um negocio tão estimulado como hoje, minha mãe, por outro lado, foi professora a vida inteira, hoje é professora aposentada, deu aula de francês, no começo, quando francês era a língua do mundo depois, espanhol um pouco e quando terminou, se aposentou, ela dava aula de português.
P/1 – E você se lembra assim, como é que eram os costumes na sua casa?
R – Olha, a família do meu pai sempre foi uma família muito dispersa, os irmãos sempre muito separados, se viam muito pouco, se falavam pouco, não raramente brigavam, tal, não se bicavam muito na coexistência então o eixo da minha vida ali sempre foi a família da minha mãe, minha família materna, que era absolutamente o oposto, o meu avô construiu uma vila em Perdizes, com seis casas, morava ele na casa do meio, em volta moravam filhos, netos, sobrinhos, as casas em volta da vila. Então, foi uma família que cresceram muito grudados. Eu perdi um pouco isso, porque como eu era, primeiro por ser filho da caçula, meus avós já eram relativamente velhos quando eu nasci, minha mãe não casou assim, cedinho, não, teve filho um pouquinho mais tarde, com 30 e tantos anos, pra época era bastante. Mas, era então o tipo de família que seguiu pela vida unida, eu acabei não seguindo muito, porque até os dez anos, eu morei no interior.
P/1 – Essa vila existe ainda?
R – Existe. Ela fica atrás da Sotozzero, da sorveteria Sotozzero, na rua Caetés
P/1 – Tem um nome?
R – Vila Bela Vista, até o meu livro tem um capitulo dedicado a ela. Então, era uma coisa italiana, as minhas lembranças, primeiras lembranças de São Paulo, aliás, eram de vir de Mogi Mirim pra cá, aniversario, meus avôs, meus padrinhos, tal e nessa vila, eles botavam ali umas mesas enormes, 20, 30, 40 pessoas, sabe, almoçando ao ar livre, macarrão saindo de uma casa, empadinha saindo da outra, carne saindo da outra, tal e era almoço que durava assim, o dia inteiro.
P/1 – Você se lembra assim de coisas de costume da Itália, assim, marcas assim, da imigração?
R – Olha, o meu avô foi… os dois vieram muito cedo pro Brasil, meu avô veio com 15 anos, pra você ter uma ideia, chegou em Santos com dois irmãos mais velhos, uma irmã e um irmão mais velho, a irmã teve uma diarreia, ou uma intoxicação alguma virose, ficou horrorizada com Santos, com o Brasil, não sei o quê e foi embora com o irmão para os Estados Unidos, era muito comum nessa época, vinha, não gostava, ou ia pra Buenos Aires, ou ia para os Estados Unidos, tal, e os dois foram e o meu avô ficou, o meu avô já tava meio empregado, no fim, acabou ficando com 15 anos
P/1 – Qual que é o nome completo do seu avô?
R – Pascoal Carme Belmonte. E curiosamente, acabou conhecendo em Santos, uma outra calabresazinha chamada Filomena Grisoglia e acabaram se casando e ela vivia na Calábria… a família dela na Calábria vivia a 20 quilômetros de onde vivia o meu avô e eles vieram se conhecer em Santos, no Brasil e se casaram. Depois, o meu avô trabalhou com fornecimento de madeira pra estrada de ferro Santos–Jundiaí, então eles também mudaram ali pelas estacoes e nisso, os filhos foram crescendo. Foram crescendo, casando, um ficou numa estação, outro ficou noutra e tal, depois acabaram se reunindo todos em São Paulo, a grande parte acabou morando com os meus avós em São Paulo enquanto eles eram vivos
P/1 – Nessa vila que você mencionou?
R – Nessa vila. Nessa vila e em algumas casas em torno, também
P/1 – Tem família sua morando nessa vila hoje, ainda?
R – Da minha família, olha, essas casas hoje são de uns primos meus, de três primos, tal. Ninguém mora, ninguém mora mais, a ultima que morou foi a minha mãe, que agora eu levei pra morar na vila que eu tio morando lá, como morreu a ultima irmã dela, ela ficou sozinha, levei pra morar do lado da gente
P/1 – E nessa época, José, você tava mencionando esses almoços grandes de família na vila, você se lembra assim de ouvir historias, sua família tinha o habito de contar historias? Na mesa ou…
R – Tinha. Tinha muitas historias da própria família, acho que é uma família que cultivava muito as próprias historias, sabe, até pelo fato de ser muito grande, meus avós acho que tiveram algo como 30 netos, sabe, mais que 30 netos até dos oito irmãos, então havia muitas historias de cada um isso era muito comum nas grandes famílias você ter ali os pequenos heróis da sua vida nesse circulo. Então, o primo mais velho, sabe, você olhava com uma certa reverencia, um primo um pouco mais velho, os mais novos olhavam com reverencia e tinha uma coisa de naturalmente, as afinidades irem se estabelecendo e alguns irem assumindo os cuidados com os outros mais novos.
P/1 – E você se lembra de alguém assim que fosse marcante pra você, que fosse uma referencia ou alguma historia que tenha sido marcante dessa época?
R – Ah, eu acho que assim, eu tenho uma referencia muito grande da minha avó, que era uma italianinha perfeitinha, sabe, uma italianinha perfeitinha, de uma bondade imensa e de uma tia minha, que foi essa ultima a falecer, tia Lina, que foi minha madrinha e que parece que herdou toda essa latinidade da minha avó. Era uma pessoa acolhedora, então essa vila era um lugar ali… principalmente a casa da tia Lina, era um abrigo pra qualquer um da família, sabe? Então ali já teve doente terminal, que foi viver com a minha tia que a minha tia cuidou até morrer, gente que se acidentou e ficou vegetando ali, primo que ficou por um, dois anos vegetando no sofá e ela cuidando. Primos que vinham fazer vestibular em São Paulo, ficavam lá, que vinham estudar em São Paulo ficavam morando no quartinho do fundo, na casa dela
P/1 – Todo mundo era acolhido
R – Era uma coisa impressionante, que até hoje me emociona pensar nisso, nós mesmos quando o meu pai morreu, fomos eu, a minha mãe e o meu irmão morarmos na casa dela lá, deu o quarto dela, pôs a filha pra dormir num quartinho no fundo e deixou… e foi pro quarto da filha, deixou o quarto dela pra gente.
P/1 – Muito generosa
R – Oi?
P/1 – Muito generosa
R – Não, extrema generosidade, que hoje eu não vejo nem mais na minha família, entendeu?
P/1 – E José, só pra gente voltar um pouco nessa parte da sua infância, você tá me contando desses almoços, conta um pouco pra gente como é que eram essas mesas, que tipo de comida era cozinhada, pra gente poder visualizar mesmo, descreve um pouco.
R – Eu acho que já começava… o meu fascínio era um negocio engraçado, hoje olhando, a historia já começava a ser interessante com a viagem, sabe? Porque eu vinha de Mogi Mirim, você saía, passava por Campinas, que era aparentemente um negócio gigantesco comparado a Mogi Mirim, Mogi Mirim tinha dez mil habitantes, hoje tem 350 mil, e Campinas já era um treco grande, mas ai você saía de Campinas, eu me lembro muito bem que você pegava muito mato, muito ermo, sabe, hoje você pega, você vem de Campinas a São Paulo, você não tem um terreno vazio quase.
P/1 – Que época era isso, que ano, assim, mais ou menos?
R – Década de 60, assim, começo da década de 60, até metade dos anos 60. E eu me lembro muito bem que quando eu chegava assim, no município de São Paulo, até hoje tenho esse marco: “Você esta entrando no Município de São Paulo” e esse marco, antes ficava longe pra caramba, você passava esse marco, dai você andava, andava, mato, mato, mato, mato, de repente, aparecia a Maizena, fábrica da Maizena, que ficava onde hoje é a ponte da Anhanguera, só que ali tinha uma pontinha só, você atravessava o rio, já dava na rua Clélia e vinha embora, não tinha marginal, não tinha nada. Então, São Paulo era um negocio que de repente, ufa, aparecia, você fazia uma curva e chegava na cidade.
O resto todo era mato. E esses almoços, acho que dificilmente podia haver alguma coisa tão italiana na época, sabe? Eram assim, massas feitas em casa de manhã, meus tios acordavam, meu avô, meus tios, tias, acordavam cedinho, tipo seis horas pra abrir a massa, então faziam fusilli, gravatini, ravióli, espaguete, molho ao sugo, de tomate, sem… excepcionalmente bom, que a minha mãe faz até hoje, é uma receita bem familiar mesmo, muito vinho, muito pão, e ai, os pratos italianos: bife à milanesa, brachiolas, polpeta, tinha um pouco de tudo, alcachofra…
P/1 – Delicia demais
R – Eram coisas maravilhosas
P/1 – E era na rua, as mesas eram colocadas na rua, dentro de casa?
R – Na vila, no ar livre da vila, onde estão os carros
P/1 – E você mencionou que você tem um…
R – E se chovesse, evidentemente, dentro de casa
P/1 – Você mencionou um irmão. você tem um irmão só, é isso?
R – Eu tinha, ele morreu
P/1 – Ele faleceu?
R – Faleceu
P/1 – E qual que é o nome completo do seu irmão?
R – É Carlos Alberto Ferreira Gandra
P/1 – Mais novo ou mais velho?
R – Mais novo, era cinco anos mais novo, mas faleceu há muito tempo já, faleceu com 20 anos de idade
P/1 – Jovem
R – Jovem
P/1 – Muito jovem. E a sua infância, José, você passou a sua infância… eu queria que você me dissesse onde você passou a infância, me dissesse um pouco como é que era a sua casa de infância, como é que era o seu bairro…
R – Olha, eu cresci… minha infância, eu passei em Mogi Mirim, e a mesma sensação que eu tinha de São Paulo, eu tinha de Mogi Mirim, morava numa rua em que praticamente a cidade acabava. Do meu lado da rua, tinham construído ali, sei lá, seis, oito casinhas novas fizeram um loteamentozinho, fizeram umas oito casinhas construídas. Do outro lado da rua, pra você ter ideia, as casas já não eram no nível da calçada, a calçadas eram de pé, você descia, as casas ficavam embaixo e dessas casas, já acabava a cidade, o quintal dessas casas já dava no campo, entendeu? Então, era um negocio muito engraçado, eu acordava e ia brincar, o brincar era ir na casa do Tonho, meu amigo da frente e do quintal dele era pro mundo já, sabe, do quintal pro mundo, não tinha nem cerca, saía, já era um matagal enorme, riozinho, tinha muito riachozinho por ali, então foi uma infância maravilhosa, eu acho que foi assim, maravilhosa, com… ainda com o beneficio extra do seu pai ser delegado, numa cidade do interior, o delegado era muitíssimo respeitado então…
P/1 – Você lembra da casa assim, para descrever um pouco pra gente como era a casa, a rua…
R – Era uma casinha muito simples, era uma rua que tinha umas metalúrgicas, próxima do centro, a cidade era pequenininha, a casa devia ficar uns 800 metros do centro, mas já praticamente no fim da cidade, na saída da cidade da época. E era uma casa pequena, de dois quartos, e uma coisa que sempre tinha o bendito quintal, que muita gente pegava esses quintais, como eram grandinhos, não eram esses quintaizinhos que a gente vê hoje, muita gente transformava esses quintais em pomares, então plantavam frutas, então minha casa, embora meu quintal não fosse um pomar, os vizinhos quase todos eram, então a grande diversão era bem Chico Buarque mesmo, era pular muro pra roubar frutas, sabe, as grandes aventuras, ir lá no pé de manga, subir, pegar manga, ficar chupando manga, se tava verde, a gente comia com sal, se tava madura, a gente se lambuzava. Mas era uma infância de muito contato com a natureza e ao mesmo tempo, também tinham as graças ai que estavam começando a rolar o cinema, tinham as matinês, era uma coisa muito gostosa, a televisão tava começando, eu me lembro assim, a Jovem Guarda fazia um sucesso medonho, Nacional kid…
P/1 – Mas isso na infância ainda, no começo…?
R – Não infância. Na infância, seis, sete anos de idade
P/1 – E as brincadeiras? Assim, me conta quais eram as brincadeiras…
R – As brincadeiras eram brincadeiras de criança, como a gente sabe um dia se habituou a; então, você tinha temporadas. Eu não sei qual era o critério dessas temporadas, provavelmente climático, sabe? Então, os jogos se sucediam o tempo de… chegava o tempo de jogar bolinha de gude, ai passava um mês assim, tendo campeonato de bolinha de gude, de… não lembro agora, tinha um outro joguinho com as bolinhas, um tal de mata-mata, sei lá, ai passava um tempinho da bolinha de gude, ai alguém ia lá e fazia o papagaio, ai entrava a época do papagaio, começava todo mundo, toda molecada a fazer papagaio, atirava no céu, lá, não sei o quê. Passava mais um tempo, era pescar, ai ia todo mundo, sabe, pegava as varinhas e ia pescar nos riachos, não sei o quê… passava outro tempo, era esconde-esconde, ou pião, então tinha… eram brincadeiras muito simples, muito singelas
P/1 – De rua?
R – De rua, brincadeira de rua. Eu, com cinco anos de idade, eu saís de casa e falava: “Mãe, vou brincar”, voltava da escola, falava: “Mãe, vou brincar”, chegava a hora da janta, sabe, eu saía às duas horas, seis, seis e meia da tarde, ela dava um berro: “Zé, vem comer, vem jantar”, não sei o quê, ai a molecada toda voltava pra casa.
P/1 – E você tinha uma brincadeira favorita assim, você se lembra?
R – Ah, eu gostava muito de bolinha de gude, gostava demais de bolinha de gude e de empinar papagaio também
P/1 – E brincava com os amigos, assim, como é que era a turma? Você se lembra?
R – Era uma turminha da rua, eram os moleques da rua, eram moleques muito pobres, muito humildes, eles me olhavam meio com uma certa fascinação, poxa, o filho do delegado, não sei o quê, e eram humildes mesmo assim, tanto que uns dois ou três deles ali, quando ficaram um pouquinho maior, ali, nove, dez anos foram, trabalhar, iam trabalhar em engraxataria, entendeu?
P/1 – Muito simples
R – Oi?
P/1 – Muito simples
R – É. Era muito simples, é o que eu te disse, a minha rua era uma fronteira. Desse lado, fizeram essas casinhas pra classe média, mas o lado de lá eram pessoas muito humildes do outro lado da rua.
P/1 – E dessa época José, você se lembra assim de algum caso de infância, que tenha te marcado, uma historia que depois você tenha contado para amigos e filhos, alguma historia de infância mesmo, que envolva esse universo de brincadeira?
R – Ah, tem… tem um monte de coisa, tão difícil você pinçar uma…
P/1 – Não tem nenhuma que você concentra, alguma coisa que tenha sido especialmente marcante, ou porque é engraçado?
R – Olha, eu tive um pouco mais isso em São Paulo. Eu acho que era tão livre a infância em Mogi Mirim, era um negocio tão… sabe, tão por minha conta, eram as alegrias ali do dia a dia sabe, de sair, jogar bolinha, nas férias era uma delicia, que nem escola você tinha, tal
P/1 – Boa uma infância boa
R – Uma infância maravilhosa, maravilhosa, eu sofri muito pra vim pra São Paulo assim, foi um negocio muito duro, sabe?
P/1 – Quando que você entra na escola? Com que idade, você se lembra?
R – Ah, eu entrei acho que com uma no antes do pré, acho que eu fiz um jardim, um ano de jardim, depois um ano de pré numa escola religiosa, Imaculada Conceição chamava
P/1 – Isso em Mogi ainda?
R – Em Mogi Mirim. Ai fiz o primário em Mogi Mirim e quando eu tava pra me formar… não, na verdade, eu me formei, tava com nove pra dez anos, me formei e vim pra São Paulo
P/1 – Você se lembra como é que era essa escola assim, descreve um pouco pra gente o espaço da escola…
R – Lembro, era muito parecida com as escolas que você tem, que você vê estaduais por ai, sabe?
P/1 – Era uma escola publica?
R – Era uma escol publica
P/1 – Uma única escola, foi?
R – Oi?
P/1 – Foi uma única escola?
R – O primário?
P/1 – É
R – Sim, o primário eu fiz inteiro nela, fiz até o pré nessa Imaculada Conceição, que era uma escola religiosa, e depois, fui pra escola publica
P/1 – Que era qual o nome, você se lembra?
R – Coronel Venâncio, Escola Coronel Venâncio. E… me lembro assim…
P/1 – Você tem recordação do espaço…
R – Com muito carinho da escola… lembro, lembro, tinha um pátio, era o palco natural ai de brincadeiras e tinha uma coisa que me chamava muita atenção, Tereza, a escola tinha um negócio que chamava Sopa Escolar, que eu não sei se isso ainda existe nas escolas oficiais, mas tinha uma sopa e todo mundo comia, ninguém levava lanche pra escola, sabe, chegava na hora do lanche, ia lá todo mundo, pegava, tinha um pratinho bastante decente, uma sopa de feijão com couve ou tinha dia que tinha cachorro quente, era a festa, então todo dia tinha essa refeição. E me lembro que o padrão das aulas era muito bom, as professoras eram muito boas, eram muito vocacionadas, sabe, muito bem vocacionadas ali
P/1 – Você teve alguma professora que te marcasse assim, desse período, você se lembra?
R – Hoje eu não lembro mais, eu lembro que marcou até um certo tempo, mas depois, vai apagando a memória.
P/1 – E uniforme? Tinha assim, uniforme? Como…
R – Tinha uniforme, era uniforme muito simplesinho, um shortinho azul marinho e uma camisa branca com o emblema da escola no bolso, aqui, que eu tenho até hoje uma camiseta dessa ai.
P/1 – Você guardou o uniforme?
R – Guardei, guardei, porque assinaram os amigos, acho que eu ia mudar, os amigos assinaram, então outro dia eu vi, falei: “Não é possível”
P/1 – Incrível
R – Um barato.
P/1 –
E você se lembra como você ia e voltava da escola, José, assim, era perto da sua casa, você ia a pé, alguém te levava?
R – Acho que alguém me levava, eu não me lembro claramente não, mas não era perto, a ponto de com seis anos de idade, você poder ir a pé, entendeu? Era, sei lá, um quilometro de casa, mais ou menos
P/1 – Ia a pé? Você acha que era a pé?
R – Eu acho que alguém me levava, alguém me levava, mesmo que fosse a pé, entendeu? Mas não consigo lembrar não.
P/1 – E deixa eu voltar um pouco, antes de a gente falar da sua mudança pra São Paulo, você mencionou televisão, tinha televisão na sua casa?
R – Tinha! Tinha, aliás era um dos grandes atrativos da minha casa era a televisão assim…
P/1 – Você se lembra quando ela chegou? Como era essa televisão?
R – Lembro. Da televisão eu lembro, era uma Telefunken, era uma Telefunken, com aquele bendito seletor de canais que fazia tec, tec, tec, tec, que você ia virando, tinham 13 canais só, lá em Mogi Mirim, eu lembro que pegava no começo, só a Excelsior que era o canal nove, a Record, que era o sete, pegavam só esses dois. Depois, foram entrando outros, a Bandeirantes, mas eram dois canais que tinham lá. e a Record era assim, a Globo da época, tudo era na Record, todos os grandes artistas estavam na Record e a Excelsior era mais ou menos o SBT, fazia uma concorrência com… ou a Record hoje, fazia uma concorrência párea ali a Record.
P/1 – E o quê que vocês assistiam?
R – E ai, tinham as grandes sensações, eu acho que teve ali três sensações que marcou a geração inteira ai, pelo menos, em Mogi mirim. A primeira foi o “Nacional Kid”, sabe, acho que foi o primeiro herói de quase todo mundo da minha geração e curioso, porque era um tempo em que a produção cultural americana ainda enfrentava concorrentes, você tinha heróis de outros países, você tinha personagens de outros países, não era essa coisa avassaladora que você tem hoje em que 90% da produção audiovisual do mundo é americana. Então, tinha “Nacional Kid” que todo domingo era a grande atração, ai foram passando, passando, uns dois anos ali, ninguém aguentava mais, começaram a reprisar, tal, ai de repente, pumba! A cultura americana chegou de paraquedas… ah, lembrei uma historia linda pra te contar, viu?
P/1 –
Conta, pode contar
R – Cultura americana chegou de paraquedas com “Perdidos no Espaço”, que foi uma serie assim, que parava, chegava a hora do “Perdidos no Espaço” era domingo às sete horas da noite, no mesmo horário do “Nacional Kid”, não tinha ninguém na rua, sabe, acabava o seriado, todo mundo saía.
P/1 – Você assistia… a sua família se reunia pra assistir?
R – A molecada
P/1 – Os vizinhos assim?
R – No domingo. Já isso é interessante, no domingo, assim, na parte da tarde, tinha a Jovem Guarda, ai sim, ai as pessoas maiores que eu, meninas, irmãs de amigo meu e tal, ia um monte de gente pra lá pra assistir
P/1 – Pra sua casa?
R – Tinham muito poucas televisões, eram muito poucas, você contava as antenas assim, com os dedos quase na cidade. Mas eu lembrei Teresa, uma coisa muito legal, assim, que poxa, como é que eu fui esquecer? Era época da corrida espacial, tá, os primeiros satélites, as primeiras coisas e como eu morava no fim da cidade, não era uma região muito clara tinha muito mato, tal… então, o céu quando abria assim, de noite, era um… meu pai chamava de Sputnik: “Essa noite vai ter Sputnik”, e quando eles colocavam os satélites e desde de o garga e o garga eu não vi porque acho que tinha dois anos de idade, sei lá quando foi, mas depois, os outros satélites, ai o americano lançava, dava cinco voltas na terra, dai o russo lançava, dava dez, ai o americano lançava, ficava dois dias no espaço, então teve durante uns três anos assim, um atrás do outro e era muito legal que quando eles lançavam o satélite, meu pai me levava de noite. Então, às vezes, era tarde, falava: “O satélite vai passar a meia-noite e meia”, entendeu? Então, às vezes, eu ficava acordado, ai o meu pai me levava no quintal, apagava as luzes todas, ai você olhava e via aquele céu assim, coalhado de estrelas e de repente, você via no horizonte assim, via uma estrelinha se mexendo mesmo, andando, ai você via o satélite, dava uns 15 minutos assim, ele fazia o firmamento todo assim, uma estrelinha que ia andando. Pra mim, era… sabe, um dos sonhos, você…
P/1 – Lindo, é incrível!
R – Sentar e você ficar olhando aquele céu e um satélite atravessando o céu. Imagina, hoje você olha, você não vê nem estrela mais.
P/1 – Mas é lindo isso, deve ter sido incrível
R – É uma coisa… a minha lembrança da infância, inclusive, eu reproduzi na capa do meu livro “Coração de Pai”, que chama, é exatamente o meu pai segurando a minha mão e olhando para o céu. O Galeano, Eduardo Galeano, escritor, ele tem um conto lindo em que ele fala de um pai e de um filho, em que o pai assim, era um lavrador, morava super no interior, bem longe, isolado e tal, mas o pai sonhava com o mar. Você conhece?
P/1 – [Silêncio]
R – Então…
P/1 – Mas conta que é lindo, vale a pena contar
R – Então, ai foi incutindo tanta historia do mar na cabeça do filho, incutindo, incutindo, incutindo, chegou uma hora, o filho quis conhecer o mar. Então, eles saíram caminhando e tal, pouco dinheiro, passaram o diabo na travessia, muita humilhação no caminho, tal, até que uma hora, no final, eles chegam, tem uma duna, tal, os dois sobem uma duna e o moleque, finalmente, bate… com a mão dada com o pai, tal, bate o olho no mar, vira pro pai e fala: “Meu Deus, pai, me ajuda a olhar”, então é um negocio bem de ajudar a olhar mesmo, sabe, a grandeza do universo, de você olhar e falar: “Poxa!”, e ao mesmo tempo, aquela mão segurando, te dando todo acalanto e toda a proteção.
P/1 – É lindo demais. Vamos voltar. Retomar a coisa da televisão, mas é incrível! Se você se lembrar de outra coisa, porque a memória é um pouco assim às vezes, vem no meio…
R – Minha memória é miserável quando começo a fuçar
P/1 – É, vai vir. Então, você pode, quantas vezes você achar que… foi incrível essa historia é linda, assim. Mas a coisa da televisão, eu queria retornar um pouco pra isso. Assim, conta pra gente como é que era a coisa dos vizinhos chegarem, tinha algum tipo de preparação pra isso?
R – Não, as coisas eram muito espontâneas, sabe? Era tipo tocava… Jovem Guarda, por exemplo, tocava a campainha: “Posso ver ai?”, sabe a pergunta era essa: “Posso ver ai?” “Pode, claro. Entra”, não sei o quê… e ao mesmo tempo, essa televisão me deu muita precocidade, é engraçado, acabou me tornando um moleque muito precoce, porque tinham também os festivais teve a Revolução de 64, que eu tinha sete anos, então eu me lembro muito bem da dona Dora, nossa vizinha de muro, de repente vinha ali pelo muro e falava: “O Jango renunciou, o Jango renunciou”, ou sei lá: “Mataram o Kennedy”, entendeu? Então, nem telefone você usava, as conversas eram por cima do muro mesmo. Batiam papo ali pelo muro
P/1 – E você lembra desses eventos assim televisionados, você se lembra dessa…
R – Lembro, lembro dos videoteipes dos noticiários, tinham os videoteipes, tal, poxa, até hoje, pra mim a cena do Kennedy no caro, com a Jacqueline subindo no capô atrás a cena da morte dele é talvez, uma das mais fortes que eu tenho… me lembro que foi uma infância marcada muito… por isso eu quero seguir um pouco essa linha, que em São Paulo, a gente acaba perdendo. A minha infância foi assim, a típica infância vivida na Guerra fria, sabe? Em que cada vez mais os americanos foram se tornando heróis e que cada vez mais o resto do mundo, principalmente, os que enfrentaram os americanos na Segunda Guerra e que depois da Segunda Guerra, formaram ai o bloco soviético eram… eram demonizados era assim, você via a Rússia era o demônio, então, sempre tinha conversa do comunismo os comunistas, não sei o quê…
P/1 – Mas você se lembra disso assim, nas rodas, em que…
R – Lembro na questão do Jango, no pré-Jango, ali nos últimos meses do mandato do Jango, muita agitação, muita gente descontente, com medo: “O Brasil vai virar um país comunista”, você entendeu? Um negocio muito parecido com o que a gente tá vivendo hoje, por incrível que pareça.
P/1 – Muita gente tem feito essa relação.
R – Por incrível que pareça. E acho que não estão totalmente enganados, não, não vou dizer comunista, mas um chavismo ai, estão loucos pra botar nesse país mesmo aqui.
P/1 – Mas você se lembra assim, quando você fala dessa agitação, você lembra de roda de conversa de adulto?
R – Lembro
P/1 – Quais são as memorias assim, que te fazem…
R – Lembro, lembro, lembro que a ideia era meio essa, meu pai, como delegado incorporava muito essa ideia, ele era um janista, gostava do Jânio, na época, não sei se tinha alguma ligação partidária, não creio que tivesse, por causa do trabalho mas lembro muito da preocupação das pessoas falando: “Brasil tá seguindo um caminho de colonização, de não sei o quê…”, sabe, “Cuba já foi, teve a Crise dos Misseis” e as pessoas tinham um medo homérico, assim, verdadeiro pavor, principalmente as crianças de uma coisa chamada: bomba atômica, sabe? Quando teve a crise dos misseis em Cuba, começou a se falar, se posicionou, os russos posicionaram misseis, não sei o que… então, as pessoas estavam esperando uma Guerra Mundial mesmo, só que era uma guerra nuclear e que realmente, por pouco, não aconteceu. Então, tinha essa coisa da Guerra Fria em pleno andamento e uma batalha ideológica muito grande nos Estados Unidos pra ganhar o coração e a mente das pessoas. Eu acho que eu fui bem dessa geração, que é a primeira geração que os americanos conquistaram. Que são os baby boomers, mesmo que nasceram um pouco depois da Guerra.
P/1 – E você se lembra, pensando assim na TV e no cinema – você tinha mencionado cinema também na cidade
– você se lembra de filmes ou de programas, fora esses que você já mencionou, mas…
R – Lembro, a cidade tinha dois cinemas, um que chamava o Cine São José, que era o principal e o outro era o Rex. Cine São José, que tinha uma programação mais voltada pra criança. Tinha as vesperais que eram domingo de manhã, dez horas da manhã, geralmente, passavam o seriado do Zorro, tá, e tinham as matinês. As matinês assim, o grande herói de todo mundo era o Tarzan, sabe, tinha filme de Tarzan, o cinema transbordava de gente e tal.
P/1 – Você frequentava bastante o cinema?
R – Frequentava, frequentava. As matinês eu gostava muito de ir
P/1 – E como é que era assim, o publico, quem te levava?
R – Eu tinha uma coisa gostosa, que era o seguinte: era o filho do delegado, então eu não pagava entrada e eu leva um puta monte de moleque comigo, levava um bando, ia entrando todo mundo e tinham duas cadeirinhas, realmente ali… tinham seis cadeiras: delegado de policia, delegado de policia, juiz de direito, juiz de direito, promotor de justiça, promotor de justiça, prefeito e prefeito, entendeu?
P/1 – Reservadas?
R – Reservada. Eram cadeiras reservadas. Então, era uma coisa muito boa você ver esses filmes, tinha ainda uma produção de outros países, o cinema americano não tinha tomado conta de tudo, estava em vias de já, mas você ainda tinha muito filme mexicano, eu me lembro de ter visto filmes antigos, não era da minha época, mas ainda era bem famoso, como por exemplo, o “Cantinflas”, tinha muito filme mexicano. Eu lembro, não sei se era um filme mexicano ou espanhol, mas tinha um menino ali que era um herói, chamava Joselito. Então era um menininho de uns 12, 13 anos, 14, sei lá que virava cantor e as historias eram sempre nisso, as historias teve uns sete, oito filmes lá do Joselito que fizeram muito sucesso, tal.
P/1 – E como as pessoas se comportavam assim, no cinema, você se lembra? Assim, em comparação com hoje em dia, comiam no cinema?
R – Comia. Assim, a grande sensação do cinema era você comprar um saco de bala Juquinha, chamava, ou bala chita, tinham as duas, no começo era chita, depois foi a Juquinha, que eram praticamente iguais. Ai todo mundo ia, comprava um saquinho de balinha, como se fosse agora, dois reais, três reais de balinha e ficava chupando balinha e vendo o filme, adorando as coisas todas.
P/1 – E o comportamento assim, era bem silencioso o cinema?
R –
Era tranquilo, não tinha zona não, não tinha zona não. era sossegado. E os meus pais iam muito, meus pais iam bastante ao cinema. Pra criançada era fim de semana mesmo, o clube, que ia nadar…
P/1 – Você frequentava que clube, lá em Mogi?
R – Chamava Grêmio Mogiliano
P/1 – Você se lembra como era o clube?
R – Era simplesinho, tinha ali uma piscina, a sede esportiva tinha uma piscina, duas piscinas, aliás, lanchonete, uma quadrinha de futebol, uma quadrinha de tênis, tal, era pequeno, era modesto, mas era bem gostosinho e tinha a sede social, onde eles faziam baile de carnaval, tal.
P/1 – E José, quando que você vem para São Paulo, então, vamos pensar na sua… você termina o primário em Mogi e ai vem pra São Paulo, por quê que você vem? Pra onde você vem? Onde você vem morar em São Paulo?
R – Eu vim morar em Vila Pompéia e sempre fiquei por essa região, sabe, zona oeste, Vila pompeia, depois Perdizes, ai, Pinheiros, esses lados aqui, Vila Madalena, nunca fugi muito desses lados
P/1 – Que idade você tinha e por quê que vocês voltaram pra São Paulo?
R – Voltamos porque meu pai… a carreira à medida que ia recebendo promoções, ia mudando de lugar e o normal, era depois que o delegado depois de fazer a carreira no interior, venha para São Paulo, onde estão os cargos mais importantes. Olha, me lembro muito bem assim, vindo embora, sabe, sentado no carro, o caminhão de mudança saiu, tal, um tempo depois, a gente saiu também e eu me lembro dos meus amigos assim, tendo a clara sensação de falar: “Puta, tô deixando a minha vida pra trás”, sabe? “Minha vida inteirinha tá ficando pra trás”, quando eu vim embora. Ai, eu cheguei em São Paulo, já tinha um pouco de referencia por causa da família, que já morava aqui, então no começo, ficava um pouco com os primos, tal…
P/1 – A sua idade?
R – Oi?
P/1 – Que idade você tinha nesse momento?
R – Dez anos, dez anos, fiz dez anos uns dois meses depois de mudar pra São Paulo. Ai, os… com o tempo, fui fazendo os primeiros amigos ali na rua e São Paulo já era uma outra realidade comparada com Mogi Mirim você começa a ver o anonimato, descobre o anonimato, Mogi Mirim, mesmo que você não conhecesse as pessoas, pessoalmente, você sabia que elas eram da cidade , entendeu? “Aquele cara eu sei que mora aqui, aquele aparece de vez em quando”, então, você tinha meio que um conhecimento da cidade quase inteira, pelo menos de vista assim, sabia que no armazém tal trabalhava um cara, um velhinho, não sei o quê… e São Paulo não tinha isso, São Paulo, pela primeira vez, teve que ir atrás de amigos teve que procurar amigo. mas eu sempre tive muita facilidade, então não demorei muito a ter a turminha da rua.
P/1 – E escola aqui, você chega e vai estudar em que escola?
R – Eu fui pro Zuleika, pro Zuleika
P/1 – E como é que era o Zuleika, qual que era a diferença da escola de Mogi?
R – O Zuleika era uma escola experimental, praticamente, era uma escola fabulosa, fabulosa, tinha acabado de inaugurar o Zuleika, estavam tentando fazer uma escola modelo, não sei o quê, então, sei lá, o Scipione, que era um grande professor lá de Matemática, dava aula lá
P/1 – Mas era experimental em que sentido? Assim, você se lembra qual que era a proposta?
R – Acho que era uma proposta de fortalecimento ali do ensino publico de contratar professores mais… não sei, foi alguma… alguma tentativa ai bacana, mas que com o tempo, acabou oferecendo. Mas eu fiz um bom ginásio, foi um ginásio bem solidozinho
P/1 – E como é que era a estrutura da escola, assim, você tem recordação do Zuleika? Quais as diferenças da escola em que você estudava em Mogi?
R – Não tinha muita não, viu, fora a sopa e o fato de que no Zuleika, eu estudava numa coisa que se chamava período intermediário
P/1 – Que era o quê?
R – Que era… não me lembro exatamente os horários, mas eu acho que era assim, das 11 às três, uma coisa… das dez e meia às três, tinha um que ia das sete às onze, tinha um das 11 às três e um das três às sete, acho.
P/1 – Eram três turmas?
R – Também era uma invenção recente lá, não sei se isso sobreviveu ou não.
P/1 – E desse período do Zuleika, teve algum professor assim, marcante pra você, você se lembra?
R – Puxa vida, teve, teve, figuras assim, mas mais pelo folclore.
P/1 – Como quem?
R – Me lembro da dona Maria Antônia, professora de Português, que era uma velhinha, devia estar assim, na pós-aposentadoria já, mas era uma figura muito doce, embora detestasse gramática, essas coisas, não sei porque fui virar jornalista, porque eu odiava, assim, escrevo de modo absolutamente intuitivo. A professora de Desenho era linda, uma professora linda, dona Norma, a de Matemática muito severa, e a de Historia, única segunda época que eu peguei na minha vida foi de História, e depois, acabei fazendo faculdade de historia, ó que coisa gozada!
P/1 – Mas era uma disciplina que você não gostava?
R – Agora, era uma escola publica legal, de turma muito grande, de grande, sabe, grande afetividade entre os alunos
P/1 – Até que idade você fica lá, José?
R – Dos dez aos 14, fiz o ginásio.
P/1 – Então, pega esse começo assim, de adolescência.
R – Isso. A pré-adolescência
P/1 – É, a pré-adolescência
R – E assim, paralelamente ao Zuleika, tinha duas pernas a minha vida… três pernas a minha vida, tinha a turminha da rua, tinha a turminha do Zuleika e tinha a turminha do Palmeiras, sabe, do clube que eu frequentava, que com o tempo depois, na adolescência, propriamente dita, eu acabei assim, ficando da turma do clube me juntando com a turma do clube, ai os meus amigos vieram todos dessa roda, sai um pouco do quarteirãozinho ali. É que São Paulo, todo quarteirão tinha uma turminha, um sarro isso, cada cantinho tinha uma turminha, não raro tinham brigas, sabe?
P/1 – E você é palmeirense?
R – Sou são-paulino
P/1 – É são-paulino
R – Eu sou uma aberração, porque assim, eu passei a adolescência no Palmeiras, sou de uma família italianíssima, materna, mas minha família materna é todinha são-paulina e a do meu pai, que eram uns quatrocentões, uns trezentões, ai, eram todos palmeirenses, é engraçado isso, é uma inversão ai que eu não sei explicar
P/1 – Trocaram?
R – É
P/1 – E ai, essa passagem assim, a pré-adolescência e ai, a entrada mesmo na adolescência, você se lembra assim, o que que mudou, você disse a coisa da turma a turma do clube ficou mais forte, você mudou de escola.
R – Mudei, eu fui pro Objetivo, a primeira turma do objetivo. Ai, já começava… começava a rolar uma
PAUSA
P/1 – Vou retomar então a pergunta pra gente… então, essa passagem pra… a gente conversava um pouco dessa passagem pra adolescência, que muda muita coisa na vida, na dinâmica de relação, e ai, você tá contando que a turma do clube se torna forte, você muda de escola e vai pra primeira turma do objetivo.
R – Fui pra primeira turma do Objetivo. O quê que começava a haver nesse momento? Tinham duas coisas, primeiro, foi a fase mais dura da Ditadura e realmente, a gente sentia, quando chegou no colégio, já tinha um contato bastante intenso com essa realidade, já
percebia muito bemo que estava acontecendo no país já tinha uma visão mais ou menos clara do panorama
P/1 – E como que isso era sensível, assim, você se lembra de…
R – Olha, no Zuleika, por exemplo, um dia, na rua do lado, na Cotoxó, que é a rua que passa na lateral da escola, estouraram o aparelho terrorista, estouraram assim, de matar, mataram dois terroristas, tal. E a gente viu, a gente tava lá, a gente viu tirando os caras baleados, não sei o quê, jogaram o cara, levaram, tal. Depois, teve aqui na Pio XI, na Lapa, o PCdoB também estouraram também o aparelho do PCdoB, mataram
o Pedro Pomar, então você via essas coisas, ao mesmo tempo, meu pai era delegado, ele ficava sempre buzinando: “Olha, tea tendo guerrilha” “Os guerrilheiros estão se enfrentando, é um puta perigo”, meu pai nunca teve nessa área de repressão politica, nunca, sempre foi de postos mais administrativos de gestão, nunca teve na linha de frente, muito menos na Ditadura, ele que era um bacharel todo certinho. Mas isso ficava claro, era um mundo muito careta, muito, mas muito, muito careta, São Paulo era extremamente provinciana, uma cidade provinciana, parecia uma cidade do interior, se você olhar hoje, era uma cidadica do interior
P/1 – E como… quando você fala assim que era careta, você tá pensando em que aspectos?
R – Era careta sexualmente, no ponto de vista de costumes, no ponto de vista politico, a censura era muito forte, não se dava um pio contra o governo, era um marasmo aquele governo de arena, aqueles generais se sucedendo. Nessa época, o Medici
P/1 – E você se lembra como isso influenciou assim, no cotidiano de vocês, ou na juventude você tava no meio da adolescência…
R – Eu fui virando esquerdista, fui virando esquerdista, assim, acho que um pouco, já
no colégio, um pouco pra confrontar a figura do meu pai, que enfim, era muito forte, delegado, não sei o quê; e segundo, pra fugir um pouco dessa caretice mesmo que era a vida. Ali, eram duas coisas que as pessoas faziam, ou se metiam em alguma militância politica ou discussões politicas, movimento estudantil e tal, ou ia fumar maconha. E foram duas coisas que eu fiz assim, com muita frequência durante o colégio, sabe, me dediquei bastante a… então, com isso, acabei indo pra faculdade já como o esquerdistinha, entendeu, eu já era o esquerdista, o militante de movimento estudantil, acompanhei na faculdade…
P/1 – Mas é uma coisa que começa, você acha, no objetivo, nessa fase de…
R – Começa nessa idade, eu não diria que no… o Objetivo ajudou muito, porque o Objetivo, o primeiro ano assim, eram só professores fantásticos, assim, era um colégio espetacular
P/1 – E você lembra de alguém, assim, marcante?
R – Ah, lembro! Lembro, lembro, me fez… acabou me fazendo fazer Historia, me levando a fazer Historia, o Heródoto Barbeiro, por exemplo, era meu professor de Historia
P/1 – Que privilegio!
R – E ele era o titular de Historia Contemporânea da USP. Então, era o Jobson Arruda, então era muita gente boa e eles estimulavam a discussão.
P/1 – Você se lembra assim, de algum episódio especifico, uma coisa que te marcou nessa época do objetivo, uma aula, ou enfim, um evento…
R – Ah, eu lembro uma coisa, um menino que era da minha classe e que morreu… foi um dos que a Rota 66 matou, não sei se você lembra desse episodio, que estavam fumando um baseado, mandaram parar, eles continuaram com o carro, não lembro, ai fuzilaram os quatro moleques. Esse foi um episodio que foi muito marcante pra gente
P/1 – Como é que foi isso assim? Como é que vocês ficaram sabendo da noticia?
R – Ah, no dia seguinte e ai, toda aquela… ai você vai vendo que a Rota… ai deram a versão da policia, os traficantes, não sei o quê… e o menino, assim, meu amigo que morreu era uma lindeza, um menino lindo, que as meninas… eu lembro que as meninas adoravam, morava ali nos Jardins, era um moleque super…
P/1 – Que idade ele tinha?
R – Ah, tinha a minha idade, 16 anos, 15, 16 anos
P/1 – Você se lembra do nome dele, acha que pode dizer, ou não?
R – Tô tentando lembrar, eu tio tentando lembrar, não me lembro se é André… acho que é André, embora fosse da classe, não era um… mas era uma pessoa querida, uma pessoa querida. Agora, era aquela coisinha não tinha… o povo todo… muita gente escapou ali pela maconha, entendeu? Muita gente fumava maconha, muita, muita gente mesmo. Eu lembro que assim, o primeiro e o segundo colegial, eu fumei bastante, bastante, ai no terceiro, quando começou, tipo, o que vai fazer, o que vai prestar, eu tava super perdido, tal, ai eu falei: “Eu vou parar de fumar, pelo menos pra…”
P/1 – Se organizar
R – Me organizar, a vida, ai lembro que dei um tempo, prestei vestibular e já vem faculdade, que é uma outra coisa. Que é uma outra coisa.
P/1 – É, vamos passar um pouco pra essa coisa da faculdade, mas antes, só pensando nessa coisa da adolescência, você se lembra… bom, era uma fase de muita repressão, de muita contenção, você se lembra o quê… a maconha era um caminho pra transcender, mas você se lembra assim, de programas com colegas, quando você menciona o clube, o quê que vocês faziam pra se divertir, assim, pra onde vocês saiam?
R – A gente… tem o Palmeira, por exemplo, nessa época, ele foi o mingau, eram os mingaus de domingo.
P/1 – O que é o mingau?
R – Não sabe o que é mingau? Um bailinho, um bailinho pra adolescente no sábado tinha boate no Palmeiras, começava dez horas, acabava às três, era pros adultos e no domingo, tinha o mingau que era das sete às onze da noite.
P/1 – E como é que era o mingau, assim, conta assim o quê que tocava, como as pessoas iam?
R – Era uma delicia, uma delicia… tocavam as musicas Pops da época, então sei lá, Creedence Clearwater, Beatles, Rolling Stones, depois começaram a entrar os metaleiros, Black Sabbath, Deep Purple, tal, mas o mingau tinha musica mais caretinha pra dançar juntinho e tal…
P/1 – Como por exemplo…
R – Ah, sei lá, Bee Gees, pré-disco, no comecinho mesmo, “I Started a Joke” uma… as mais antigonas mesmo, “First of May”, “Sugar Sugar”, “Venus”, umas coisas muito… que ficou pelo tempo.
P/1 – E você se lembra como era o espaço assim, como era enfeitado, o que as pessoas vestiam?
R – Era um palácio do Palmeiras, uma construção mais moderna que tinha lá, em cima tinham dois grandes terrações e um salão no meio, com um terraço dos dois lados, ai assim, enchia de menina, a gente tinha uma turma de uns 40 moleques e meninas, ia a turma toda e você namorava cada semana o que ficar hoje e cada semana, geralmente, você ficava com uma menina, sabe, tirava pra dançar, dava uns amassos, a coisa esquentava muito, você saia lá, ia pra algum canto dar um amasso mais ousado, tal… transa não era uma coisa muito comum nessa idade ainda, e geralmente, as mães levavam as meninas, entendeu, iam buscar
P/1 – Levavam, deixavam e depois iam buscar
R – Depois, iam pegar, ficavam ali pelo clube, tinha cinema também, às vezes, iam ver o cinema e pegavam depois, tal e a gente mandava bala, era uma molecada super erotizada, danada, que… então, tinha muito namoro, namorico.
P/1 – Você se lembra assim, do seu primeiro…
R – Muito bailinho, as festas, tinham muito bailinho assim, foi como se começou a se dar as iniciações afetivas começaram a se dar assim, então fazia aniversario, era um bailinho na garagem, fatal.
P/1 – E como eram esses bailinhos na garagem?
R – Ah, você botava, tinha que ter ali o som, geralmente era um gravador com uma caixa, você dava um jeito de arrumar uma caixa, sempre tinha alguém no pedaço ali que tinha um som, às vezes, alugava, tal
P/1 – E era rádio, vinil?
R – Oi?
P/1 – Rádio?
R – Vinil, vinil, às vezes, fita, quando era mais chique, tinham os akai, gravadores akai, tal. E um ingrediente ali, absolutamente indispensável, em qualquer festa que se prezasse era luz negra. Você tinha que ter a luz negra e era um, sabe, pio, vai lá tem luz negra, o baile era outra categoria, entendeu?
P/1 – E o quê que era servido assim, você se lembra?
R – Ah, refrigerante, às vezes, uma bebidinha ali contrabandeada mas não… a gente não bebia muito não, assim, comecei a beber mais na faculdade assim, mais adiante. Eram festinhas que você ia… era aquela ciranda, uma gostava de um, que gostava da outra, que gostava do outro, que gostava… e as pessoas iam, sabe, fazendo rodizio de namoro.
P/1 – E você se lembra assim, da sua primeira paixão, se foi dessa época, quem foi, ou enfim, alguma namoradinha que tenha sido mais significativa?
R – Lembro, a primeira que eu gostei era uma menina que chamava Cidinha, que era do Palmeiras. E era uma menina linda, linda, diferente que um dia apareceu no mingau, ficou todo mundo meio fascinado, tal…
P/1 – Como que ela era, descreve pra gente
R – Era pequenininha, tanto que o Cidinha, pequenininha, mas o rosto muito bonito, um cabelo chanelzinha, moreninha, moderna, uma cabeça arejada, tal. E lembro que um amigo meu, Nenê, o carioca começou a namorar com ela, já pulou na frente e começaram a namorar. Ai, eu falei: “Puta que pariu, eu adoro essa menina, queria tanto ela pra mim”. Ai, as coisas eram assim, um dia, eu cheguei perto dela e falei: “Pô, Cidinha, eu gosto de você, a gente podia namorar.”, ela virou e falou: “Quando eu terminar com o Nenê, a gente namora” . Ai, na semana seguinte, ela terminou e a gente começou a namorar. Então, ela foi a primeira pessoa que eu gostei assim, de ter gostado de falar, bom humor, namoros eram beijo na boca. De vez em quando, você colocava os seios em… depois, foram ficando mais… mais, ali com 16, 17 anos, foram ficando mais…
P/1 – Já estavam mais velhos
R – Mais assanhada essa brincadeira, mas nessa época, não cheguei a fazer sexo com ninguém, não, com as meninas amigas assim.
P/1 – E cinema, vocês iam ao cinema, também?
R – Eu ia muito, eu ia muito e…
P/1 – E onde assim, você se lembra de algum lugar…
R – Lembro. Lembro, vou te dizer, isso ai é um marco. Eu, quando tinha 16 anos, eu tinha a barba muito serrada, sempre tive a barba muito serrada, então, com 16 anos, eu já usava barba e não parecia ter uma barba assim, como a dele, espessa, então não parecia ter 16 anos e entrava em filme de 18, sem problema. Então, assim, a partir dos 16 anos, já comecei a ir ao cine Bijou e o Bijou, todo dia, naquele tempo, era cada dia um filme não era: bota um filme e fica uma semana passando
P/1 – Onde era o Bijou?
R – O Bijou era na Praça Roosevelt, tinham duas salinhas e só passava filmes de arte, só passava filme bacana. Então, eu passei assim, uns dois anos, dos 16 aos 18, indo ao Bijou uma, duas vezes por semana pra ver todos os filmes que eu não tinha assistido na vida, entendeu? Colocar em ordem todos os filmes maiores. E era realmente muito gostoso, o Bijou foi um marco ali na…
P/1 – E você se lembra de algum filme que tenha te marcado mais?
R – Ah, um monte, um monte. “Sob o Domínio do Medo”, “Getting Straigth”, como era o nome em português? Puxa, agora não me lembro o nome. “Esse Crime Chamado Justiça”, “Woodstock”, ai, um monte de coisa, um monte de coisa, os filmes do Fellini, todos, “Roma”, “Satyricon”, “Pasolini”, tudo isso passava, era chamado um cinema de arte, o Bijou. Então, só passava filmes desse tipo.
P/1 – E era um programa também pra fazer com amigos, ou com uma namorada?
R – Amigos, às vezes, namorada… eu comecei a namorar sério mesmo na faculdade, eu tive a minha primeira namorada séria na faculdade… no segundo ano da faculdade
P/1 – Um pouco mais tarde.
R – É
P/1 – E nessa época, só pra gente fechar essa coisa, você tinha mencionado que você começa a participar do movimento estudantil ou a se politizar. em pensar em posicionar nessa época da adolescência ainda no Objetivo?
R – No Objetivo
P/1 – E ai, você se lembra assim, de ter ingressado em algum grêmio, não sei como se organizava a escola na época, mas alguma coisa…
R – Não, não tinha, não tinha grêmio no Objetivo, não tinha nada, não existiam essas coisas foram criadas, tudo voltou a ser criado quando eu tava na faculdade, tá? Agora, o que tinha, por exemplo, a gente tinha aula de Educação Moral e Cívica no colégio, era um capitão da PM que dava aula de Educação Moral e Cívica
P/1 – Como é que eram essas aulas? Qual o conteúdo?
R – Era um horror! Um horror assim, tipo hino, sabe, símbolos do Brasil, não sei o quê, até essa teoria da Escola Superior de Guerra da época, de sabe, contra a revolução os russos, os não sei o quê, o mundo tá sempre numa guerra, essa Guerra Fria. e ai, o que havia era muito bate-boca com esse professor, eu lembro
P/1 – Você se lembra o nome dele, não?
R – Carlos Alberto se chamava. Carlos Alberto, era o nome do meu irmão.
P/1 – E como é que eram esses enfrentamentos?
R – Ah, esses enfrentamentos, a gente lia três linhas de Marx ali ou entendia alguma coisinha de Marx, ia lá e jogava na cara do professor e o professor: “Seus comunistas…”, não sei o que, era um negocio desse tipo: “Eu vou tomar providencia com vocês…”, o diabo e tal…
P/1 – E tinha uma punição?
R – Não, não, não. Às vezes, ele mandava pra fora da classe, por respeito, tal, não sei o que, mas não passava muito disso
P/1 – E como é que esses livros chegavam até você? Como que Marx chegou até você?
R – Ah, sempre tinha… sempre tem o… sempre tem alguém do partidão infiltrado em qualquer lugar, sempre tinha alguém, impressionante. Você ia, jantava… eu lembro de um amigo meu foi… que mais tarde, ele fez Historia na PUC também, o Halley, era da minha classe, filho de um latifundiário de Goiás, que tinha uma fazenda de dois mil e quinhentos hectares, alqueires, um negocio gigantesco e era o mais comunista e é um cara que é assim, no Objetivo, eu fui
fazer Historia na PUC e Direito na USP e fazia historia na PUC junto com ele, só que ele fazia de manhã e eu de noite e o Halley já começou no centro acadêmico, não sei o quê e eu também junto. Só que ele fora disso, ele tava numa célula do que chamava Movimento de Emancipação do Proletariado. Então, quando estouraram a PUC, teve a invasão, o diabo lá, antes, logo antes da invasão que prenderam os estudantes da PUC, foi quando começou o movimento estudantil, começou pedindo que soltassem, quando prenderam esses estudantes, ele ficou… porque arrombaram a casa dele, porque queriam era ele e…
P/1 – Ele, você conheceu na faculdade ou já tava no Objetivo com você?
R – Oi?
P/1 – Ele, você conheceu…
R – Não, fez Objetivo comigo e depois, fez Historia também
P/1 – Já era uma dessas figuras que traziam…
R – Já eram desses que já vinham: “Ó, autarquia, esquerda…meu negocio é esquerda, isso ai é Ditadura…”e não sei o que…, e ai, quando saiu, deu esse rolo, ele sumiu da Historia e foi trabalhar em fábrica, sabe, foi fazer planfetismo na fábrica. Hoje, ele tá no Rio de Janeiro, na Delfim Moreira, num apartamento, sabe, em frente a praia no Leblon, levando uma vida maravilhosa com o dinheiro que o pai juntou na fazenda, mas na época, ele era assim, o comunista
P/1 – E você diria que dessa turma do Objetivo, da época que você estudou, era mais esse perfil?
R – Olha, não, não. o perfil geral, não. eu acho que esse era o… o Objetivo tinha o manistream, as pessoas ali que eram caretas, vamos fazer ai o vestibular e estudar sério e tal e tinha o que a gente chamava de os alternativos, o mundo ali se dividia entre malucos e caretas, falava: “Ou o cara é maluco, ou o cara é careta”, se era maluco andava com maluco e se era careta, andava com os caretas. Eu ainda tinha um certo trafego pelos dois e tal, mas eu tava mais pros malucos. O pessoal descia, a gente fumava assim, maconha, fumava no banheiro da escola, então tinha, descia no banheiro no intervalo da aula e voltava pra aula, tinham cinco minutos, dez entre cada aula
P/1 –
Você se lembra como é que era o acesso assim, à maconha, por exemplo, quem trazia? Como é que…
R – Ah, todo mundo tinha, todo mundo tinha. A gente encontrava, entrava às sete horas no objetivo, então era muito comum a gente se encontrar ali às dez pra sete na porta da escola, um bando ali, oito, dez, sei lá: “Vamos matar a primeira aula?” “Vamos”, então saía todo mundo, ia até o MASP, sentava ali na muretinha do vão do MASP lá, às sete horas da manhã, apertava dois gigantescos assim, fumava e voltava todo mundo, sabe…
P/1 – Chapado
R –
Chapadão pra primeira aula. Agora, eu tinha uma coisa que eu consegui estudar chapado, isso era bom, eu conseguia me concentrar, ouvir, refletir, mas depois, quando chegou a hora de afunilar, eu acabei saído fora depois,
P/1 – Então, essa fase, essa coisa mais politizada é o contato com as pessoas mesmo que estavam envolvidos, que tinham formação, que estavam na militância…
R – É, você percebe que vai começando a se formar um caldo de descontentamento da situação, sabe? Que não era mais aquela coisa unifacelado, uniforme, tudo, igualzinho, tal, as pessoas começam a se manifestar: “Olha, é uma Ditadura ali, é não sei o quê…”, foi um começo de conversa que na faculdade, foi desembocar num… já numa retomada do movimento estudantil.
P/1 – E ai, então essa passagem pra faculdade, José, como é que… quando que você decide que vai fazer, como é que surge essa decisão… só deixa eu perguntar uma coisa antes, até então, você é estudante só, não trabalha.
R – Não.
P/1 – Você começou a trabalhar mais tarde? Tá. Então, essa coisa da faculdade, como é que surge a decisão, como que você decide o que vai fazer?
R – Olha, até o terceiro ano eu era um perdido assim, até o começo do terceiro ano. Pra você ter uma ideia, a primeira escolha que eu fiz de profissão, quando falaram no segundo ano: “Tem que escolher se é exatas, biológicas…”, escolhi Engenharia Naval, porque eu tinha ficado numa segunda época de Matemática, tive umas aulas particulares com um menino que fazia Poli, Engenharia Naval, fiquei encantado, fiquei com isso na cabeça, ai escolhi Engenharia Naval. Ai, fiquei um mês nessa área, uma carga tamanha de matemática, que eu falei: “Tô louco de ficar aqui”, ai mudei pra Arquitetura
P/1 –
Mas como que era essa escolha, só explica pra gente pra… você escolhia… era direcionado o estudo a partir da escolha?
R – Era porque tinham três áreas, o vestibular era dividido. Era Cecem, Cecea e Mapofei chamava
P/1 – Que significa o quê? Era o quê?
R – Então, o Cecem, do ‘m’ no final, era médicos, Medicina, biológicas; o Mapofei era Mauá, Poli e Fei, era exatas e o Cecea era humanas, tá? Eram as faculdades de humanas
P/1 – E no colégio, você já tomava essa decisão?
R – E no colégio, você já tomava um rumo, no segundo ano, você já ia pra uma das três, você escolhia a profissão, quero Engenharia Mecânica, ai é exatas, então, vai pra exatas. Então, eu fiz um mês de exatas, falei: “Imagina”, ai mudei pra Arquitetura, pra fazer Arquitetura, ai puta, tive umas aulas de Desenho Arquitetônico, falei: “Imagina, não tenho o menor jeito pra isso”. Ai, eu tinha um primo que eu gostava muito, que fez Jornalismo, virou jornalista, falei: “Acho que vou prestar Comunicações”, ai prestei, prestei Jornalismo e Historia. E entrei na FAAP em jornalismo e na PUC em Historia, tá? Ai, o meu pai começou a me encher o saco. Primeiro que porra, entrei em duas faculdades pagas, hoje eu olho, o meu pai era um durango, coitado, apesar do posto, tinha dois filhos, pagando duas escolas pra mim e o colégio pro meu irmão. E ele tinha uma coisa com Jornalismo de falar: “Isso não é profissão, isso é coisa de vagabundo, isso não é profissão, isso é coisa de vagabundo”. Ai, teve um monte de coincidência. O quê que aconteceu?
P/1 – Só perguntar uma coisa sobre a visão do seu pai, você acha que isso era uma visão da época mesmo, mas das pessoas mais conservadoras?
R – Era uma visão da época, das pessoas fora do ambiente jornalístico, a visão era essa mesmo e muito… eu olhava os profissionais quando eu entrei na carreira, era muita vagabundagem mesmo também, eram boêmios, beberrões, eram da pá virada mesmo. Então, o meu pai me encheu o saco, dai eu via, falava: “Eu tio pagando duas faculdades”, já tinha uma culpa danada daquilo, ai o diretor da faculdade de jornalismo da FAAP se chamava Vladmir Herzog e um professor do primeiro ano nosso era o Duque Estrada. Ai os dois foram presos, o Herzog morreu e eles falaram: “Olha, vamos encerrar o curso de jornalismo, essa vai ser a ultima turma”, ai eu falei: “Porra, eu não vou…”, sabe, “…forcar o meu pai a pagar agora que ainda vai acabar o curso, eles vão pouco se lixar pra investir nesse curso, tal”
P/1 – Você lembra em que ano era isso, mais ou menos?
R – 75
P/1 – E você tava já na faculdade quando o Herzog morreu?
R – Tava, tava no primeiro ano
P/1 – E você se lembra assim, desse impacto de…
R – Lembro, lembro
P/1 – Conta pra gente um pouco como é que foi
R – Prenderam, começou a circular a conversa que o professor foi preso: “Foram prender o Herzog ontem na cultura”, todo mundo falando e ai, saiu no jornal a noticia da morte dele, dai noticiaram a morte dele, que ele teria se enforcado, aquela farsa toda.
P/1 – E como é que era o clima na faculdade de jornalismo, você se lembra, nessa época, assim…
R – Alguma contestação, mas muito chocha, a FAAP era uma escola muito chocha
P/1 – E medo, você se lembra dessa sensação de…
R – É, quando rolou isso, ai todo mundo arrepiou porra, mataram o diretor da faculdade, torturado… ai, eu tomei a decisão, falei… meu pai me enchia o saco com o direito, quer que eu faça Direito, que eu faça Direito, ele tinha feito, um monte de irmão tinha feito na São Francisco, tal, ai eu falei: “Eu vou prestar Direito”, não falei nada pra ele, falei: “Vou prestar”, me inscrevi, tal, ai no dia que teve o exame, eu falei: “Empresta o carro que eu vou fazer” “Você não estudou nada…”, não sei o que… e eu entrei, entrei, ele ficou numa puta felicidade assim, foi um negocio pra ele… ainda bem que eu dei esse prazer
P/1 – Você entrou na São Francisco?
R – É
P/1 – E que ano que era isso?
R – 76. E ai, as coincidências continuaram, fui pegando sempre no centro ali as coisas. Ai na São Francisco, começou o segundo ano, a prisão dessa turma da PUC que eu conhecia, que eram amigos meus… ai, já tava metido com centro acadêmico, com politica estudantil, tudo…
P/1 – Você tava na São Francisco e na PUC no curso de Historia?
R – Isso
P/1 – Como é que era a São Francisco e como era a PUC nessa época?
R – A São Francisco sempre foi uma coisa à parte. A São Francisco sempre foi uma coisa à parte, era uma escola isolada, no centro, assim, de uma atividade politica que não para, 24 horas por dia, a molecada quer fazer politica, ela faz politica, é uma escola de muita gente interessante, vem gente do Brasil inteiro pra fazer, é uma escola de elite, sabe, na minha classe, tava o Otavinho Frias, Paulo Lima, Marrey, o Haddad, mundaréu de gente ai. e a PUC era mais universidade mesmo se misturavam, tinham básicos, tipo o primeiro ano, você fazia com povo de todos os outros cursos misturados, as mesmas matérias e tal
P/1 – E o perfil era diferente?Muito diferente?
R – Oi?
P/1 – Das pessoas, da cultura… o perfil dos alunos da PUC e da São Francisco era muito diferente?
R – A São Francisco é um negocio muito singular, sabe, era muito singular mesmo, era uma escola… era uma escola de gente diferente, engraçado, tanto na caretice de olhar e falar: tem uns caretas que só na São Francisco você encontra, quanto você falar que tem uns malucos que só lá você encontra, do mesmo jeito. Mas é uma escola de muita gente inteligente, de muita tradição, de muita história. E ali, no segundo ano, o Goffredo fez a “Carta aos Brasileiros”, não sei se você lembra disso, já ouviu falar…
P/1 – Sim, já ouvi falar…
R – Que foi o primeiro “chega”, sabe, chega. E a São Francisco era um barato, porque o Goffredo, por exemplo, entrava pra dar aula: “As pessoas não gostam de dizer o que a gente vive nesse país, do ponto de vista jurídico e não tem meio termo, o que a gente vive nesse país se chama Ditadura”, ai os estudantes: “Eeeeeee…”, tudo enlouquecido, então uma escola que simulava muito a posição, entendeu? Ai ele fez a leitura dessa “Carta aos Brasileiros” em 77
P/1 – Qual que era o conteúdo da carta?
R – Que é tipo: chega, Brasil tem que voltar para o estado de direito, entendeu? Ditadura não mais.
P/1 – E onde foi feita a leitura?
R – A leitura foi feita no pátio da São Francisco
P/1 – Você tava lá?
R – Tava! Assim, na primeira pagina da “Folha”, do lado do Goffredo, engraçado. Um pouco depois dessa…
P/1 – Como é que foi? Conta pra gente antes, como que foi a leitura, sei que é um momento incrível!
R – Ah, ele é muito pomposo, o Goffredo muito o velho politico o velho oposicionista, uma figura meio Ulisses Guimaraes, falava muito bem. Ele foi lá com o texto e leu, tinha umas 50, 100 pessoas ali em volta, mas eram cem pessoas se reunir para falar um negócio contra o governo, pô, deu assim manchete quase na “Folha”. Ai, um pouco depois…
P/1 – Saiu na época, a cobertura?
R – Oi?
P/1 – Saiu na época? Digo, saiu a reportagem na “Folha” na época?
R – Saiu no dia seguinte
P/1 – E o impacto, você se lembra assim?
R – Ficou todo mundo radiante, deu um puta estimulo. E ai, começou a se espalhar, começou na PUC também, movimento estudantil retomado. Ai teve essas meninas que foram presas e que torturaram, não foi uma tortura…
P/1 – Mas conta pra gente, José, como que foi a historia dessas meninas que foram presas? Quem eram, em que contexto?
R – No fundo, eram amigas desse Halley, estavam atrás desse Halley. Eu tinha namorado uma das meninas, o Halley tinha namorado outra, tá? Ai, foram atrás das duas, eu tava afastado nesse tempo, tava mais metido ali na São Francisco e atrás do Halley foram e prenderam as meninas.
P/1 – Mas eles estavam vinculadas à militância?
R – Não, não, não. estavam ali mais no âmbito universitário, não estavam no movimento, não. Mas como queriam pegar ele, pegaram elas pra chegar a ele, ele se picou, tal, elas ficaram, sei lá, cinco, seis dias presas. Mas ai, já no dia seguinte, dois dias depois, já organizamos… dia seguinte, já organizamos manifestação e ai teve a primeira passeata. Teve a concentração na São Francisco, ai tinham sei lá, uns dois mil estudantes, foi um negocio lindo de morrer, todo mundo cagando de medo, assim, o centro forrado de policia, interditaram tudo quanto é lado. E ai, todo mundo lá, discurso… ai falaram: “Vamos sair em passeata até a Praça da Republica”, que era assim, quinhentos metros de passeata. Puta, eu lembro que saía aquele povo andando assim , sabe, cheiro de adrenalina no ar assim, de tanto medo, andando, e vamo e vamo e tal…
P/1 – E tinha cartazes, ou pelo menos uma palavra de ordem?
R – Tinha, tinha: “Libertem nossos presos, pelas liberdades democráticas”, ai era uma questão, por exemplo: “Abaixo a Ditadura”, que a Bibelu queria colocar como palavra de ordem, não aceitaram, só depois que virou uma das palavras de ordem. “Libertem nossos presos pelas liberdades democráticas e anistia ampla, geral e restrita”
P/1 – Isso era dito e também em cartaz ou…
R – Em cartaz também. ai saiu aquela passeata meio cagando de medo, tal, de repente, a gente pegou a Libero Badaró, de repente começou a aparecer gente nos prédios, jogar papel picado, bater palma, não sei o que, e você fala: “Puta, tá pegando que emoção!”. Ai, fomos, fizemos um baita sucesso, depois na semana teve outra, ai teve na PUC, ai a coisa foi… sabe, perdendo o controle mesmo.
P/1 – Foi se ampliando, assim? Foi tendo repercussão?
R – Foi, foi crescendo muito rapidamente, ai sabe, diretórios na PUC, não sei o quê… no fim do ano, teve o congresso da UNE na PUC, refundaram a UNE e ai foi todo…
P/1 – Isso é final de que ano?
R – …mundo preso. Em 77, ai foi todo mundo preso ali, 500, 600 estudantes, todo mundo que não era da PUC, quando a policia invadiu a PUC levou preso ali.
P/1 – Você tava nesse congresso?
R – Tava, mas eu era da PUC
P/1 – Mas você se lembra assim, como é que foi?
R – As pessoas se reuniram… nós nos reunimos numa sala do prédio novo da PUC, tipo, todo cercado de segurança, teve dois representantes por centro acadêmico, tá, tinham acho que 120, 150 pessoas. E ali, se fez o estatuto de reconsiderar refundado, considerou aquilo lá o vigésimo primeiro congresso nacional dos estudantes. E ai, tinha o Erasmo Dias o secretario que fez a segurança, que era um coronel da PM, que queria descer borracha em estudante, tal… aliás, até esqueci…
P/1 – E eles invadiram?
R – A primeira coisa que eu fiz mesmo, na verdade, o primeiro protesto que a gente fez, foi assistir a missa do Herzog, a missa de sétimo dia que o Dom Paulo Evaristo Arns rezou na Sé e ali que abriram as primeiras faixas da anistia, fim da tortura, não sei o quê… liberdades democráticas. Foi a primeira manifestação publica mesmo foi essa
P/1 – Você tava presente?
R – Tava
P/1 – E tinha muita gente?
R – Tinha, tinha, mas ficava todo mundo se esgueirando olhando, a policia ia, ficava fotografando, sabe? Puta medo, dava um medo danado.
P/1 – Você se lembra bem? É forte a lembrança da missa?
R – É bastante, é bastante, é bastante
P/1 – Foi ao ar livre?
R – Não. Foi na Catedral da Sé, mas tinha gente até fora assim, nas escadarias, de tão cheia que tava
P/1 – E lá já tinham algumas faixas assim?
R – Já, já.
P/1 – E essa passeata que você citou na São Francisco, que foi uma das primeiras assim, não teve nenhum enfrentamento com…
R – Não, não. Não, não, depois teve, no segundo semestre uma outra manifestação na São Francisco, ai a policia cercou, cercou a São Francisco inteira assim, a Tropa de Choque… você olhava, assim em volta da faculdade inteirinha assim, você tinha soldado de choque um do lado do outro. E ai, quando a gente ameaçou sair, eles jogaram um monte de bomba, ameaçaram invadir a faculdade e assim, puta, foi um barato, porque os guardas chegando e todo mundo na porta, sabe, fechando a porta com o corpo e cantando o hino nacional e os negos jogando bomba e sem coragem de dar porrada pra entrar, entendeu? Foi uma coisa muito emocionante isso ai.
P/1 – Eles não entraram?
R – Não entraram. Não entraram, porque tem uma coisa ali que é meio sagrada, chama território livre do Largo de São Francisco, tipo: ali não… sabe, ninguém boicota ninguém, sabe? Cada um tem o seu direito ali garantido. Foi bem… foi muito bonito esse acontecimento ai. E ai, as coisas foram se alastrando adquiriram uma velocidade muito grande, você vê, 77, você já tá com o Geisel conduzindo o processo de abertura, já tava devagarinho, as coisas se acomodando…
P/1 – Você tava ligado a algum… ao movimento estudantil ou algum partido, em algum momento você se filiou assim…
R – Eu pingava. Eu militei um tempo no Partido Comunista, não fui um militante de carteirinha… nunca fui um… eu nunca fui de ninguém, sabe, mas tava uma hora num, uma hora, noutro, tava meio coringa. E ai, começou, por exemplo, a volta dos exilados, sabe? Então o programa da gente era ir no aeroporto
P/1 – Vocês iam no aeroporto receber…
R – No aeroporto receber exilado, sabe, quando chegou o Brizola, quando chegou o Prestes, eu fui num almoço, até, na casa do advogado dele, que era pai de um amigo meu da escola
P/1 – Como é que foi, você se lembra assim?
R – Ninguém sabia que o Prestes tinha chegado, a gente ainda foi lá, ele já tava no Brasil, foi demais
P/1 – Conta um pouco assim, como é que vocês se organizaram pra ir, como é que foi esse almoço, qual foi a sensação?
R – Então, foi um negocio engraçado, porque o Olavo, um amigo nosso, que hoje é juiz, o pai dele era o Aldo Lins e Silva, que era o advogado dos presos políticos, entre eles, o Prestes. E ai, um dia, ele chegou, o Olavo e falou: “Zé Ruy, vou te falar um negocio, mas pelo amor de Deus não fala pra ninguém, sábado vai ter um almoço em casa pra pouca gente, não é muita gente e tal, mas você nem imagina quem vai ser o homenageado”, falei: “Quem?” “Luís Carlos Prestes”, ai, puta que pariu: “Não acredito”, e ai fomos: eu, o Sergio Mineiro e o Goiano, três amigos dele, fomos pra esse almoço. E assim, tava Florestan Fernandes, Sergio Buarque de Holanda, Chico, puta, toda… Lula, toda PTualidade tava lá. e ai foi engraçado, porque nós chegamos, tomando aperitivo, lá, não sei que, não tinha chegado ainda, ai: “Prestes chegou. Pede pra alguém pegar ele no aeroporto”, ai o Goiano que era o maior maconheiro, o bicho mais louco que tinha na faculdade, e o Goiano foi buscar o Prestes no aeroporto, era um falastrão, falava besteira… viraram os maiores chapas, ai o Goiano virou secretario particular do Prestes, começou a namorar a filha dele, emprestavam o documento de identidade da minha namorada pra ela poder ir no motel, porque ela só tinha passaporte russo
P/1 – Ficaram íntimos os dois?
R – É, eles ficaram chaperrimos, tal. E mesmo eu, tive contato algumas vezes, fomos em reuniões ou jantar com ele, era uma grande figura, figura muito legal, adorei ter conhecido.
P/1 – Você se lembra do impacto assim, da sensação?
R – Eu lembro dele, sabe o quê? Quando ele chegou, a casa era uma rampa, ali no Morumbi, ali perto do lago do Bosque do Morumbi, tinha uma rampa pra entrar na casa, assim, pra subir. Eu lembro que o Goiano chegou, parou o carro e ai, todo mundo foi ver na porta, tal e ele assim, com uns 82, 83 anos de idade, subiu aquela rampinha assim num piquezinho. Ai ele abraçou um, não sei o que, tal… ai foi um almoço bárbaro. Eu lembro que fiquei conversando muito com o Sergio Buarque de Holanda, fumando Gauloises, que ele fumava cigarro Gauloises, só fumava aquele, eu adorava Gauloises, ai fiquei filando uns Gauloises dele.
P/1 – Incrível incrível!
R – E ai, as coisas andaram muito rápido, foram cada vez mais reapido
P/1 – E essa organização, por curiosidade mesmo, pra gente conseguir visualizar, quando vocês iam receber no aeroporto, vocês se organizavam em grupos, também levavam faixas, como é que era essa recepção?
R – Levava, levava, na escola, se reunia na escola e tal, geralmente chegavam de tarde, ia na escola de manhã, acabava a aula, aprontava as coisas e ia pro aeroporto. Ou matava aula…
P/1 – E era muita gente?
R – Tinha, tinha. Alguns, eu lembro que eu fui… olha, no Brizola tinha muita gente, o Gregório Bezerra, o Arraes, Prestes foi na casa, na chegada
P/1 – Iam faixas também, as pessoas gritavam coisas?
R – Iam, iam, iam… não, eram multidões, Brizola tinha bastante gente, no Gregório, tinha bastante, carregavam, as pessoas eram carregadas no ombro, tal, era muito bacana. O Henfil, quando voltou, o Betinho, quando eles voltaram. Foi bem legal, foi bem legal. E ai, depois tudo acelerou tudo acelerou, porque teve já em 78 a gente tem o Figueiredo e ai, já… já a coisa começa a desmanchar mesmo, a Ditadura começa…
P/1 – Você termina a faculdade em que ano?
R – Eu terminei em 80 a PUC e em 81 a São Francisco.
P/1 – E quando que você começa a trabalhar, ai é antes de terminar, é depois de um tempo?
R – Eu comecei a trabalhar durante a faculdade
P/1 – Durante a faculdade. Qual que é o seu primeiro emprego?
R – Eu trabalhei primeiro, como estagiário de Direito, tá?
P/1 – Onde?
R – Num escritório que chamava Castro e Barros, era um escritório empresarial grande e tal, hoje não tem mais. E trabalhei dois anos nele, depois, trabalhei um ano no Juridico do XI de Agosto, que você trabalha de graça, dá assessoria jurídica para a população carente. E de lá, finalmente, eu comecei a escrever, assim, no ultimo ano, eu comecei a escrever pra “Folha”
P/1 – E como que você começou, o que você lembra assim, o que puxou, se alguém te convidou
R –
É patético isso, é patético, mas eu fui… uma vez, já tava começando a escrever, escrevia muito em jornal de centro acadêmico, DCE, tal, e eu tava louco pra ir pro jornalismo, pra arrumar uma brecha, tal. Ai, um dia eu fui pra um baile em Santos, ali no Ilha Porchat, Baile dos Mares do Sul, que era um baile famoso. Ai fui lá e tinha um amigo meu que era repórter da cidade de Santos, Jornal da Cidade de Santos, que era do Grupo Folha, também, na época, o Chico Capela. Ai o Chico Capela chegou lá e falou: “Pô, vem cá, deixa eu te apresentar um cara, tal”, que era o diretor da “Folha da Tarde”, que era assim a direita da direita da direita na época. Ai, ele era… um jornal super policial na época, ai eu falei: “Talvez você tenha conhecido o meu pai”, o meu pai tinha morrido há um ano antes, só “Quem é teu pai?” “Ruy Gandra” “Pô, você é filho do Ruy Gandra, seu pai foi um professor pra mim, me ensinou a escrever… puta, como eu gosto dele…”, ai eu falei: “Ah, tô querendo tanto um estagiozinho, posso te procurar lá segunda-feira?” “Segunda-feira vai lá, que eu te arrumo um estagio…”. Ai segunda-feira eu fui, eu fui e tinha um certo clima, tal, ai me toquei que ele tava mamado no dia e me confundiu o meu pai com alguém, entendeu? Só que ai eu me toquei disso e agora já está armado, eu não vou deixar escapar. Ai, ele chamou o chefe de reportagem e falou: “Olha, conversa ai com ele e tal” “Eu queria acompanhar, ver como funciona, se você me deixar ficar um mês ai, acompanhando repórter, queria voltar a escrever” “Tudo bem”, ai eu fiquei, tinha um repórter só a “Folha da Tarde”, porque eles trabalhavam com material produzido pela Agencia Folha, pela reportagem da Folha. Ai, eu saia com esse repórter, bombeiro, “incêndio não sei onde, vai lá cobrir”, voltava, ele escrevia, eu escrevia também, ai mostrava pra ele, mostrava para o chefe de reportagem, dava um toquinho, tal, o cara ficou: “Pô, você tem o maior jeito…”, não sei o que… ai assim, um mês depois, criaram o “Suplemento Mulher” da “Folha de São Paulo”, era um suplemento feminino e um amigo meu, Fernando Paiva, que era um grande amigo meu, arrumou de fazer uns freelas lá e me levou também, ai começamos a fazer freelas e ficamos os dois como fixos lá.
P/1 – Você se lembra o nome do repórter e do chefe de reportagem da “Folha da Tarde”?
R – O repórter eu não lembro, o chefe de reportagem era o Torres. Torres, boa figura, figura muito simpática
P/1 – E ai, você começou então, a trabalhar como freelancer junto com o Fernando Paiva nesse…
R – Isso, mas ai eu fiquei como freela fixo. Ai fiquei como freela fixo no “Suplemento Mulher”, era semanal, puta, a gente tinha toda a liberdade, o jornal ficava na nossa mão, era uma farra. Ai assim, tinha uma entrevista semanal, de quatro páginas. Puta, então, a gente se divertiu, entrevistei todo mundo que eu queria entrevistar, do Paulo Francis, Florestan Fernandes, Maria da Conceição Tavares, Cauby Peixoto, Roberto Carlos…
P/1 – Dentro do “Suplemento Mulher”?
R – Dentro do “Suplemento Mulher”
P/1 – Então, vocês tinham muita liberdade mesmo
R – Não, era Paula na mão da gente, assim, e o suplemento fez um baita sucesso nessa época.
P/1 – E dessas entrevistas, você se lembra assim, de alguma mais marcante, uma historia? Um episodio?
R – Ah, tem muitas!A Maria da Conceição Tavares, por exemplo, fizemos uma entrevista no Crystal, um bar ali do lado da PUC. Eu tinha um jipe conversível, sem porta, assim, era quase um buggy, um jipe da guerra mesmo. Ai, a gente foi, tomamos um pileque eu e a Maria da Conceição fazendo essa entrevista, que eu fui devolver ela na casa da amiga lá, ela foi desder do meu jipe
derrubou a sandália, caiu a sandália dentro do bueiro… então, era uma época de muita boemia e muita… muita atividade profissional, sabe, muita descoberta profissional
P/1 – Você se lembra… ai é quando você começa de fato, a ganhar dinheiro com a profissão.
R – Isso, isso…
P/1 – Mais nesse momento?
R – Isso
P/1 – Ai, você se lembra como é que foi pra você essa coisa de você começar a ganhar o seu próprio dinheiro, o quê que você fez com o seu primeiro…
R – Foi bom, foi bom. Eu ganhava um dinheirinho, um pouquinho… quando meu pai morreu, ele deixou a pensão pra minha mãe
P/1 – Em que ano seu pai morreu?
R – Em 78. Bem no meio dessa zueira toda. E ai, ele deixou a pensão e eu tinha 25% da pensão pra mim, enquanto eu tivesse em faculdade, entendeu? Então, não era muito, como se fosse hoje, sei lá, uns três mil, entendeu? Mas no escritório de advocacia eu ganhava já também. então, eu sei lá, tinha esses três mil do meu pai, mais uns três mil no escritório de advocacia, era um moleque de 20 anos ganhando seis paus, uma bela grana
P/1 – Super bem
R – Bela grana
P/1 – Já tinha independência financeira, foi cedo, então pra você?
R – E depois, no jornal, não sei se independência, mas assim, eu guardava o meu dinheiro e viajava, entendeu? Vivia com o da minha mãe, que também não… sabe, não contribuía com a casa, nada, esse dinheiro ficava pra mim, só. E depois, comecei a ganhar como freela fixo no jornal. Ai logo, tive um filho…
P/1 – Ah, vamos falar então um pouco dessa coisa da parte afetiva, amorosa. Vamos um pouco pra sua vida pessoal. Bom, quando você começa então, entra como um freela fixo, ai você começa a trabalhar como jornalista e nunca mais se envolve com Direito?
R – Nunca mais. Nunca mais tive contato com Direito, eu fiz o exame da Ordem, passei, não fui nem tirar a carteirinha. Assim, até pra não pagar anuidade, aquelas coisas, não vou tirar, depois vou ter que pagar anuidade, deixei.
P/1 – E nessa época de faculdade, quando você conhece… esse filho que você teve a primeira vez, é um primeiro casamento?
R – Primeiro casamento
P/1 – Primeiro casamento. E como é que você conheceu a sua… me conta um pouco a historia…
R – Conheci numa matéria, numa matéria. Eu namorava, ela namorava
P/1 – Como é que ela se chama?
R – Rita. Rita, é a mãe desse meu filho que morreu
P/1 – Ela fazia que curso?
R – Ela trabalhava em publicidade. Trabalhava numa agencia, na Saldiva. E ai, minha editora no “Suplemento Mulher” falou: “Olha, tem uma matéria aqui, uma pesquisa sobre homens casados e descasados, vai lá fazer, as figuras estão te esperando, eles vão sair para uma viagem”. Ai eu fui, fui, entrevistei os diretores, eles mostraram os teipes, lá, tal, as fitas de vídeo cassete, e ai falaram: “Olha, a gente vai precisar sair pra encontrar a pessoa que a gente vai viajar, mas você fica ai, pode ficar vendo, se tiver algum galho, manda chamar a Rita, pede pra chamar a Ritinha”. Ai, está bom, fiquei vendo, uma hora tive uma certa dúvida, pedi pra chamar. De repente, me aparece uma ruivinha no alto da escada, linda de morrer, ai eu tenho que admitir, foi assim, absoluto amor a primeira vista, tanto pra mim, quanto pra ela, que ela também já desceu com os olhos meio desconcertada, sentamos, começamos a falar do trabalho, em dois minutos, a gente não tava falando mais nada do trabalho, no mesmo dia, a gente passou a noite juntos, eu tinha uma namorada, ela tinha um namorado já há um tempo, uma menina que eu até pensei que fosse casar, gostava muito, mas foi um negocio arrebatador. A gente conversou: “Você tem namorado?” “Não, não tenho” “Você tem namorada?” “Não, não tenho” “A gente podia sair então” “Podia sim”, ai eu falei: “Quando?”, ela falou: “Hoje, vamos?”, ai, grudamos. Grudamos. Ai, eu fui… mas eu tava com uma Bolsa pra um Mestrado na Itália e pra ser correspondente da “Folha”
P/1 – Na Itália?
R – É. Ai, eu fui… fui…
P/1 – Logo em seguida isso?
R – Sim, quatro meses depois
P/1 – Pra onde você foi, na Itália, que Bolsa que…
R – Pra Roma
P/1 – Pra Roma
R – Pra Roma. E era uma Bolsa, um Mestrado em Direito Sindical e Historia do Sindicalismo Italiano, que era avançadíssimo na época. E ai, consegui essa Bolsa, fui…
P/1 – Onde você foi estudar lá?
R – Oi?
P/1 – Onde você foi estudar lá?
R – Na Universidade de Roma, Sapienza. E… mas ai fui, fui no dia primeiro de dezembro. As aulas começariam no meio de janeiro, falei: ‘vou, vou aproveitar para viajar um pouco, tal’, e ai, fui passar o Natal em Paris, na casa da Valeria, que era uma colega minha da faculdade de Direito, que tava morando lá e ai, no dia de Natal, morreu o meu irmão aqui no Brasil. Então, eu voltei. Falei: ‘porra, minha mãe já perdeu…’, quatro anos atrás tinha perdido o meu pai, meu único irmão, tal, falei: ‘não vai dar para ela segurar essa sozinha, voltar pelo menos por um tempo’. Ai, voltei, a Rita tava me esperando no aeroporto, e sabe quando você olha, eu vi o seio dela, tava grande, e antes de eu ir embora, tinha uma coisa ali, a menstruação vinha, não vinha… acabou vindo, a gente deu o assunto por encerrado, mas ai foi um vindo que “vim pra avisar que não vai ter mais”, entendeu ? Então, olhei pra cada dela, falei: “Meu, você tá grávida, olha o teu peito, você tá com cara”, ela falou: “Ih, Zé, era o que eu tinha pra te dizer. Veio aquele pouco aquela vez, fui lá na medica, depois não veio mais nada”
P/1 – Você tinha ficado quanto tempo fora?
R – Eu tinha ficado um mês… quase um mês, 25 dias. E ai, tava grávida, fez exame no mesmo dia, então fiquei com um nó, foi uma fase muito dura, entrei numa fase duríssima da vida, que…
P/1 – Você tava com quantos anos?
R – Eu? Vinte e cinco. Ela com 22. Eu tive filho com 25 e ela com 22. Ai, casamos, mas ai, a gente mal se conhecia, entendeu? Ai, você cai na realidade que não…
P/1 – Como é que foi o casamento? Vocês casaram no religioso e civil?
R – No religioso e no civil, bonitinho. Mas já tava ali com uma coisa…
P/1 – E onde foi?
R – Na PUC
P/1 – Vocês casaram na PUC?
R – Na capela da PUC. Tudo ali na minha família é na capela da PUC
P/1 – Você se lembra da cerimonia, assim?
R – Lembro, lembro. Orquestra do Bar Brahma foi tocar, os três que tocaram no Bar Brahma foram tocar, foi uma cerimonia muito bonita, mas minha mãe tava muito mal, eu me lembro que eu tava muito feliz, mas a hora que sai assim, minha mãe tava chorando num canto, encostada numa coluna, chorando. Meu irmão tinha morrido três meses antes.
P/1 – Vocês casaram muito rápido?
R – Dois meses antes. A gente casou em fevereiro, com ela já grávida de quatro meses
P/1 – Do quê que seu irmão faleceu?
R – Teve um edema pulmonar. Ele tinha um problema de nascença meio congênito. Mas ai fica aquela coisa de você conviver com uma morte, um filho chegando, puta monte de responsabilidade…
P/1 – Vocês tiveram festa também, não, de casamento?
R – Teve, teve, festa, lua de mel, fomos pra Parati, ficamos uns dez dias lá
P/1 – E a festa você se lembra bem também?
R – Lembro, lembro, foi… musicas, essas coisas eu não lembro… meio The Cure, sabe, coisas da época lá, mas foi uma festa bem bacana. Eu tava feliz com o casamento, tal. Mas ai depois, você vê que um casamento não é um… treco sério, não é uma brincadeira e um filho, muito menos.
P/1 – Vocês foram viver aonde? Vocês voltaram pra…
R – Nós fomos morar na vila, seguindo a tradição calabresa
P/1 – Na vila da sua família?
R – Na vila da minha família, vizinho da minha mãe, já, minha mãe tava muito frágil e lá… falei: ‘pelo menos um tempo vou passar aqui’. Ai, reformamos uma casinha da vila, ficou bonitinha, tal, mas ai o casamento não foi. Não foi, porque ai você começa a se descobrir, a gente tinha tanta diferença
P/1 – Era muito jovem.
R – Sabe? E muito jovem, paixão e paixão passa e você quer uma coisa pra destruir uma paixão, pega um negocio chamado dia a dia, põe um filho no meio, eu tava descobrindo o jornalismo, tava virando um baita jornalista badalado, apaixonado pela profissão, sabe, saía com o Paulo Francis, ia tomar uma cerveja lá embaixo, pô, não queria voltar pra casa, eu saía do trabalho, falava: ‘pra que vou voltar? Tem criança, tem…’
P/1 – Como é que foi a gravidez dela, você se lembra de acompanhar assim?
R – Foi direitinho, foi muito bacana. Muito bacana.
P/1 – E teve, assim, apesar de ser tudo muito turbulento mesmo, você se lembra assim, da sua… do impacto que teve a noticia da gravidez sobre você?
R – Puta, foi maravilhoso, foi maravilhoso. Eu fiquei muito feliz, segui tudo do jeito que foi possível, assim, num casamento, depois do nascimento dele é que complicou mais a vida, sabe?
P/1 – Você acompanhou o parto?
R – Acompanhei, dos dois filhos meus
P/1 – E como é que foi? Você se lembra?
R – Ah, foi maravilhoso, escrevi uma matéria sobre o nascimento dele aqui na… e…
P/1 – Esse seu filho é o Paulo?
R – É o Paulo. Então, mas ai quando nasce o filho que você se dá conta. quando você tá casado, tem uma mulher, tudo bem, cada um ainda consegue fazer as suas coisas, você tem mais liberdade. Mas ai, depois
com filho, eu vi um negocio, vivia um inferno, ai de repente ela não fazia mais nada, sabe, ai foi começando, ai você vendo as diferenças… a família dela me detestava, porque eu fui assim, o jornalista boêmio que apareceu e levou a caçulinha embora, única que morava com eles, os outros já tinham casado. Grávida, puta… foi assim…
P/1 – Foi difícil?
R – Difícil. Foi assim, uma encrenca, a família não me tolerava. Puta, fomos morar junto de mãe, tudo errado! Sabe? Você fala: “Coisa de moleque”. Ai, a gente separou quando o Paulo tinha um ano e meio, ficamos separados uns dois anos e meio, ai quando o Paulo tinha uns cinco anos, a gente voltou a viver juntos. Mas ai, vivemos mais um ano só e tipo, foi um tira-teima, sabe, de falar: “Vamos fazer um esforço”, mas ai você vê que as diferenças são de natureza pessoal mesmo não é a família, não é o filho, não é nada, tal. Ai, separamos de vez.
P/1 – E como é que foi ser pai, José, você se lembra disso, do impacto da primeira paternidade?
R – Gloria, gloria! O que eu digo no meu livro, acho que a paternidade muda o teu lugar no cosmos, sabe, muda o teu lugar no universo, as suas referências todas, a tua vida passa a ser… até hoje, eu fui um, daqui pra frente, eu sou outro, entendeu? Da mesma maneira quando você perde um filho, você fala: “Olha, a minha vida até aqui foi de um jeito, daqui pra frente, nunca mais vai ser a mesma”
P/1 – E quando você fala assim das transformações que a paternidade causou em você, você assim, pensa em que coisas, que aspectos você ressaltaria, assim, de… desde o cotidiano, a gente sabe que o cotidiano muda muito, mas assim, de temperamento, emocionalmente…
R – Eu acho que eu tive duas paternidades, sabe? Foram as duas muito diferentes. Eu acho que o Paulo foi um pouco a minha cobaia da minha inexperiência, do meu despreparo, da minha infantilidade, imaturidade e o Pedro, não, o Pedro eu tive com 39 anos então, puta, o Pedro, você olha o moleque, ele é… sabe? Focadéssimo, tranquilo, o Paulo já era que nem eu, vulcânico, ansioso… vou fazer e vamos não sei o que… agora, o Paulo foi meio criado por avó assim, depois não, depois não, o segundo casamento assim, eu já tava muito ligado nele, ai mesmo separado, ele vivia muito comigo, sabe, cresceu, morou o colegial todo, ele morou os três anos comigo
P/1 – Muda a visão de mundo assim? Você acha…
R – Totalmente
P/1 – Em que aspecto assim, o quê que você acha que…
R – Eu acho que te põe o pé no chão, te dá uma ideia, uma dimensão do tamanho da responsabilidade, sabe, de ter uma vida ali que depende de você, te faz focar. O Paulo… no caso do Paulo, eu acho que não foquei muito não, porque eu tava numa baita trajetória ascendente, sabe, no jornalismo, tudo acontecendo no seu tempo, diabo, tal, então, o Paulo, eu tava meio absorvido por essa carreira nova, sabe, só depois, quando separou… eu tive uma crise de pânico, tanta coisa que aconteceu ali que um dia a cabeça pulou a tampa. E acho que essa crise de pânico me salvou a vida, se você quer saber, Teresa.
P/1 – Isso aconteceu quando?
R – Isso aconteceu em 80 e acho que em 85
P/1 – O Paulo nasce em que ano?
R – 83. Em 85 assim, que pulou a tampa da minha cabeça. Eu paralisei, sabe quando você paralisa? De falar mesmo: “Não consigo dar um passo a frente”? Tirar o pé do chão, levantar da cadeira… e ai, você vai se tocando, puta como eu tava bebendo, como eu tava fumando, como eu tava dormindo mal, como eu tava trabalhando pra cacete… ai, comecei a me ajeitar melhor na vida, sabe? Parei de beber bastante
P/1 – Reestruturou?
R – Deu uma boa reestruturada
P/1 – E a sua segunda esposa, você conhece quando, José?
R – Ai, eu conheci ela no Jacaré. Em mil… mil… 1993
P/1 – Qual que é o nome dela completo?
R – Geni Correa e Castro… Geni Gandra
P/1 – E como vocês se conhecem, onde vocês…
R – A gente se conheceu no Jacaré. Fui numa happy hour com o José Eduardo Mendonca, um amigo meu e começou a chover, a gente tava fora, começou a chover, vamos entrar, as mesas estavam cheias, ai tinham umas meninas numa mesa, ele chegou lá: “Podemos sentar e dividir?”, ai eu sentei e vi, a Ge tava lá, chegou depois de um tempo, ela chegou, eu olhei, falei: “Nossa, que menininha lindinha”, tal, não sei o quê… começamos a bater papo, ai no mesmo dia a gente saiu assim, foi impressionante, que a primeira pergunta dela pra mim foi: “Cara, por acaso você é casado?”, ai eu falei: “Eu, casado? Nem fodendo. Nunca mais faço essa cagada, jamais…”, dois meses depois, ela tava morando comigo já e nunca mais separamos.
P/1 – Foi super rápido?
R – Super rápido.
P/1 – E vocês foram morar juntos? Não fizeram a cerimonia, nada desse tipo?
R – Não, a gente deu uma festa, um churrasco. Foi um casamento, com uma benção de uma…
P/1 – Teve um ritual.
R – É. Teve um ritual ali, foi uma festa mesmo, com convite, tudo, mas não teve religioso, não teve civil, a gente só casou no civil um bom tempo depois
P/1 – Como que foi esse casamento, essa festa?
R – Foi um churrasco. Quando a gente falou que a gente ia casar, o pai dela falou: “Então, eu dou a festa”, eu lembro que ele virou e falou: “Olha, tem 20 mil reais ai pra vocês darem uma festa”, ai nós olhamos pra cara do outro, falamos… a gente viajava muito, sempre viajamos muito, desde que… eu, a vida inteira viajei muito. Ai, olhamos aqueles 20 mil reais, falei: “Imagina, meu! Vamos dar um churrasco”, orçamos com um baita churrasqueiro de Campinas que fazia umas festonas, três mil e quinhentos, falei: “Pode ser, vai ser isso ai mesmo”, ai catamos o resto do dinheiro, ficamos quatro meses viajando pelo mundo de lua de mel
P/1 – Delicia
R – Foi ótimo! Maravilha
P/1 – Pra onde vocês foram?
R – Puta, fomos… quatro meses, a gente foi pra um bocado de… Rússia, China, Tailândia, Itália, Franca, Turquia, uns oito países, a gente teve…
P/1 – E como é que foi a viagem de lua de mel, você se lembra assim, de alguma coisa marcante, um lugar que vocês conheceram que foi mais impactante?
R – Como é que é?
P/1 – Um lugar que vocês tenham conhecido que foi mais impactante?
R – Moscou. A gente foi direto pra Moscou, era o forte, tava começando a operar aqui, eu era o diretor da viagem de turismo da revista, arrumei uma passagem super em conta, ainda por cima, que iam todas essas coisas e Moscou ainda era… tinha acabado de acabar o regime soviético, Yeltsin tinha acabado de assumir o lugar de Gorbachev. Então, tava ainda o parlamento com aqueles buracos e tiros de canhão que o Yeltsin tinha dado, um plástico cobrindo a fachada do parlamento… essa viagem foi cheia de coisa legal, assim, cheia de coisa, como toda viagem é.
P/1 – Você viajou muito, você se lembra de alguma outra viagem marcante assim, imagino que tenha muitas, mas alguma que você queira destacar?
R – Puta, tem tantas. Uma eu quero destacar, eu sou mulçumano, pelo menos de fé, não sou mulçumano que imaginam, eu rezo como mulçumano
P/1 – Desde quando José, isso me deixou curiosa também, porque imagino que a sua formação deve ser católica, não?
R – É católico apostólico romano ateu
P/1 – E como que chegou pra você a coisa do mulçumano?
R – Foi devagarinho, nas viagens, de ir conhecendo Jerusalém, conheci a primeira vez uma Mesquita, conversei com algumas pessoas, comecei a estudar. E ai, um dia, eu tava fazendo o perfil de um sheik pra “Piauí” e falei: ‘quer saber? Eu vou me converter’, já tinha estado na Arábia Saudita duas vezes, ali tinha um pouco de encheção de saco, contando um pouco de busca de Deus, que no catolicismo realmente eu não encontro nenhum conforto, ai me converti. Ai me converti…
P/1 – Mas como foi essa conversão? Qual foi o momento em que você fala, o perfil do sheik quem que era o sheik?
R – Sheik Jihad, você conhece?
P/1 – Si, sim
R – Uma graça de…
P/1 – E como é que foi, foi na interação com ele, qual foi o momento que você decidiu assim?
R – Então, após tê-lo conhecido, comecei a frequentar a mesquita lá em São Bernardo, ia às sextas-feiras lá para as orações comunitárias… eu não… não tenho nada com o Islam do ponto de vista social, acho uma religião retrograda, acho que sabe, estão na Idade Média ainda em certas coisas sociais. Agora, a relação deles com Deus é mais genuína que eu encontrei na vida, não tem. E acho que a única maneira de você se relacionar com Deus é essa, é submissão…Islam quer dizer submissão incondicional a Deus. Então, o princípio é: se você acredita que alguém criou tudo isso, você tem que se submeter a essa pessoa, porque se ele criou tudo isso, não vai cair um fiozinho de poeira aqui dessa cadeira no tapete se ele quiser, entendeu? Então, o principio é esse: tá tudo na mão de Deus, você faz a sua parte entre o momento do nascimento e a morte, você tem o livre arbítrio, pode fugir de Deus, pode fazer o que quiser, mas…
P/1 – E essa conversão tem um ritual, como é que foi…
R – Tem, mas é muito… é um ritual muito simples, é só repetir umas frases lá: “Reconheço isso, reconheço aquilo,… “, já é. Foi muito bonito. E depois, eu fiz o Hajj, então isso que eu ia te falar, que foi uma viagem muito marcante, não sei se você conhece o Hajj?
P/1 – Não.
R – O Hajj é a peregrinação… é uma peregrinação anual a Meca, acabou de ter agora…
P/1 – Sim
R – Acabou de ter e ela é uma dos pilares do Islam, todo mulçumano saudável e com posses deve ir pelo menos uma vez na vida a Meca, durante o Hajj deve performar o Hajj. E eu fiz há…
P/1 – O Hajj é o percurso ou o Hajj é o período
R – O Hajj é um período
P/1 – E o quê que é esse período?
R – Esse período, ele lembra o ultimo sermão de Maomé em Meca, tá, é marcado pelo ultimo sermão. E ai, você vai, você tem uma série de ritos, das voltas, os Tawafs, as voltas na pedra negra e tem o Monte da Misericórdia, tem um monte de coisa lá, você fica durante dez dias ali se mexendo pra lá e pra cá, cumprindo ritos. E foi um negocio muito bonito, acho que foi o mais perto de Deus que eu já cheguei
P/1 – Quando você foi?
R – Eu fiz em novembro de 2010
P/1 – Conta como é que foi assim, como que foi a ida, como que foi fazer a peregrinação, quais são os passos dessa peregrinação…
R – Olha, foi um negocio tão maluco, tão maluco, assim, que você olha e fala: ‘Deus tem que tá no meio pra acontecer essas coisas’, porque eu fui uma… fui a primeira vez pra lá, pra Arábia Saudita… fui duas vezes pra Arábia Saudita, uma pela “Exame” e uma pela “Época”. Nessa segunda vez que eu fui pela “Época”, eu fiquei quase 20 dias lá, fazendo, preparando o perfil do país.
E o ministro da cultura foi o meu anfitrião, que marcava as entrevistas, arrumava as pessoas… e eu, aquela época, dei uma demonstradinha assim de: “Pô, tenho um…sabe, eu penso um dia me converter”, tal, conversei com ele, o cara ficou bem meu amigo, muito doce assim
P/1 – Quem que era, o nome dele, você se lembra?
R – Abdulaziz.
Abdulaziz bin Abdullah chama. Ficamos muito amigos, começamos a nos corresponder, tal, ai interrompeu. Ai, o que aconteceu? Fui fazer o sheik, párara… me converti e eu, puta, morria de vontade de conhecer Meca, Medina e só pode ir mulçumano até pesou, viu, na minha conversão, também falaram: “Quero conhecer essas cidades ai”. Ai, falei com o Jihad, ele falou: “Vamos fazer o Hajj, não si o quê…”, eu falei: “Claro, meu, estamos ai”, ai o Jihad, ele é presidente da WAMY, que é uma assembleia islâmica de entidades islâmicas mundiais, ele é o presidente pra América Latina. Ai, ele mandou seis nomes, o ministério do Hajj lá na Arábia Saudita pediu indicação de nomes, ai ele mandou seis nomes, ai só o meu foi… recebeu isso, ai puta correria a hora que chegou, tinha dois dias para tirar o visto, fui, tirei e o bendito encarregado do negócio, me deu um visto errado ainda, você acredita que não era pro Hajj, era pra entrada… meu, ai eu fui… ai, você pega dois paninhos crus, como se fossem duas toalhas sem costura nenhuma, dois pedaços de pano, um você enrola como uma toalha, o outro você cobre o dorso…
P/1 – A vestimenta é só essa?
R – A vestimenta é só essa, quando você entra no que eles chamam de Makkah, que é um perímetro de 400 quilômetros, a partir de Meca. Então, no avião, me troquei, coloquei a roupa e tal. Ai esse visto foi dando trabalho, trabalho, trabalho, até chegar no hotel, porque tem barreira pra todo lado, tinha gente do governo já me esperando, mas eu lembro que eles foram nos guichês do passaporte, assim, no sétimo eu consegui passar só, todo mundo olhava: “Não sei o quê…”, eu falei: “Puta que pariu, não acredito que eu tô em Jeddah, a 50 quilômetros de Meca e vou ter problema? E tinha barreiras assim de quilometro em quilometro. Ai para na barreira… ai o cara fala: [imitando árabe], e eu só ouvindo os nego em árabe e ai pode… finalmente cheguei no hotel, cheguei no hotel, veio o assessor desse ministro tava lá: “Oh Salman, como é que tá, tudo bem? E o doutor Abdulaziz tá em viagem?” “Não, ele tá ai te esperando. Ai o convite pro Hajj quem tinha feito foi ele, ai puta, encontrei com ele… ele me viu com o hijab, com os panos, ele também, puta, até chorou pra caralho, muita emoção.
P/1 – E os pés?
R – Oi?
P/1 – Eu fiquei curiosa, e os pés? Sapato normal?
R – Chinelo, pode colocar tênis, eu usava muito uma papete
P/1 – Ele te abraçou, então se emocionou muito?
R – Se emocionou pra caramba, ai ele falou: “Zé, o ministério do Hajj… o Hajj cada ano é promovido por um ministério, faz um rodizio dos ministérios e esse ano foi o da cultura que pegou pra organizar o Hajj. Ai quando eu pedi as indicações, um dia chegou lá e eu vi: José Ruy Gandra. Ai, eu falei: ‘não é possível! Vou procurar, tal, será que ele se converteu?’ procurei o teu cartão, achei, vi: ‘não acredito!’”, ai foi bárbaro, foi bárbaro, porque ele me deu também toda força, sabe? Porque assim, quatro milhões de pessoas numa cidade de 150 mil habitantes, entendeu? Pega um vale assim, que fica só tendas, só tenda, tenda, tenda, você olha assim, uns dois, três quilômetros assim, de tenda branca, uma do lado da outra, ficam uns dois milhões de pessoas nessas tendas ai.
P/1 – E ai, ele te conduziu, como é que você iniciou assim a peregrinação?
R – Ai, tem uma série de ritos, você inicia ela no Monte da Misericórdia em Arafat chama, Monte Arafat, que é o monte da espera, onde Maomé fez o ultimo sermão, antes de ir embora pra Medina, onde ele morreu. E ai, você passa a noite acordado lá pra ver o sol raiar, fazer a oração da alvorada Sualat Fajr, depois de lá, você vai pra mina que é onde ele pregava, você vai dar os Tawaf os Tawaf, as voltas na pedra negra de boas vindas, ai você tem uma caminhada dentro da Mesquita que você tem que fazer, depois você tem que apedrejar uns monólitos, cada dia tem um… cada dia tem um treco e depois disso, eu fui pra Medina, conhecer a cidade de Maomé lá, onde ele morreu e
tá sepultado, que é maravilhosa.
P/1 – Quanto tempo leva a peregrinação assim, todo esse ritual
R – Duas semanas
P/1 – Todos os dias tem uma atividade diferente?
R – Hãhã
P/1 – E como é que foi, como é que você se sentiu?
R – Foi o que eu te falei, foi quando eu me senti o mais perto… acho que foi o mais perto de Deus que eu cheguei na minha vida, sabe, com tanto ceticismo que a gente carrega na nossa sociedade acho que foi… foi uma experiência e tanto, você… sabe, é um negocio, você tá ali, as pessoas sempre rezam voltadas pra Meca e pra essa mesquita. Se você tá em Meca, você vai rezar na rua, mas você vai virar virado par essa mesquita. Então, sei lá, tem três, quatro milhões de pessoas ali nas ruas de Meca, na mesquita lá no meio, em volta, um quilometro, dois em volta da mesquita só gente, ai de repente tem um chamado do moesim pra oração, mas assim, aquela massa de gente em dez segundos, salinha toda, vai ocupando os espaços, em dez segundos tá todo mundo rezando junto, assim de você ouvir barulho de passarinho, sabe, bater asas, uma pompa batendo asas, é inacreditável isso.
P/1 – Mas é uma reza em voz alta?
R – Não. Não.
P/1 – Silenciosa?
R – Silenciosa, reza só… só murmurando
P/1 – E você diz assim, é o mais perto que você já sentiu que chegou de Deus. E qual que é a sensação?
R – É maravilhosa! Maravilhosa, acho que te dá… dá sentido pra tudo o que você tá passando na vida assim. Você vê a grandeza das coisas, a delicadeza da condição humana, sabe, o quão pequeno a gente é, e ao mesmo tempo, quão iluminados por ter o que tem, as capacidades que tem. Foi… foi intenso pra caramba, eu está esperando o meu netinho, tava pra nascer, então foi uma época que só ficou mais intenso ainda, porque também tive uma cirurgia brava quando voltei, me submeti a uma cirurgia brava
P/1 – Você ficou doente, tava doente?
R – Tava, tive um câncer de próstata e tirei a próstata. Mas assim, dois meses depois que eu voltei, três meses e três meses, porque eu ainda falei: “Espera o meu neto nascer, pra operar”, primeiro eu esperei nascer.
P/1 – Qual que é o nome do seu neto?
R – Rodrigo
P/1 – Filho do Paulo?
R – Filho do Paulo
P/1 – E a esposa do Paulo…
R – E ai foi uma avalanche, porque assim, eu… nasceu o filho do Paulo, eu tinha voltado do Hajj, nasceu o filho do Paulo, em abril de 2012, em abril de 2011, desculpa, em abril, ele nasceu, três semanas depois, eu operei, escrevi meu livro convalescendo
P/1 – Queria te perguntar sobre isso, antes da gente chegar no seu livro, pra você contar um pouco pra gente, você falou que teve experiências de paternidades bem diferentes.
R – É, o livro é isso
P/1 – Fala sobre isso. Então, conta um pouco pra gente assim, qual que é… claro que é um livro, você não vai conseguir falar de tudo que tá expressado ali, mas em linhas gerais, qual que foi… como é… como foi a experiência com o Pedro, como foi a paternidade com o Pedro e como… de maneira geral, como que a paternidade… qual o impacto da paternidade na sua vida…
R – O impacto foi total, me tornou outra pessoa, Teresa. Agora, é como eu te disse, o primeiro capitulo do livro fala exatamente disso, sabe, os filhos diferentes, a diferença dos filhos, o Paulo foi aquela coisa de falar um filho juvenil, sabe, eu era um moleque e o Pedro, já treze anos depois, foi uma outra historia muito serena, muito sossegada, era um momento muito estável da minha vida, muito tranquilo
P/1 – E qual que é a motivação para escrever um livro?
R – E ai, me veio essa questão, que eu tinha verdadeira paranoia, Teresa, de que eles não se vissem como irmãos, sabe, que não dessem liga, que tivessem pouco contato, então foi uma maneira de estimular o contato entre eles, comparar, comecei escrever até coluna pra “VIP”, depois pra “Crescer”, contando historias deles, para que eles se vissem mais, que eles se vissem mais como irmãos
P/1 – As colunas vêm antes do livro? Você começa escrevendo coluna?
R – Comecei escrevendo coluna, quinze anos atrás, dez anos atrás. E ai, eles realmente, foram se aproximando, tomando um puta carinho pelo outro, tal, e chegou uma hora que eu falei: “Cumpriu a missão. Agora eu vou escrever mesmo”. Ai, das colunas eu peguei, sei lá, cinco, dei um tratinho nelas que eram coisas que já estavam escritas e bem escritas e escrevi 40 novas. Mas ai, assim, lancei o livro…
P/1 – Como chama o seu livro?
R – “Coração de Pai”. Lancei o livro e seis meses depois, o Paulo morreu.
P/1 – Foi perto assim do lançamento?
R – Seis meses… seis meses, tava acabando a primeira tiragem, eu fiquei num puta drama: largo o livro, não sei o quê, eu falei: “Não, se eu contei uma historia sobre filhos que tem o lado bom, vou contar o lado triste também”, ai fiz essas historias todas, a morte do Paulo, como é que foi, ele morreu em Londres, o que foi essa viagem a Londres, o Rodrigo, o nascimento dele, como… o Rodrigo é ele escrito assim, é uma coisa assustadora
P/1 – Isso tá no livro, José?
R – Tá
P/1 – Assim?
R – Tá, tá.
P/1 – Então, passa a fazer parte do livro, quando…
R – Hãhã. Então, tem, tem a questão da morte do Paulo, tá lá contadinha como aconteceu, onde eu tava, como eu ouvi, quem me contou, o quê que eu fiz, eu fui pra Londres, como foi… então, tem coisa pra caramba na vida ultimamente ai.
P/1 – E como é que foi processar, ou seja, já é uma coisa que você consegue falar?
R – Claro! Falo, falo, falo…
P/1 – Que é uma experiência… enfim, muito forte
R – Não, é uma coisa que vou levar para o resto da vida, Teresa, não vai me deixar nunca, é um buraco ai que você não preenche, mas você vai aprendendo a conviver com ele. Vai aprendendo a tocar a vida, também… tem o Pedro, tem o netinho agora também, não… então…
P/1 – Como que é a relação com o seu neto? Qual foi a importância do seu neto, assim?
R – Maravilhosa! Maravilhosa, até porque, ele não tem o outro avô, que separou, sumiu, caiu no mundo ai… a outra avó não casou de novo, então tem a presença masculina minha é importante pra ele e ele tá toda semana comigo, todo fim de semana, sai comigo. É um doce. É um doce, eu costumo dizer, Teresa, falei muito isso em entrevista, que Deus me deu junto o veneno e o antidoto, sabe? Porque acho que sem o Rodrigo, eu não teria segurado essa historia do Paulo, não teria, porque foi realmente muito dura, muito… sabe, muita porrada, porrada muito forte. Agora, o rodrigo tem uma coisa quedo mesmo jeito que uma morte lança a sombra sobre a tua vida, uma criança lança a luz um neto, como é que você vai ficar indiferente? Ele vira e: “Vovô Zé”, sabe? “Vovô Zé, quero não sei o quê…”, você derrete de cinco em cinco minutos.
P/1 – É uma delicia.
R – É maravilhoso. Então, sei lá, então eu tenho um pacto, Teresa, que é o seguinte: os primeiros anos de vida, eu acho que eu fui super negligente com o Paulo, entendeu? Então, eu falei: “Acho que a melhor coisa que eu posso fazer para o meu filho, hoje, é cuidar do filho dele. E exatamente na fase que eu não cuidei dele”, entendeu? Acho que é até uma chance de resgatar ai algo que não caminhou tão direitinho na minha vida.
P/1 – Claro! E então, José, assim, a gente tá no momento de encerrar, eu queria que você me dissesse… você me disse agora, no momento que você tea na vida pessoal e afetiva e na vida profissional, assim, o quê que você faz hoje, quais que são as suas ambições e aspirações, hoje, profissionalmente
R – Minhas ambições são muito poucas. Hoje, eu sou um cara de pouquíssimas ambições. Eu quero um resto de vida relativamente sossegado, já me deixaria bastante satisfeito. Profissionalmente, eu sou um jornalista freelancer, bem qualificado, graças a Deus, faço um pouco de tudo, faço material para empresas, faço matérias, faço livros, agora, tô escrevendo um livro pra Talent, acabei de escrever um outro pra uma empresa que se chama Brasil Terminais Portuários, que tem um porto grande gigantesco em Santos, tal.
P/1 – Você faz o quê? Um trabalho de pesquisa, levantamento de dados ou organiza já uma pesquisa, um dado e um livro, como é que é assim?
R – Depende do projeto. Esse, esse não é um livro muito grande, é um livro mais dirigido para stakeholders, acionistas porque é um porto, ele foi inaugurado agora, em agosto, mas ele levou cinco anos para ser feito, porque ele foi feito no lixão da Alemoa, que era a ultima área do porto de Santos livre, 500 metros quadrados, mas era assim, um lixão de 50 anos, podre, o lugar podre! Ai, os caras botaram dois bilhões de reais, desses dois bilhões de reais, 300 milhões foi só para recuperar o terreno, tiraram 11 mil toneladas de terra, 40 mil viagens de caminhão até não sei aonde, Caieiras, acho que eles fizeram um aterrão lá para cimentar mesmo o lixo, tiraram toda a terra, ficaram quatro anos trabalhando só no terreno. E agora, inauguraram o porto, que assim, você olha, parece que você tá em Hamburgo, em Estocolmo, sabe? Então, ai fui lá, ouvi, conversei com os diretores todos, fui contratado por uma agencia de Brasília e ai fiz, organizei tudo e escrevi, agora estamos ultimando lá.
P/1 – e nessa sua trajetória profissional, que é muito longa, enfim, são muitas coisas, tem, alguma coisa que você queira destacar assim, que tenha sido especialmente… que você tenha orgulho ou que tenha sido gratificante, ou que tenha sido uma experiência forte, na esfera profissional, assim?
R – Eu diria, Teresa, que em jornalismo, ao mesmo tempo que me trouxe muita amargura, porque é uma profissão competitiva e as pessoas estão cada vez mais competitivas e desleais, sabe, muitas vezes, desleais e duras no trato com o próximo, com o colega, eu acho que eu tive muito desencanto com o jornalismo, mas eu acho que também o jornalismo me proporcionou uma vida que eu dificilmente teria tido em outra profissão, entendeu? Eu conheci quase todo mundo, eu conheci muita gente, muita gente que eu queria conhecer, fui atrás e conheci, então tenho mais a agradecer assim, se somar tudo, eu tenho muito mais a agradecer do que… agora, é uma profissão em crise é uma profissão em crise, também não sei, eu olho hoje e tava conversando com a Rosana, esse ano eu passei de tudo, passei um mês de falar: ‘não fiz um puto’, entendeu? Ai, de repente chega um mês que você ganha 40 mil, sabe? Ai, começou a melhorar, mas eu também não sei até onde vai esse melhorar
P/1 – Muito instável!
R – É muito instável.Agora, eu também não quero emprego mais, entendeu, coisa que eu já decidi, eu quero trabalhar do meu jeito, em casa, sossegado
P/1 – E sonho, José, a gente faz essa pergunta e vale tudo assim, o quê que… quais são os seus sonhos hoje?
R – Ai, ai, ai… não… não… meu sonho é ver o meu filho crescer direitinho, Pedro e o Rodrigo também, já bastaria.
P/1 – E como é que foi pra você aqui, contar a sua historia, o quê você achou da experiência?
R – Uma delicia! Uma delicia assim, você conduziu muito bem, acho que acabou dando retrato, que no fundo, o retrato da minha vida e de São Paulo, como eu vejo, até pra deixar como recado final, tem como pano de fundo a americanização do Brasil, Teresa. Eu acho que tudo o que o Brasil fez desde que eu me conheço por gente, até hoje, se eu pudesse falar: “Aconteceu isso com o Brasil”, com certeza, é: o Brasil se americanizou cada vez mais nesse período e continua se americanizando cada vez mais
P/1 – E qual que você acha que é o impacto disso, assim?
R – O impacto disso pra mim é horrível, eu acho assim, que é um… não condiz com a nossa latinidade, entendeu? Não condiz com o nosso temperamento latino. Eu acho que o brasileiro vai ser sempre competitivo, vai ser sempre uma pessoa má, de má índole, porque não tá nele isso, sabe, quando tá, sempre é o meio destrutivo, já vai com uma capacidade… não é competir, é destruir…
P/1 – Se manifesta de uma maneira ruim, você acha?
R – É, muito destrutiva
P/1 – E quais são os traços, quando você fala dessa americanização, você diz em que traços e aspectos?
R – Individualismo, competitividade, materialismo, sobre trabalho, trabalho excessivo, baixa lealdade, pouca dedicação a família, pouca importância social da família… acho que isso, consumismo, o grande traço, talvez em suma: “Much I do about nothing”, eu acho que esse negocio que fica… sabe, eu fico vendo marketing, administração de negocio, não sei o quê, tá, tá, tá, tá… e continha, puta, a energia humana tá sendo gasta em merda, sabe, em merdinha, você olha uma Abril, fala… vi jornalistas ai talentosíssimos, criativos, já chega uma hora tem que parar a carreira na Abril, porque ou ele vira um gestor e não mexe mais com jornalismo, ou ele vai cuidar da vida, que é o que eu fiz também, sabe? Fui diretor de redação de quatro revistas da Abril e quanto mais você subia… você subia até um certo ponto, pelas suas qualidades de escrever, editar bem, saber pensar um produto, tal, e de repente, de um diretor de redação, você vira um burocrata, não sai de reunião, vai cuidar de assinatura, de marketing, de publicidade, não sei o que e 10% é editorial, entendeu?
P/1 – Que não é a sua vocação, não foi o que você escolheu
R – Acho que muita coisa ai precisa ser reparada no jornalismo. E a gente tem essa coisa São Paulo, você fala: São Paulo tá vivendo um boom, um boom de poucos. Um boom de poucos, gente que tá enriquecendo, se enchendo de dinheiro, fazendo… cada dia surge ai dez milionários e dez mil coitados continuam no mesmo jeito, a cidade tomada de carro, terceira cidade mais cara do mundo, sabe? Então, acho que a gente pegou… o brasileiro teve a capacidade ainda extra de pegar da cultura americana o que tem de pior, que é esse consumismo maluco, doentio, esse individualismo levado a um extremo e não pegou a capacidade empreendedora, ou a capacidade de planejamento o trabalho sistemático, análise, pesquisa. Então, é um capitalismo nas coxas, que a gente tem bem periférico mesmo, que não… também não vai muito longe não, aqui.
P/1 – Tá certo. Tem alguma coisa que você queira dizer que a gente não tenha perguntado, ou que você queira deixar…
R – Não. Super beijão para quem se der ao trabalho e tiver interesse de ver esse depoimento.
P/1 – Foi ótimo José, eu agradeço. A gente realmente agradece
R – Eu que agradeço, Teresa, fiquei muito… muito sensibilizado também dessa conversa
P/1 – Tá certo,. A gente pode encerrar…Recolher