P/1 – Leo, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Maria Leopoldina Moraes Veiga, eu nasci dia 20 de outubro de 1965, em São Paulo.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Não, meus pais eram portugueses.
P/1 – Como que é o nome do seu pai e...Continuar leitura
P/1 – Leo, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Maria Leopoldina Moraes Veiga, eu nasci dia 20 de outubro de 1965, em São Paulo.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Não, meus pais eram portugueses.
P/1 – Como que é o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Meu pai chamava Antonio Joaquim Veiga, minha mãe Maria Cândida Moraes Veiga.
P/1 – De que lugar de Portugal que eles eram?
R – Eles eram de uma vilinha em Trás-os-Montes.
P/1 – Os dois são de lá?
R – Sim, a aldeia chama Saldanha.
P/1 – Seus avós maternos e paternos são de lá?
R – Maternos e paternos da mesma aldeia.
P/1 – O que os seus avós paternos faziam?
R – Paternos, a minha avó era dona de casa, o meu avô era, como é que a gente diria? Era o administrador das terras do maior proprietário de terras da aldeia, ele era o administrador. E os meus avó maternos, eles tinham terras, eram pequenos agricultores.
P/1 – Você conviveu com os seus avós?
R – Não, só com a minha avó materna, que veio pra cá quando eu, acho que eu tinha acabado de nascer ou eu estava sendo gerada, e ela morreu quando eu tinha dez anos.
P/1 – Você sabe como os seus pais se conheceram?
R – Se conheceram na aldeia lá, assim, é uma aldeia muito pequena em Portugal, tinha duas ruas, então eles se conheceram, meu pai era 14 anos mais velho do que minha mãe, eles se conheciam, as famílias eram, todo mundo se conhecia, era uma aldeinha.
P/1 – Eles foram, como é que o seu pai e a sua mãe, eles vieram juntos para o Brasil, vieram separados, como é que é essa história?
R – Não, separados, meu pai veio, então, meu pai era sapateiro lá e depois quando teve a Segunda Guerra ele ficou no exército de prontidão, Portugal não entrou na guerra, mas ficou preparado e ele ficou cinco anos no exército em vez de servir um ano como era normal, por causa do período de guerra ele ficou cinco anos. Depois do pós-guerra a recessão na Europa, eles vieram pro Brasil, ele e um tio, ele e um irmão dele, minha mãe ficou lá e eles se corresponderam durante três anos.
P/1 – Mas eles namoravam lá?
R – Namoravam lá, daí...
P/1 – Não eram casados?
R – Não, eles se corresponderam durante três anos e depois casaram por procuração, que naquela época também era porque minha mãe não poderia vir pra cá solteira, teria que casar, então eles casaram por procuração, ele fez a documentação num cartório, enfim. Não sei exatamente como é, eu não vi os documentos, mas era, você ia lá e dizia: “Olha, eu quero casar com tal pessoa”, mandava os documentos pra lá e faziam todos os documentos lá, e quem, e ele tinha um representante lá que era o meu avô no caso. E inclusive fizeram a, o casamento mesmo na igreja, minha mãe se vestiu de noiva, a gente tem algumas fotos sobre isso, e quem entrou na igreja foi o meu avô, representando o meu pai, e depois então de feitas as formalidades legais aí é que ela veio sozinha.
P/1 – Isso era feito tudo por carta?
R – Ah, a comunicação era por carta e a questão oficial dos documentos era em algum cartório, enfim, daí era uma questão oficial mesmo pra, um registro mesmo.
P/1 – Você tem fotos desse casamento, tudo?
R – Então, eu tenho algumas fotos sim.
P/1 – Vamos combinar depois de você trazer as fotos.
R – Legal, tá, beleza.
P/1 – Porque a gente também trabalha com as fotos.
R – Tá, é, eu tenho acho que poucas, enfim, preto e branco, mas posso procurar sim.
P/1 – A gente sempre pede pra trazer fotos que resumem a sua trajetória de vida, então depois a gente combina de você trazer essas fotos, ta?
R – Tá, beleza, sim, sim.
P/1 – Leo, e o seu pai lá, ele era sapateiro?
R – Era.
P/1 – Ele não seguiu o ofício do seu avô.
R – Não.
P/1 – Ele começou a ser sapateiro lá.
R – É, porque aí eles eles eram uma família numerosa, cada um tinha um, cada um ia aprender uma profissão, ele foi aprender a profissão de sapateiro.
P/1 – Por que ele veio, seu avô não veio e ele veio com esse tio?
R – Ah, não, porque ele, meu avô já tava, meu avô, parece que ele veio ao Brasil na época do círculo da borracha no Amazonas, ele veio duas vezes ao Brasil pra tentar a sorte aqui, mas não, mas era muito difícil, parece que ele adoeceu na segunda vez de febre amarela ou alguma coisa do gênero, tal. E, enfim, não quis ficar e voltou, então ele já não queria, ele não, já tinha vindo duas vezes, não tinha gostado e não já tava mais velho, já tinha a vida dele formada ali, mas os filhos foram cada um pra um lado assim, alguns tios foram pra África, pra Angola essa colônias, e alguns vieram pro Brasil, dos irmãos dele vieram esse irmão com ele, depois uma irmã veio também mais tarde.
P/1 – Ele veio como pro Brasil?
R – De navio.
P/1 – Você sabe como foi a viagem, ele chegou a contar?
R – Ah, foi, pelo o que ele contou foi tranquila assim, não teve nenhum,meu pai era muito, gostava muito de contar história, mas sobre essa travessia não foi, porque veio ele, o irmão, o irmão já era casado com a esposa e dois filhos pequenos,mas não, assim, parece que transcorreu tranquilo, a minha mãe parece que...
P/1 – Aportou aonde, no Rio de Janeiro ou em Santos?
R – Em Santos.
P/1 – Você sabe qual foi a impressão dele quando chegou aqui no Brasil, ele contou?
R – Então, eu acho que ele não, assim, a impressão não sei, porque ele já veio direto pra São Paulo porque o processo era que pessoas da família ou conhecidos que já estivessem aqui, eles tinham que também registrar tinha que fazer uma carta de chamada, digamos assim, e ele, foram os parentes ou foram os conhecidos, enfim, ele já nem ficou em Santos, já veio direto pra São Paulo. E ele morou, o que eu sei é que ele morou, a primeira vez foi no Cambuci e ele tinha uma, ele montou uma oficina de sapateiro.
P/1 – Por que no Cambuci, você sabe?
R – Ah, então, isso eu não sei exatamente e depois, quando a minha mãe veio eles moraram em Artur Alvin porque aí eram os parentes da minha mãe que tinham chamado e ficaram pouco tempo lá e depois foram para acho que Vila Industrial e depois compraram uma casa na, nesse lugar que é onde eu moro hoje em dia também, chama Vila Ester, perto da Vila Prudente.
P/1 – E a sua mãe, como foi a viagem dela?
R – Então, a dela foi parece que mais, assim, ela veio sozinha e ela era muito magrinha e diz, meu pai sempre conta isso, que quando foi encontrá-la em Santos ela tinha, assim, tava muito magrinha e tava muito anêmica, quase, assim, porque a travessia duas semanas parece, tinha sido bem ruim, ela tinha, não tinha conseguido se alimentar, então diz que tava muito debilitada e ele sempre conta isso, enfim, mas que depois casou, enfim, daí depois.
P/1 – Ela tinha profissão?
R – Não, ela, ah, ela era, lá ela era costureira mas aqui no Brasil ela nunca trabalhou, assim, formalmente, sempre foi, trabalhou só em casa, fazia algumas, nunca, aí não trabalhou como costureira pra vender, não, nunca, só trabalhou em casa. Eles tiveram comércio um tempo meu pai, depois que ele teve a oficina ele...
P/1 – Aí eles casaram, quando a sua mãe chegou eles foram pra Artur Alvin.
R – Isso, foram morar lá.
P/1 – Quem já tava lá em Artur Alvin?
R – Parentes dela que eu nunca vi na verdade, porque aí eles ficaram um tempo, um ano e depois...
P/1 – Mas ele chegou a armar alguma coisa lá em Artur Alvin?
R – Não, lá, então, nesse caso, nessa época ele tinha, ou ele tinha oficina ou ele trabalhava, chegou a trabalhar em fábricas de calçados aqui em São Paulo, mas a Sutoris, ele contava, mas aí eu não sei se foi nessa época, enfim, sei que no Cambuci ele teve a oficina, que isso ele contava foi quando eles, foi acho que um ano depois, no segundo ano de casamento, tal, porque aí eles moravam perto do meu tio também.
P/1 – Você nasceu quando?
R – Então, eu nasci, então, quando a minha mãe tinha 32 anos, ela já estava há dez anos aqui eu nasci em 65.
P/1 – Você é a mais velha, não?
R – Sou a mais nova, sou a caçula de três.
P/1 – Quando que ela teve o primeiro filho?
R – Ah, ela teve logo, ele teve o primeiro filho em 56 e acho que ela chegou em 54 porque, logo assim, pouco tempo depois, um ano depois.
P/1 – A sua casa de infância era na Vila Industrial?
R – Não, a minha casa de infância, onde eu nasci, é na Vila Bela, que é perto da Vila Alpina, ali é um bairro onde tem, curiosamente é um bairro onde tem muitos imigrantes do leste europeu.
P/1 – Como é que era esse bairro naquela época?
R – Ah, então, eu saí de lá quando tinha três anos, daí fui com, eu saí dia 12 de outubro de lá e dia 20 eu, a gente mudou dia 12 de outubro, dia 20 eu fiz quatro anos, então eu lembro pouquinho dessa outra casa, mas é um, eu frequento o bairro porque é perto da minha casa, enfim, e é um bairro onde tem muitos imigrantes russos, lituanos, búlgaros, então, assim, era, é um bairro, tem muita casa, comércio pequeno e enfim.
P/1 – Aí com quatro anos você mudou pra qual bairro?
R – Pra esse, chama Vila Ester, que é perto do Sapopemba, Vila Ema.
P/1 – Como é que era esse bairro naquela época?
R – Ah, então, eu lembro que a minha rua não tinha asfalto, eu lembro que logo que a gente mudou foi, os moradores da rua fizeram um abaixo assinado, foram na regional pra que eles pusessem iluminação, fizessem o calçamento da rua, então eu lembro de ter brincado nos postes de iluminação, enfim e era assim, era um bairro era de casas praticamente, mas tinha essa coisa do calçamento, que foi depois melhorado, enfim. Eu lembro que também as escolas, também quando eu era pequena a escola que eu frequentava também tinha alguma coisa, que as mãe fizeram uma mobilização ou para aumentar o número de oferta de postos, enfim, mas eu lembro que também teve alguma coisa, teve um incêndio na escola, era bem pequena. E, assim, também teve uma, existia essa mobilização, que hoje em dia a gente tá vendo mais de moradores, e que as se mobilizavam, iam a regional e exigiam que fossem feitas melhorias e depois isso meio que acabou e agora, enfim, tá retomando
P/1 – O seu pai naquela época vivia do que, o que ele fazia?
R – Naquela época quando?
P/1 – Quando vocês tavam morando na Vila Ester.
R – Então, aí o meu pai teve, depois que ele teve a sapataria, quando a gente tava na Vila Bela ainda eu, ele teve um pequeno comércio, um mercadinho que ele chamava vendinha naquela época, também não foi, não deu muito certo, depois ele foi ser vendedor, trabalhou na Martini primeiro e depois ele foi trabalhar numa empresa de laticínios chamada Beira Alta, onde ele se aposentou, aí ele vendia, ele era vendedor ia nos supermercados pra vender.
P/1 – Como é que era a casa que você morava lá?
R – Qual casa?
P/1 – Essa da Vila Ester.
R – Ah, é uma casa também tranquila, casa térrea dois quartos, na época que eles compravam tinha só a casa principal, depois eles fizeram uma edícula e, enfim, uma casa de dois quartos a principal, um banheiro, uma sala, cozinha e daí eles fizeram uma edícula, fez lavanderia mais um quarto onde a minha mãe fazia, enfim, passava roupa, tal e o quarto do meu irmão, que ficava também fora.
P/1 – Você dividia o quarto com quem?
R – Com a minha irmã, que éramos as duas meninas, e o menino era separado.
P/1 – Como é que era na sua casa, quem exercia a autoridade, o seu pai ou sua mãe?
R – Ah, o meu pai, meu pai é que exercia a autoridade mais, mas era tranquilo, era assim, porque ele era, assim, um homem do tempo dele, mas ele era bem tranquilo mesmo, cozinhava, ele era uma pessoa, assim, eu achava que ele era um, ele tinha um interesse pelas coisas da casa, ele, assim, no tempo livre dele ele cozinhava às vezes, ele sempre se interessava pela economia doméstica, assim não era ausente. E a minha mãe era, assim, cozinhava muito bem, era bem tranquila, não era severa com a gente, deixava a gente bem tranquilo, mas era ele que, era assim, era um homem do tempo dele, ela também era uma mulher do tempo dela, era tranquilo.
P/1 – Que costumes de Portugal tinha na sua casa, na comida?
R – Ah, tinha vários, inclusive tinha...
P/1 – Quais que eram?
R – Ah, assim, de comidas tinha várias comidas, a gente, assim, eu comparava com os meus colegas e eram sempre comidas diferentes, a gente comia muitos grãos, comia batata, meu pai, por exemplo, não gostava de comer arroz, pra mim ele falava que arroz era comida de papagaio, que ele punha só uma colherzinha, ele não gostava. Mas a gente comia muitas verduras cozidas a gente comia todo tipo de carnes, assim, por exemplo, eu lembro, tinha uma vizinha em frente que era também portuguesa e ela tinha uma horta em frente, tem a casa, em frente era um quintal e aí tinha uma horta e ela vendia essas hortaliças que ela, e ela criava galinhas. E às vezes ela também criava coelhos e a gente, eu lembro que de vez em quando a gente, minha mãe cozinhava coelho, era uma coisa, assim, que os colegas nunca nem comiam essas coisas, assim, a gente tinha uma alimentação diferente, era diferente. Além disso a gente tinha um vocabulário também de Portugal que era em casa e que as pessoas não utilizavam e eu tinha também essa vantagem de que os meus pais falavam um português muito correto, então na escola isso era, pra mim era muito fácil Português pra mim era fácil, conjugação de verbo com voz, o tu, por exemplo, era tranquilo pra mim sempre ajudou porque eu já ouvia isso desde pequena.
P/1 – Que outras palavras você ouvia, expressões?
R – Ah, várias coisas, por exemplo, não, assim, o vocabulário de coisas, por exemplo, pá de lixo é badio, então na minha casa só falavam isso, caneco é púlcaro, só se falava assim, desse jeito, que mais? Ai, não lembro agora exatamente, mas, assim, tinha várias coisas que, por exemplo, quando o meu irmão casou e a minha cunhada começou a frequentar a nossa casa a gente até brincava que a gente falava, ah, a gente falava pra ela: “Dá tal coisa” e ela ficava assim, uma brincadeira entre a gente, porque ela ficava com cara de de: “Ah, o que é isso?” e a gente usava várias expressões que era. A minha mãe também cantava muito fado também quando ela tava cozinhando, então a gente também cresceu ouvindo fados, e era, tudo isso era uma coisa diferente, que era uma coisa que a gente tinha em casa, mas não tinha, e a gente não via, a gente via que era diferente isso na rua com os amigos, enfim.
P/1 – Você lembra de algum fado que ela cantava?
R – Ah, eu lembro de vários, mas, ah, lembro de vários, esses mais antigões, assim, os mais do repertório de Amália Rodrigues, enfim, era...
P/1 – Você sabe, você consegue cantar um pouquinho pra gente?
R – Ah, então, agora só se eu lembrar algum, deixa eu ver, ixi, eu teria que lembrar, deixa eu ver, ah, não sei, eu lembro, eu lembrei agora quando você perguntou, eu lembrei de uma cantiga que não é bem um fado, mas é uma cantiga, assim, mais, nem sei, um fado ligeiro talvez, como eles falam que é até engraçado, que é sobre uma, um namoro de uma pescadora e um vendedor de que chama “O namorico da Rita”, alguma coisa assim. Que é assim: “No mercado da Ribeira, há um romance de amor, entre a Rita que é peixeira e o Chico que é pescador, sabem todos que lá vão, que a Rita gosta do Chico, só a mãe dela é que não consente no namorico. Quando ele passa por ela, ela sorri disparada, porém o Chico acautela, não dá trela nem diz nada, quando a mãe”. Ai, não lembro: “Quando a mãe, que a Rita gosta do Chico”, é, eu não lembro, não lembro agora: “Só a mãe dela é que não consente no namorico, quando ele passa por ela”, ah, não lembro o final, mas é assim, e, enfim, todos os outros.
P/1 – Era a música que ela cantava pra vocês.
R – Ah, e todos esse outros, mas é que agora não me lembro, assim, mas todos os famosões daquela época enfim, que era época do auge da carreira da Maria Rodrigues, ela cantava todas as músicas, ela, e cantava coisas brasileiras também, ela gostava muito de cantar.
P/1 – E você disse que o seu pai contava histórias pra vocês.
R – Meu pai contava historias.
P/1 – Que histórias que ele contava?
R – Ah, ele contava histórias dos irmãos, porque eles eram oito, então e era tudo assim, escadinha então, assim, o mais velho acho que tinha diferença de um ano, um ano e meio, dois mais ou menos entre, e o meu pai era o terceiro, então era assim, primeiro era um tio homem, depois uma tia que chama Leopoldina. Aliás, na minha família tem uma tradição de Leopoldinas, o meu pai tinha uma irmã, uma tia que chamava Leopoldina, que era a irmã do pai dele, e daí o meu Avon pôs o nome de uma filha de Leopoldina e o meu pai também pôs o meu nome e o meu irmão tem uma filha que chama Ana Leopoldina, então tem várias Leopoldinas na família. Então ele contava as histórias assim, porque era uma aldeia eles não tinham...
P/1 – Que histórias, conta uma, você lembra?
R – Ah, ichi (risos), ah, contava histórias assim, de quando eles iam pra escola, contava de, do lago que tinha perto de, eles tinham, tinha um lugar onde pastavam os animais, que os agricultores criam vacas, enfim e eles chamavam prado redondo, prado é isso prado é um lugar, assim, aberto num campo em que eles vão pastar. Então, assim, tinha mil histórias, eu não lembro exatamente agora mas era assim, a coisa do dia-a-dia deles, dos irmãos, coisas de eu não lembro, assim, agora, mas o meu pai contava e contava muitas vezes a mesma história, assim, depois, no domingo, no almoço de domingo, depois ele, ele contava com detalhes e era, enfim, ele gostava de contar e a gente meio que ia imaginando aquela aldeia meio que a gente já tinha no imaginário. Depois que eu, quando eu fui pra Portugal, que eu fui lá na aldeia, meio que eu já sabia já tinha mais ou menos uma ideia, já tinha formado uma ideia do que que era e era, porque a gente meio que vivia também meio naquele, a gente,
ele passava pra gente a saudade, enfim, coisas que ele, as histórias que ele recordava de maneira a, como diz? A se desfazer um pouco dessa saudade que ele tinha da terra dele enfim, e era legal porque a minha mãe, como era da mesma aldeia, conhecia as mesmas pessoas então às vezes ela também acrescentava e tal eu gostava.
P/1 – Tinha almoço de domingo, que datas vocês comemoravam, quando que a família se reunia?
R – Ah, então, a gente tinha almoço de domingo assim, entre, na família.
P/1 – Quem que ia nesses almoços?
R – Ah, assim, a família mesmo porque, assim, durante a semana a gente ia pra escola, ele tinha os horários de trabalho, enfim, então a gente se reunia mesmo pra almoçar era sábados e domingos. Mas a gente, meu pai tinha, como ele era vendedor ele tinha, ele não tinha um horário fixo de trabalho, ele era um representante comercial, então ele fazia meio que o horário dele. E todo dia quase, praticamente todos os dias quando ele vinha pra casa, de caminho pra casa ele passava na casa do irmão dele que era alfaiate na Vila Alpina, que era perto, então, assim, ele passava por ali, conversava um pouco com o irmão dele também e tal, e depois vinha pra casa. E a gente comemorava os aniversários, daí vinha esse tio aí a minha mãe tinha só uma irmã, que veio pra cá quando eu estava sendo ainda acho que gestada, foi em 65, eles vieram, foi quando o meu avô materno faleceu e a minha avó e a minha tia, que eram as únicas ali na família vieram pro Brasil, venderam tudo lá e vieram pro Brasil, ela ficou aqui até hoje. E elas vinha também, ela vinha, ela tinha um bar em São Caetano e ela trabalhava de segunda a domingo e, assim, no domingo à tarde ela de vez em quando vinha também e, assim, basicamente eles se reuniam pra contar coisas de Portugal também, porque as coisas do dia-a-dia daqui todo mundo já sabia, mas eles tinham era aquela saudade e era um jeito de baixar um pouco essa saudade que eles tinham e era isso. Aí a gente tinha coisas assim também, comidas típicas de, por exemplo, na páscoa a gente faz um pão que chama fular, que é como um panetone salgado, em vez de ter uva passa e frutas cristalizadas tem carne de porco e linguiça, chama fular mas só faz na páscoa. Então a gente fica assim, a gente até, toda vez, a vida inteira a gente falava: “Ah, não, a gente precisa fazer durante o ano mais vezes”, mas a gente nunca fez, então, assim, era aquela coisa, a semana antes da páscoa: “Ah, vamos comprar as coisas pra fazer o fular e vamos fazer o fular, né” e a gente faz uma fornada grande enfim, e é assim. E todos todos os portugueses da família fazem, então a gente, por exemplo, a gente troca então eu faço, dou um dos meus pra minha tia, a minha tia dá um dos dela pra mim, enfim, então essa coisa. Outra coisa que a gente fazia de vez em quando chama alheira, que é uma linguiça feita de pão italiano que a gente, com carne de porco, carne de frango e alho e azeite e faz a massa com isso, depois eles iam, compravam as tripas e depois a gente enchia com funil. Então a gente ficava o dia inteiro fazendo, primeiro cozinhando as coisas, depois cortando, depois fazendo a massa, depois enchendo depois as crianças iam com uma agulha pra furar quando já tava, porque não pode ficar ar porque senão mofa. E depois fica mais ou menos umas duas semana fazendo a defumação fazendo um foguinho com com gravetos, enfim, pra defumar, e aí depois então é que pode comer, então é assim, é um evento de um dia inteiro e depois que só vai aí depois divide, leva, era uma farra na verdade. E no fim do ano a gente faz umas, uma massa também, que é uma massa frita, que chama filhó, é uma massa como uma massa de pão e depois você espera, deixa crescer, tal, depois estica e frita e daí você faz um caramelo assim, uma calda de açúcar e canela e molha, ou só põe açúcar. Então isso a gente faz só nessa época, é uma coisa, assim, meio marcada, e que também a gente não tinha nos, os amigos não tinham, a gente é que tinha, bolinho de bacalhau essas coisas assim, que eram, essas coisas são sagradas, no fim do ano é isso, é filhó, bolinho de bacalhau e polvo frito também, era coisas assim, era o menu básico, era o menu básico e outras coisas a gente fazia. Tipo assim, peru a gente também fazia, mas essas outras coisas eram, era o mais legal era o mais, era o principal, enfim.
P/1 – De algum aniversário você lembra, seu quando você era pequena?
R – Ah, os meus aniversários eram assim, vinham os primos, os tios, a minha mãe sempre fazia bolo, mas não eram assim, coisas muito era assim, reunia em casa fazia comida, bebiam e, assim, não tinha, por exemplo, brigadeiro, essas coisas, nunca, minha mãe nunca fez, mas bolo era um bolo legal, sempre fazia, era legal, vinham os primos, a gente brincava, era uma farra.
P/1 – Quais eram as suas brincadeiras de infância?
R – Ah, eu brincava com os meus irmãos, assim, brincava de pega-pega, brincava na rua também, era essa coisa de, eu tive uma infância que ainda dava pra brincar na rua porque a, também o bairro não era muito movimentado e a rua era mais tranquila, então eu brincava de pega-pega, de queima, de passa-anel, de, enfim, todas essas brincadeiras de criança tranquilo. Depois brincava também com jogos, ludo, enfim era tranquilo, eu ia na escola, fazia lição e depois brincava, era tranquilo, bonecas eu não tinha muitas meus pais não tinham muito essa, enfim, tinham limites econômicos e a gente também não liga muito, não, era tranquilo, não ficava pedindo, nem sentia mal, nada disso, brincava com os brinquedos das colegas, enfim,mas também era tranquilo, e a gente lia bastante também, ouvia história.
P/1 – O que vocês liam?
R – Ah, eu, assim, porque o meu irmão é dez anos mais velho que eu e ele sempre, desde que começou a ler meio que a diversão dele de vida é essa, então ele lia muito, a gente sempre tinha livros em casa, mas eu lembro que porque ele lia muito, minha mãe também lia eu logo na escola comecei a ir na biblioteca ler livrinhos de, aos seis, sete anos, sete, oito anos livrinhos de escola mesmo, aqueles pequenininhos. Mas depois comecei a ler “Fernão Capelo Gaivota”, “Pequeno Príncipe”, “Reinações de Narizinho”, eu lembro que o meu primo, um primo, esse de São Caetano, ele desenhava e ele escreveu pra um programa da Rede Cultura, não lembro se era, ai, não lembro como é que chama, era com a GigiAnhelli, não lembro como é que chama, enfim, e era, tinha um concurso, você desenhava, mandava um desenho e recebia um prêmio, e ele desenhou e recebeu, ganhou a coleção completa do Monteiro Lobato. Mas os meus primos não gostavam de ler, então a gente que lia eu e os meus irmãos, a gente ia pegando fascículo, assim, volume por volume e ia lendo, e eu li toda a obra do Monteiro Lobato com essa coleção dele, então era muito legal, então esse já foi um período grande porque pra ler todos, era muito legal e a gente se divertia, assim, ler foi sempre, recebi essa influência do meu irmão mais velho e a gente levou pra vida.
P/1 – Vocês tinham alguma educação religiosa?
R – Ah, a minha mãe era católica, eu até mais ou menos dez anos ia na missa com ela, ia na missa do domingo, das sete da manhã, assim, acordava lá e ia, mas depois dos dez anos eu já, eu já comecei a não ir mais, ela não, já não, também não fazia tanta questão e, enfim, depois eu me distanciei, hoje em dia não tenho nenhuma religião, não acredito em Deus, então.
P/1 – E política, se discutia na sua casa?
R – Muito pouco porque, como os meus pais eram estrangeiros, nem votavam então eles não assim, não tinham um engajamento e nem tinham essa obrigação de votar por serem estrangeiros, mas o meu irmão tinha uma aproximação com o Partido Comunista Brasileiro. E eu aos 18 anos também comecei a, foi quando eles voltaram a legalidade, a gente se filiou e foi através desse, de contatos, não foi exatamente do PCB, mas foi uma pessoa que era também militante, que ofereceu, que intermediou a bolsa de estudos que me levou pra União Soviética na época.
P/1 – Vamos voltar, e aí com quantos anos você entrou na escola?
R – Entrei com seis anos porque, como eu faço aniversário em outubro, então eu entrei com seis anos porque a idade seria sete anos, mas eu lembro que aí, enfim, a gente, tinha outras crianças que, da rua que eram, que faziam aniversário, sete anos, ou já tinham feito, ou iam fazer próximo, eles já foram se matricular. E eu lembro também no primeiro dia, que a minha mãe foi comigo e tal e ela perguntou pra diretora, falou: “Ó, ela só vai fazer sete em outubro, mas pode?” e eu lembro que foi um momento de tensão para mim, se eu ia ter o direito ou não naquele momento, e aí ela falou: “Ah, deixa ela vamos ver, se ela, vamos ver qual é o rendimento, se ela se der bem tudo bem, senão ela repete o ano que vem”, mas eu sempre fui super boa aluna, então não tive problema nenhum, foi tranquilo, com seis anos.
P/1 – Como é que você ia pra escola?
R – Eu ia a pé, eu ia, assim, até o, acho que até a quinta série quem levava era um, acho que no primeiro ano a minha mãe levava, ou uma vizinha que também, assim, elas meio que se combinavam, uma levava, a outra buscava e a partir do segundo ano, que tinha uma vizinha que o avô levava e buscava que já era um senhor, já tava aposentado, então aí eu ia com eles, ia e voltava, era perto da minha casa.
P/1 – Você tem professoras que te marcaram, que você lembra delas?
R – Ah, eu lembro de quase todas, eu lembro, enfim.
P/1 – Como que era o nome delas?
R – A minha primeira, do primeiro e segundo ano, ela chamava Edna, a do terceiro ano era uma japonesa que tinha sido professora da minha irmã, porque a minha irmã também estudou na mesma escola, era, ai, não lembro agora o nome dela, era Yoneko, acho que era Yoneko, e do quarto ano era Dalila, todas super legais, enfim.
P/1 – Qual que te marcou, por que te marcou?
R – Olha, eu, assim, lembro mais talvez da do quarto ano porque, enfim, é a mais recente mas eu lembro da japonesa também, eu lembro que tinha essa coisa de ela ter sido professora da minha irmã, então eu já me sentia mais acolhida, enfim, ela já conhecia alguém da família e tal e a minha irmã também era boa aluna, eu também era, então, enfim, era ok. E a Dalila era, eu lembro que ela era um pouco mais, um pouco mais rígida, não era aquela coisa daquela tiazinha, de que falava, ela era mais, assim, tinha mais vigor, ela era mais vigorosa, não era ruim, não era má, enfim, nem era autoritária, tal, mas ela, eu lembro que ela era mais vigorosa, era uma mulher mais rigorosa. Enfim, não tinha aquela cara de tiazinha ela era, tinha o cabelo pintado de loiro, então ela era mais assim, mas eu lembro que eu gostava dela também, eu não tinha problema porque eu sempre era boa aluna, então elas também gostavam de mim, enfim, era tranquilo.
P/1 – Do que você gostava mais da escola?
R – Da escola? Ah, eu gostava de tudo, eu gostava , eu gostava de todas as matérias, eu prestava atenção em todas as matérias e assimilava, assim, não tinha uma preferência no primário, eu gostava muito do convívio com as, pra mim era assim, o que o professor propunha eu embarcava, era, eu gostava de ver aula.
P/1 – Por quais lugares da cidade você ia?
R – Então, eu ia muito, assim, aos dez anos eu comecei, assim, a gente não andava, eu ia até Vila Alpina com o meu pai e depois já ia até São Caetano na casa da minha tia, basicamente ia visitar os tios. Mas aos dez anos eu já comecei a pegar ônibus sozinha, porque eu pegava ônibus perto da minha casa e descia no ponto final em São Caetano, então não tinha muito o que se perder e já ia pra casa da minha tia sozinha. E lá pros, não sei, aos 15 talvez, eu já ia pro centro da cidade porque aí meus irmãos já iam, então a gente já ia ao cinema, a gente, eu já lembro da Praça da Sé, já lembro de querer ir ampliar os horizontes, que não era muito, que eu não percebia isso muito nos meus vizinhos pessoas da minha idade que tinham um certo de: “Ai, o centro da cidade, ai, é perigoso, tal” não sei o que, eu não, eu tinha curiosidade. Então já lembro de ir pro centro da cidade ali, o centro velho, eu lembro de conhecer, de andar por ali, e a gente já começou, aí depois eu fui estudar numa escola que eu já tinha que pegar ônibus, quando eu entrei no colégio que também tinha sido a escola onde os meus irmãos tinham estudado e alguns professores também tinham sido professores deles. E, assim, eu já tinha essa curiosidade, depois que eu entrei pro colégio eu já tinha vontade de ir pros lugares, explorar, de ir, o meu irmão já tava estudando na USP, então já era um lugar mais longe, a gente também tinha, de vez em quando tinha que fazer pesquisas pra escola, a gente já ia até lá, já tinha essa referência, enfim.
P/1 – Nessa passagem sua da infância pra adolescência você tinha algum desejo: “Quando eu crescer eu quero ser tal coisa”?
R – Olha, então, eu não tinha exatamente, assim, eu gostava de ler, eu gostava de, gostava de fazer, tinha uma tia, essa tia que era a irmã do meu pai, ela falava, eu lembro que uma vez eu tava passando férias na casa dela e ela me disse assim: “Nossa, você pode ser o que você quiser”, eu lembro que foi assim: “Você pode fazer o que você quiser porque você é muito assim, é muito social”. Porque, assim, eu tinha, sempre passava férias na casa dos meus tios eu não tinha problema, eu não tinha problema em casa, assim, mas também gostava, não tinha problema de ficar em outros lugares e até gostava gostava de ir explorar, conversar, ta em outros ambientes, não tinha problema. Assim, por exemplo, o meu pai também, como ele era vendedor, às vezes ele ia pra lugares mais longe, assim, do ABC, que era a região que ele, e eu gostava de passear, gostava de andar de trem com ele, ir, por exemplo, pra Paranapiacaba, Ribeirão Pires, eu, enfim, gostava. Eu era a companheira do meu pai, da minha mãe quando eles iam pra lugares diferentes, era tranquilo, eu gostava de explorar, eu tinha, sempre tive isso de ir ver outros lugares que eu não, onde eu não estive, onde eu não conheci, enfim. Então, assim, eu não tinha, quando eu era bem pequena eu lembro que eu pensei em estudar Medicina, lembro que, mas depois fui me direcionando mais pra humanas, enfim, no colégio naquela época ainda divisão, humanas, biológicas e exatas, eu estudei em biológicas porque meio termo pra mim. Mas depois eu prestei, quando eu terminei o colégio prestei Letras, aí não entrei, depois fiz cursinho, aí quis fazer já Jornalismo, também não entrei e daí que foi que surgiu a bolsa e eu fui fazer Jornalismo.
P/1 – Qual foi a sua primeira paixão assim?
R – Paixão de namorado, assim?
P/1 – É.
R – Ichi, acho que foi também no primário ainda, eu lembro que era um menino da minha classe, chamava Martino, ele era vizinho da rua de cima, enfim, mas era, nem cheguei a dar beijo, nem nada, era assim, mas lembro que foi, assim, a primeira coisa a primeira, esse primeiro sentimento, assim.
P/1 – E na adolescência, você tinha namorado?
R – Então, eu, até eu terminar o colégio eu não tive, assim, namorado de namorar mesmo assim, não, assim, mas a gente tinha no colégio, a gente tinha um grupo de amigos que era muito, eram, assim, quatro amigos, que eram muito, era um grupo muito coeso. E na verdade eu acho que esse relacionamento de amizade acabou sendo meio que, supriu essa necessidade, esse interesse que teria de namorar de ter alguém mais próximo, porque a gente fazia muita coisa junto, a gente ria, a gente dormia um na casa do outro. Então tinha uma coisa assim, até o fim do colégio eu não tive um namorado, assim, oficial, enfim, tinha lá uns apaixonados, enfim, mas não rolou, assim, namorado mesmo.
P/1 – Esse seu irmão quando você tava na adolescência, que programas que você fazia de adolescente, como é que você se divertia?
R – Ah, então, eu saía, ia com as minhas assim, quando eu tava no colégio a gente ia, a gente ia muito ali no, ai, como é que chamava ali? Era um teatro que tinha em Pinheiros onde o Premeditando o Breque, todos esse grupos paulistas, como é que chamava? Não sei se você lembra, chamava, ai, não lembro, era ou na Teodora Sampaio, era um teatro pequeno.
P/1 – Em Pinheiros?
R – É, em Pinheiros, de onde saíram todos esses grupos, a gente ia nesses shows, a gente ia, o que mais que a gente fazia? Ah, a gente saía pra comer pizza, a gente se reunia na casa, aí a gente ia, essa minha tia que morava em Mairiporã, depois ela mudou ela mudou pra Mairiporã, então eu ia muito pra lá.
P/1 – A de São Caetano?
R – É, a de São Caetano, depois a gente, eu ia bastante também pra lá, passava o fim de semana e aí tinha uma amiga que tinha sítio, a gente ia pra lá, enfim, a gente ficava basicamente nas casas uns dos outros, e às vezes a gente ia, quando ia, ia ao cinema, eu lembro que eu ia nos cinemas do centro com o meu irmão, ia ver, ou com os amigos, sempre assim. Meu irmão ia num, tinha um cineclube ali na Praça Roosvelt, que eu não lembro também agora como é que chama, mas também, esses filmes que o meu irmão indicava, filmes mais de conteúdo e a gente, eu ia. E, assim, às vezes tinha também umas divergências com os colegas porque eles queriam os campeões de bilheteria e eu falava: “Ah, não, esse aí não quero, quero ver esse” então era, fazia essas coisas, mais ligado a cinema, cultura, enfim, ou a gente se reunia entre a gente.
P/1 – Você, nesse momento que música que você gostava de escutar, na adolescência?
R – Então, eu só escutava música popular brasileira porque meio também influência do meu irmão a gente não, aí escutava Beatles, que a minha irmã gostava, assim, de música estrangeira era praticamente isso, mas a gente escutava só música popular, Chico Buarque, Caetano, Betânia, Gil, Paulinho da Viola e os fados que aí era a minha mãe que cantava mas música popular brasileira. Eu não, nem gostava, assim, não conhecia na verdade música em inglês e não gostava porque não ouvia em casa, era.
P/1 – Que músicas, tem alguma que tenha marcado a sua adolescência dessas populares?
R – Marcado não, mas assim, eu sabia e gostava de cantar, o meu irmão comprava os CDs, os LPs na época, eu sempre ouvia, aprendia e gostava de cantar, mas eu, Elis Regina, cantava tudo, cantava tudo dessa galera, eu cantava praticamente tudo.
P/1 – Seu irmão influenciava nesse gosto?
R – É, ele que comprava os LPs, enfim, aí a gente ouvia também rádio a gente ouvia a Rádio Cultura AM, basicamente era isso e aí a gente ouvia essa música assim, já mais, música popular brasileira e, assim, as músicas, assim, sertaneja, música, assim, caipira a gente não ouvia, música, as rádios que tocavam música em inglês também a gente não ouvia. Eu não conheço até hoje, tenho, assim, um grande branco de rock, hoje em dia to aprendendo uma coisa ou outra, mas eu, por exemplo, a gente estudou violão e o meu professor é bem mais novo que eu, então ele, assim, durante o aprendizado, se ele quer me ensinar acordes ele me dá umas músicas que ele conhece de rock. Daí ele fala: “Você conhece tal música”, eu falo: “Não, nunca ouvi”, “Você não conhece?”, falei: “Puta, nunca ouvi” e aí ele fala: “Ah, não, tudo bem, não conhece, mas vamos estudar porque tem que aprender”, mas eu não gosto, então eu não, nem toco, eu toco na aula, eu falei assim: “Tá bom então vamos lá, exercício” e eu sou professora também vamos lá. Mas chega em casa eu não, agora, quando é alguma música de, brasileira, que eu já conheço, aí eu tenho vontade de tocar, mas senão não, então ele fica, é assim, uma briga entre a gente, assim (risos), nessa coisa de repertório mas eu vejo que ele teve essa educação, teve esse contato, eu não, então.
P/1 – Esse seu irmão fazia o que na USP?
R – Estudou História quando terminou o colégio, prestou, estudou História, mas aí ficou bastante tempo e não, enfim, só ia lá, ficava lendo e tal e não ia ficou enrolando e acabou não fazendo, não terminou, depois prestou Letras, entrou em Inglês. Aí depois a filha dele nasceu, quando ela tinha mais ou menos um ano e meio, tal, teve também problemas lá na USP porque também ele não tava fazendo direito, que aí porque a filha nasceu, eles moravam no CRUSP, ele e a minha cunhada, e daí teve uma reformulação lá e eles acabaram sendo expulsos, expulsaram os estudantes que não tinham um rendimento mínimo lá de créditos, tal. E daí ele ficou bravo e também largou, aí ele foi trabalhar no Banespa, ficou trabalhando bastante tempo, depois também saiu de lá e daí ele fazia, ele escreve, publicou alguns livros infantojuvenis, e daí ele fazia copydesk pra editoras e depois, já quando ele tinha uns 45, ele voltou a universidade, foi fazer, aí ele fez Direito, fez em quatro anos, depois fez mestrado, agora tá fazendo doutorado.
P/1 – Vamos voltar, eu perguntei dele porque ele te influenciou politicamente.
R – É.
P/1 – Quando que ele começou a militar?
R – Então, acho que ele começou a militar durante a ditadura na escola onde ele estudava, talvez os professores, ou ele teve contatos lá, era clandestino, enfim, eu acho que eles faziam, eu não sei se eles faziam, assim, não comentava com a gente sobre isso exatamente, mas tinha alguma militância e eles tinham, na época da ditadura eles tinham, como é que chamava? Assim, associações de bairro que eram meio, era meio um polo de atividades culturais, mas que também tinha o objetivo de conscientizar porque eles faziam peças de temática de esclarecimento, enfim. Então ele participava, escreveu uma peça uma vez, eu lembro sobre, eles encenaram, enfim, mas eu era bem pequena, aí depois eles fizeram uma na Vila Prudente chamada “Acredite”, que foi, aí já era, aí já, não sei se o, não, ainda tava na clandestinidade, mas existia gente que tinha cargos políticos e que meio que subsidiava e eles faziam isso, faziam atividades políticas e acho que também era um espaço de reuniões políticas pra eles.
P/1 – Mas na sua casa se comentava isso ou ele fazia escondido?
R – Não, na minha casa não, então, não era escondido, os lugares onde ele, assim, a associação que ele participava, a gente inclusive ia, quando teve a peça meus pais iam, enfim, mas ele não comentava, assim, com os meus pais sobre o que que era, o que que ele e ele lia coisas, mas também. Aí eu lembro que uma vez durante a ditadura um, eu lembro que teve uma vez, eu era pequena também, meu pai, não sei se alguém conhecido deles foi preso, eu não tenho certeza, mas eu lembro que o meu pai falou assim: “Ah, não, esse livro aqui tem que tirar daqui, tem que dar fim porque se alguém vem aqui e vê esse livro aqui não é bom”, então, enfim, tinha umas coisas assim. Mas não era muito discutido, não existia, assim, uma doutrinação, digamos assim, isso não existia, porque o meu pai não era envolvido não era, assim, uma coisa velada, mas também não era...
P/1 – O seu pai não proibia?
R – Não, talvez se ele, se o meu irmão abrisse, assim, meu irmão não conversava com ele porque, como ele não tinha formação política e nem queria se envolver, ele sabia que ele não queria e, enfim, então ele não comentava, mas não era escondido.
P/1 – Como é que você começou a militar?
R – Então, aí eu comecei, assim, aí quando eu fiz 18 anos foi quando acabaram acabou a ditadura e aí o Partido Comunista foi legalizado e daí o meu irmão foi, aí teve uma sede na Vila Prudente, o meu irmão entrou e daí ele me convidou, eu também tinha terminado o colégio e também entrei. Mas, assim, fiquei mais ou menos um ano, mas não existia muita militância mesmo, na verdade eu acho que era pouco organizado, inclusive deu assim, que evolui para o, a trajetória, enfim, do Partido Comunista, que era assim na verdade, eu tava com 18 anos, eu queria, eu lembro que uma vez eu pedi literatura pra ler, que eu queria, enfim, saber o que eles sabiam também e ninguém nem se dispôs. Então não existia uma formação um curso de formação política para a juventude que tava entrando e que queria, não existia muita, não sei se existia, assim, uma verba que era destinada ao partido e que na verdade eles usavam meio que um clube assim, pra se reunir, pra conversar, faziam festas de vez em quando pra pagar o aluguel do lugar, enfim, e aí acabava todo mundo bebendo cerveja, conversando e virava assim. Mas não existia, assim, pelo menos naquela sede não existia uma preocupação em formação mesmo política eu achava ruim isso, que eu queria ler mais coisas, eu lembro que daí pedi pro meu irmão, ele falou: “Ah, não sei”, porque o meu irmão sempre gostou de literatura, mas não de literatura política, assim. Então eu lembro que eu li o Manifesto do Partido Comunista naquela época, mas também não entendi muita coisa e não tinha ninguém que quisesse que se dispusesse a fazer um curso de formação pra juventude.
P/1 – O colegial você fez aonde?
R – Na Vila Prudente, no Colégio Estadual Américo de Moura.
P/1 – Como é que foi esse período do colegial?
R – Ah, foi ótimo, eu ficava o dia inteiro praticamente na escola, porque aí eu estudava de manhã, depois tinha o grupo de teatro à tarde e então a gente ficava, ou então a gente ficava conversando, assim, eu praticamente, ou ficava na biblioteca, mas passava praticamente o dia inteiro na escola.
P/1 – Você nessa época, aí você se formou, entrou pro partido, você tinha desejo de fazer uma faculdade, ter uma carreira?
R – Sim, eu sempre tive, assim, na minha casa sempre foi, assim, era o programa mínimo (risos), tinha que estudar e fazer uma faculdade, meu irmão já tinha feito, assim, já tava fazendo, minha irmã também tinha, fez Letras também, entrou na USP, e eu também, eu tinha que, assim, era o, era a trajetória normal.
P/1 – E aí você fez vestibular?
R – É.
P/1 – Direto quando você acabou o colegial, como é que foi esse período?
R – Eu prestei, prestei Letras, aí não entrei, passei a primeira fase, não passei a segunda, depois fiz o cursinho de seis meses, daí já quis fazer Jornalismo, também era bem concorrido no ano que eu prestei, também não passei, daí ia fazer mais um ano de cursinho, daí foi quando surgiu a notícia da bolsa.
P/1 – Que bolsa?
R – Então, é uma bolsa que quem, era uma bolsa fornecida pelo Comitê de Mulheres Soviéticas, quem intermediou quem conseguiu a bolsa foi uma médica, chama Albertina Duarte, que faz um trabalho com adolescentes no Hospital das Clínicas, e ela foi pra um congresso de medicina em Moscou e ficou sabendo que existia esse Comitê de Mulheres Soviéticas e davam bolsas pra mulheres, só pra mulheres do terceiro mundo e que o Brasil não tinha nenhum contato. Então ela fez essa ponte e todos os outros países já tinham há anos então ela falou: “Bom, então também quero”, como foi a primeira turma eles meio que convidaram pessoas que eles já meio que já conheciam, na verdade eu não conhecia, na verdade ela conhecia uma pessoa que conhecia uma pessoa lá da sede lá, então foi assim, foi uma cadeia e, como eu tava, tinha 20 anos e, enfim, tava querendo estudar e elas queriam alguém que...
P/1 – Como é que você tinha contato com elas?
R – Então, eu não tinha contato com elas, assim, a gente tinha a sede do partido, tinha uma pessoa que tava na sede do partido que conhecia.
P/1 – A sede lá da Vila Prudente?
R – É, que conhecia uma pessoa que era de uma associação que chamava COMDEPAZ, era Comitê Pela Paz, e essa pessoa conhecia essa Albertina ou essa Albertina meio que também dirigia, levava esse COMDEPZ, e daí foi assim, uma comentou com a outra e daí fizeram o convite, falaram com o meu irmão e daí o meu irmão falou: “Ah, vou falar com ela”. E daí falamos com o meu pai, com a minha mãe, primeiro falamos com a minha mãe, depois falamos com o meu pai (risos), foi uma certa tensão, mas aí eles logo apoiaram, falaram que tudo bem.
P/1 – Por que ofereceram pra você?
R – Então, porque, assim, porque era conhecido, como que era, porque como foi a primeira turma eles também, apesar de serem militantes do partido e ela, apesar de ter ido pra lá, não sabia exatamente como é que funcionava a coisa, quando eles iam pra lá, os membros do partido, quando iam pra escola do partido era
tudo muito, ah, eles meio, eram muito maquiado, digamos assim não era o dia-a-dia eles iam pra escola do partido, a escola do partido era top porque precisavam, era a vitrine. E ela também foi pra esse congresso e também era congresso pra estrangeiros, então era era tudo maquiado, enfim, então eles não sabiam como é que era o dia-a-dia mesmo, como é que era, então foi uma menina que era também filha de um dirigente do comitê do centro que era uma pessoa de muito tempo no partido, daí foi uma menina que era irmã de um militante do sindicato dos gráficos, e eu. E, assim, e aí, assim, aí eu fiz uma entrevista com essa Albertina com essa médica e ela, só pra ver porque aí ela viu que tinha que ter feito o colégio, tinha que ter saúde e, enfim, tinha lá uns, e aí ela falou: “Ah, tudo bem”, aprovou.
P/1 – Você queria ir por quê?
R – Ah, na verdade eu não queria ir, nunca nem pensei em ir, foi uma coisa que caiu de paraquedas e eu simplesmente aceitei o desafio mas não é que eu queria ir, eu falei: “Ah, to, por que não. Vamos ver como é que é”, enfim, era tudo pago a passagem era paga, os estudos eram pagos, você recebia uma bolsa pra ficar lá, então eu falei: “Vamos lá, vamos ver como é que é”.
P/1 – Aí você foi pra lá?
R – Fui pra lá.
P/1 – Quanto tempo você ficou?
R – Fiquei sete anos lá.
P/1 – Mas você não foi pra ficar sete anos?
R – Fui pra ficar seis e aí fiquei sete.
P/1 – Você já sabia que a bolsa era seis?
R – Já, já.
P/1 – Sem ter entrado na faculdade aqui, tudo, você falou: “Vou mudar a minha vida”?
R – É, vou fazer faculdade lá vou, enfim, eu não encarei como uma mudança de vida, simplesmente era um outro lugar.
P/1 – Como é que você aprendeu o idioma?
R – Aprendi lá, é, aprendi lá.
P/1 – Como foi sua chegada?
R – Então, aqui, antes de ir, eu fiz um curso de um mês de russo numa, na União Cultural, na época chamava União Brasil-URSS que era ali na Frei Caneca, e eu fiz um curso aos sábados era um curso de um mês, era quatro sábados e eu faltei dois e daí eu aprendi o alfabeto só mas cheguei lá. Então fomos as três, a gente foi daqui pra Porto Alegre de avião e depois de lá de Porto Alegre até Buenos Aires, porque não tinha voo direto pra Moscou, mas de Buenos Aires tinha, daí lá a gente, a gente foi recebida por um pessoal do jornal Que Passa, que era também de esquerda e daí a gente ficou cada uma numa casa de um dos militantes. Enfim, e a gente ficou esperando a passagem que vinha do governo, que vinha pra agência da companhia aérea e daí a gente ficou lá dez dias e a gente foi lá na agência da, e não tinha ordem de, não tinha ordem pra nossas passagens, então nós: “Ah, não chegou ainda, tá, vamos esperar mais um pouco”, aí passavam os dias e nada. E nisso a gente foi, foi o meu primeiro contato com o espanhol, então a gente não sabia falar espanhol, mas a gente entendi quase tudo e a gente ficou com as crianças, já foi aprendendo coisas, foi legal, e a gente entendia tudo que, e eles perguntavam coisas, a gente falava em português, mas eles não entendiam, eles falavam: “Não entendo”, porque a gente entendia, mas não conseguia falar (risos). E aí a gente chegou a ir no consulado russo lá em Buenos Aires, ou na embaixada, foi a primeira vez que eu ouvi falar russo, achei horrível, achei, falava: “Não é possível que isso aí, não é possível, né”, e aí depois eles, depois de dez dias então veio a ordem, a gente foi. E daí a gente foi, foram, ah, eu não sei, foram umas 24 horas de voo e depois a gente chegou lá, a chegou lá, assim, de noite, de madrugada, meia noite, assim, e sem falar nada de russo e também não tinha ninguém esperando porque eu acho que a comunicação do horário do voo, se teve algum atraso, eu não lembro exatamente. Sei que a gente chegou e não tinha ninguém pra esperar a gente e a gente não sabia falar nada de russo (risos) e aí a gente falou: “Putz, e agora.” e aí a gente viu, a gente começou a andar pelo aeroporto e viu que tinha um stand da universidade de Patrice Lumumba uma universidade, tal, a gente leu alguma coisa ali, aí a gente foi lá e perguntou com o nosso parco inglês, enfim, lá. E daí eles falaram: “Espera aí, tal” e aí a gente falou: “Ah, a gente veio”, não, a gente tinha um guia, eu lembro que a gente tinha um guia prático e a gente mostrou: “Ó, somos estudantes brasileiras”, então mostramos a frase, aí eles: “Ah, pêra aí”, tal, pegaram os nossos passaportes e a gente ficou esperando. E depois eles falaram: “Ah, vem aqui, vem, segue a gente”, tal, sem falar nada, enfiou a gente num ônibus de turismo, assim e umas avenidas enormes do aeroporto até o hotel da universidade e a gente ali, cercada de gente, sem saber falar nada e eles falando e a gente sem saber. Aí fomos pra um hotel, que era o hotel universitário, que era onde as pessoas ficava ali de trânsito até serem assim, até serem destinadas aos lugares onde elas iam estudar mesmo, e nesse lugar tinha um tradutor que falava espanhol, e daí ele explicou pra gente: “Então agora vocês vão ficar aqui alguns, vão ficar aqui nesse quarto, tal, o refeitório fica aqui do lado, vocês têm aqui um cupom pra vocês irem almoçar e vocês ficam esperando que quando eles definirem eu vou vir aqui de novo, vou falar pra vocês pra onde que vocês vão e daí”, enfim. E nesse hotel tinha outros estudantes que falavam espanhol, a gente já meio que ia conversando, no refeitório tinha, mas aí tinha gente de tudo quanto era lugar tinha árabes, da América Latina, no Vietnã, enfim era uma Torre de Babel, assim, daí a gente ia lá com o cupom, escolhia, também as comidas já eram meio diferentes, mas, enfim, a gente ia lá.
P/1 – Como que era a comida?
R – Ah, era um pouco diferentes, mas não eram exatamente, tinha carne, batata, saladas mas era assim, tinha muitas conservas com, assim, tomate, coisas, pepino em conserva, e a gente não tava muito acostumada, tal tinha eu não lembro, assim, eu lembro que a gente estranhou, mas não foi, assim, uma coisa que era repulsiva nem nada disso, era só diferente. E daí a gente ficou acho que ali dois dias e depois...
P/1 – Nesse hotel universitário?
R – É, nesse hotel universitário, é, depois, aí depois de dois dias veio esse tradutor e falou pra gente: “Ó, então amanhã tal hora, de manhã vocês estejam lá na portaria com as malas que vocês vão para aqui” e foi o ano de Chernobyl, que era na Ucrânia também e nós olhamos, falamos: “Ichi, mas aqui é na Ucrânia, ichi, mas, né”, a gente ficou também naquela coisa.
P/1 – Já tinha acontecido Chernobyl?
R – Já tinha acontecido, tinha acontecido em, acho que em março ou abril e a gente chegou em setembro e aí a gente ficou: “Ichi” mas e aí, mas aí a gente virou uma cara da outra e falou: “Bom, a gente já tá aqui, o que a gente vai fazer? Não tem como voltar, vamos lá eles tão”, enfim, a gente foi. Aí enfiaram a gente num transporte, fomos até a estação de trem, fomos de trem de Moscou a Kiev, era mais ou menos umas oito horas, foi a primeira viagem de trem lá que eram os trens todos, cabines com quatro camas. E também eram todos, muitos estudantes naquele vagão e era assim, também era uma Torre de Babel e aí a gente, eu lembro que os árabes ficavam olhando no corredor pra nós, porque eram três meninas e tal não sei se tinha mais alguém no nosso cupê, provavelmente sim. Daí chegamos lá em Kiev e foi também um, teve uma certa tensão porque eu e uma outra menina íamos pra estudar Jornalismo e a outra ia pra estudar Engenharia, então nesse momento a gente já foi separada e a outra menina era meio, assim, mais, ah, mais fraca, mais insegura e foi assim já: “Ai”, meio assim: “Ai, estamos sendo separadas”. E daí ela foi pra um outro lugar e a gente não sabia pra onde porque a gente não conseguia se comunicar com as pessoas ali, eles não podiam dizer pra gente: “Ah, ela vai ta em tal lugar, tal rua”, a gente não sabia nada, então a gente ficou um tempo sem saber dela. E a gente foi pra uma residência bem antiga e a gente tinha que ficar num quarto com, a gente tinha que ficar num quarto, mas quando a gente chegou a gente viu que tinha só um lugar nesse quarto, na verdade era pra ter dois, mas um, eram duas marroquinas e a irmã não era pra morar naquela residência, mas tinha ficado lá, enfim, porque a gente chegou meio atrasado no fim de setembro. E daí teve, assim, uma certa tensão também, no fim a gente acabou ficando separada, eu e essa outra menina que foi comigo, que ia estudar junto comigo, a gente ficou em quartos separados mas eu lembro também que esse primeiro dia eu deitei assim na cama e falei: “Ichi nossa, e agora, eu to aqui, gente, o que que é isso. Não sei, não to entendendo nada que eles tão falando, gente, o que será.”, eu falei: “Bom, vou dormir, ver o que rola”. E a gente, e a menina que tava no meu quarto, a russa, também ali com um parco inglês, a gente falou: “Bom, a gente não, como que a gente vai”, a princípio, porque eles falaram: “Ó, amanhã aula às sete da manhã”, “Mas onde que é?”, “Ah, não tem problema, você vai com a gente”, aí a gente falou: “Mas a gente não tem dinheiro pra pagar, não tem dinheiro russo pra pagar, como é que faz?”, “Ah, não tem problema” e no fim, assim, o transporte era, não tinha cobrador nos ônibus, você tinha que marcar o bilhete que você comprava previamente, mas se não passava nenhum controlador você também podia andar e não pagar e no caso a gente não pagou porque a gente não tinha mesmo não era porque... E daí a gente foi com a menina, aí ela falou: “Então, é aqui, ó” e a gente meio que chegou atrasada, a gente chegou, sei lá, quando a gente chegou no instituto, também era um prédio antigo, uns corredores enormes, não, tava todo mundo na, os corredores tavam vazios, tava todo mundo dentro das salas de aula tendo aula e a gente falou: “Ichi, e agora?” aí a gente falou: “E agora, o que a gente vai fazer? A gente não sabe falar, né”. Nossa, a gente sentou assim numa escada, já tava a ponto de chorar e nisso, a gente conversando, passou um homem ouviu a gente conversando e por sorte era um instituto de línguas estrangeiras e esse cara, ele trabalhava no setor de controle dos passaportes, assim, dos estrangeiros e ele estudava Português, ele estudava na verdade Espanhol, mas um pouco de Português também, e ele percebeu que a gente tava falando português, meio que percebeu que a gente tava meio tensa ali. E daí ele falou: “Ah”, daí ele falou com a gente em português, nossa, quando ele falou em português com a gente, a gente falou: “Não é possível, né”, foi assim, daí ele falou: “Não, vem aqui comigo” e a gente falou: “Nossa” aí levou a gente lá pro lugar onde tavam os passaportes e tal e depois pôs a gente numa aula de fonética com uma professora chamada Olga, eu lembro até hoje também, e daí começou a primeira aula. Aí ele explicou pra gente que o nosso professor mesmo, ele ia começar a trabalhar só no dia seguinte, que ele ainda tava de férias e que então a gente ia ficar aquele dia com aquela professora, mas que no dia seguinte a gente já ia ter o nosso professor, que era o nosso tutor, enfim, mas aí, como ele morava do lado do instituto, acho que eles ligaram pra ele e ele já veio, que é Alegra, e esse foi o nosso professor, tutor no primeiro ano, que é o nosso professor de Russo. Os três primeiros dias, assim, os três primeiros meses a gente só tinha aula com ele, e ele um, novinho e ele, era a segunda turma de estrangeiros que ele tava dando aula então era muito legal porque não era aquela coisa tão formal e nem tão disciplinado, que ele era novinho, então a gente podia falar besteira a gente não precisava ficar levantando, assim, ele logo falou, já foi mais descontraído, enfim. Aí a gente tinha aula de Russo com ele e de Fonética com essa professora Olga, que essa era mais formalzona, assim, tal, com ele não, ele era mais tranquilo e aí, assim, ele levou a gente pra passear pela cidade, ele levou a gente pra ir num jogo de futebol do Dínamo contra o Porto, que como o Porto era de origem portuguesa, enfim, eu também já tinha contada que eu era, os meus pais eram portugueses. A gente foi e foi engraçado também esse jogo porque os russos, os soviéticos na época ali, eles vão no jogo e ficam, ficam vendo o jogo, como se você tivesse vendo na sua casa, não ficam falando nem gritando eles ficam vendo e aí quando fazem boas jogadas ele s batem palmas, quando faz gol batem palmas (risos). E a gente e eu ficava, a outra menina que tava comigo, ela era mais quietinha, tal, mas eu não parei de falar o jogo inteiro, falava: “Vai”, não sei o que, e no fim o, e não tinha essa coisa de, bom, acho que tinha, não lembro, a gente ficou na torcida junto com o professor porque também a gente não, mas eu lembro que eu torcia pro Porto e o Porto ganhou de dois a zero, e quando ele fez gol eu gritava, e os outros me olhavam tudo feio e ele também, o professor também. E esse professor era muito legal, levou a gente, enfim, levava a gente pra passear, tal, levou a gente num museu arqueológico, um museu de, é, um museu arqueológico que tinha, nos pontos turísticos e tal, e, enfim. Daí depois de três meses a gente começou a ter aula com um de Literatura, que dava, assim, um básico, na verdade era pra gente aprender mais palavras mesmo então era um, a origem na língua russa, os principais escritores, tal, depois também História, História era basicamente naquele, eu não lembro exatamente, que também a gente, nessas aulas...
P/1 – Mas isso era o que, era um curso de formação, não era a faculdade já?
R – Não, não, era um curso, chamava faculdade preparatória, pra aprender russo, é o curso que a gente faz aqui, um curso assim, um curso que a gente faz numa escola de idiomas aqui.
P/1 – Mas não era faculdade?
R – Não era faculdade, isso era o que todos os alunos estrangeiros tinham que fazer pra, por exemplo, quem ia estudar Medicina, tinha outras matérias, tinha Química, Matemática, Física, e a gente tinha História, Geografia e Língua Russa e Fonética.
P/1 – Uma formação em humanas?
R – É, em humanas pra poder depois, pra capacitar e depois ir pra faculdade, e, assim, e nesse, também nesse ano o que a gente tinha era, assim, além de ir aprender lá primeiros passos com o russo, o grande, na mesma, paralelamente o que a gente teve foi o aprendizado da língua espanhola e uma descoberta da América Latina que a gente não sabia nada, assim. Depois do Mercosul que a coisa começou assim, culturalmente, começou a ter mais intercâmbio, mas até o Mercosul a gente não sabia nada a gente tinha um pouco, assim, de informação de Argentina, eu lembro que na minha casa tinha LP da Mercedes Sosa, que eu gostava, até lia, mas não entendia tudo, enfim, tinha alguma informação, Pablo Neruda, enfim, mas não, Peru, Bolívia, Uruguai, Colômbia, Venezuela, América Central, ichi, nem não sabia nada. E lá a gente tinha, assim, um monte de alunos desses diferentes países e era interessante porque aí a gente, aí esses dez dias que a gente ficou na Argentina já capacitou um pouco a gente entender e aí a gente foi apreendendo, então a gente aprendeu espanhol e eles aprenderam português, era.
P/1 – Você, em algum momento quando você chegou lá você falou, deu vontade de voltar?
R – Nunca, sempre eu gostei, assim, eu sempre achei Kiev foi a primeira cidade, eu, assim, eu escrevia, desde o começo, desde o primeiro dia eu escrevia cartas muito longas pra minha família descrevendo em detalhes tudo, o sistema de como pagava o ônibus, como era a residência, como era a faculdade, como era o professor, como era, eu escrevia cartas, assim, de seis páginas, escrevia durante a semana na verdade e depois eu mandava no final, tipo um diário mesmo. Depois o meu irmão digitou todas essas cartas e eles, e eu mandava pra ele, pra minha mãe, pra minha irmã, pros meus amigos, meus amigos não guardaram, mas o meu irmão guardou, então meio que era um diário eu acabava fazendo.
P/1 – Eles respondiam pra você?
R – Respondiam, mas demorava um mês cada carta, claro.
P/1 – Você tem essas cartas guardadas?
R – Tenho.
P/1 – Ah, se você puder trazer algumas quando você trouxer a foto.
R – Beleza, ta legal.
P/1 – Seria ótimo.
R – Tá, trago um envelopinho.
P/1 – Como é que era o clima?
R – Então, o clima, então, o primeiro ano foi o pior ano, o pior inverno, então a gente chegou em setembro, já ainda tava ok, daí em outubro mais ou menos eles levaram a gente pra comprar roupa, assim, de inverno, que também já tava incluído no pacote da bolsa então a gente comprou um sobretudo, botas forradas, meias de lã meia calça, gorro, luvas, assim, um kit básico, tinha uma verba, todo o estudante tinha uma verba x pra poder se vestir e agüentar o frio. E aí foi o inverno mais rigoroso que eu peguei, foi o primeiro, em Kiev, mas eles também diziam que em 50 anos não tinha tido também um inverno tão rigoroso, a gente pegou menos 35 graus, nessa, assim, dois dias mais ou menos, dois ou três dias, nesses dias que a temperatura era tão baixa o professor, em vez da gente ir no instituto o professor vinha na residência e aí tinha aula numa das, no quarto de alguém. Mas depois, depois, assim, quando tava menos 20 a gente ia então era muita neve, eu caía muito, no primeiro ano eu caía muito porque eu ia andando, ia conversando, ia olhando as coisas e zupt, caía muito nunca foi nenhuma queda ruim, mas eles depois comentavam que no inverno sempre tinha muito, muita gente quebrava braço, perna, porque tinha que prestar atenção mas depois do segundo ano já nunca mais caí, mas no primeiro caía bastante.
P/1 – E que amigos, quem foram teus primeiros amigos lá?
R – Ah, então, a gente tinha, na residência que a gente tinha eram oito latinos então tinha dois venezuelanos, um argentino, um peruano, acho que dois peruanos, um menino e uma menina, tinha um panamenho, um espanhol e nós, as brasileiras, então esses eram, era um grupo mais depois.
P/1 – Você tinha alguma aula da ideologia do sistema?
R – Não, a gente na verdade, assim, a aula de História nesse primeiro ano era basicamente a história da revolução russa mas eu não lembro, que a gente não entendia muito, era difícil naquele primeiro ano era basicamente isso, era como é que foi, o que que se deu, quais foram as modificações que acarretaram enfim, era isso, as personalidades, enfim, era isso no primeiro ano. Mas durante o curso depois Jornalismo, depois eu fui estudar na, depois que eu terminei esse primeiro ano a gente, eu fui pra Portugal, foi quando eu fui conhecer lá a aldeia dos meus pais nas minhas férias depois quando eu volte então eles...
P/1 – Você foi junto com os seus pais?
R – Não, fui sozinha, daí a gente...
P/1 – Você recebia dinheiro?
R – Não, eu tinha levado algum dinheiro e, assim, a passagem era barata, de trem era barata, então eu, com o dinheiro que eu tinha levado eu consegui, daí eu fiquei na casa de parentes lá, não precisei pagar hotel.
P/1 – Mas e pra viver lá?
R – Ah, sim, a gente recebia uma bolsa mensal, uma quantidade x pra, assim, a residência a gente não pagava, a gente pagava na verdade acho que, se a gente recebia 80 a gente pagava três de aluguel, luz e gás e o resto era pra gente comer basicamente, mas dava pra gente comer, dava pra gente comprar um livro ou outro também, porque eram bem baratos enfim. E a gente fazia festa sempre, escola é assim, eu lembro que também no primeiro ano eu cheguei a escrever dizendo: “Ah, a gente pensa que, ai, que é a Rússia, que é a União Soviética, que é muito super diferente e tudo a mesma coisa, os jovens falam das mesmas coisas, estudam na última hora antes de fazer a prova, é igual, só que é outra língua e o clima é diferente, mas de resto é praticamente”, enfim, pra gente. Eu, assim, eu lembro que a gente, eu e essa minha amiga, a gente estudava, assim, a gente ia pra aula de manhã, depois comia, depois fazia a lição, copiava as palavras, a tinha cadernos assim, copiava pra aprender a escrever e tal então a gente não, e depois a gente se juntava pra falar besteira. Tinha uns meninos venezuelanos que tocavam, tocavam um instrumento típico da Venezuela que chama cuatro, então a gente fazia festas, dançava tocava música latina, dançava, então a gente sempre fazia festa, era bem saudável, enfim, era ok. E também depois quando eu terminei o primeiro ano, então a gente foi mandado pra Rostov-na-Donu, Rostov-sobre-o-don, Rostov-na-Donu é em russo, Rostov-sobre-o-don, que é uma cidade do Cáucaso, perto do Mar Negro, e aí a gente não queria, a gente não queria ir pra uma cidade menor, a gente queria ir pra Moscou ou pra São Petersburgo, pra Leningrado na época. E aí a gente chegou até a ir pra Moscou porque o presidente do Partido Comunista na época, ele tava lá em Moscou e essa menina que era filha de um, ah, de um dirigente do comitê central lá em, aqui em São Paulo ela conhecia. Enfim, e foi, a gente tentou falar com ele pra ver se ele intermediava que a gente não fosse pra essa cidade que era, que a gente não conhecia, que era menor e tal, mas ele falou que não podia interferir, que pra onde tinham mandado era pra gente ir e a gente ia acabar indo, elas ainda resistiram. Ainda foi oferecido pra gente ficar em Kiev, mas aí a gente não estudaria Jornalismo, a gente estudaria Russo porque era o instituto de línguas estrangeiras, daí a gente.
P/1 – Não estudaria o quê?
R – Não estudaria Jornalismo, estudaria Russo.
P/1 – Vocês iam fazer faculdade de Jornalismo?
R – É, porque era assim, era.
P/1 – Você escolhia, como que era?
R – É, a gente escolhia, a gente escolhia o que a gente queria fazer e dependendo da carreira o Ministério de Educação já fazia as, a distribuição dos postos, enfim, e daí as meninas ainda quiseram ficar, eu falei: “Ai, gente, a gente não vai conseguir mesmo, então eu vou”, aí eu fui sozinha, fui a primeira lá pra Rostov-sobre-o-don, peguei o trem, eles davam uma passagem, enfim, fui pra lá e tinha o endereço. Fui, me apresentei na universidade, falei: “Olha, eu sou estudante assim, vim de Kiev, enfim, to me apresentando”, e eles mandaram, indicaram como chegar na residência e falara, e aí eu fui também lá, mas eu cheguei no fim da tarde e o responsável pela acomodação dos estudantes falou: “Ó, hoje já tá, já são cinco da tarde, assim, então não vai dar pra fazer agora, mas você vai nessa outra residência aqui do lado, você veio de onde?”, eu falei: “Eu vim de Kiev”, “Ah, então, tem um estudante de Kiev em tal quarto, vai lá, você deve conhecer, tal”, acho que falou o nome, tal. E eu fui lá, ele falou assim: “Ó, pede pra eles te deixaram dormir lá hoje e amanhã você vem aqui que aí eu vou te dar o teu quarto”, aí eu fui, encontrei realmente um que tinha estudado comigo lá em Kiev, a gente, eu passei a noite lá ele me levou na casa, pro quarto de uma menina, que ele era da Síria, ela também acho que era da Líbano. Eu lembro que foi a primeira vez que eu vi os árabes comendo com a mão, eu achei meio esquisito, mas ela já era estudante mais antiga, daí ela falou assim: “Quer garfo e faca?”, eu falei: “Eu quero”, aí ela me deu, enfim, mas eu achei também, não fiquei, eu não sabia fazer, não era o meu natural, mas também não fiquei, achei interessante, achei, sempre achei tudo que era diferente, sempre achei interessante, diferente simplesmente e não assim, não ficava julgando, era diferente, ok, legal, enfim, da sua cultura. E no outro dia então ele me deu o meu lugar o meu quarto e eu fui morar com uma soviética e uma mongola, e a gente se dava bem também, eu nunca tive problemas, porque tinha muita gente que tinha problemas, assim, de convivência e que dava briga e que daí depois tinha que trocar de quarto, mas eu sempre fui bem tranquila. Logo também, eu lembro que eu tava sozinha na primeira semana e tinha um brasileiro lá na residência onde eu fui morar, tinha um brasileiro que tinha estudado em outra cidade, enquanto a gente tava em Kiev ele tava em outra cidade, chamava Artiomovski e ele ia estudar História, então eu já, já tinha um brasileiro lá, já conversei com ele, tal. E lembro também que veio uma chilena, bateu no meu quarto, também era uma coisa que é, ela bateu no meu quarto e eu falei: “Ah, entra” e ela falou assim, ela abriu assim a porta e falou assim: “Ah, você é latina?” e eu na hora falei, queria dizer não mas aí eu falei: “Ah, é, sou sim” porque a gente não tinha essa coisa, como até hoje não tem de ser, a gente é brasileira, não é latino e os outros, todos os outros da América Espanhola, eles têm essa identidade de ser latinos e inclusive tinha a associação dos latinos, mas a gente em primeiro momento era brasileiro e não latino. Então eu falei, primeiro eu fiquei assim, não entendi, daí eu falei: “Ah, sim, sou, sou brasileira”, tal, e aí logo a gente foi aí já vai visitando o quarto de um, de outro, aí tinha, lá tinha muita gente do México, da Nicarágua, do Chile, do Peru, Bolívia, o que mais que tinha? República Dominicana, Costa Rica, acho que da América Latina tinha Panamá, acho que era isso, daí tinha uma outra residência.
P/1 – Na faculdade, quando você tava na faculdade?
R – É, então, era assim, não, a faculdade era no centro e a residência era num bairro a 20 minutos, então essa, tinha dois, duas residências onde tinham todos os estudantes estrangeiros, numa residência estavam concentrados os latinos e as alemãs orientais e tinha uns chineses pós-graduandos, tinha cubanos, enfim, latinos. E na residência ao lado tinha, e sempre soviéticos também e na residência ao lado eram os africanos também concentrados, todos os africanos ficavam na outra com os soviéticos também, e tinha alguns latinos também, era mais, mas a nossa residência era onde tinha a maior concentração de latinos.
P/1 – Como é que era viver com um regime diferente, que diferenças você sentia de sistema?
R – Ah, então, não tinha diferença nenhuma, isso, assim, depois de...
P/1 – Entre viver no Brasil e lá com o regime comunista?
R – Nenhuma diferença, não, então, não tinha nenhuma diferença, inclusive na faculdade a gente tinha, lógico, na faculdade de jornalismo, enfim, eu lembro que no primeiro ano logo eles falaram: “Ah, o que que é a imprensa burguesa e o que é a imprensa socialista”. Então, assim, aí tinha aquela coisa de dizer que a imprensa burguesa é um jornalismo que não é, não é livre porque você tem que escrever o que o dono do jornal quer, ou de quem tem dinheiro, enfim, e em contraposição a imprensa socialista é aquela que vai escrever para as coisas do povo, enfim, e não vai ser manipulada, mas também não é verdade, nem uma coisa nem outra, enfim mas não existia assim. A gente tinha matérias, a gente tinha, por exemplo, uma matéria nos primeiros anos também, no primeiro ou no segundo, que chamava Comunismo Científico, então era matéria, assim, era meio que uma filosofia, era meio que uma história política e aí você tinha um pouco. Mas era no primeiro ano e a gente ainda tinha dificuldade de acompanhar as aulas, então eu acho que essa matéria, se fosse uma questão de realmente direcionar como uma formação ela deveria ser posta no terceiro ano pelo menos, porque aí a gente aproveitaria mais, que era no primeiro ano, era, que as aulas eram junto com os soviéticos. Então a gente tinha as aulas teóricas com, junto, e o professor ficava ali falando devagar nada, então a gente ouvia, sabia mais ou menos o que que era o tema, anotava alguma coisa, mas não pegava tudo e a gente tinha seminários que era só de estrangeiros, e aí era um pouco mais digerido ali um pouco mais. As provas a gente fazia normal, as provas eram todas orais, não tinha prova escrita, então a gente tinha aula um semestre inteiro e no mês de julho e no mês de janeiro a gente tinha o mês de provas, então a gente tinha uma prova, daqui a quatro dias a gente tinha outra. Mas as provas eram assim, no primeiro dia de aula os professores davam as perguntas da prova, primeiro dia de aula do semestre eram as cem perguntas com todo o conteúdo do semestre, então a gente já sabia, se a gente fosse às aulas, se estudasse sempre não era nenhum problema fazer a prova, mesmo que fosse oral, se a gente não fosse, se a gente não estudasse aí poderia ser um problema. Mas de qualquer maneira a gente podia também estudar as cem perguntas antes da prova e a prova consistia em você sortear um papel em que estavam duas perguntas e você tinha que responder as perguntas oralmente, então, assim, se você estudasse tudo não tinha problema, se você estudasse só 60 das cem, se caísse daquelas que você não estudou aí você não. Mas, assim, também não tinha reprovação imediata, se você não tava bem preparado eles falavam pra você ir se preparar e voltar outro dia, mas aí você teria, não ia ser o horário que, o professor não ia estar lá disponível naquele dia, você teria que combinar com o professor pelo horário dele e tal. E para os estrangeiros isso acarretava em que, se você não, alguma matéria você não tivesse tido a nota, feito o exame, você não poderia receber o visto pra sair do país nas férias, então era uma punição, para os soviéticos eles ficavam sem receber o stipendiya até eliminar aquela matéria. O sistema de notas era dois, três, quatro e cinco, dois era insuficiente, três era satisfatório, quatro era bom e cinco era excelente, de acordo com os soviéticos eles não podia ter nem dois, lógico que não, três também não podia ter, eles podiam ter, eles passavam, era considerado mas eles ficavam sem receber o stipendiya se tivessem um três em qualquer semestre, eles ficavam o semestre inteiro seguinte sem receber nada de dinheiro. E pros estrangeiros não tinha essa punição porque supostamente a gente não tinha como se manter, então, assim, não podiam cortar, mas se a gente tivesse três a gente recebia x, se a gente tivesse um três, por exemplo, se a gente não tivesse nenhum três, tivesse um quatro a gente recebia um pouco a mais, se a gente tivesse tudo cinco a gente recebia mais, então era um estímulo e era.
P/1 – E você tirava quanto?
R – Ah, eu tirava quatro e cinco, às vezes tirava três, dependendo da matéria, mas era boa aluna também.
P/1 – Qual foi a maior dificuldade que você teve no aprendizado da língua?
R – Então, na língua, então, nos primeiros meses a gente achava, assim, era bem difícil, mas eu, assim, estudava todos os dias, eu via que tinha progressão, era, tinha progresso, mas eu achava no começo que, nossa, eu cheguei a pensar que: “Ai, não vou conseguir aprender essa língua”, é muito difícil e tal, mas a gente continuava e tal. E, enfim, depois a coisa foi fazendo sentido e, assim, quando terminei o primeiro ano tinha uma, conseguia fazer tudo na cidade conseguia comprar passagem, conseguia ir no supermercado, conseguia, mas no primeiro ano da faculdade ainda era muito difícil, assim, não era tudo o que eu pensava que eu conseguia expressar. Mas a partir do segundo ano já começou a fazer sentido, já comecei sentir inclusive as nuances da língua e, enfim, foi tranquilo.
P/1 – E no cotidiano da cidade, você não sentia a diferença de regime?
R – Não, não tinha nada.
P/1 – Assim, fazendo o supermercado.
R – Nunca, nada, assim, tinha do regime, na verdade não era do regime político, mas, enfim, era uma conseqüência, era, do modo de viver, era assim, porque não tinha, a distribuição de alimentos, por exemplo, nos supermercados não era, era estatal então não era, não tinha sempre tudo porque não era cada supermercado que ia atrás dos fornecedores. Era assim, era uma coisa estatal, ou seja, o estado era dono de tudo, então você tinha uma fábrica de, sei lá, de papel higiênico, e a fábrica ia distribuir pra toda uma região toda um, então às vezes tinha déficit, um ou outro, dependendo de, enfim, do clima, se o caminhão não conseguia chegar, se tinha questão de transporte, enfim. Então a gente ia no supermercado e não, a gente não sabia exatamente o que a gente, não podia planificar, a gente não podia planejar assim: “Ah, agora eu vou cozinhar tal coisa pro almoço de amanhã”, não, porque você tinha que ir lá pra ver o que é que tinha, então num dia tinha peixe, no outro dia tinha frango, no outro dia tinha outras carnes, enfim, então era. Agora, assim, cenoura, batata, maçã, pêra, tinha, isso tinha o ano inteiro, beterraba, isso tinha o ano inteiro inclusive era uns, umas lojas estatais que eram bem baratos, isso sempre tinha, aí tinha arroz, tinha muitos grãos, a gente ia também se adaptando, muitas conservas. E tinha sempre um mercado que era tipo uma feira livre em que os preços eram, não eram tabelados, então aí sempre tinha tudo, então essa coisa de que existia déficit, que, as coisas que mostravam assim, que a minha mãe depois escrevia, enfiam, que as lojas sem nada com as vitrines totalmente vazias, não era verdade porque sempre tinha, eu nunca tive de nada. E, assim, nunca teve, nunca falei com nenhum policial, nunca teve nada, era uma vida de estudante normal, assim, com muito mais facilidades na verdade.
P/1 – Vinham perguntas daqui curiosas a respeito do regime da sua família?
R – Ah, eu descrevia muito, então eles não, quase nem perguntavam porque eu descrevia quase tudo, assim, sobre essa questão de, não, eles nunca perguntaram, assim, sobre se tinha policiais que ficavam te seguindo e tal, não tinha, não tinha mesmo, e eles não me perguntavam
P/1 – Você ficou seis anos lá?
R – Nessa cidade fiquei seis anos.
P/1 – Mas você continuou morando lá?
R – Fiquei lá, fiquei, aí fiz a universidade os cinco anos e depois ainda quando terminei a faculdade ainda fiquei mais um ano tentando fazer, entrar numa pós-graduação, mas era, foi na época que acabou a União Soviética e aí a universidade ia abrir uns cursos diferentes, mas ainda não tinha, não tava legalizados pelo ministério, enfim, e daí eu fiquei lá. Porque na verdade, assim, eles davam a passagem de volta com duração de um ano e eu fiquei um ano a mais pra ficar mais tempo, tentei fazer essa pós-graduação, enfim, mas aí não rolou e eu vim embora.
P/1 – Você namorou lá?
R – Namorei, namorei com vários latinoamericanos e o relacionamento que eu tive maior, de mais tempo, que foram mais ou menos seis anos, que foi também depois que eu terminei, a gente ainda manteve, foi com um venezuelano que era estudante de Medicina, que ficou lá mais uns três anos depois que eu, aí depois veio pra cá, eu fui pra Venezuela duas vezes, mas depois também a distância. Aí ele, aqui foi difícil, tinha, a gente ainda averiguou pra fazer a revalidação do diploma, mas era bem difícil, então resolveu ir pra lá pra revalidar lá, e no fim essa distância, acabou a gente se separando.
P/1 – Você lá não tinha vontade de voltar, fazer carreira no Brasil, o que você imaginava pra sua vida depois de formada?
R – Então, eu não tinha, assim, eu tinha, eu achava que eu ia voltar e que eu ia, enfim, eu fiz isso revalidei o diploma, procurei um pouco na área de jornalismo, mas, assim, através de anúncios e tal, e aí não rolou, eu acabei indo fazer outra coisa, acabei indo dar aula logo, eu voltei em 93, no final, no meio de 94 eu já comecei a dar aula de Espanhol.
P/1 – Aonde?
R – Numa escola, CCAA, depois eu, em 95 eu comecei a trabalhar no escritório da companhia aérea russa aqui em São Paulo a Aeroflot, eu fiquei trabalhando lá sete anos e daí, assim, tava ocupado o tempo, aí acabei não tentando mais trabalhar com jornalismo e aí continuei, trabalhei sete anos lá, continuei dando aula, daí depois comecei a dar aula de Russo também.
P/1 – Começou a dar aula de russo onde?
R – Eu comecei nessa União Cultural Brasil-URRS, que era na Frei Caneca e agora é na Itácio Pessoa ali, que agora acabou de mudar.
P/1 – Você continua lá até hoje?
R – É, eu dou poucas aulas lá, mas continuo, sempre freqüento, colaboro, enfim. E daí quando o escritório da Aeroflot fechou eu resolvi só dar aula, aí trabalhei numa escola, trabalhei também numa outra escola na Vila Mariana como gerente de relacionamento dos alunos, mas não gostei, depois de já ter trabalhado muito tempo, assim, como professora, de ter um horário flexível e de ter, pra mim é um trabalho mais criativo, eu que monto as aulas, eu que resolvo as dificuldades dos alunos, pra mim é mais estimulante eu, aquela coisa de ter um horário, das oito às seis, eu fiquei dez meses e falei: “Não, eu não quero”, um trabalho muito burocrático, muito assim, aí continuei.
P/1 – Deixa eu voltar um pouco, como é que foi a sua volta, chegar aqui?
R – Então, foi meio assim, porque eu, nesses sete anos eu vim uma vez de férias, eu fiquei quatro anos, daí eu vim uma vez de férias.
P/1 – Mas antes você tinha ido pra Portugal?
R – É, eu tinha ido pra Portugal, assim, nas férias eu viajava.
P/1 – Conheceu os parentes do seu pai e da sua mãe?
R – É, exato, da minha mãe, exato então fiquei um mês e meio mais ou menos, uma tia eu já conhecia, foi onde eu fiquei lá em Lisboa e depois eu viajei pra Alemanha Oriental porque, assim, na universidade onde eu tava eles tinham um convênio com uma universidade de Potsdam e aí os estudantes de Letras lá, que estudavam Russo, eles vinham fazer o terceiro ano lá na universidade onde eu estudava. Então tinha mais ou menos cem alemães orientais que vinham todos os anos, então a gente ficava amigo, enfim, eu fui algumas vezes, fui duas vezes pra Alemanha, depois fui, daí eu vim, é, acho que foi, aí numas férias eu fui pro Mar Negro na colônia de férias da universidade, que era subsidiada, era bem barato. Depois fui pra Alemanha, depois eu vim pro Brasil, depois do terceiro ano, nas férias, depois eu fui pra Suécia a gente acabava depois viajei por ali pra outras, pra Eslovênia, Armênia, fui pra Letônia, Riga. A gente ia pra Moscou, assim, também quase todas as férias, ia, ficava na residência com os outros estrangeiros, com os outros brasileiros, que lá tinha uma concentração maior, enfim, a gente passeava, era bem, barato a passagem de avião e de trem era, custava muito barato
P/1 – Mas essa volta, você voltou pra onde, pra casa dos seus pais, como é que foi voltar?
R – Eu voltei pra casa dos meus pais, é, voltei pra casa dos meus pais, achei, assim, fiquei um pouco desambientada, mas, assim, logo revi os amigos e daí fui fazer a revalidação, aí a minha irmã tinha casado, tinha uma filha, eu fui conhecer também, não, quando eu fui embora o meu irmão tinha a primeira filha, ela tinha dois anos, depois quando eu vim de férias já tinha a segunda filha, que é a Ana Leopoldina. E depois quando eu voltei já de vez é que a minha irmã já tinha casado, tinha uma filha que ia fazer dois anos, então, assim, foi retomei com a família, com os amigos, com os seus amigos do colégio enfim.
P/1 – Você teve algum choque?
R – Ah, eu achei assim, eu tive, assim, uma certa insegurança no começo, enfim, mas, assim, foi pouco tempo, não foi nada também muito grave, muito chocante, e fui procurar emprego e fui, aí comecei a dar as aulas, nunca tinha dado aula, mas também foi, achei, foi, encarei assim, na verdade. E depois surgiu esse, essa oportunidade do escritório da companhia aérea onde era...
P/1 – Como é que foi trabalhar lá esse período?
R – Então, era legal porque era um escritório pequeno, só tinha um voo por semana, chegou a ter dois.
P/1 – O que você fazia?
R – Eu era secretária do diretor lá, do representante, basicamente porque eu falava russo e eles falavam português muito mal, então era, pra mim era bom, no começo foi mais estimulante porque, enfim, aprendi a fazer coisas, mas depois também era muito burocrático. O que não era burocrático era isso, era essa convivência com falar russo todos os dias, então eu tinha prática, era bom, e daí eu também já dava aula eu trabalhava durante o dia e à noite eu dava aula, e era assim, era menos formal do que as empresas aqui no Brasil, assim, por exemplo, quando era aniversário de alguém a gente fechava a loja três da tarde, tirava os telefones do gancho, fazia uma mesa, bebia vodka, bebia, comia, enfim. Então era, tinha essas coisas era no dia internacional da mulher eles davam flor pra gente, porque lá é feriado, então era marcado, então no dia sete de novembro é o aniversário da revolução também tinha comemoração, então sempre tinha comemoração, eles gostam. Os russos, assim, uma coisa que me perguntavam muito quando eu vim pra cá era se os russos eram muito tristes, se eles eram carrancudos, se eles eram fechados, e era totalmente o contrário, eles são totalmente abertos, são alegres, são passionais. Eles não têm, assim, eles são sérios no que eles fazem, quando eles trabalham eles trabalham, mas também eles têm muita divisão de, você tem que trabalhar, mas você tem que se divertir também, essa diversão, ela é também sagrada meio você tem que, não pode ficar só trabalhando, não existe isso.
P/1 – Quando você voltou você continuou no partido?
R – Não, aí já não tinha mais o partido, o PCB tinha se desfeito e tinha se refundado como PPS, daí a gente, o meu irmão já tinha saído, eu também já não, inclusive...
P/1 – Mas você tinha essa coisa, essa ideologia de esquerda, voltou com ela?
R – Ah, eu não tinha, então, não, porque na verdade lá a gente não tinha, assim, eu acho que o grande, não existia uma doutrinação, não sei se era já um sinal de que as coisas já não estavam tão organizadas lá na, ideologicamente, mas a gente não teve. Mas a gente era exposta por exemplo, vivi sete anos sem inflação, se custava três centavos o ônibus desde que eu cheguei até que eu fui embora, ou seja, não tinha aumento de preço, era tabelado, as coisas vinham, tudo o que era produzido nas fábricas vinha com o preço estampado, um livro, você pegava na última página tava lá, ele custa um rublo e cinqüenta centavos, tudo, um lápis, qualquer coisa, tudo vinha com o preço estampado da fábrica. E foram sete anos convivendo com isso, então, assim, a gente acabava tendo forçadamente uma convivência com o que era a economia socialista, acho que era essa que era a grande lição, enfim, o que a gente trazia era isso de, e, assim, de ter um, de ter uma convivência mais humana com as pessoas, entre as pessoas, de ajudar, de, assim, de ter um jeitinho, que nem a gente fala o jeitinho brasileiro, mas um jeitinho, assim, existe uma regra, mas se você ser sincero, se for uma coisa assim, uma necessidade humana, sempre você tinha, não sei, eles cediam. Então existia sempre isso, existia essa coisa de convivência, de famílias e de amigos e de ser muito hospitaleiro quando eles te convidam pra fazer uma visita
P/1 – Quando você chegou aqui você tinha vontade de voltar?
R – Eu tinha vontade de voltar porque o meu namorado tava lá, enfim, então a gente se correspondia e tal, mas aí, quando eu comecei a trabalhar na Aeroflot, no primeiro, assim, eu voltei, aí eu comecei a trabalhar em 95 e as minhas primeiras férias foram em 96, que aí foi quando ele foi pra Venezuela também nas férias. Então em vez de ir pra lá, pra Rússia, eu fui pra Venezuela, daí já conheci a família, enfim, já o vi também e daí depois voltei, aí a gente ainda ia ficar mais um ano e meio separados, depois quando ele terminou ele veio pra cá, eu também fui pra Venezuela de novo, enfim. Mas aí achei que não tinha espaço, não tinha o que fazer, o que eu fazer profissionalmente, assim, como trabalhar, aqui eu já tinha um trabalho e aí a gente meio que ficou de: “Ah, faz a sua revalidação e depois vamos ver o que rola” e no fim acabou esse. Então eu tinha vontade, mas eu tinha vontade de voltar pra visitar, depois teve uma menina, uma estudante peruana que morou comigo lá, que também chegou depois de mim e ficou acho que mais dois anos, aí ela veio pra cá pro Brasil, ficou morando seis meses aqui pra tentar a vida aqui porque lá no Peru tava difícil de encontrar trabalho e tal. Então foi também um momento de reviver porque ela era minha amiga, enfim, tal, mas aí depois, como eu tava trabalhando na Aeroflot, eu, em 2000 eu fui de férias porque aí eles davam a passagem eu fui, fiquei uma semana, então foi, dei uma, matei um pouco as saudades, fui com um amigo meu, fiquei só em Moscou encontrei uns amigos, um amigo na verdade, do tempo que eu estudava lá e depois não voltei mais, mas, assim, é um lugar bom.
P/1 – E aí separou assim do namorado venezuelano?
R – É, separei, separei porque aí...
P/1 – Você ficou mal?
R – Fiquei, fiquei mal, mas, enfim, não dava.
P/1 – Aí você arrumou outro?
R – Arranjei outro namorado, enfim, tive vários namorados, mas não sou casada, não tenho filhos.
P/1 – Não chegou a casar?
R – Não, não.
P/1 – Nem tem filhos?
R – Não.
P/1 – E o seu cotidiano hoje, como é que é?
R – Ah, meu cotidiano é assim, eu gosto muito de estudar, eu gosto muito de ler, eu gosto muito de dar aulas, eu gosto muito de, assim, eu fui aprendendo, assim, logo no começo, logo que eu comecei a dar aula eu já gostei, sempre achei que era ruim porque era mal remunerado, mas, assim, de gostar, assim, de ser uma atividade que me dá prazer. Sempre, desde o começo foi, pra mim, assim, dar aula de Russo, bom, de Espanhol também, mas de Russo um pouco mais porque eu sempre tento fazer com que pareça fácil, eu tento achar um jeito de explicar ou de fazer que a coisa seja fácil e é assim, é sempre um desafio porque às vezes você explica de um jeito que parece fácil e a pessoa entende, o aluno entende, e pra outro aluno isso não faz o menor sentido, então você tem que arranjar um outro jeito de falar a mesma coisa, de outro jeito. Eu acho que isso é muito estimulante, é, isso me faz sempre ler, descobrir autores em russo, em espanhol, pra poder usar também como, então é assim, você nunca tem, é um arsenal de material que você pode consultar que não acaba, que você sempre, e é sempre estimulante porque você sempre vai ta lendo a poesia ou literatura ou filmes, é muito estimulante nesse sentido, assim, preparar as aulas e o exercício mesmo, eu gosto muito. Eu gosto muito de ir ao cinema, eu gosto de, e eu sempre, assim, como a minha mãe cantava bem, eu também gosto de cantar, então eu fui depois, depois, já depois que eu voltei eu fui fazer um curso de canto ali na, em Perdizes, que era, eu vi no jornal um anúncio, que era um curso baseado no repertório do Noel Rosa. Então lá eu fiquei uns quatro anos mais ou menos, participando de um curso e a gente fazia uns, cada semestre a gente escolhia um compositor, estudava as músicas dele, depois a gente fazia um show no Café PiuPiu e aí a gente se apresentava, era legal e tal. Depois eu, aí eu parei de fazer esse curso, mas depois fui estudar violão perto da minha casa, como esse meu professor aí que é mais roqueiro de formação e tal, e aí eu estudei violão popular, agora eu to estudando um pouco de violão clássico, to gostando até mais do violão clássico, e aí faço aula de canto também com ele, mas aí não me apresentei mais, mas é uma coisa que eu gosto de fazer. Eu gosto de ler, eu gosto de viajar, enfim, eu gosto de encontrar os amigos eu, assim, eu sou uma pessoa muito, acho que eu sou, eu tenho muita curiosidade, eu acho que a melhor coisa da vida é aprender coisas e eu continuo estudando Inglês, gosto, estudei um pouco de Francês, quero depois retomar. Estudo, esse, eu tenho um namorado há uns três anos que é professor de História e que também gosta muito de ler filosofia então a gente sempre faz grupos de estudo, faz mais ou menos um ano, a gente tá fazendo um grupo, a gente tem um grupo de estudo em Poá, que é aonde, de onde ele é, que a gente ta estudando Hegel e agora a gente vai começar um grupo de estudos sábado que vem, é o segundo, a segunda tentativa de grupo de estudo, que a gente vai ler “O Capital”, do Marx. Enfim, eu gosto sempre de estudar coisas que me façam entender a organização, enfim econômica, social, enfim, e assim, eu sempre, assim,m eu sou uma pessoa que você fala pra mim: “Ah, vamos fazer tal coisa”, “Vamos lá”, eu, assim, minha primeira opção é sempre, minha primeira, impulso, é sempre: “Vamos lá, vamos experimentar”, é isso, acho que é isso, viver eu acho que é isso.
P/1 – Leo, olhando a sua trajetória, tudo o que a gente falou, várias coisas devem ter passado, tem alguma coisa que você queira deixar registrado que a gente não tocou aqui na entrevista?
R – Ah, acho que não, acho que é isso.
P/1 – Alguma história, algum fato?
R – Ah, acho que não, acho que, assim, aí teve a, teve, assim, algumas viagens, esse período que eu trabalhei na Aeroflot era mais, a gente tinha facilidade de pedir também passagens de outras companhias aéreas com outras rotas era um interline que a gente chamava por ser, por trabalhar numa companhia aérea. Então, assim, eu tive possibilidade de ir pra outros lugares então eu fui pra Costa Rica, Costa Rica eu fui pra um, pra visitar um amigo que estudou comigo lá e não terminou a universidade e, enfim, depois eu fui duas vezes pra Venezuela, depois eu fui duas vezes pra Cuba num intervalo de dez anos. Lá a gente tinha, tinha muitos estudantes cubanos e era interessante porque eles eram, assim, de alguma maneira separados, existiam os latinos e os cubanos, porque eles mais numerosos, mas existia, assim, acho que existia um certo, assim, por parte dos outros estudantes, eu não sei se era uma questão que nos países, naqueles países talvez a propaganda anti-Cuba era mais forte. Aqui no Brasil não era tanto, enfim, eu não tive ou talvez na minha casa, assim, por causa do meu irmão eu já tinha uma certa simpatia, então eu me dava super bem, tinha interesse inclusive. Daí eu visitei, então aí eu fui, a primeira vez eu fui em 1999, depois em 2009, da primeira vez que eu fui eu achei, eu fiquei muito num roteiro mais turístico, eu fiquei três dias em Havana e três dias numa outra ilha, que é um resort turístico. Mas eu depois conheci um, através de uma professora que era cubana, que trabalhava comigo, me deu o telefone de uma, um contato lá em Havana e daí a gente fez uns roteiros mais deles mesmo não tão turísticos e eu achei muito legal, assim, a cidade é, tá muito deteriorada, enfim, tem as suas, mas as pessoas são muito solidárias, muito abertas, a música é maravilhosa, eles dançam super bem, enfim mas teve essa coisa de ficar três dias separados num lugar que não tinha muita coisa. Da segunda vez que eu fui eu fui passar o natal e o ano novo e aí eu fiquei 14 dias e aí eu fiquei na casa, eu aluguei um quarto numa casa de uma família, de uma mulher cubana, e aí sim, ela me contou o que foi, qual foi o impacto da revolução na
família dela que ela já tem uns 50 anos mais ou menos. Então ela disse que pra ela mudou da água pro vinho, assim, o irmão dela teve possibilidade de estudar, ele acho que estudou na União Soviética, estudou Engenharia, ela também veio pra Havana, estudou também, assim, eles tiveram uma base cultural e educacional que eles não iam ter antes, eles tiveram uma melhora material também. Enfim, então ela, mas, assim, ela teve, ela falou o impacto dela quando ela tinha uns 20 anos, 20, 30 e agora o que eu vi, o que eu senti foi que também tinha mudado muito, assim, que agora, depois do impacto da queda da União Soviética e com a interrupção da ajuda que eles prestavam à economia cubana, então a coisa ficou muito difícil, mas, assim, que existia umas brechas, assim, que existia gente que já fazia coisas por baixo do pano, enfim, e que existia gente que tinha mais poder aquisitivo. Existia muito mais trânsito Miami-Cuba, então eles já tinham um trânsito de informações da diferença, e a juventude realmente, assim, pelo menos as pessoas com quem eu conversei, eles estavam muito fartos já dessa, desse, dessas limitações. Então eu, quando eu saí de lá eu saí, assim, com a ideia de que realmente a figura do Fidel Castro representa um marco e que no dia que ele morrer a coisa pode virar, então, mas isso foi em 2009, desde então eles já mudaram muita coisa, talvez inclusive percebendo todas essas, mas existia muito. Por exemplo, essa mulher onde eu fiquei, ela tinha um filho de uns 26 anos que também já criticava muito a questão da fisiologia do poder mesmo, de que só os mais velhos, só os que ajudaram a revolução, só o que, enfim, não saiam nunca e tal, e no fim ele acabou saindo, ele foi pro Equador trabalhar e hoje em dia ele tá morando em Miami. Então, assim, foram, é um país que tem muita limitação material, mas as pessoas não têm, não, você, é assim, você sabe que você olha na rua e você pede alguma coisa, você explica, e as pessoas sempre vão ajudar, por exemplo, teve uma passagem assim, eu, no dia 24 eu saí pra passear porque aí eu fiz amizade com um rapaz e a gente ficava passeando por ali pela, ia nos lugares, nos pontos turísticos que eu queria ver e tal e daí a gente ia passar 24 de dezembro na casa de uma sobrinha dessa pessoa onde eu tava, que tava me hospedando. Mas aí eu cheguei e ela já tinha ido pra lá, ela entendeu que eu ia pra lá direto, ela já tinha me explicado onde era, tal, mas eu queria me trocar, queria tomar banho e tal, e aí eu cheguei, fiquei esperando apertei a campainha, não, aí eu fiquei esperando ali, aí passavam as pessoas assim no prédio, falavam: “Ah, oi, você tá aí”, eu falei: “É, então, a Idália não tá, então eu to esperando”, ah, tal, aí passavam de novo aí eu fiquei lá mais ou menos uma hora. Eles passaram de novo, eles falaram: “Ah, vamos lá, sobe lá comigo”, aí eu subi sabe, me serviram cerveja, daí já foram tentar ligar pro número, porque eu tava tentando ligar, mas o orelhão não funcionava, então daí ela já, a moça já falou assim: “Ah, não, mas se a gente não encontrar com ela você fica aqui com a gente, não tem problema e tal”, assim, uma coisa que não, sem me conhecer nem nada, daí no fim conseguimos ligar, daí ela veio e eu tomei banho, tal e acabei indo pra lá. Então, assim, é um povo muito, muito, muito solidário, muito aberto, muito, assim, sem frescura, sabe, na União Soviética também sentia isso, por exemplo, o meu professor, eu também, de vez em quando eu sentia uma s diferenças porque ele, logo que a gente começou a conversar, ele, eles falavam, assim, quanto eles ganhavam, coisa que aqui no Brasil, assim, meio que a gente se: “Ai, você não pode saber quanto eu ganho”, isso é uma informação meio que você não franqueia assim, que é meio assim, lá não, era tranquilo assim, não tinha essas. Tem uns valores diferentes e as pessoas são mais solidárias, mais, elas querem, elas querem desfrutar da vida, elas não querem, não ficam, assim, com essa coisa de, ah, é assim, os russos, eles querem muito o progresso, eles querem comodidade material e hoje em dia eles, depois da queda eles têm isso também. Mas eu dou aula por Skype pra um aluno que mora em São Petersburgo, ele tem mais ou menos a minha idade e ele é uma pessoa assim, também sem frescura e ele acha que, ele critica muitas coisas da Rússia hoje em dia, essa coisa de que você perdeu muitas coisas boas que você tinha, que hoje em dia ele fala que o sistema educacional tá deteriorando, tá se deteriorando. Quando ele começou a me contar eu falei: “Nossa, mas que”, é o mesmo processo que a gente teve aqui de sucatear a escola pública pra poder ter escolas particulares e ganhar e fazer disso um negócio terceirizar a coisa assim, as coisas do estado então ele falou assim: “É, a gente teve melhoras, agora eu posso viajar com a minha família, agora eu posso comprar coisas, agora eu posso ter uma casa mais confortável, mas a gente perdeu muita coisa”, enfim. As pessoas têm uma formação bem pior hoje em dia, elas são mais fúteis, elas lêem coisas enfim, então é, teve um ganho, mas teve muita perda também, muita, perderam muita coisa então, assim, a minha experiência de União Soviética foi essa, de que, hoje em dia eu vivo quando eu voltei de Cuba também em 2009, é isso assim, Cuba tem um controle sobre o cidadão porque tem que impor esse regime, tem que impor, não pergunta se você quer ou não e controla muito reprimindo, porque se deixar pode ser que vire. E aqui no Brasil a gente tem um capitalismo que não é um capitalismo muito desenvolvido, mas pelo menos a gente tem esse, essa brecha você não precisa se, você não precisa acompanhar a ideologia capitalista, você tem essa brecha, você pode ler outras coisas, você pode ver outros filmes, você tem que compulsoriamente se adequar a um monte de coisas que você não pode você tem pagar impostos, você tem que ver esses impostos não serem revertidos em serviço. E você não tem muito o que fazer, enfim, pode, mas mas você também tem brechas pra você fazer outras coisas, você ler o que você quer, você vai onde você quer, você não vai, você compra se você quer, você não precisa fazer nada do que o consumismo te obriga, na verdade não te obriga você faz se você quiser. Então aqui a gente tem um, a gente tem mais brecha, a gente vive melhor, então o que me deu, acho que essa experiência me deu isso, essa visão de que existe um outro jeito e não precisa ser desse jeito e nem daquele jeito, então você pode pegar as coisas boas de cada um, enfim.
P/1 – Leo, olhando a sua trajetória, se você tivesse que mudar alguma coisa na sua trajetória de vida você faria algo diferente?
R – Ah, talvez eu não tivesse estudado Jornalismo, talvez tivesse estudado Russo mesmo porque depois também trabalhando e tendo, assim, conhecidos que estudaram Jornalismo, que trabalham no jornalismo, trabalhando numa escola dentro do jornal O Estado de São Paulo durante 12 anos eu tive contato e vejo que realmente eu acho que eu seria infeliz numa redação de um órgão de imprensa grande. Porque realmente os meus alunos vinham pras aulas e se queixavam de que: “Ah, eu apurei tal coisa e não me deixaram escrever” ou: “Me mandaram fazer tal coisa e eu não quero”, enfim, então eu acho que eu teria, por causa da minha experiência soviética eu acho que eu teria mais enfrentamentos, mais. Então talvez eu tivesse, não tivesse estudado Jornalismo, tivesse, se eu pudesse trocar se pudesse voltar talvez tivesse estudado outra coisa, tivesse estudado Russo mesmo e tivesse me formado melhor com mais profundidade nessa área, mas de resto acho que não. Talvez esse meu relacionamento também, porque aí depois de passar, talvez não tivesse insistido tanto, talvez eu não tivesse sofrido tanto durante tanto tempo, enfim, acho que teria buscado superar mais, enfim, mas de resto não, acho que ok acho que faço as coisas que eu gosto, enfim.
P/1 – Qual são seus sonhos hoje?
R – Ah, então, eu quero aprender mais Inglês, talvez passar um tempo em um país em que eu possa praticar, ou na Inglaterra ou nos Estados Unidos, e poder depois voltar pro Brasil e começar a dar aula de Inglês também, aumentar uma possibilidade de trabalho diversificar. E é isso, eu quero ler, eu quero encontrar com os meus amigos, quero comprar uma casa, quero ir morar com esse meu namorado atual, e enfim, é isso, quero estudar, quero ler, quero, quero discutir ideias, quero aprender coisas, quero passar pros meus alunos e pras pessoas que eu conheço, enfim, é isso.
P/1 – O que você achou da experiência de contar a sua história de vida pro Museu da Pessoa?
R – Ah, ok, achei tranquilo, achei que foi um, foi uma retomada assim, como se fosse, ah, uma olhada pra trás e um, e verbalizar essa trajetória, enfim, achei interessante, é ok. Parece que te dá uma linha do tempo mesmo como você disse, você vai e vai olhando falando, mas você vai imaginando e dá uma sequência um histórico da sua vida, é interessante. Ah, outra coisa que eu gosto muito de fazer no tempo livre, é uma coisa que aprendi também lá na, a minha mãe cozinhava muito bem, mas eu quando morava com ela não cozinhava, mas tando lá na Rússia era mais, era mais barato cozinhar e era também mais, a gente podia cozinhar do jeito que a gente queria, porque no primeiro ano logo que eu morava, as coisas que a gente tinha nos restaurantes eram preparadas de outra maneira, a gente logo começou a cozinhar. E eu, também foi uma coisa que eu descobri um prazer que eu descobri, que hoje eu também levei pra minha vida, eu adoro cozinhar, gosto de ver, sempre que eu tenho tempo, pra mim é um hobby e é uma coisa também que eu gosto. E sempre quero, é um arsenal, assim, de exploração um campo de exploração que também não termina nunca porque você pode ir descobrindo receitas novas, novas maneiras, eu acho que é gostoso, é uma coisa que é também coletiva uma coisa que você faz pra, sempre pra comer com outras pessoas pra dividir, você tem prazer de fazer, mas também você divide, depois o prazer do resultado que as pessoas comem e é gostoso. Eu adoro ir cozinhar na casa dos meus amigos e ter essa convivência da preparação, de fazer, de beber, de ir conversando, depois comer, eu acho muito gostoso, então é isso.
P/1 – Obrigada.
R – Por nada.Recolher