Projeto Conte Sua História
Depoimento do chef Laurent Suaudeau
Entrevistado por Carol Margiotte
São Paulo, 26 de abril de 2019
PSCH_HV770 _ rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisado/Editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Obrigada, Laurent! Boa tarde! É um prazer recebê-lo a...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento do chef Laurent Suaudeau
Entrevistado por Carol Margiotte
São Paulo, 26 de abril de 2019
PSCH_HV770
_ rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisado/Editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Obrigada, Laurent! Boa tarde! É um prazer recebê-lo aqui hoje!
R – Obrigado!
P/1 – E, para começar, seu nome completo.
R – Laurent Suaudeau.
P/1 – O local e a data do seu nascimento.
R – Catorze de setembro de 1957.
P/1 – Onde?
R – Na cidade de Cholet, que é na região sul bretanha, país do rio Loire, na França.
P/1 - E o senhor sabe por que seus pais lhe deram esse nome, Laurent?
R – A princípio, o que minha mãe fala é que o Saint Laurent, o Santo Laurent, era muito ligado a tudo que era relacionado à alimentação. O santo dos cozinheiros. Incrível! Eu tinha que ser cozinheiro. E ainda mais tive que nascer ao meio-dia, na hora de comer. (risos) Então, estava tudo predestinado. (risos) É isso. Mas foi por isso. Um nome, também, na moda, nas décadas de 50, 60. Então, acho que juntou o útil ao agradável, vamos dizer assim.
P/1 – E tinha algum momento em que sua mãe lhe contava essa história?
R – Me contou, mas não faz tanto tempo, eu diria assim. Quinze, vinte anos atrás. Até então, eu não tinha a menor ideia por que me chamava Laurent. Na França, quando você tem o nome de batismo, você tem mais dois, que é o nome do seu padrinho e da madrinha, que é, obviamente, feminino, transformado em masculino. Então, no caso é Roland Laurent. Roland, em França, que vem da minha madrinha Françoise e, no lugar de colocar Françoise, colocaram France. Por que eu não sei, mas enfim... O meu nome Suaudeau, extremamente complexo, que é cheio de vogais, diz a história, porque essas coisas se vai procurar - na verdade, fui eu que procurei quando tinha 14 anos de idade - que minha mãe sempre dizia que meu pai devia ter origem italiana, porque ele dava mais importância à mãe dele do que à própria esposa. Com todo respeito a meus amigos italianos, (risos) mas eles têm esse lado da
. E isso me preocupou tanto, na minha cabeça, que eu fui procurar na Prefeitura da minha cidade. E não é que eu descobri que, de fato, meu bisavô paterno era filho de uma mãe solteira? Na época - estamos falando em 1880 e pouco - como acontecia demais, as mulheres engravidavam e o pai se mandava. E ela registrou o filho como Augusto Belonni Suaudeau. O nome Suaudeau era dela. Quer dizer: o nome de família que eu tenho é dela. E, a princípio, na França, você tem sempre do pai. E aí eu me pergunto por que ela registrou o bendito bisavô (risos) com o nome de Belonni. Então, havia certamente um pai, um homem italiano extremamente elegante, (risos) que deve ter passado por lá e deixou a vovó grávida e se mandou. Mas, diz a história, que ela teria engravidado de um homem que era um rico proprietário, de origem italiana, porque havia uma comunidade, vamos dizer, italiana, na minha região, que era uma região onde se trabalhava muito tecido, essas coisas todas e um desses era muito rico. E ela trabalhava no castelo e obviamente, bom, não vou entrar em detalhes, não é? E quando se vê as imagens do meu pai e dos irmãos dele, são extremamente caras de italianos. Que eu não tenho. Porque da parte da minha mãe, o avô materno direto é imigrante escocês e irlandês. Então, eu sou francês de mistura para valer.
P/1 – Mas toda essa sua descoberta foi nessa época dos 14 anos?
R – É. Porque meu avô materno eu conhecia bem. Quer dizer: eu sabia que ele era irlandês e eu tinha muito orgulho disso, porque isso me ajudou bastante, inclusive a falar Inglês mais fluentemente, mais rápido, em casa, por ter realmente esse relacionamento com ele. Eu tinha muito orgulho disso, de ser um francês de origem saxão, vamos dizer assim, anglo-saxão. Ele é nascido em Glasgow - a gente tem toda a documentação - de pais irlandeses. A mãe era da Irlanda do Sul e o pai da Irlanda do Norte. Então, você imagina a confusão! Meu avô não gostava dos ingleses, obviamente, como bom irlandês de raiz. Então, eu convivi porque ele não gostava, porque ele imigrou, o que aconteceu? São histórias muito fortes. Como a gente tem aqui no Brasil, não é? Que é um país de imigrantes. Quantos não vieram de lá para cá à procura de uma vida melhor, sem saber para onde ir? Que foi o caso dele, só que ele não foi muito longe. Atravessou o Mar da Mancha para chegar na França com 12 anos de idade. E isso, realmente, repercutiu em muitas histórias que eu diria para você que eu me sinto muito um cidadão do mundo. Ok, eu nasci na França, tenho muito orgulho disso, é um país que, querendo ou não, me proporcionou muita coisa, a gente sabe da questão cultural, educacional... Quer dizer: mesmo se hoje em dia já não é o que já foi, mas sempre existiu em mim alguma coisa que dizia assim: “Mas eu não sou um francês”. Como alguns dizem que querem ser puro francês, que eu não sei o que quer dizer isso. A gente percebe (risos) por aí que tem uns aí que querem acreditar nisso. Então, sempre ficou essa distorção: nasci francês, mas eu tenho avô que não era francês, que veio com uma mão na frente e outra atrás, porque, realmente, não tinha nada. E, às vezes, eu falava assim: “Mas por que ele não foi mais longe?” Porque todo destino do bom escocês e irlandês seria, a princípio, os Estados Unidos da América. E aí, quando eu descobri que da parte do pai também havia origem da Itália, eu falei: “Bom, então, agora, acabou, não é?” Mas eu tenho orgulho disso, muito, e sempre criei meus filhos, que nasceram aqui no Brasil, nessa visão extremamente aberta e respeitadora de todos e de tudo. Acho que isso é que é fundamental.
P/1 – E ainda sobre o seu nascimento, seus pais contava para o senhor a história de como foi o dia do seu nascimento?
R – Eu sei, como eu acabei de te falar, que eu nasci no hospital público, ao meio-dia. Então, minha mãe, no fundo, no fundo, sempre esperava ter um filho que gostasse de comer bem. E dito e feito, não é? (risos) Não só gosto de comer bem, como gosto de cozinhar. (risos)
P/1 – Mas como você sabe disso? Como isso era vivido naquele momento, na rotina?
R – Na rotina porque, óbvio, quando você é criança, pergunta: “Mãe, como é que eu nasci?” E tem retrato disso. O pior é isso. Quer dizer: eu tenho retrato pequeno, com três anos de idade, brincando com panela. Então, é impressionante. Isso aí eu estou lá... Como a gente fala?... de ‘babadeira’, não é? Com o cabelo todo loirinho, encaracolado, e com panela na mão. Eu não lembro disso, mas tem foto retratando isso. Eu devo ter três anos de idade. Três anos e meio, mais ou menos. E meus tios diziam. Então, o primeiro sobrinho vai ser cozinheiro. E ser cozinheiro, na época, na França, não era tão bem-visto como é hoje, também. Não era uma profissão tão valorizada, vamos dizer assim. No Brasil, quando eu cheguei aqui, em 1979, é engraçado isso: hoje, de todos da família, talvez o mais empreendedor é o cozinheiro. É incrível! Então, o que comprova o olhar da sociedade de quase 60 anos atrás não se justifica hoje; isso é que é legal. Quer dizer: o mundo, querendo ou não, está evoluindo de uma forma visionária: que a visão de um homem, de 60 anos atrás, não tem mais cabimento hoje. Então, o que será daqui a 60, não é? Eu quero acreditar que daqui a 60 - isso não quer dizer que vá acontecer - mas eu quero acreditar que, realmente, o ser humano vai ter uma presença cada vez mais forte na sociedade, mesmo se, infelizmente, o que a gente vive hoje está, pelo menos, demonstrando alguma coisa ao encontro disso. Mas eu acho que nós vamos superar isso, sem dúvida.
P/1 – Eu queria que você falasse o nome dos seus pais.
R – Meu pai era André Suaudeau, e minha mãe Colette McGherling (?). Chique, não é? (risos)
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco sobre eles, como eles são...
R – Meu pai faleceu já faz quase 20 anos. Ele nasceu numa família operária, de quatro irmãos e uma irmã. Meu avô paterno era chaveiro. Quer dizer: extremamente humilde. Nasceu no período da guerra. E meu pai se tornou operário metalúrgico ajustador, fresador e torneiro, mas eu tenho muito orgulho disso. Um homem que teve todos os diplomas dessa área, o que não era tão frequente, vamos dizer, na França pós-guerra e que foi considerado, antes dele... Ele teve um AVC muito jovem, com 46 anos de idade, e então, antes disso acontecer, ele era considerado um dos melhores operários metalúrgicos da França, do ponto de vista qualitativo, como trabalhador. E minha mãe nasceu também de um pai imigrante, uma mãe francesa, aquela francesa bem chatinha, aquela quadradinha, mas gente boa, como a gente fala aqui, que cozinhava muito, inclusive, e teve um percurso também para trabalhar em fábrica. Notoriamente, a minha mãe era artista, porque ela cantava muito bem. A minha mãe tinha uma voz fenomenal. Tanto que em um determinado período da vida dela, ela foi sondada para se tornar profissionalmente não só cantora, como ela gostava de teatro. E a minha avó, que era extremamente quadradinha, não deixou acontecer. Isso era normal na época. Mas a vida deles foi uma vida de trabalho, de esforço, de luta, os dois engajados politicamente, no sentido de sempre pertencer aos movimentos operários, greve, sindicato. Então, a minha vida de criança foi, vamos dizer, dentro desse caldeirão de ouvir que ia fazer greve, porque não podia trabalhar mais três turnos de oito horas, que minha mãe trabalhava como soldadora, soldava com produto químico, na cara sem nenhuma proteção, ia para a fábrica às quatro horas da manhã, me deixava numa senhora, para me recuperar quando voltava da fábrica. Então, minha vida foi no meio desse pessoal até os 14, 15 anos de idade, quando, de fato, eu fui na estrada sozinho. Mas para mim foi uma experiência muito enriquecedora. Hoje eu posso lhe dizer, por que você aprende a dizer que a vida é uma luta. De fato. E que você viver no meio desse mundo, principalmente na época, que era um mundo operário de valor. Eles tinham uns valores muito fortes em relação ao trabalho. Sem entrar no mérito, na questão política, na questão da identidade política que eles defendiam, obviamente. Eles eram gente de esquerda. E daí? De se respeitar. Você aprende muitas coisas no meio desse pessoal, que são valores do respeito, da amizade, ajudar o colega quando ele está em dificuldade. Isso eu vi: eles se juntarem para ir pintar a casa do cara ou fazer o jardim dele, que não tinha dinheiro para botar. Então, era uma vida, realmente, de se ajudar entre eles, para terem um melhor conforto. Isso eu vivi. Eu acho que isso me ensinou muito, sobre essa relação do indivíduo e do coletivo. Até onde eu posso ser visto como melhor, mas em determinado momento eu tenho que me juntar para fazer isso acontecer com colega meu que talvez não tenha, por razão e outra, a minha capacidade, mas ele merece tanto quanto, porque é um cara que se esforça tanto quanto eu no trabalho. Então, a gente tem que acreditar nas diferenças entre um e outro, porque essa é a riqueza desse mundo, ninguém nasce igual, mas o comportamento de cada um, em determinado momento, tem que saber se colocar no seu devido lugar e eu acho que eu aprendi muito com eles. Hoje em dia, se eu faço um Baker (?), Deus dessa vida, vamos dizer, talvez tenha sido a melhor escola de aprendizagem que eu tive, talvez melhor ainda que aquele que me ensinou a trabalhar. Essa questão de onde e como eu devo me posicionar. Sabendo que tem um início, um meio e um fim. E muitos, hoje em dia, infelizmente, já esqueceram disso.
P/1 – E o senhor sabe onde seus pais se conheceram?
R – Num baile. Só pode, não é? Meu pai moreno, minha mãe loira. (risos) Ele tipo italiano, tinha uma moto, blusão preto. Eu acho que foi em 1953, se não me engano. Minha mãe era muito bonita, artista, fazia ginástica extremamente, sempre sorridente, sempre alegre, e foi lá e aí, depois, a moto deve ter ajudado na época. (risos) “Vamos de moto, não é? Vamos passear”. (risos) Foi muito legal, mas eu não tinha o costume de perguntar muito, na verdade. Sempre fui extremamente cuidadoso com a vida pessoal de cada um. Eu sabia pelas fotografias, minha mãe contando. Meu pai nunca abriu. Ele era um cara extremamente fechado em relação a isso.
P/1 – E além do senhor, eles tiveram outros filhos?
R – Sim. Eu tenho um irmão mais jovem, quatro anos menos do que eu, que é um cara do bem, como a gente fala. Uma pessoa completamente diferente de mim, mas um cara apaixonado pelo que faz. Ele é professor numa escola de agricultura. Mas na área de paisagismo. Aquela vidinha tranquila, tem horário fixo, fim de semana, aquela coisa. E eu sempre fui ao contrário, sempre atirado para o mundo, saí de casa jovem, enfim. O que comprova que cada um é cada um, não é?
P/1 – E qual o nome dele?
R - Frank. Aí foi um piscar de olho no lado anglo-saxão.
P/1 – E o senhor comentou que sua mãe cantava.
R – Sim.
P/1 – Como era essa relação com a música em casa?
R – Sempre foi presente. Obviamente, a música que eu ouvia não era a que minha mãe estava ouvindo, não é? Meu pai nunca foi muito dessa parte artística, música. O negócio dele era mais o trabalho, a condição operária, a história. Um homem brilhante. Conheci toda a evolução da classe operária na França. É impressionante. Um homem brilhante no falar. Eu acho que essa capacidade - eu vou me fazer um autoelogio, eu sei que tenho essa facilidade de expressão, até em línguas diferenciadas; meu Português não é dos piores, sem dúvida - deve ter sido dele. Ele tinha uma facilidade de se expressar e com muito posicionamento. Ele sabia o que estava falando. Então, meu pai nunca foi esse lado artista da música, essas coisas. Ao contrário da minha mãe. Então, eu puxei exatamente o lado dela e a música estava presente. Eu sempre fui um apaixonado por
. Eu nasci em 1957, os
nunca foram a minha praia. Eu era mais
. Muito mais
e companhia. Então, um
, já, que se posicionava, vamos dizer, de uma forma muito questionada sobre a sociedade na qual a gente estava vivendo. Não era água com açúcar. Os
, no início da vida dele, para mim, era água com açúcar. Os
, no começo, já mexiam com o negócio e, quando a gente vai, obviamente, com tudo que vem junto, não é? Para mim, uma das figuras musicais que mais me toca... E as pessoas, muitas vezes, falam: “O Laurent gosta disso?” Porque parece que eu sou um cara extremamente disciplinado. Claro, no meu trabalho. Mas, na música, na farra, eu sempre gostei muito de ir às boates, quando era mais jovem, mas a figura emblemática para mim, musical, que me toca muito, que é pouco conhecida, na verdade, uma imagem
, que é do
. Ele canta, está completamente chutado, e ele fala: “Johnny, goin’ home”. Na guerra do Vietnã, ele fala: “Volta para casa”. E a expressão desse cara com a guitarra, para mim muito mais do que o Jimmy Hendrix, naquele momento. Ele está completamente fora de si. Mas para mim é uma coisa que até hoje eu pego, quando preciso recarregar as minhas baterias. Eu sou capaz de me colocar sozinho e choro, olhando esse cara. Para mim, é uma coisa venal. Ali é muito forte. Então, eu sempre fui um cara bem camisa xadrez, nos anos 70. Eu era muito louco, não é? E andava de Rangers, de vestir com marinheiro, boné de marinheiro, Karl Marx na bota esquerda, Che Guevara... Hoje eu sou o primeiro a, diria, ser crítico em relação a esses nomes, do que foi feito, mas a gente tem que transpor isso naquele momento. Eu nunca aprecio uma pessoa que vai dizer: “Mas esse cara é...”. “Mas espera aí, cara, você estava lá naquele momento? Quem é você para me julgar?” Eu me lembro do François Mitterrand, nas entrevistas, nos últimos tempos da vida dele, eu achei genial, porque tem um jornalista que o questionou sobre sua participação na Segunda Guerra Mundial como governo colaboracionista dos nazistas, antes dele se tornar resistente. Esse jornalista volta várias vezes em cima desse assunto, até o momento em que ele fecha a cara e fala assim: “Quem é você para me questionar? Sou, no momento, um jovem que tem 22, 23 anos, que é Secretário de Estado e, naquele momento, você não tem escolha: ou você é de um lado, ou você é do outro”. Então, quando você é jovem, como no meu caso, com 16, 17 anos e vem de uma família operária, você vai numa escola técnica. E eu poderia ter ido para uma aprendizagem ao lado de um grande
que me acolheu. Após uma e outra, acabou não dando, ele aconselhou meu pai a fazer escola técnica e, dentro dessa escola técnica, obviamente, você não tem só a cozinha. Você continua os estudos: Ciências Políticas, Matemática, enfim. E eu, com 17 anos, já tinha lido Karl Marx e Engels. Então, você é um cara que, na hora de fazer greve, é o líder. Eu lidava com 350 caras dentro do colégio e ninguém entrava e ninguém saía. Só para ter mais subsídio, para ser melhor aquecido nos dormitórios e comer melhor nos refeitórios. Aí você vai ser criticado por causa disso? Não. Eu tenho muito orgulho disso. Isso não quer dizer, eu não vou dizer que eu fui bobo, não. Eu acho que não. Acho que, naquele momento, eu não me arrependo nenhum momento de ter feito aquilo. Agora, faria de novo? Não sei. Porque nós estamos falando de 40 anos atrás. Muito mais, na verdade. Então, acho que cada momento é importante na vida do ser humano e você tem que respeitar isso. Você não pode hoje estar sentada ali e criticar algo que você nunca viveu. Com isso eu não posso concordar. Mas eu tenho muito orgulho disso. Eu carrego isso do meu pai, justamente, esse envolvimento com a música. Quem me olha hoje está pensando que eu fico ouvindo só música clássica ou jazz ou blues, que eu gosto. Mas não, eu gostava de um negócio que tinha que fazer barulho.
P/1 – E pensando na sua mãe, tem alguma música que lhe faz lembrar dela?
R – Tem uma que ela cantou há pouco tempo nesse filme que nós fizemos com o outro
,
e que é sobre o Rio de Janeiro. Esqueci. Em Português, agora, não me lembro, não, mas ela cantava muito essa música. Quando ela veio aqui ao Brasil, cantou para alguns amigos presentes, mas ela tem uma voz muito linda. Ela cantava muitas coisas. E ela cantava em casa, às vezes, quando arrumava as coisas e eu ficava ouvindo assim e dizendo: “Que voz, não é? Mãe, por que você não foi cantora? A vovó, realmente, não entendeu nada”. (risos)
P/1 – Ela respondia?
R – Ela falava: “É”. Por isso que eu sempre deixei meus filhos: “Façam o que vocês quiserem. Está tudo bem você definir o que você quer na sua vida”.
P/1 – Pode cantar para a gente um pedacinho?
R – Eu não canto.
P/1 – Ahhhhh, só para a gente saber como é.
R – Não. Eu teria que me lembrar agora e eu não tenho na memória agora; não me vem. Mas ela cantava... Hoje em dia ela fala que não canta mais, porque a voz dela já não está bem. Mas até os 70 anos ela cantava, sim. E as pessoas ficavam... Engraçado, porque minha filha não canta, mas é artista de teatro. Então, é impressionante. Quer dizer: você tem alguma coisa ali e, quando olho para minha filha, Janaína, é uma mistura do avô e do meu bisavô materno, que ele era um cara que tocava trompete, clarinete e sapateava, porque ele era um artista nato. O negócio dele era, (risos) enquanto ele bebia um pouco, cantava também, não é? Mas isso eu não puxei. Esse negócio do canto não é comigo, não.
P/1 – Eu queria que o senhor falasse da sua casa da infância. Onde você passou a sua infância?
R – A infância... Então... Inicialmente, ou até, vamos dizer, 12, 13 anos de idade, a gente morava numa vila, como aqui no Brasil. Quer dizer: numa ruazinha, onde você tinha todas as casas iguaizinhas, uma da outra, e tinha um jardim pequeno, muito pequeno, e as vizinhas, que eram mulheres que depois eu falei que, certamente, estavam sozinhas. Porque eram viúvas, mulheres solteiras que o amante, o namorado, perdeu na guerra e nunca quiseram se casar, e lembro que eram senhoras que tinham o quê? Sessenta e poucos anos, então corresponderia que elas perderam o companheiro durante a guerra, porque eu estava com 20. Para estar com 60 em 1960, seria mais ou menos isso. Então, a gente morava numa vila que era só cercada de gente velha, vamos dizer, olhar de pessoas velhas. Quer dizer: hoje com 62 eu não me sinto velho, mas um garotinho vai olhar para mim e ver um velho, não é? Então, eu estava vendo. E pessoas muito... Que eu te diria que me marcavam muito, porque elas não estavam se vestindo de cor. Geralmente vestido cinza, preto. Então, eu acho que tinha alguma relação por ter perdido alguém. E a minha infância foi nesse quarteirão, vamos dizer assim, num lugar bem tranquilo e tinha um espaço um pouco maior. Além do jardim, tinhas três garagens e eu jogava... Tinha um muro grande e, com minha bola, jogava bola sozinho, chutando a bola contra o muro, não é? Porque eu gosto de futebol. Então foi assim, até meu irmão nascer, quer dizer, com quatro anos de diferença, mas uma vida bem tranquila: aquecimento no carvão, tomava banho uma vez por semana dentro de uma bacia de alumínio, com água aquecida em cima do fogão, na adega, onde se guardava o carvão, que gerava tudo, jogava água por cima de você. Quer dizer: foi assim até oito anos de idade. Oito, dez anos. O que corresponde à melhoria da classe operária na França. A partir de 1967, 1968, eles começam a melhorar. Década de 70 a gente muda de casa e vamos morar num pavilhão, que a gente chama de pavilhão. Quer dizer: de novo as casas todas iguais, mas com conforto, com aquecimento central, com sal de banho, essas coisas todas. Meu pai comprando seu primeiro carro, enfim. Dois cavalos,
. Tudo isso corresponde a uma melhoria, de fato, da classe operária na França. Mas até então, é uma vida extremamente apertada, não é? E a alimentação em casa é o “basicão”: legumes do jardim, porque meu pai tinha um jardim que a usina, que a fábrica... Eles tinham direito a um pedaço de jardim, que podia cultivar e então todos os legumes que chegavam em casa vinham desse jardim. Além do jardim de casa, que era muito pequenininho. E a carne, em casa, se limitava a bife, músculo, enfim, tudo que era de mais barato. Lagosta, caviar,
, esquece. Nunca. E a escola pública. Então, tem coisas que me marcaram. Por exemplo: na escola maternal, apesar de que não era muito longe de casa, eu ia a pé. Sozinho, no caminho. Não tinha ninguém. E tem coisa que me marca. Em 1962, se não me engano, quando os americanos vão embora da França, que o De Gaulle os manda embora, nós somos todos chamados para ficar na calçada vendo todos os comboios norte-americanos passando e a gente agitando a bandeira francesa. Isso me marcou, porque os caminhões, os tanques, tudo passando na sua frente, assim, os americanos passando. E, à noite, o meu pai, que não gostava, obviamente, de americanos... Não sei por que ele tinha essa bronca, volta essa questão política, essas coisas todas, e a gente vai na quitanda que ficava perto da escola, inclusive, e nesse dia foi o dia inteiro caminhão, caminhão, caminhão, não parava, e aí eu falei para o meu pai… Sim, mas aí eu vi na esquina um jipe norte-americano - uma ambulância e um jipe - e tinha dois guardas, dois soldados americanos gigantes. Eu era pequenininho, para mim eles eram gigantes – “Eu vou pedir um chiclete”. Aí ele falou: “Então vai”. Aí eu atravessei a rua, na frente dos caminhões, e vou lá do lado do soldado e falei: “__________ [34:13]”, que é a palavra em Inglês, e ele me chuta, assim. Fuuuuuu. Isso foi muito forte para mim. Eu não apreciei. Ele me deixou um pouco traumatizado em relação à questão do cidadão norte-americano. Não tem nada a ver, mas em 1962 eu tenho cinco anos. Você imagina. Então, isso me marcou. Aí eu voltei e o meu pai falou: “Cadê o chiclete?” “Ele não me deu”. “Bem-feito” (risos). Então, foi uma infância assim, acompanhando esses momentos da vida francesa, o dia a dia, não é? E foi sempre do lado do meu pai, o ouvindo. Eu o admirava, de fato. Quando ele falava. Eu me lembro que a gente foi na casa de um senhor que tinha passado dois anos em Buchenwald, um campo de concentração nazista, e que ele tira a camisa e mostra a cicatriz que tinha nas costas. Então, é uma infância que é crivada em tudo que é a França, de bom, e desses momentos que, realmente, foram momentos negros, vamos dizer, da história francesa. E ouvindo. Então, você é um garoto que fica ouvindo essas histórias. É impressionante. Quer dizer: “Uau!” E eu fui a geração feliz, que não conheceu guerra. Porque todos, antes, passaram por isso. E é isso. E aí eu descubro que meu avô materno foi preso também, por ser um sujeito britânico. Quando eu comecei a entender isso eu tinha 12, 14 anos de idade. Quer dizer: a minha vida de infância sempre foi essa mistura da vida em casa, a escola como aluno - não era dos piores - mas sempre ouvindo essas histórias. Sempre curioso em saber quem sou eu, o que foi que aconteceu. Sempre foi muito marcante isso aqui na minha vida. E quando eu soube que meu avô tinha sido preso, para mim foi chocante. Não imaginava que meu avô poderia ter sido preso, levado em um campo que ficava do lado de Paris, onde os nazistas colocavam todos que eram, obviamente, judeus e todos de que eles não gostavam. E meu avô, por ser um sujeito britânico - ele não era francês - então foi preso. Porque a Inglaterra é inimiga da França, a França dominada pelos alemães, então ele está nesse campo, esperando para ser mandado para outro lugar. E, aparentemente, ele foi preso porque foi denunciado. Ele trabalhava numa fábrica de sapato e um francês o denunciou na autoridade alemã, dizendo: “Tem um estrangeiro lá, que é britânico”. E foram pegá-lo em casa. Então, minha mãe contando quando eles entraram, chutaram pé na bunda nele, entrou em um caminhão, com uma malinha pequena e foi embora sem falar nada para ninguém. E a sorte dele é que o dono da empresa em que ele trabalhava era muito amigo do cônsul norte- americano e, na verdade, falsificaram a documentação dele, dizendo que ele era da Irlanda do Sul. E a Irlanda do Sul não estava em guerra contra a Alemanha nazista. A Irlanda do Norte, sim; a Escócia também; a Inglaterra, óbvio. E aí ele é liberado. Depois de um ano e meio, ele volta para casa, mas com uma bronca fenomenal, porque ele sabia que tinha sido denunciado por francês. E que minha avó francesa, mãe de dois filhos - duas filhas, na verdade - não recebia o
de alimentação a que ela teria direito pelo marido ser preso, mas teria que ser francês, mas como ele era estrangeiro, negavam o
de alimentação. E o pior é que quem dava o
de alimentação era casado com a irmã dela. Então, eu entendi, depois, por que meu avô foi um cara que começou a beber, não queria ver esse cara, obviamente, na vida dele, nem pintado, você imagina! E o mesmo eu diria em relação ao meu próprio país, me deixou muito... Como se nega alimentação a uma mulher só porque ela casou com um estrangeiro? Isso foi uma realidade em 1942, 1943. E hoje, eu tenho os documentos dele quando ele foi preso, com a suástica nazista, todos esses papéis são guardados. E minha avó me deu de presente, em 1988, uma malinha que ela guardava na adega dela, com todas as cartas que ele mandava para ela, porque ele engraxava as botas dos nazistas e cuidava dos cavalos e fazia os trabalhos, para ganhar um trocado que ele mandava para ela, onde ele fala: “Estou te mandando esse dinheiro para comprar o leite das crianças”. Então, são coisas, realmente, que são fortes, mas são sensacionais. Acho que isso lhe dá muita força para tudo que você virá a fazer na sua vida. Eu acho que, talvez, por ter convivido com isso, me ajudou muito a olhar e dizer: “Vale a pena estender a mão ao próximo, vem para cá”. Porque esse tipo de postura, infelizmente, não leva a nada, não é? Então, toda essa infância que eu vivi, por razões e outras, perto, e como eu era curioso... Porque eu sempre gostei muito da questão histórica... Eu sempre procurava saber. Tem muitas famílias que não abrem, não é? Que fecham tudo, não é? É um ‘cofofó’. Ninguém sabe, de fato, o que aconteceu. Em casa, não, ao contrário. A conversa era aberta. Então, você fica ouvindo. Você é uma criança, você está antenado.
P/1 – Em qual ocasião você ganhou essa mala com essas cartas?
R – Foi muito engraçado, porque foi em 1988. Então, eu já tinha quase dez anos no Brasil e eu voltei - ela estava bem cansada já - e ela sempre fazia sua geleia e guardava a geleia na adega. Ela falou: “Vem comigo”. Eu achava que ela ia me levar para me dar geleia. E ela foi no fundo dessa adega. Quer dizer: não é uma adega. Como é que a gente chama?
P/1 – Porão.
R – Um porão, exato. E abriu esse armário, tirou essa caixinha desse tamanho, que eu guardei até hoje, inclusive. E eu tenho todas essas cartas lá dentro. Falou: “Isso aqui eu vou dar para você” - ela não deu para a minha mãe, deu para mim – “porque são as cartas do seu avô e toda a documentação de quando seu avô foi preso”. Uau! É forte. E foi nesse momento. Doeu. Por que ela esperou esse momento? Então, ela deve ter carregado isso durante muitos anos na vida dela, porque eu não sabia. Sabia que ele tinha sido preso, mas não sabia dessas cartas, dessa troca, dessas histórias todas que eu acabei de falar para você. Mas são coisas muito fortes. Eu acho que muitas coisas entram na vida de cada um e que lhe fazem mudar. Esse período, certamente, foi um dos períodos. Quando você está com essa caixa na mão, você fala: “E agora?” Você abre a caixa, você vai descobrir o que está escrito. Eu até falei para a minha filha, que é artista de teatro e monta peças de teatro: pode ser um assunto, pode ser uma história. Não especificamente da minha avó, mas a história de uma família, não é? Já teve algumas coisas assim, claro, mas acho que a gente nunca cansa de tentar resgatar as memórias. O mundo sem memória não tem futuro. Mas depende de como a gente interpreta isso.
P/1 – Tudo bem se eu fizer mais uma pergunta sobre isso?
R – Sim.
P/1 – Em que momento que você se sentiu pronto para ler, e como foi esse momento com você, a parte do: “E agora?”
R – Na hora eu não abri. Eu me lembro disso, eu levei para casa, para a casa da minha mãe, na verdade, minha mãe sabia disso e aí eu fui no quarto e abri. E comecei a ler. E é duro, não é? É de chorar, mesmo. Mas são vidas. É o que eu falo: “A memória tem que ser conservada. É importante para construir o futuro. Depende da interpretação”. Eu acho que a interpretação tem que ter uma relação muito cívica. Ela não pode ter uma interpretação religiosa. De forma alguma. Você pode se tornar um grande cidadão sem ser religioso. A religião pode fazer parte da vida de cada um. Ok. Mas para mim, está muito acima o processo da cidadania. Então, a questão republicana, para mim, é muito mais forte do que ser católico, ser protestante, judeu, seja o que for. Faz entre quatro paredes, mas na rua, o que vale é a cidadania. E eu acho que quando você tem uma coisa como essa, o que sobressai é isso: a questão da cidadania. Meu avô é estrangeiro, está na França há muitos anos, ao ponto de criar uma família e ter uma autoridade suprema - que se diz autoridade, para mim isso não é autoridade - e que fala: “Eu nego a você a possibilidade de alimentar seus filhos”. Qual é? Um momento de guerra? O que é isso? Então, eu sempre tive isso, eu te diria, atravessado. Eu não acredito na questão do poder como a gente vive hoje, que vem de cima para baixo. O poder é a respeitabilidade ao conteúdo. Então, se você tem um conteúdo para me trazer alguma informação, alguma coisa que vá me ajudar a melhorar, eu acho que essa pessoa que vai receber tem que ter, realmente, os instrumentos necessários para entender o quanto você é importante e se posicionar com respeitabilidade. Isso não tem nada a ver com a questão religiosa. Então, acho que o que aconteceu naquele momento justamente é isso: é um desrespeitar ao ser humano, cidadão. E já olhar para ele, como diferente. Uma coisa que não pertence. Pertence a quem, meu caro? E quem é você para dizer isso?
P/1 – Geleia de qual sabor?
R – Era sempre morango, framboesa e só. Ah, ameixa. _________ [46:41], que ela fazia muito bem.
P/1 – O senhor já chegou a acompanhar alguma vez?
R – Sim. Dela fazendo. Claro, óbvio.
P/1 – Se puder contar para a gente como era esse processo.
R – Então... Primeiro ela colhia as frutas no jardim dela e depois deixava maturar justamente no porão, para chegar só no dedo, na mão, ela já sabia se estava pronta para cozinhar e cozinhava, numa panela de alumínio simples, com açúcar - e os vidros eram sempre os mesmos. Isso é engraçado. Eu não sei onde ela comprava, eram uns vidros redondos, mas bonitos, com umas tiras, assim, e ela colocava sempre parafina por cima. Engraçado, não é? Parafina, para não mofar. Então, ela tinha esse processo, que depois fechava e deixava lá. E a geleia dela era, realmente, sensacional. Minha mãe faz, mas não chega igual. É sempre assim. E ela cozinhava muito, cozinhava bastante, gostava muito de cozinhar. O DNA da cozinha é de lá, na verdade, sem dúvida. Da parte da mãe. Porque as irmãs dela, da minha avó, todas cozinhavam. Eram quatro e duas eram cozinheiras profissionais. Uma era cozinheira em escola pública, mas cozinhava muito, muito mesmo. Madeleine. Nunca vou esquecer. E a outra era Tereza, que foi cozinheira
, vamos dizer assim, de um bistrôzinho em Paris, perto da Onzième, Décimo-Primeiro, perto de um jornal que é conhecido e ela tinha uma clientela de jornalistas, na época. Era muito louca! Uma mulher que se mandou da família, foi embora jovem para Paris, foi resistência, tinha estrabismo, fumava, cozinhava com o cigarro - ficava pendurado assim - era uma figura. Me dava bronca quando eu comecei na profissão. Eu comecei a questioná-la pela forma como ela cozinhava, ela dizia: “Quem é você, seu moleque? Vá para aquele lugar”. E com o cigarro, assim. E as quatro se reuniam uma vez por ano. Só elas. Começavam a almoçar às 11 da manhã, aperitivo, vinho tinto, digestivo, sobremesa,
para começar, ostra, peixe, carne, queijo, ahhhhhhhhhhhhh,
. Eu olhava assim, que a gente tinha direito de chegar no finalzinho, as quatro já ohhhhhhhh clicccccccc, mas se reuniam as quatro, não tinha homem no meio, só elas, e comiam coisas, realmente, impressionantes. Agora, tinha duas delas... Minha avó cozinhava bem, mas as outras duas cozinhavam melhor ainda. Então, o DNA da cozinha está lá.
P/1 – Mas que dia era esse?
R – Natal. No dia 25, no almoço do Natal. Dia 25 de dezembro.
P/1 – E na hora em que vocês chegavam tinha o quê para comer?
R – Nada. (risos) Só os restos. E não era para ficar muito tempo, não. Então, são coisas boas. Principalmente infância.
P/1 – Ainda quando na infância, Laurent, em que momentos você visitava sua avó ou sua avó ia visitar vocês? Como é que era essa relação?
R – Ah, isso era todo fim de semana, quase. Quase todos os fins de semana. Todos. Domingo à noite, sempre ia lá ver a avó. Eu achava uma graça no início, quando eu cheguei 12, 14 anos já não achava graça nenhuma, mas isso é normal. Mas era uma questão bem ponderada nisso. E tive uma infância extraordinária também porque, em 1970, quando justamente meus pais melhoraram de vida... Eles tinham comprado um terreno na beirada do mar, que ficava a 80 quilômetros da cidade principal, que é até hoje um vilarejo, existe, chama Le Boui. Não tem igreja, não tem Prefeitura, não tem nada, é um vilarejo. Não é nem vilarejo, é um que a gente chama ‘iodine’ (?), em Francês, portanto, ele depende de outra cidade para ser administrado. Mas é um pedaço de praia. Onde eu passei minha infância, quase, com dez anos de idade, até 15 anos. Não, menos. Sete anos de idade, até 14 anos de idade. Quase todos os fins de semana eu ia lá, todos os fins de semana ia lá. Floresta. Você atravessava a rua, a floresta, e atrás da floresta, o mar. Então, a bola sempre, e respirando só ar puro, sensacional. Mas sempre em contato com o momento da história, porque lá perto você tinha os
, que tinham sido construídos pelos nazistas. Então, você criança, francês, 20 anos, 20 e poucos anos depois da guerra, você só fala de guerra. Você brincava de guerra, se vestia com jaqueta de militar. Você era sempre o bonzinho, obviamente, das Forças Aliadas, mas a gente brincava dentro dos
, com todos os riscos que comportava, porque você tinha, ainda, umas granadas lá, pedaço de canhão meio solto. De repente, uma, escondida lá, podia ser explodida, não é? Mas nunca teve esse problema. Então, convivendo com isso. Mas foi uma infância muito feliz, na verdade. Porque quem podia, quase todos os fins de semana na beira do mar, mesmo em condições extremamente simples, porque era uma casinha muito simples: uma lareira, dois quartos, uma cozinha. E lá, minha mãe cozinhava - tudo era ela - o feijão- branco. Mas vivia quase cinco meses ao ano só de bermuda e pé descalço. Então, é sensacional. Ia pescar com meu pai, enfim, no mar. Isso é privilégio, não é? Não tinha caviar, não tinha
, mas em compensação conhecia os agricultores do meu lado, que eu ia ajudar quando eles cortavam o trigo, eu levava comida para eles, que era durante uma semana, em pleno verão, então eu levava comida, levava bebida para os caras que cortavam o trigo e tudo. Eu me lembro ainda dessa senhora cozinhando, minha avó lá junto. Fazia comida que não parava. Eu achava esse espírito de festa sensacional. Então, o cheiro das vacas, do leite. Ia buscar o leite à noite. E aí foi um momento forte na minha vida, quando eu entro na profissão, que eu começo a questionar as opiniões políticas do meu pai e ele para, assim, no meio desse caminho, quando a gente foi buscar o leite e fala assim para mim: “Vai você se haver com seus bacanas e não me enche o saco”. Isso é porrada, viu? Quer dizer: ele falou, depois, em casa: “O meu comprometimento, eu já fiz. Te dei um teto, comida, educação, agora vai”. E aí, de fato, eu vou. E demora muito, vamos dizer, para tentar entender o que ele quis dizer, mas, enfim, eu respeitava a visão dele. Acho que no fundo, no fundo, ele não estava muito feliz... Não feliz, mas talvez não era isso que ele queria: ter um filho que se tornasse um cozinheiro e que, querendo ou não, naquele momento, já está traçado que eu vou trabalhar com
. Então, obviamente, que será uma clientela que tem dinheiro, aquela coisa toda. Então, o filho de operário que acaba sendo servidor de uma elite que ele sempre combateu. Isso não passa bem para ele. Mas, enfim, é a vida de cada um, não é? Mas a minha infância foi tudo com isso: peixe fresco... Nunca faltou comida e isso é engraçado, porque eu voltei há pouco tempo... Eu sempre fui, mas há dois anos eu fui sozinho passar o Ano Novo com minha mãe - só eu e ela, lá, nesse lugar da praia, em pleno inverno. E aí eu peguei a bicicleta e fui andar de bicicleta. Eu andei mais de 20 quilômetros na beira da água, porque agora está tudo arrumado, enfim, você pode ficar dentro da floresta. E me deu vontade de dizer: “Eu vou vir morar aqui. Aqui é meu lugar”. Aí, se eu falar isso para a minha mulher: “Mas de jeito nenhum. Eu não vou me colocar num buraco daqueles”. Porque é um buraco, não é? Não tem nada. Mas eu falei: “Mas hoje, com a internet, é tão fácil se comunicar com tudo”. Mas não tem nada, não tem nem mercado. Mas são coisas que são fortes. Por isso que eu acho que cada um desse mundo jamais pode esquecer de onde ele vem. De vez em quando voltar para o lugar de onde se veio. E fazer esse tipo de experiência, ficar lá um tempo, sem ninguém, sem família, sem mulher, sem filhos, sem ninguém. Só com seu pai e só com sua mãe. No meu caso, só com minha mãe, porque meu pai já foi há muito tempo. Então, acho que falta isso nesse mundo, viu? Como as pessoas acham que elas são? Eternas? Eternidade que fica é conhecimento. Nós, não. Nós somos um anel dessa corrente. Menos.
P/1 – E, Laurent, hoje, quais são os gostos ou cheiros que são como gatilhos que lhe fazem voltar para esse lugar, mesmo não estando lá? Tem?
R – Tem. O cheiro de uma comida. Se eu chego em casa, não na minha casa, na casa da minha mãe, snif, snif, falo: “Isso está me lembrando alguma coisa, não é?” Isso é muito forte, mexe contigo. Eu não sei se todo mundo tem essa sensibilidade, na verdade. Eu acho que não. Eu acho que tem que ter uma parte de sensibilidade muito forte em cada um, para se tocar com algumas coisas que te reconectam. Então, pode ser um cheiro, pode ser um brinquedo, que eu sempre fui muito preservativo em tudo que era meu brinquedo. Ninguém toca. Meus carrinhos que eu guardo. Então, quando eu olho para o meu carrinho, eu me vejo lá ainda brincando com meu carrinho. Isso é muito bom. Isso não tem, na vida, coisa mais forte, que te reposiciona. Um carrinho, às vezes uma faca que está na gaveta, você fala: “Essa faca ainda está aqui?” Agora, para isso tem que ter a sensibilidade, e tem mais: eu acho que você tem que ter, durante seu crescimento da sua infância, esse senso da importância de tudo que está em volta de você. E que muitas vezes eu sei que muita gente atropela isso. São os que eu chamo
, não estão nem aí. Uaaaaaaaaaa. Só que, geralmente, a doença bate na porta dessa pessoa, aí que ele se toca. E que ele vai tentar resgatar alguma coisa e que, muitas vezes, tem dificuldade. Porque nunca deu importância quando ele conviveu com isso. Que não foi o meu caso. Isso, realmente. De novo, porque eu sempre fui um cara extremamente de ouvido antenado. E coisas fortes. Por exemplo: eu me lembro, em 1969, a França, em plena quase revolução, após 1968, então nós estamos na cidade da praia e tem um senhor que acabou construindo uma casa vizinha. Aquele lugar começa a ficar mais
, vamos dizer assim. E esse senhor que construiu a casa, todo dia está erguendo a bandeira francesa. Aí, meu pai fala: “Que droga é essa? Esse cara aqui que está botando a bandeira francesa todo dia?” Aí ele procurou saber. Esse cara era um ex-general, aposentado. Aí você imagina: meu pai, tudo que era militar, não era muito a colher de chá dele. “General? Droga, um general que vai ser meu vizinho agora? Eu sou pé rapado aqui, agora tem um general do meu lado”. (risos) Faltava só pocotó. E aí ele procurou saber, se apresenta e, em 1969, que eles se apresentam, se falam: “Bom dia”, nanana, passa um pouco e, em 1969, mês de maio, junho de 1969, quando o general De Gaulle desiste do poder, é exilado na Irlanda... Depois que eu soube que o general De Gaulle tinha parente irlandês. Você vê que os irlandeses têm sangue forte, não é? E meu pai que, obviamente, não gostava do general De Gaulle, a gente estava lá nessa casa, nesse fim de semana que o De Gaulle vai embora e eu vou buscar algas no mar, com uma charrete do meu pai, para colocar no jardim. Melhor adubo que tem, não é? E nós vamos lá na praia e tem um cara lá sentado, na praia. Estava um dia lindo, eu me lembro até hoje. É o general. Eu me lembro até hoje que se chamava general De ___________ [1:03:00], de origem nobre. Pelo nome. Todos os nomes franceses que têm De na frente têm uma origem nobre. E aí meu pai olhou para mim e falou assim: “O que esse cara está fazendo aqui? Não é o lugar dele aqui” (risos). O De Gaulle foi embora, tinha que ir embora junto, não é? Eu, quando você tem 11 anos, puffffffffffff, você não entende muita coisa. E aí nós vamos em direção a esse senhor. Que estava com um guarda-sol, me lembro até hoje, sentado, lendo um livro. Meu pai, na maior cara de pau, olha para ele e fala assim: “O que o senhor está fazendo aqui?” Aí esse senhor se levanta, era um senhor alto, me lembro, uma elegância, tinha um bigode, era um pouco pequeno, assim, e ele fala: “Como, senhor?” Aí meu pai começa a falar burururum. “Não, mas eu não sou gaullista, eu não estou a favor do general De Gaulle, porque eu servi na Segunda Divisão Blindada”. Eu estou te contando isso porque esse negócio da guerra é uma coisa que marca na infância. Não adianta. Mesmo se você não viveu isso. E a Segunda Divisão Blindada, do general Leclerc, que foi um dos caras que realmente fez campanha da África, essas coisas todas, são uns caras que eram engajados, realmente. Foram embora da França, não concordavam com o governo colaboracionista com o nazismo e se engajaram para libertar a França, junto com as Forças Aliadas. Então, esse senhor se engajou, era capitão nessa Divisão Blindada. Aí, meu pai mudou: “Ah, é?” Aí começa uma amizade. Você tem 11 anos e fala: “Espera aí, eu não estou entendendo. O meu pai nunca gostou, agora vai ficar amigo de um cara que é general? Eu não estou entendendo essa história”. Mil novecentos e sessenta e nove, em julho de 1969, o Apolo 11, o primeiro pé na lua, o único que tem a televisão no lugar é meu pai. O general não tem televisão em casa. Aí convida o general para ver isso na televisão. E você está lá, assistindo isso (risos) e os dois ficaram até cinco horas da manhã, quatro da manhã, eu me lembro, foram até muito tarde, conversando, vendo a televisão, o primeiro homem na lua, que até a diferença de horário com os Estados Unidos, então foi até alta madrugada. Eu me lembro disso. E eu fiquei acordado, porque esperando o homem na lua, os dois conversam, não é? Então, você está lá, antenado, ouvindo, contando suas campanhas de militar para valer, o cara foi lá, não foi um militar criado em escritório, foi na porrada, e contando que ele foi o primeiro oficial francês a entrar na casa do Adolf Hitler, no Ninho da Águia, que ficava nas alturas, nas montanhas. E que ele trouxe livro. E leva meu pai para conhecer os livros que ele tinha pegado na biblioteca privada de Adolf Hitler. Então, você fala: “Como dois homens tão antagônicos...”. Essas coisas me marcaram muito, acho, de fato, para tudo que eu me tornei, porque para mim, o antagonismo não significa ser inimigo a vida inteira. O antagonismo pode se juntar para a construção de um mundo melhor. Eu acho que isso não tem a menor dúvida. Respeitar suas opiniões é fundamental. E a comunicação, o diálogo tem que entrar, em prol de uma construção, mas você não olha para o outro como um inimigo. E a princípio, meu pai o olhava como inimigo. Ele se dá conta de que, no final das contas, um cara que é muito mais herói do que ele e que se engajou para defender pelo menos algumas virtudes que são da liberdade, da fraternidade, que faz parte, vamos dizer, da história francesa. E quando você tem 11, 12 anos, você não está pensando como eu estou falando agora. Está na cara, óbvio. Mas tem alguma coisa que lhe deixa... No mínimo, você não está entendendo esse filme, está entendendo? Tem alguma coisa ali que não está batendo. E ver esses dois aí que viraram amigos. Até o fim da vida. Então, isso é forte, não é? Outra coisa, por exemplo: quando meu pai fica com o AVC, então na primeira fase de paralisia dele, ele ainda consegue andar. E como ele não ia à igreja e tudo que era igreja, para ele, ele queria ver longe... Ele me tirou do catecismo, para você ter uma ideia. Com oito anos de idade ele foi me tirar da sala do catecismo. Na frente do padre. “Meu filho vai jogar bola. Vai ser muito mais inteligente do que ficar ouvindo suas baboseiras”. Eu, você imagina, estava no meio de 25, 30, tenho que sair com ele de lá, assim. Eu vou obedecer ao quê? Ao Pai ou ao meu pai? Vai ser o meu pai. Então, o posicionamento dele diante da igreja é radical, não quer saber. E aí, quando ele teve esse AVC, nessa casa de veraneio aí, na praia, tinha uma capela pequena, quer dizer: um abade que ficava nesse terreno durante três, quatro meses ao ano e ficava com jovens que ele acolhia durante as férias, órfãos, e que o ajudavam na missa, essas coisas todas; mas meu pai gostava desse abade. Benjamin. Até hoje eu nunca esqueci o nome dele. Um senhor realmente sensacional, daqueles da igreja como eu gosto: um cara envolvido com pessoas que, por razões e outras, estavam nessa vida. E ele adorava o meu pai, sabendo que meu pai nunca ia pisar na igreja, nem ia para a missa. Então, nesses três, quatro meses, esse abade fazia missa ali, na sua capelinha, lá. Perto da praia, inclusive. E meu pai nunca pisou lá. E os dois se falavam: “Bonjour, monsieur” .“Bonjour, ça va?” E quando meu pai ficou com AVC, você acredita que... É isso que eu falo: “Essa vida...”. E ele leva uma porrada, porque ele percebe que a vida é curta e aí ele corta uma flor no jardim, isso eu vi, tulipa, e vai levar - eu fico até emocionado (choro) com isso - para o abade e fala assim: “Monsieur Benjamin, para sua missa domingo”. Uau! Mas ele não foi. No antagonismo. Isso é sensacional. Isso eu já estava mais velho, estava com quase 20 anos, 30 anos, já, quase. A Janaína tinha nascido. Mas você acompanhar isso, você fala: “Mais uma vez”. Então, isso é um instrumento, são momentos que você tem na sua vida, que lhe reforçam para construir a sua vida. E, obviamente, que eu não sou um cara contra a representação da igreja, seja o que for: católica... Eu tenho amigos que são judeus ou muçulmanos e não tem problema nenhum. Mas eu acho que, acima de tudo, é o respeito ao indivíduo. É o respeito.
P/1- E, Laurent, você comentou que não necessariamente essa reflexão vinha na hora, principalmente na primeira história, não é?
R – Não.
P/1 – E foram duas passagens com seu pai, lindas. Em que momento que você as acessou e trouxe essa reflexão, esse olhar sobre a humanidade, que você está trazendo agora, sobre esse antagonismo, o respeito? Em que momento que se deu essa reflexão sobre essas duas histórias?
R – Eu acho que na hora em que você está assumindo responsabilidade do seu trabalho. E que você tem pessoas na sua frente que não têm por obrigação entender a sua cultura. Portanto, é óbvio que quando eu estou aqui, no Brasil, e que eu sou designado por uma pessoa que se chama Paul Bocuse para chefiar um restaurante do Hotel Meridién Saint Honoré, que é o restaurante mais bonito do Brasil naquele momento, eu sou jovem, tenho 24 anos e que os cozinheiros que eu tenho têm quase a idade do meu pai e a maioria semi- analfabeto ou completamente analfabeto. E aí eu tenho um trabalho para desenvolver, que é fazer uma cozinha à altura da expectativa de uma pessoa que se chama Paul Bocuse. E eu tenho que envolver essa turma. Eu vou envolver dando porrada? Ou vou ter que, realmente, trazê-los para mim, mostrando que eles podem confiar em mim, que eu sei fazer, que eu estou aqui para fazer junto com eles? Então, é nesse momento. Acho que todo esse filme, vamos dizer, do antagonismo. Ele é diferente de você, ele pensa diferente de você, que vem com força, para você estabelecer um trabalho que você tem por obrigação oferecer. Aí eu falo: se a minha vinda para o Brasil for um destino, através de um apontamento de dedo, porque foi o
Paul Bocuse quem falou: “Quem vai para o Brasil, para nós, é ele. Não é esse daqui. É o Laurent”. Isso é muito forte. Numa hora dessas, a gente está falando de Deus, não sei. Por que eu? Porque eu tenho uma competência, mais que o outro? Porque ele viu alguma coisa em mim que poderia ser mais valioso que outros? Não sei responder. O fato é que eu vim para cá. Eu sonhava em ir para os Estados Unidos, eu sonhava em ir para o Japão, porque Estados Unidos, de novo, a Irlanda, a Escócia, aquelas histórias todas. E eu fico no Brasil. E aí você acaba se envolvendo com pessoas e, de fato, eu acho que é a história escrita com fatos reais, não é a história como a gente fala em Português: ‘pra boi dormir’. É quando você tem, por exemplo, a neta de um cara que foi o meu cozinheiro, pertencia à equipe que eu tinha lá no Saint Honoré, que se chamava Anélio Fernando de Souza... Isso é tão forte, que nunca esqueci o nome dele, que era um cara gente boa, sempre alegre. Quando Paul Bocuse chegava na cozinha, ele sempre oferecia um suco de laranja: “Monsieur Bocuse, um suco de laranja”. E que a neta dele liga para a minha secretária, há um ano e meio, e manda um retrato meu que ele tinha na sala de estar da casa dele, em Belford Roxo, subúrbio do Rio de Janeiro, que eu conheci, que eu fui na casa dele, na época, quando eu era o
dele, vamos dizer assim, e que ela fala assim: “Eu estou só mandando, porque meu avô faleceu e eu queria só transmitir isso para o
Laurent, porque meu avô dizia que tudo que a gente desfrutava nessa vida, que Deus tinha colocado uma pessoa como o
Laurent no caminho do meu avô, que me ensinou tudo”. Isso é muito forte, não é? Isso é muito forte. Então, para mim, a vida tem esse senso. Para mim, é isso. A fama, puffffffff, imagina! O que quer dizer a fama? Agora, uma história como essa, é muito. E quando ela me chamou, que falou isso, eu chorei. Porque você não imagina isso aí. Eu não falava com ele há mais de 25 anos. Eu sei que ele estava em tal lugar. E a neta dele, que transmitiu isso, uau! Aí, numa hora dessas, eu falo: “Mas por que eu tive que vir para cá?” Tem alguma coisa. Eu não vou chamar missão, que talvez fique muito forte, mas tem uma coisa predestinada. Tinha que vir, conviver, essas coisas, esses momentos. E isso é notório. Eu sei disso, do papel que eu tenho hoje. Eu sei o quanto essa juventude olha para mim, me chama de mestre, obviamente. Jamais imaginei ser um mestre. Quer dizer: eu nunca me intitulei mestre, eu sempre deixei os outros, sempre aprendi que você nunca fala: “Eu sou”. Não. Deixa os outros falarem. Então, vir de uma pessoa que é neta dele, que teve essa sensibilidade de dizer: “Não, eu vou avisar que meu avô papapa, tem todas as histórias”. Então, tem coisa que, realmente, você veio nessa vida com, certamente, alguma coisa para fazer. Agora, tem que estar ciente disso. Você vem e vai. O que mais me deixa orgulhoso é o capital que você deixa em termos de conhecimento. Quando eu vejo um cara que hoje abre um restaurante em qualquer ponto cardinal deste país, que, realmente, tem a humildade de dizer: “Eu tenho que agradecer ao
Laurent”. Como eu falo que eu agradeço a Monsieur Guerrain, que me ensinou a trabalhar; Monsieur Garnier; ao Paul Bocuse. Eu não estou menosprezando. Ao contrário. Eu sempre tenho que dizer: “Eu sou o que eu sou, porque teve gente na minha vida que me deu os instrumentos necessários para chegar a fazer o que eu estou fazendo hoje. Meu pai, minha mãe, o que a gente está falando, assim, aqui, a questão familiar. As pessoas fora da família, que vêm agregar, depois, questões mais técnicas, vamos dizer assim, mas também de relações humanas, que são importantes na nossa profissão. Então, a vida é essa”. E deixa os outros falarem. Então, quando vejo essa busca da fama... Menos, não é? Menos.
P/1 – E, Laurent, o que te esperava aqui no Brasil?
R – O que me esperava?
P/1 – Qual era a promessa para você?
R – Não tinha promessa. Era: “Você vai fazer um trabalho e a gente vai esperar um resultado”. Se não fossem os resultados, fusssssst, acabou. Então, resultado e trazer, realmente, uma cozinha bem executada, que represente o país de onde você veio, não em termos de paladar simplesmente, porque eu tive a chance de encontrar uma pessoa como o senhor Paul Bocuse, que me deixou liberdade ao dizer: “Use os produtos da terra. Usar o produto da terra e, antes de mais nada, respeitar onde você está atuando”. Então, para mim, essa foi uma lição extraordinária. Mas havia um resultado. Que era, realmente, fazer o restaurante funcionar, que se tornasse e se tornou o melhor restaurante do Brasil em 1983, se não me engano, chefiado por mim. Eu tinha 25 anos, 26 anos, sei lá. Mas como equipe, mais ainda, uma equipe 90% nordestina, se eu me ponho nos 10%, mas um dos meus sub
era da Suíça, o outro sub
era brasileiro, Paulo Carvalho. Era 95% equipe brasileira e de pessoas de origem extremamente humilde. Você consegue transformar um restaurante como o melhor restaurante do Brasil e ser uma referência internacional, porque vem gente de fora, da cadeia Meridién, para conhecer o nosso trabalho. Isso é sensacional. Quer dizer: a gente quebra os paradigmas. “Como esse cara está fazendo uma cozinha dessas com uns caras que não são franceses?” E, se fossem mais profundo, iriam ver que os caras nem sabiam sequer ler e escrever direito. E aí? Isso é ser extraordinário.
P/1 – Como foi isso?
R – Paixão. Acho que a paixão que lhe move. Paixão pelo que você faz, pelo fazer bem, executar bem. Paixão pelas pessoas que estão com você. Você tem que amar seus caras. É muito mais que uma relação com
. Pode ter discordância, pode ter bronca, como hoje de manhã, por exemplo. Tem um ontem, por exemplo, que levou uma bronca fenomenal, mas no final do dia, eu falei: “Eu te amo”. Acabou. A bronca é técnica, é consciente do que você tem que oferecer. Agora, atrás disso, tem o ser humano: “Eu te amo”. Então eu acho que tudo isso. Tanto que o próprio Paul Bocuse percebeu isso. Eu me lembro que ele falou assim para mim: “É impressionante o trabalho que você está conseguindo fazer”. Porque todos os cozinheiros na França, todos metidos a besta já naquele momento, não é? Se achando os reis da cocada. E com uma bagagem social e intelectual obviamente superior a que eu tinha. Mas você conseguir trazer esse resultado, então, de novo, é o antagonismo. E ele percebe isso. Tanto que ele fala: “Eu acho que eu vou lhe mandar para o Japão, porque lá você vai se dar bem”. Porque ele percebeu que essa noção de respeitabilidade eu tinha em mim. E a gente sabe que a sociedade japonesa está montada em cima disso, não é? Só que, bom, eu nunca fui ao Japão. (risos)
P/1 – E, Laurent, como que foi descobrir esse novo universo, que é o Brasil? Como que, aos poucos, você foi, talvez, introduzindo o Brasil?
R – A introdução foi com os meus caras: ir ao Maracanã, saber se você é flamenguista ou vascaíno; ir ao mercado em São Cristóvão, que é um mercado dos nordestinos, comer sarapatel, bucho recheado, cerveja, caju com sal, cachaça. Eu tenho foto disso. Tenho uma, na verdade. E é isso. Pegar um ônibus no Rio de Janeiro, brummmmmm, para cima e para baixo, de bermudão. Aí, metido a besta, eu compro um fusca conversível, mas ele é cortado, não é um conversível de verdade. Ele é à serra, cortado. Raaaaaaaaa. Então, branco e preto, 1968 o fusca, imagina! Ele furava o pneu cada vez que andava. E eu fui em Belford Roxo com ele, com o Anélio. Vrummmmmmmm. Quer dizer, tudo isso. Ele me levou na casa dele, ali que eu conheci a mandioquinha, que depois eu transformo em um ícone: mandioquinha com caviar. Naquele momento, a vizinha que trouxe a mandioquinha numa travessa. Isso eu achei... Você imagina: você é um jovem francês, que chega em Belford Roxo, todas as casas de tijolo, super simples, ele feliz de levar o
dele, porque ele queria que eu namorasse uma menina morena e eu desviando, coisa mais linda do mundo, que eu não namorei, na verdade. Eu acho que eu tomei tanto naquele dia que não dava para fazer nada. E o que mais me marcou é que todos os vizinhos que vêm, cada um com sua travessa: um com frango assado, a outra com a batata, mandioquinha... Eu falei: “Que coisa bacana!”. Então, essa é a descoberta do Brasil. Aí começa, não é? E aí eu me empolgo. Aprender o Português, alguns palavrões que eu não consigo falar, posso até falar, mas ‘pqp’ eu não sabia falar. Eu não conseguia, não é? Era muito difícil. Agora está numa boa. Mas eles me ensinando. Quer dizer: isso é extraordinário. E sabendo fazer a diferença: na hora em que eu estava na cozinha, eu era o
deles e, se eu tinha que sair com eles, era diferente. Então, é sensacional, essa é a descoberta do Brasil. Aí, depois, minha esposa, obviamente, que trabalhava no hotel. Eu não fui buscar muito longe. Aí me leva na casa da minha futura sogra, que até hoje mora conosco, que eu cuido da minha sogra como uma criança. A adoro. Que me faz um frango assado, que quando eu vejo o frango assado chegando na travessa, falo: “Uuuuuuulllll, não está muito bonito esse frango assado”. Todo ressecado, as pernas todas abertas. Falo: “Agora eu vou ter que comer o frango”. Porque a questão é outra. Mas é isso. É genial. Ia na casa dos meus caras, no Morro do Borel, na Rocinha. Não estou falando isso porque eu vou na comunidade, mas eu ia na casa deles. Qual o problema? E, do outro lado, servindo as pessoas mais ricas deste país. De novo: estou ali, não é? Encontrando gente muito rica, muito culta, gente impressionante. Isso me marcou muito. O nível da cultura da elite brasileira naquele momento. Pessoas muito impressionantes. Quer dizer: de conhecimento societário, vamos dizer assim. Não vou falar nem porque falava Francês ou falava Inglês ou alemão. Não. Pessoas que tinham um conhecimento profundo. E aí, óbvio, começo - como eu tenho esse berço de político - começo a conhecer algumas figuras: Geisel; Médici, no finalzinho da vida dele; João Figueiredo, e aí vai. Então, Diretas Já. Tancredo Neves. Choro, pus na televisão no dia do enterro. Então, eu me envolvo com a vida brasileira, com tudo. E aí meus filhos, que vi nascer, cariocas, eu virei flamenguista. Eles queriam que eu fosse vascaíno, mas virei flamenguista. Porque eles me levam logo no Maracanã para ver Flamengo e Vasco. Flamengo com Zico, com Carpegiani, com Júnior, só craque, falei: “Não, não dá. Vou ser flamenguista”.
P/1 – E aqui em São Paulo é o quê?
R – Por incrível que pareça, são paulino. Na verdade, porque eu sempre tive uma admiração muito grande pelo Telê Santana que, para mim, eu achei um cara, o técnico mais brilhante. Um cara que trouxe uma identidade muito forte. Tudo bem, 70, Pelé, ok, mas eu acho um líder chefe. Estamos falando do líder. Do homem simples, mineiro, gostava do tutu, da cachacinha e um lado um pouco fechado. Eu gosto das pessoas um pouco que tem dificuldade de descobri-lo. Mas um cara que, para mim, a melhor seleção do Brasil é 1982. Mesmo se não ganharam a Copa. Mas foi um
. Não teve outro. Para mim, um
. Tudo que a gente pode esperar de um time de futebol é ele. É de você chorar vendo os caras jogando. E corresponde ao momento também, a democracia aqui no Brasil, no renascimento, 1982, 1984, Diretas Já. Isso é muito forte. A gente entrou com uma expectativa aqui que é uma coisa de arrepiar. Se fala assim: “Agora, uau! Ninguém segura isso aqui”. Mas tudo isso, esse envolvimento com a vida brasileira, é isso. Ia ao mercado, ia à feirinha, enfim. Os caras já conhecem pelo nome, chamam Laurent, o
: “Aí o
Laurent”. Na Cobal, em Botafogo. Então, é tudo isso, porque são mais de dez anos de Rio de Janeiro, então uma coisa forte. E o Rio, naquele momento, era, obviamente - e ainda é - referência cultural deste país e tudo. E conhecendo, de fato, como eu te falo: essa elite, realmente, ___________ [1:30:51] e que foram extremamente incentivadoras do meu trabalho, porque eu sempre fui um cara um pouco rebelde, na verdade, eu acho que eu era rebelde, sempre questionando, enfim. Muita gente, às vezes, pode não apreciar meu personagem, porque eu sou um cara rebelde e não tenho medo de falar o que eu penso. Mas eu acho que, como estou passante aqui nessa vida, acho que eu tenho mais que falar o que eu penso. E daí? Não concordam? Tudo bem se não concordam, mas e daí? Vai me dar porrada por causa disso? Não é por aí, não, meu caro. Vamos sentar e conversar. Então, eu sempre fui extremamente rebelde no meu trabalho e quando envolve os produtos brasileiros dentro da minha cozinha. Em 1982, com a minha equipe lá no restaurante - quando falo minha cozinha, não é minha cozinha de expressão, a cozinha é a equipe, não é? - que eu vou trazer os produtos dentro da cozinha para fazer, colocar o chuchu, tucupi, essas coisas, os caras me chamam de maluco. Só que um dia eu me lembro de que eu faço um almoço com abóbora e meu
, que era italiano, um homem brilhante, falava sete idiomas, Inocenta Polinella, que foi marcante para mim, na minha vida profissional, me acalmou muito, me deu as doses de analgésico que eu precisava para ficar mais quietinho um pouquinho, porque esse dia eu servi a abóbora e ele fala assim para mim: “Você é louco? Abóbora? Sabe quem come abóbora na minha terra? É porco”. Aí eu olhei assim para ele: “Uau! E agora?” Eu tinha feito uma abóbora lá para todas as senhoras da sociedade carioca. Eu me lembro que era a esposa do Walther Moreira Salles, Madame Larraigoti, da Sul América de Seguros; dona Lily de Carvalho, que ainda não estava com o doutor Roberto Marinho, ainda era Carvalho, enfim, e outras por aí. A senhora Jafet. Então, todas mulheres elegantérrimas, finérrimas e faço essa abóbora recheada com chicória,
e carne de vitela, que a gente tinha um bom produto de vitela em Nova Friburgo, na época. E quando entra no salão, elas levantam e batem palmas. Aí eu olho para ele e falo: “Nada mal, hein? Para comida para porco, não é?” (risos) Isso é genial: você desafiar de novo, se desafia. Como você vai botar mandioquinha, você está doido? Chuchu. Eu tenho um cardápio de 1982 com chuchu. Então, o outro cliente, aí, sim, você tinha os outros que te chamam no salão e que falam assim: “Você que é o
?” “Sou”. “Você está me dando comida de índio?” “Como?” “Tucupi? Isso é comida de índio”. Sim, mas você tem 25 anos, não tem essa facilidade de expressão que eu teria hoje, não é? Mas você fica pasmo, volta para a cozinha e fala: “O cara está falando de comida... Qual é a dele? Não entendi”. Mas não é por isso que eu deixei de fazer. Então, eu acho que ser vanguardista, como alguns falam que eu tive esse posicionamento, numa época que ninguém... Que o Brasil daquele momento era um Brasil extremamente fechado, então tem que ser muito louco. Tanto que o Bocuse me ligava de vez em quando, dizendo: “Se acalma um pouco. Menos”. (risos)
P/1 – Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre quais aspectos que o senhor acha que caracterizam a gastronomia de São Paulo.
R – Eu acho que o que caracteriza a gastronomia de São Paulo é o que falamos esse tempo todo: qual é origem da cidade de São Paulo? Eu não vou fazer crítica de forma alguma, mas eu vou me posicionar aos jovens cozinheiros. Hoje eu sou um senhor de 62 anos que fala: “Para de olhar só com admiração. Olha com respeito. É uma diferença”. Sempre o Brasil tem um pouco esse lado de ‘uau’ dos outros. Então, se posiciona com respeitabilidade. Bacana, mas defina a sua cara. Então, a cidade de São Paulo não é Lima do Peru. Ok. Cultura andina eu respeito, tem a história deles. Aqui tem uma história. Baseada em cima de pilar que são a construção de uma cidade que se fez, está escrito ali, eu vi na sua sala, isso eu já sabia. Jesuíta, tem uma população indígena presente, isso é uma identidade. Catolicismo, português e a onda imigratória no mundo inteiro. Então, eu acho que tem que saber e isso não é mais o meu trabalho. Eu trabalho essa geração e, para isso, ela tem que se posicionar de uma forma mais pé no chão. Menos levada pela questão da fama. Também não entro no discurso que eu diria sociologicamente, às vezes, falido. Trabalhe, faça as coisas acontecerem junto, entre cozinheiro e deixe os outros baterem na porta. Seja iniciativa privada, seja iniciativa pública. Mas construa uma cozinha que seja, realmente, a façanha da sua história. E a cozinha de São Paulo não pode ser só mandioca, com todo respeito que eu tenho à mandioca, acho fenomenal, mas tem legumes, tem vegetais, tem a questão asiática, que está ali, que a gente não pode negar. Então, isso nos leva a um trabalho enorme, porque não é só introdução de elementos, é também a introdução de reflexão, de trabalho, de metodologia. Tem que ter essa capacidade de colocar isso e transformar isso, realmente, numa verdadeira identidade paulistana. São Paulo sempre tem que estar aberto ao resto do mundo. Vem todas as cozinhas, das outras regiões deste país e São Paulo tem que ser, realmente, a locomotiva de uma representação nacional, mas ela tem, por obrigação, que envolver a sua identidade local e a identidade do país como um todo. E aí, sim, essa garotada definir, de uma forma inteligente e até democrática, eu diria, quem vai nos representar como a liderança nacional durante um período de dois anos, a partir do momento em que ele vai ter, como a gente chama em francês, cahier de charges, obrigações de envolver os demais nessa representação. Aí eu falo ok, valeu. Tchau, gente.
P/1 – Quais são os desafios para desenvolver a gastronomia de forma sustentável?
R – Eu acho que a gente sempre relaciona o sustentável à origem do produto. Eu sempre falo o seguinte: hoje você tem um discurso muito grande sobre o pequeno produtor. Eu acho que é claro que é evidente o pequeno produtor. Eu vim de um país onde a pequena produção agrícola é importante, mas eu acho que a gente não pode negar que você tem, hoje, um mundo, que tem mercado, são milhares de pessoas para alimentar. Então, eu não posso incriminar simplesmente o médio produtor, o grande produtor. Eu acho que o que vale é uma cultura de consciência. A gente não vai desenvolver isso em dez anos. É um trabalho árduo que, realmente, tem que envolver e talvez muito mais dentro das nossas cozinhas, do que simplesmente fora da cozinha. Então, o que é dentro da cozinha? Eu sempre repito uma frase do senhor Paul Bocuse, que ele mandou para muitos
há dois anos, antes dele falecer. Ele estava, naquele momento com quase 90 anos de idade. Ele falou assim: “
, volta para as suas panelas, esteja junto com seus caras, porque cozinhar é educação”. É como eu falei todo esse tempo, muito mais do que simplesmente fazer um prato bonito. Nós temos um papel fundamental na questão da consciência dentro das nossas cozinhas e, em cima disso, vem um ingrediente que é fundamental: o método do trabalho, otimizar, saber usar os produtos, economizar. O lixo é o último destino. Não tem comida rica e comida pobre. Tem comida boa. E, obviamente, com produtos bons. Não vou entrar no mérito se é bio, se é... Como chama?... Orgânica. Claro que é importante esse trabalho, obviamente. Mas será que só, talvez, se a gente se limitasse a trabalhar dentro das nossas cozinhas, a ter nossas cozinhas super impecáveis, limpas, organizar bem, ensinar bem os cozinheiros como se comportar, como trabalhar? Eu acho que vai ser uma grande participação à questão, justamente ambiental, e tudo que envolve isso, e deixar os agricultores se organizar e trabalharmos juntos: que eles se organizem e que nós nos organizemos. A gente precisa se organizar nas nossas cozinhas. Eu me assusto um pouco. Às vezes, o cozinheiro está muito preocupado em dar palpite ao agricultor. “Calma, não é bem por aí, não, gente. Deixe-os. Trabalhe junto e cuide você da sua cozinha”. Paul Bocuse, dois anos antes de falecer. Não sou eu que estou falando.
P/1 – O senhor tem algum insight ou alguma ideia de como a gente pode ativar ainda mais a cidade de São Paulo como uma cidade criativa da gastronomia?
R – Isso não tem a menor dúvida. Eu acho que essa onda, vamos dizer, da curiosidade, que é impregnada nesses jovens profissionais
, que eu admiro pessoalmente; fico admirado do trabalho de todos eles, na cidade de São Paulo. Quer dizer: eu sinto q ue, realmente, emana deles esse orgulho de dizer: “Eu represento a minha cidade, eu sou paulistano”. Então, isso é muito bom. Eu cheguei nesta cidade em 1991, com todo respeito, onde o italiano diz: “Eu faço uma cozinha italiana”. Muitos desses donos de restaurante se dizem mais italianos que brasileiros, vamos dizer assim. Eu senti isso. Eu estou aqui, mas no final das contas eu estou aqui por acidente, não é? Mas hoje não, eu sinto que mesmo essa geração descendente desses italianos, desses franceses ou alemães, seja o que for, estão assumindo essa identidade da ‘minha cidade paulista’. Então, isso é muito bom. Temos vários exemplos. Eu não vou citar porque vão ficar todos enciumados, mas caras que estão fazendo uns trabalhos muito bacanas relacionados a isso, todos eles. Eu fico muito feliz. Fico até emocionado quando eu falo isso, porque (choro) é um grande presente que eles me dão. Esse cara que chegou aqui há 23 anos, na cidade do Rio, depois vim para São Paulo, e ver o comportamento deles. Eu acho que eles têm uma participação muito forte, não só na cozinha em São Paulo. Eles têm uma participação forte na expressão da cidadania deste país. Nunca desrespeita. É o que eu falei: nunca fica bobão na frente dos outros, achando que é igual. Respeita, mas trabalha em si para fazer alguma coisa que os outros vão olhar para você com muito respeito. E tem chão ainda. Infelizmente, a gente não chegou nesse ponto ainda. Eu acho que porque, talvez, os caminhos se desvirtuaram. Mas eu tenho certeza de que essa geração que está aqui, está indo para a mudança. Eu não tenho a menor dúvida. E é por isso que eu me sinto sempre jovem. É que eu gosto de trabalhar com jovens.
P/1 –
Laurent, infelizmente a gente tem que caminhar para o fim, mas eu tenho mais duas perguntas que são super-rápidas, prometo. Mas antes, não sei se o senhor quer, talvez, falar o nome dos seus filhos, só para deixar registrado, da sua esposa...
R – Eu falei só da filha, da Janaína. Então... A minha querida esposa é Dejacy Pimentel de Loiola Suaudeau, conhecida como Cicy, que muito
fala: “O Laurent teve a sorte de encontrar uma mulher como ela”. Só que ela é minha. E meus dois filhos: o Gregory, a Janaína, que nasceu primeiro, que foi a primeira filha da família, foi muito forte. Até então tinha só garoto. Não, foi a segunda. Estou mentindo. A segunda. E meu filho Gregory, que também, com nome Gregory, um piscar de olho na raiz irlandesa lá, que eu não podia deixar. Você vê o quanto isso me marcou, não é? Enfim, os três. Óbvio que a minha esposa tem um papel fundamental na minha vida e meus filhos que, óbvio, como todos os filhos, eu não sou o único. Filho é filho, não é? Principalmente quando um escolheu seu caminho, a gente fica mais orgulhoso ainda. E sabendo que é isso: a passagem está aí. Se meus netos vão ser brasileiros ou não, não sei. Até agora nenhum se pronunciou para fazer alguma coisa nesse caminho, mas também eu não fico esperando em cima disso, porque eu respeito muito a vida de cada um. E se eles definem tal coisa e tal coisa, muito bem, a vida é deles.
P/1 – Queria saber como o senhor se sentiu contando sua história hoje para a gente?
R – Para mim, muito tranquilo, feliz. Você percebeu, muito emocionado, porque você é danada. Você acaba cutucando umas coisas que são do íntimo da pessoa. É muito forte, que são histórias que minha família conhece, que alguns amigos meus conhecem, sem dúvida, mas faz bem botar isso, porque eu acho que todas essas histórias, na verdade, têm uma relação, eu diria, quase umbilical, com sua forma de comportamento, de ser, na sua vida. Eu acho que todo momento é importante, os encontros. O que eu me preocupo um pouco, hoje, nesse mundo, inclusive... Só para finalizar, eu estou lendo um livro, por exemplo, que é uma entrevista do Papa Francisco. Você vê que eu não fui criado na igreja, mas é extraordinário: jesuíta, obviamente, alguns falam que ele é isso, tem uns que falam que ele é comunista. Imagina! As pessoas não entenderam nada. Inclusive fazem para ele, dentro desse livro, essa pergunta, e ele fala: “Eu só posso dizer o seguinte: que a Igreja está aqui há 15 séculos e o comunismo já se mandou há muito tempo”. E muitos valores que se falavam dentro de pessoas que eu convivi, no mundo operário, com meu pai, irmandade, os irmãos se abraçando, quase apóstolos, ele fala o seguinte: que ele é um observador da sociedade e, mesmo se ele é um cara que tem um Twitter, que ele tem essas coisas todas, é um cara brilhante, eu acho sensacional, mas ele põe o dedo na ferida, que eu acho que isso é uma das coisas que me preocupam um pouco e que eu acredito e concordo com ele completamente: que ele acha que a iniciação no mundo, seja qual for, a palavra iniciação, você vai iniciar uma criança andar, um jovem a trabalhar, a primeira vez que você vai fazer sexo, iniciar tudo, tudo é toque, tudo é tocado, não é só imagem. Tem que ter o cheiro, a textura, tem que sentir. E nós não podemos perder isso. E quando a gente fala sobre a definição da cidade de São Paulo, então eu, de novo, faço um apelo: “Gente, não se afastem do ser humano, fiquem perto deles. Tudo se resgata, mas tem que ter a paciência e o toque, tem que estar presente, a gente não pode perder isso”. Ontem, minha mulher me mostrou um chimpanzé com _______ [1:50:03]. Nós não podemos virar chimpanzé. Nós somos muito mais. Então, gente, não se comportem como chimpanzé. Nós somos muito mais. O filme ET, quando ele faz... Não sei se você viu aquele filme, o Spielberg mostrou isso no filme. O toque. É aquele que vem não sei de onde, mas ele toca. Então, a gente tem que preservar isso. Temos. E o Papa fala isso nessa entrevista. É um livro que está em Francês, infelizmente, não foi traduzido para o Português, nem Inglês, eu acho, mas é incrível. Iniciação sempre é bom para o
. Iniciação simplesmente pelo toque.
P/1 –
Laurent, falamos sobre toque, sobre afeto, o senhor nos afetou muito esta tarde, foi um presente lhe ouvir, então a gente só tem a agradecer. Em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada por ter vindo aqui. Foi um encontro muito bonito. Muito obrigada!
R – Obrigado! Eu é que gradeço a todos! Valeu!
TRECHO EXTRA
R – Você imagina: esse é um sistema que eles chamam que não é fotografia, esqueci o nome agora, mas é tudo feito à mão, não é?
P/1 – Como assim?
R – Era pintado. Não era fotografia.
P/1 – Aquilo que o senhor mostrou não é uma foto?
R – Não.
P/1 – Uau!
R – São fotos, mas em cima de um trabalho feito à mão.
P/1 - Sim.
R – É incrível! Os detalhes. Você vê isso aqui e você fala: “Não somos nada”. Um cara, hoje, com um Iphone, imagina! (risos)
P/1 – O senhor se lembra do primeiro que o senhor comprou?
R – O primeiro que eu comprei, na verdade, o primeiro livro antigo que eu tive foi esse daqui e foi a tia Madeleine que me deu. Aquela que é irmã da minha avó, que foi cozinheira na escola pública. Ela falou: “Eu tenho um livro velho aqui, eu vou te dar”. Aí eu peguei e falei, quando que comecei a abrir: “Ela não sabe o que está me dando”. E não sabia, mesmo. Para ela, era um livro qualquer. Esse aí é o mais antigo que eu tenho, do século XVIII, meados do século XVIII. Então, estamos falando de 1730 e por aí. Tanto que todas as letras que você tem aqui são todas escrito em Francês antigo. Tem palavra aí que eu tenho dificuldade de ler, porque o s é em forma de f, por exemplo. Aqui, está vendo? Seria si em Francês hoje em dia. Aqui, se você ler, é fi. Então, eu não sabia o que ela estava me dando. É isso que eu falo, então, mais uma vez: até naquele momento eu não pensava comprar livros antigos. Não pensava nisso. E aí por que ela tem que me dar isso? E por que depois disso que eu me apaixono por comprar livros antigos? Porque ali tem uma receita... Você frequenta restaurante, vocês dois, certamente, já ouviram falar do
. Está aqui. Você fala: “Uau!” E o
foi reintroduzido como uma sobremesa fina, vamos dizer, em 1977. Nesse tempo todo fica perdida. E aí está lá. Quem reintroduziu essa sobremesa, aí teria que fazer outra entrevista. É um senhor que, na verdade, pelo que eu sei, é dono do restaurante
, aqui em Nova Iorque, onde eu fui convidado para trabalhar, inclusive, em 1984, e acabei ficando no Brasil para abrir o meu restaurante, e ele era de Piemonte. Não, de Bolonha. Importante, ele não é piemontês, enfim. Ele tinha o restaurante
aqui em Nova Iorque, ele é amigo do Paul Bocuse, põe essa receita lá no restaurante dele em __________ [1:54:54], aqui em Nova Iorque, e Bocuse gostou, trouxe a receita de novo para a França, introduziu lá no restaurante em 1977 - eu estava lá na época - e começa a se difundir o
, e hoje está no mundo inteiro. Só que a receita, por acaso, eu encontrei nesse livro, que quem me deu foi minha tia-avó, irmã da minha avó, que era
no restaurante da escola pública e falou: “Tem um livro aqui”.
P/1 – Muito bom!
R – Por isso que eu falo: “Tudo nessa vida tem sempre um porquê. Não é à toa, não, viu?”
P/2 – Nada é por acaso.
R – Aí, a partir desse momento, você tem direito a pensar o que você quiser, não é?
P/1 – Muito bom!
O
nasceu em Cholet, cidade francesa, em 1957. Filho de pais operários que frequentavam o movimento operário de então, com engajamento político de esquerda, conviveu com parte da história evolutiva desse movimento. Conheceu experiências dolorosas e inspiradoras de seus antepassados, havidas na dominação nazista. Logo cedo buscou sua estrada e lá estava a gastronomia, com DNA fincado pelo ramo materno. Em 1979, chegou ao Brasil, enviado por Paul Bocuse, para colocar essa cozinha à altura de suas tradições e da genialidade do mestre. Transitou entre Rio e São Paulo, fincou raízes e deu conta do recado, valendo-se de sua própria ousadia/rebeldia. E dos valores que trouxe do berço. Fez de sua cozinha, uma cozinha de equipe.
Laurent Suaudeau, chef da cozinha francesa, herdou, da família de sua mãe, a vocação e o talento para a gastronomia. Chegou ao Brasil com 24 anos, para tocar o restaurante do Hotel Meridién, no Rio. Trazia na bagagem experiências inspiradoras, sabidas e vividas na infância e adolescência, que o habilitaram a uma convivência respeitosa e proveitosa com a terra, sua gente, seus produtos. Explicação, talvez, para o seu inquestionável sucesso.
França / pai / mãe / avó / avô / nazismo / operários / esquerda / movimento operário / engajamento político / rock and roll / escola pública / escola técnica / gastronomia / casinha, beirada do mar / Brasil, 1979 / Paul Bocuse / Hotel Meridén Saint Honoré / produtos da terra / mandioquinha com caviar / antagonismo / respeito / toque / equipe.
Estou no Brasil desde 1979, quando o
, no Rio de Janeiro.
Bocuse foi taxativo: “Use os produtos da terra. Respeite onde você está atuando”. Na verdade, minha missão era “fazer uma cozinha à altura das expectativas do mestre Bocuse”.
Nasci em 1957, na pequena Cholet, região sul bretanha, em França. Parece que vim predestinado à gastronomia: tenho foto, aos três anos, brincando com panelas; nasci ao meio-dia, hora de comer; deram-me o nome do santo dos cozinheiros, Saint Laurent. Meus pais eram operários de esquerda, engajados politicamente, pertencentes ao movimento operário. Meu pai tinha origem italiana e o pai da minha mãe, imigrante escocês, de Glasgow, filho de irlandeses, foi preso durante a ocupação nazista unicamente por sua ascendência. Meu pai teve um AVC aos 46 anos e “era considerado um dos melhores operários metalúrgicos da França”; um homem brilhante no se expressar, através do qual eu conheci, praticamente, a história evolutiva da classe operária francesa. Minha mãe era, notoriamente, uma artista, que só não se consagrou porque foi impedida pela minha avó: cantava muitíssimo bem e amava o teatro. Eu, adolescente, tornei-me fã do
, mas, devo reconhecer, o DNA da cozinha é que predominava; estava lá, por conta da família da minha mãe: avó e duas tias cozinheiras profissionais. Dos dotes culinários da avó, o marcante era a geleia, insuperável. Quanto às tias, uma era cozinheira da escola pública, extraordinária, e a outra, dona de um bistrô. Da primeira, eu ganhei um livro-preciosidade, de meados do século XVIII, também marcante na minha história. A do bistrô,
E eu, de qualquer forma, repeti um pouco esse perfil meio rebelde:
Mas, para mim, foi muito enriquecedor ouvir as histórias que eu ouvia, quanto vivenciar episódios ao lado de meu pai, com o qual aprendi muito sobre o antagonismo,
no sentido de que você pode manter suas convicções e concorrer, não obstante, para a construção do que seja humano e solidário. Foram duas situações, uma envolvendo religião e a outra, afirmações ideológicas. Em ambas, demonstrações de respeito ao outro e do nosso papel na aventura existencial. De início, como eu era muito novo, pouco compreendi; depois, foram inspiradoras as lições que ficaram. Por isso, talvez, tenha mexido tanto comigo conhecer, em detalhes, acerca da prisão do meu avô no auge da dominação nazista em França. Por isso também, tenha sido tão doída a reação do meu pai quando eu escolhi a alta cozinha:
Todavia, eu descobri que esses “são momentos que você tem na sua vida, que lhe reforçam para construir a sua vida”. E eu fui construir. Para espanto daqueles que vieram conhecer o meu trabalho, 90% da minha equipe – eu nunca digo minha cozinha, é sempre minha equipe – era de brasileiros, gente quase sem escolaridade. Mas gente que eu envolvi, gente estimulada a fazer o melhor a partir de um tratamento respeitoso, digno, humano, amigo, e uma convivência profissional ao extremo. E, claro, um tanto de rebeldia, de ousadia, de apelo ao exótico: mandioquinha com caviar; abóbora recheada com chicória, champignon e carne de vitela – aplaudida pela elite feminina carioca. Para chegar até aí, eu fui buscar os tais produtos da terra, de que falara Bocuse. E tentar descobrir as raízes do lugar: o Maracanã, o Mercado de São Cristóvão, os guetos, os trajetos de ônibus. Sobretudo, repetir todo dia para mim mesmo e ensinar:Recolher