Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Filippo Arturo Minelli
Entrevistado por Rosali Henriques e Cláudia Leonor
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 16 de outubro de 1996
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n.º 30
Transcrita por Rosali Maria Nunes...Continuar leitura
Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Filippo Arturo Minelli
Entrevistado por Rosali Henriques e Cláudia Leonor
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo,
16 de outubro de 1996
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n.º 30
Transcrita por Rosali Maria Nunes Henriques
P - Senhor Arturo, para começar a entrevista diga o seu nome completo, a cidade onde nasceu e a data de nascimento.
R - Meu nome é Filippo Arturo Minelli, as pessoas me chamam mais de Artur Minelli. Eu nasci em 1928, 12 de março de 1928. A minha cidadinha é Monti Falcone, Val Fortore, Benevento, província de Napoli.
P - É na Itália?
R - Itália.
P - E qual é o nome dos seus pais?
R - Salvatore Minelli e a minha mãe Ciarmoli Maria Assunta.
P - Monte Falcone é uma cidadezinha pequena?
R - É pequena, muito pequena. Um povoado de 2 mil pessoas.
P - Mas até hoje, ou só naquela época?
R - Até hoje, porque com a emigração ficou sempre a mesma coisa.
P - Na sua casa eram quantos irmãos?
R - Nós éramos sete irmãos.
P - O senhor era o mais velho?
R - Não, eu fui o número, o quinto, tem duas irmãs menores do que eu.
P - Conte sobre essa cidadezinha. Como ela é e como foi a sua infância lá.
R - Sabe, família numerosa não tem muita saudade daquelas coisas, a necessidade... porque o artesanato era limitado como produção, especialmente nos anos 30, 40. Depois veio a Guerra, não tinha nada, foram tempos bastante difíceis. Por isso o meu pai, no 1938, veio no Brasil, porque eu tinha um outro irmão que veio em 1926, o mais velho, e chamou ele. Mesmo o meu pai, com uma perna só, que o meu pai perdeu uma perna nos Estados Unidos, ele veio aqui por motivo de necessidade, porque nós éramos todos pequenos, para dar um futuro melhor para o restante dos filhos. Porque numa cidade pequena você aprende a mesma profissão, e o que acontece? Tem uma briga tremenda entre irmão com irmão. Então ele já imaginava isso aí. Ele, meu pai ,veio no Brasil com 56 anos de idade, quem mandou chamar foi o outro irmão, ele se chamava Giuseppe Minelli. Mandou chamar porque ele já tinha uma alfaiataria aqui, então para eles foi uma _______. E o meu pai veio com essa disposição para "estradar", para pôr num caminho certo os outros filhos, para melhorar de vida. Esse foi um valor enorme, a visão do meu pai. Até tinha um primo nosso, o meu tio, ele disse assim: "Ma, Salvatore, tu con cinquanta sei anni dove vai?" Disse: "É, ma non faccio per me, faccio per loro." Era uma necessidade. Porque a América, se falava de América, principalmente nos Estados Unidos, América do Norte. Então já voltavam os americanos, aqueles que tinham trabalhado nos Estados Unidos, com dinheiro, entende? Mas o meu irmão estava aqui no Brasil, chamou ele e precisou fazer um depósito, porque o meu pai, sendo com uma perna só, precisava fazer um depósito. Se ele não se sentia bem ele podia, com esse dinheiro, voltar de novo para a Itália.
P - Seu pai perdeu uma perna nos Estados Unidos?
R - Nos Estados Unidos.
P - Ele morou lá em que época?
R - O meu pai, ele tinha 22 anos, 1900, o fim do 1800, porque ele tinha, o começo mais ou menos, ele tinha 83, ou 17, era o começo de 1900. Ele perdeu uma perna nos Estados Unidos.
P - O que ele foi fazer nos Estados Unidos?
R - Ele foi trabalhar como operário, porque ele não era alfaiate. Ele aprendeu alfaiate depois que perdeu a perna e voltou para a Itália. Acho que pagaram alguma coisa, porque naquele tempo os Estados Unidos também não registravam os empregados, ele não teve uma pensão. Acho que pagaram alguma coisa, porque ele disse assim: "Para eu não pedir esmola." E como todo mundo que não tem uma perna, ele tentou aprender uma profissão. E a profissão que ele aprendeu era de alfaiate. Ele se salientou muito mais porque a necessidade fez com que ele tivesse muita bondade, muita força de vontade, cobrava menos, então todas essas coisas que ele conseguia sustentar a família, entende?
P - Quer dizer, ele foi aos Estados Unidos em busca de melhores condições de vida, de trabalho?
R - Sim, porque era um contadino, ele era um operário braçal, vamos dizer, entende? Por isso. E depois, ele perdeu a perna nos Estados Unidos porque um trem lá passou em cima da perna dele, e perdeu a perna. Aí ele voltou para a Itália.
P - Aí ele se casou, depois disso?
R - Depois casou. Ele casou, ele teve a primeira mulher, a primeira esposa, que nós tínhamos dois irmãos da parte da primeira mãe, que a minha mãe também era viúva e casou com o meu pai, os dois viúvos casaram. A minha mãe perdeu o marido depois de seis meses, deixou ela grávida.
P - Ela tinha seis meses de casada e perdeu o marido?
R - Porque ele foi na Guerra, primeiro em 1918, na Guerra de 1918 ela perdeu o marido, o primeiro a morrer na guerra. Ele se chamava Artur Minelli também, porque na nossa terra, na nossa cidadinha são, todos se chamam Minelli quase, não todos, digamos tem muito Minelli. (riso)
P - E aí ela teve esse filho e depois casou com o seu pai.
R - Morreu depois. O meu pai tinha dois filhos, ela tinha um filho. Mas casou, eram dois viúvos, casaram e tiveram mais cinco filhos, que éramos nós.
P - Deixa eu só entender. Dois irmãos só por parte do pai.
R - Dois irmãos eu tinha, exatamente. Agora já morreram três, já morreram quatro irmãos, restamos só duas irmãs e um irmão que está vivo. Eu tenho um irmão que está vivo, o segundo filho, que seria o segundo irmão da parte de meu pai que está na minha cidade, hoje ele tem 84 anos.
P - Então ao todo quantos filhos eram?
R - Sete filhos.
P - Contando com os casamentos?
R - Com os dois exatamente.
P - Então o seu pai aprendeu o ofício de alfaiate. E começou a trabalhar com isso lá em Monti Falcone, né?
R - Exatamente.
P - E aí ele começou a ensinar esse ofício para os filhos também?
R - Exatamente. Lá era obrigado, você ia na escola de manhã e depois do almoço arrumava o dedal e começava a costurar. Lá se chama chulear, para não sair os pillacera, acolchoar lapela, o serviço mais duro, vamos assim dizer, mas mais fácil, que não se veja o ponto, que não se veja nada, entende?
P - E o senhor chegou a estudar?
R - Eu fiz até o grupo, que é chamado lá até o quinto ano. Porque lá não deu para estudar mais porque não tinha escola superior, entende?
P - E como era na escola, fale sobre a escola.
R - Ah, a escola, sabe, criança, você estuda, é um pouco vasto, você conhece melhor a Europa, você conhece melhor o lado de geografia, o lado de história, mesmo um pouco mais vasto, entende? Ter um conhecimento, ao menos, nós éramos um pouco aplicados porque sabe, você tem uma obrigação de aprender, porque senão os pais eram muito severos.
P - E que brincadeiras vocês faziam?
R - Lá não tinha, naquele tempo não tinha nem, como se chama? Bola para jogar, se fazia uma bola de pano, fazia, essas eram as brincadeiras. Brincadeiras de menino, mas não tinha futebol, era um futebol, porque depois da Guerra é que melhorou tudo, naquele tempo era muito mal, era muita miséria, especialmente nos países pequenos era muita miséria. Não se morria de fome, tinha o necessário, mas não tinha outras coisas.
P - E o senhor se lembra bem da Guerra, da época da Guerra?
R - Sim. Já aí eu tinha, começou a Guerra em 1940 e já eu tinha a idade de 12 anos, entende? De 28 a 40 eu tinha 12 anos. Depois a Guerra, não, digo a Guerra não foi no 40, em 1942, 43 e foi uma miséria lá. Ninguém pensava, só pai pensava, porque todo mundo ia para a Guerra, ficava criança, velho e as mulheres, as viúvas lá. Lá era uma desgraça, a Guerra foi, foram seis anos de Guerra praticamente.
P - Senhor Artur, a Guerra modificou o seu cotidiano?
R - Modificava, mas lá você não pensava, porque menino tudo é palhaçada. Também você está inocente, não acompanha, mas você não via nada, não via dinheiro, não via possibilidade de trabalho, era uma "desesperação". Agora, acabou a Guerra, já o sujeito era mocinho já, não vê a hora de sair de casa para trabalhar, para se aperfeiçoar melhor, porque não tinha possibilidade de trabalho. Você fazia lá um terno, dois ternos, depois começou, entende? Devargarzinho, devargarzinho, mas era muito difícil, você sonhava, você tinha uma vontade férrea de fugir de lá, entende? De você ser alguma coisa na vida, entende? Ainda mais porque o meu pai estava aqui no Brasil, porque o meu pai veio no 1938, fim de 1938, a Guerra começou a sair em 1939, entende? Devargarzinho, devargarzinho, e pronto. E eu estava louco, só pensava em vir no Brasil.
P - E quantos ternos se fazia num ano, mais ou menos?
R - Na Itália?
P - É.
R - Mas não se fazia nada, era muito difícil, quem fazia meia dúzia de ternos era uma maravilha. Não se fazia terno porque arrumava, ajustava, não é que fazia, era muito difícil, não tinha, era uma miséria. Depois começamos devargarzinho, mas no tempo de Guerra não se fazia nada.
P - E pano, era difícil achar pano na época da Guerra?
R - Sim, mas não se achava, era muito difícil. Sabe que tinha algum tear que faziam, eles mandavam a lã, eram os proprietários que tosavam os carneiros e vendiam. Então eles mesmos tinham o tear que alguém fazia. Nós fazíamos algum terno para essa gente que tinha essas fazendas, fazendas pequenas, aquelas fazendas lá são, como eu quero dizer, pequenos agricultores, não era o que existe aqui no Brasil, aqui é tudo imenso, é tudo grande hoje.
P - Quando o senhor começou a trabalhar como alfaiate?
R - Eu falei, com 7 anos de idade eu já comecei a aprender, 7, 8 anos.
P - O senhor já nasceu...
R - Já nasci numa cesta de retalhos, praticamente. (risos) Eu sempre falo isso, desde criança eu aprendia isso.
P - E o senhor pegava o seu dedal...
R - Sim. Eu ia costurando, ia fazer. E fazia, arrumava, você vai aprendendo, faz um bolso, ou dentro das coisas que lá se fazia, nós fazíamos também scoperta imbottito, é chamado. Toda noiva que casava levava uma coberta, um acolchoado, que chama. Nós fazíamos isso, nós fazíamos qualquer coisa para a sobrevivência, entende? É por isso que a criatividade, a necessidade, te obrigava a saber fazer tudo, você devia saber fazer, devia aprender, porque mesmo que não soubesse, desmanchava até aprender, porque era uma necessidade de sobrevivência. Agora, cheguei aqui no Brasil, era outra história.
P - E quem ensinava o senhor lá na Itália?
R - Era sempre o meu pai, entende, os irmãos mais velhos. Você vai de família em família.
P - Quando vieram para cá? Vocês ficaram lá?
R - Nós ficamos lá.
P - Quem tocava a oficina era o senhor, tinha mais alguém?
R - Lá na Itália?
P - Na Itália.
R - Era pequena. Lá era uma coisa de você ajustar, arrumar alguma roupa. Porque veio esse irmão depois da Guerra, e nós ficamos o 46, o 50. Nós trabalhávamos juntos porque ele ficou, ele foi em 39 na Guerra, e ele só voltou em 1945, 46, ficou seis, sete anos na Guerra. E eu para não ficar... eu fui aprendendo com o outro alfaiate que até era um padrinho meu, para aprender. Mas lá não é que você ganha dinheiro. Lá era só a troco de comida, alguma coisa, porque era tamanha a necessidade
P - O senhor fazia alguns consertos na roupa e trocava por algum determinado produto?
R - Isso exatamente, mas não era, era o dono da alfaiataria, entende? Era pouca coisa, porque dinheiro não se via naquele tempo. O fenômeno do mundo especialmente foi depois do 1950, 1950 transformou o país em tudo e por tudo.
P - Que tipos de instrumentos de trabalho o senhor usava?
R - O alfaiate tem a máquina de costura, tem a agulha, a tesoura, a régua para marcar, o giz, o dedal, lógico, essas coisas. Tem um papel para você fazer um modelinho, essas coisas.
P - E como era a máquina de costura, que tipo?
R - Era normal, essa máquina eu vou, que tem a Singer, a Pffaf, normal, com pedal. Tinha um ferro a vapor, a carvão, porque só carvão tinha, era um sacrifício. Quantas vezes se queimava alguma coisa.
P - Como fazia quando queimava alguma coisa?
R - Devia pôr uma emenda, uma coisa lá, trocar uma manga.
P - Então o seu pai e o seu irmão estavam já aqui no Brasil?
R - Já estavam no Brasil.
P - E eles montaram alguma empresinha aqui, alguma oficina?
R - Já tinha alfaiataria. Em 1926 veio o primeiro irmão, ele que mandou chamar o meu pai, o meu irmão. O meu irmão, o Rafael, que era o chefe da firma Minelli, era Rafael Minelli que tinha o nome, Rafael Minelli Ltda. Ele veio com 14 anos com o meu pai, então ele chegou em 1938 e nós chegamos, eu cheguei em 1950, só depois da Guerra. Então já estava montada a alfaiataria. A alfaiataria, quero dizer, tinha meia dúzia de pessoas, seis, quatro pessoas que trabalhavam, porque esse meu irmão que veio em 1926 ele morreu no 1946, eu não conheci ele.
P - Não?
R - Não conheci porque eu cheguei em 50. Então foi fácil sempre de começar, ele já tinha uma alfaiataria boa, depois ele morreu, foi tomando conta esse irmão mais novo com o meu pai, porque o meu pai, com a idade que ele tinha não tinha um vasto conhecimento, entende, porque ele também era limitado. Esse moço, esse que veio, ele era de 1924, quando morreu o meu irmão ele tinha 22 anos, que morreu em 46, 22 anos, ele foi tomando conta. Quando eu cheguei no Brasil era uma alfaiataria de família, tinha a minha irmã, meu pai, meu irmão e tinha dois empregados. E nós devargarzinho, devargarzinho, trabalhando dia e noite. E em 33, 34 anos de Brasil, em 44 anos de Brasil, em 43 anos da Barão de Itapetininga que eu trabalhei, nunca fui tomar um café na Barão de Itapetininga. Entrava de manhã e saía de noite, e saía, às vezes, para provar os ternos nos fregueses, Sebastião Camargo, Lázaro Brandão, esses eram os meus fregueses, Delfim Neto, Silva Noronha, entende, eram fregueses que não podiam vir. O Sebastião Camargo, ele dizia assim: "Artur, como eu gostaria de provar uma roupa lá. Eu tenho medo." Ele tinha medo dos terroristas, de ser seqüestrado.
P - Voltando um pouquinho, pode contar a sua vinda? O senhor saiu da sua cidade, como chegou até o porto, em que porto chegou?
R - Ah, sim. Eu devia embarcar em Gênova, tinha o meu irmão que ficou em Napoli, e pegou o trem em Napoli, eu fui de ônibus de Monti Falcone a Napoli e de Napoli eu peguei o trem e depois fui para Gênova, e de lá embarquei. Em Gênova.
P - Em que navio o senhor veio?
R - Andrea C.
P - E quanto tempo demorou a viagem?
R - 16 dias. Eu cheguei aqui dia 23 de maio de 1950. Tem que falar um pouquinho de italiano porque sai alguma coisa, que eu falo muito mal o português, mas dá para entender. (riso)
P - E qual foi a sua primeira impressão ao chegar no Brasil, o senhor que queria tanto vir para cá?
R - Era uma vontade férrea, uma vontade de trabalhar. Nós trabalhávamos dia e noite, nós levávamos serviço para casa no sábado e nós trabalhávamos o domingo inteiro. Nós fazíamos um trabalho que fazia sete, oito pessoas, eu, minha irmã e meu pai, todos os domingos. E eu, se saía durante o dia eu não podia olhar o sol, que ficava cego, porque eu não conhecia o sol, era uma luta, nós trabalhamos demais. Só assim que se faz as coisas, é trabalho e trabalho.
P - E o senhor não se divertia aqui em São Paulo, saía?
R - Nada, namorava, tudo roubado, namorava aquele namoro que vai de noite e corre de dia. Te conto uma cena. A minha esposa, eu conheci, depois quando namoramos e eu ia no sábado namorar, nós jantávamos primeiro, e depois eles iam arrumar a cozinha, iam lavar os pratos. Enquanto eles estavam lavando os pratos eu dormia já, esse era o meu namoro, porque a canseira que eu tinha, esgotado de tantas horas que trabalhava.
P - E ela era italiana também?
R - Era italiana. Quando eu conheci, ela trabalhava numa firma lá na Barão de Itapetininga, naquele tempo se chamava Duval, era uma grande casa de moda, ela era costureira, era saieira, fazia saia, era chefe da oficina. A mulher teve dois filhos na Duval, trabalhando. Porque a minha sogra morava comigo, o meu sogro morava comigo, então as crianças, nos três meses ela ia dar de mamar na hora do almoço, porque morávamos no Sumaré. E teve dois filhos lá, ela só saiu de lá depois que já veio o outro filho, e aí não deu mais para trabalhar. Também nós já melhoramos, já estávamos numa situação melhor, já não tinha necessidade dela trabalhar.
P - Em que bairro morou?
R - Nós fomos a morar com o meu irmão, ele comprou uma casa na rua Álvares de Menezes, era uma travessa da rua Tutóia, no Paraíso, entre o Paraíso e a Brigadeiro Luís Antônio, tinha a rua dos Bombeiros, que se chamava lá.
P - E o senhor veio morar com eles?
R - Sim, éramos solteiros, ele também era solteiro, todo mundo era solteiro. Eu casei antes que meu irmão.
P - E a sua mãe continuou na Itália?
R - Não, a minha mãe veio aqui no Brasil em 1949, um ano antes de eu vir aqui. Veio ela com duas irmãs, a minha mãe. Eu não pude vir porque tinha um problema, a situação militar que devia fazer, servir o Exército, sabe? Mas depois me liberaram porque eu era muito magrinho, entende? Aí vim para o Brasil.
P - Então como é que chegou nesse ateliê, nessa empresa...
R - Trabalhando dia e noite nós fizemos um verdadeiro monumento. Nós começamos, logo depois de dois anos, no mesmo andar lá tinha o Carnicelli, é um grande alfaiate de nome, todos os alfaiates eram tudo italianos: Carnicelli, Barone, Cuccio, Barella, bem, uma infinidade. Alfaiate era tudo nome italiano, tinha um ou outro que era português ou espanhol, mas muito difícil. Compramos o Carnicelli, ele não podia vender porque aquele prédio era alugado, mas não podia ser nem alugado porque ele era da Santa Casa, era da fundação. Então eles puseram, fizeram uma sociedade só para dizer que era uma sociedade Minelli e Carnicelli, só para ele não poder, para a Santa Casa não poder alugar. Depois em 1965, 64, 65 se desfez a sociedade e ficamos só Minelli, o meu irmão pôs o nome, fizemos uma limitada e me pôs também como sócio, então era ele, depois veio a mulher e eu, éramos três, era uma limitada. E aí trabalhando, trabalhando, e aí em 1970, mais ou menos, 69, começou a abrir uma loja, depois abriu outra loja. Devargarzinho nós chegamos a ter 15 lojas, chegamos a ter 400 funcionários, os alfaiates todos de São Paulo deviam se ajuntar para combater o Minelli. Nós chegamos a ter 200 oficiais, entre ajudantes, porque era sempre uma escola E nós, além de saber um pouco, porque você vai aprendendo, a nossa maior escola foi que vinha tanto contramestre, tantas pessoas, que a gente vai assimilando aquilo, a gente vai aprendendo. Não é que nós éramos os bons, vamos dizer, mas você vai aprendendo. E aquilo lá fizemos um nome espetacular. Aí depois veio, abrimos a outra firma Bruno Minelli, porque o Bruno não estudava muito, então o pai quis pôr ele no comércio. Aí o Bruno, muito esperto, ele pôs a Bruno Minelli que ele até hoje está continuando. Agora, essa história da Minelli foi muita luta, muito trabalho, e muita satisfação, sabe? Você chegar com nada e você chegar nesse ponto, mas é muito trabalho.
P - Como era a rua Barão de Itapetininga nessa época?
R - A Barão de Itapetininga naquele tempo era um desfile, aqueles carros, os cadilaques que começavam a vir. O meu irmão, muito ambicioso, uma vontade, ele tinha uma ambição fora de série. Imagine que ele tinha a Martha Rocha, nós fizemos algum tailleur para a Marta Rocha quando ela ganhou o prêmio, o segundo lugar. E tinha o representante das Folhas, se chamava Fábio Ramos, presidente das Folhas nos Estados Unidos. Ele trouxe um carro, um Cadilac, e meu irmão comprou esse carro, e naquela época lá era um desfile de carros americanos. Como se vai hoje no Shopping Iguatemi com BMW, com carro importado. E lá era a Barão de Itapetininga, 24 de Maio, tudo em volta, lá que tinha o Fasano, tinha a Lug, tinha tantas casas. A rua mais famosa, assim, naquele tempo, era a Barão de Itapetininga. Então se era um desfile, era um prazer. Imagina que o Agnaldo Rayol, na fase do Agnaldo Rayol, precisavam fechar a porta da loja porque invadiam lá. Nós fizemos, o Roberto Carlos, quando fez aquele filme "Ritmo de Aventura", o primeiro filme, nós que fizemos a roupa para o Roberto Carlos. O Agnaldo Rayol, o Jô Soares, todos esses, o Francisco Cuoco, esse rapaz aí, mas tinha um monte de artista, Anselmo Duarte, que ganhou a Palma de Ouro, todos eles. Tenho as fotografias lá, que um dia vou mostrar para você, está tudo... Foi um belo nome, um nome muito bonito e nós valorizamos isso muito porque os nossos empregados eram todos registrados, não era como um alfaiate pequeno, coitado, com uma necessidade, não podia registrar o empregado. Nós tínhamos todos registrados, tudo em ordem, fizemos um belo nome.
P - E como era o processo de fabricação das roupas? Pode explicar?
R - Bom, nós tivemos a maior felicidade do mundo. Além da roupa sob medida, nós criamos o que se chama semi-confeccionado, semi-pronto Nós pegávamos o 44, 46, todas as proporções até 60. Que os números do 44 a 60 é a metade do tórax. Você tem, vamos supor, 62, você tem 61 de peito, divida a metade, certo? Ela tem 46, seria 46, são 92 de peito, está entendendo? Então são as proporções, a medida do peito é chamada proporcionalmente a metade. Então nós tínhamos 44, 46, 48 até 60, o freguês vinha lá e esse era fabricado em série, mas quase artesanato, tinha alguma coisa, ainda o serviço de dentro, a lapela, todo o serviço assim eram feito à máquina mas o resto, o caseado, a maioria das coisas eram feitas à mão. Mas facilitava porque fazia a série, colocava nas lojas e chegava o camarada lá, ele já via sem manga, tudo alinhavado. Alinhavado sabe o que é que é? Não costurado é alinhavado, porque você pode desmanchar que não rasga e você pode pôr a roupa no corpo da pessoa, entendeu? Então ficava perfeito, ficava melhor de qualquer outro profissional, essa foi a invenção que nós fizemos, que ninguém teve no Brasil, e ninguém está fazendo. Mas tinha muito artesanato, muito contramestre e eu que controlava quase tudo isso aí. Porque não me dava tempo nem para lavar o rosto, nem para ir ao dentista, como se fala. E namorar, menos ainda.
P - Como surgiu essa idéia de montar um processo de semi-produção?
R - Porque, veja só, você vê uma roupa pronta, uma roupa pronta é bom, vamos supor, para um Sérgio, uma proporção normal. Mas tem muitos 46 que não são 46 são 46 de peito mas os ombros são caídos, é onde que te dá, onde você tem que pôr a comodidade da cava, fazer o ombro que seja na proporção dele. Tem um 46 que tem o ombro alto, vamos supor, um sujeito que anda assim. Então são as proporções. E isso foi a idéia, porque se você faz uma roupa pronta, só se a pessoa for perfeita, porque senão não fica boa. E nós tivemos essa felicidade, nós cortávamos, nós tínhamos seis, quatro contramestres, só que cortavam peça em tamanho nessas proporções, e nós enchemos as lojas disso aí. E em cada loja nós tínhamos uma oficina onde que montava, onde que provava, onde que acertava, onde eles terminavam. Mas nós tínhamos duas lojas que eram grandes, eu estava na Barão de Itapetininga que tinha mais de 100 pessoas, 100, 150 e o meu irmão estava mais no Shopping Iguatemi, entende, porque depois ele começou a ficar doente, meu irmão ficou doente 20 anos, quase. Então essa carica, imagina que 10 anos, eu tinha estado na Itália em 72, só voltei na Itália em 82, depois de 10 anos. Nunca saí porque o meu irmão sempre doente, que tinha uns pólipos na bexiga, que foi até extirpada a bexiga, e eu com aquela responsabilidade, ele tinha vontade, não se abatia mesmo sem bexiga, ele com aquela bolsinha que ele tinha, era um camarada que ele lutava contra a doença, entende? E é isso que fazia dele, tinha o doutor Maluli, Anuar Maluli. Ele dizia assim, o meu irmão falava para ele: "Doutor Maluli, eu queria comprar aquela loja." Para ele dar encorajamento, acarimento, como se fala? Para ele se esforçar, ele dizia "Compra Minelli, compra Minelli." Porque ele ficou 20 anos doente, mas não morreu com os pólipos da bexiga, com a doença que ele tinha na bexiga. Ele morreu depois com negócio respiratório, ele morreu em 1991. Eu fiquei na firma até o 93, porque as coisas já não, sabe, irmão é uma coisa, os outros, a família é outra. Eu hoje estou com... me desliguei da sociedade, eu estou me divertindo hoje, estou fazendo o trabalho que eu quero, um trabalho que atendo duas dúzias de fregueses em casa, trabalho, tenho quatro, cinco pessoas que me ajudam, eu faço as minhas coisas, eu controlo, e aí fica tudo em ordem assim, estou contente com isso.
P - E quando vocês tinham essa empresa com tantos funcionários, quanto tempo demorava uma roupa para ficar pronta?
R - Ah, sim. Essa semi-pronto? Nós fazemos o que se faz hoje na China, nessas grandes indústrias, porque na China você vai de manhã, à tarde ou um dia depois eles te dão o terno. Nós vínhamos de manhã, à tarde nós dávamos o terno, mas quantos ternos saíam É perfeito, muito melhor, porque a nossa era uma perfeição, isso que foi a diferença dos outros alfaiates. Os outros não podiam ter, primeiro não tinham quantidade de número que pudessem fazer, não tinham a quantidade de gente que nós tínhamos, nós tínhamos tanto pessoal que era uma maravilha. Depois passava na mão da gente e nós éramos aplicados, e eu, sabe o que eu pesava? Eu cheguei a pesar 53 quilos, é brincadeira Hoje tenho 20 quilos a mais. E depois que eu saí, eu melhorei também, também a idade que vai chegando, e o sossego que te deixa, hoje também não tenho necessidade, tenho quatro filhos, um melhor do que o outro. Tenho dois médicos, uma psicóloga, um rapaz, um caçula que é diretor de banco, eles não precisam de mim, eu não preciso deles, eles estão melhores do que eu. Essa é a verdade, mas foi a maior satisfação da minha vida, viu? Mas tem que trabalhar, não é, porque tem que trabalhar, não é tanto porque você quer ser um, uma exigência da vida, você quer ter uma empregada, você quer ter alguma coisa a mais, você tem que ter muita despesa. Se você tem uma chacrinha você tem que ter o caseiro e tudo isso faz que você fique acompanhando, porque o aposentado, a aposentadoria que você ganha de 500, 600 reais, não dá para nada. Então você tem que trabalhar, primeiro porque é uma coisa boa você ficar sempre em atividade, os fregueses bons que você tem, que eles te dão valor. Porque a maioria dos alfaiates... por que é que essa profissão esta acabando? Está acabando porque os alfaiates não pagam bem o oficial, porque não ganham bem, porque só se ganha bem se você produz. Nós pagávamos bem os oficiais, todo mundo fazia questão de vir trabalhar no Minelli. Mas o coitado do alfaiatinho, ele devia esperar o camarada, que muitas vezes o cliente não tem dinheiro e não vai retirar o paletó, o terno lá na casa dele. E ele tem que pagar o aluguel, tem que pagar a luz, pagar a água, a despesa da família, como ia fazer? Nós não, éramos um tipo de médico com farmácia, porque além do produto que a gente produzia, nós comprávamos muito item, bastante item como gravata, camisa, abotoadura, tecido, tudo. Então se ganhava mais nas lojas que no sob medida, entende? Nós tínhamos uma reserva para poder compartilhar com as despesas, empatar as despesas. É por isso, porque as lojas eram muito, não dependem tanto de você. O sujeito, é que nem uma Coca-Cola, você pega uma criança, ela tira de lá a Coca-Cola, não precisa ser o profissional. Ele compra uma camisa de boa marca e está bom. Um cinto, uma gravata, não precisa nada, uma moça qualquer como você ou como qualquer outra, uma boa vendedora vende, e você ganha em cima a quantidade que você tem. Se você tem uma loja, você ganha por uma loja, em cima de uma loja, se duas, você ganha em cima de duas. Depois foi uma fase esplêndida. Hoje é muito mais difícil, hoje se você não é um bom profissional você não vai em frente, tem que entender da profissão. Ganha ainda dinheiro, veja só, mas tem que entender. Se você faz um serviço hoje duas vezes, te dá prejuízo. Então por isso que tem profissional hoje que ainda ganha dinheiro, mas tem que saber. Os curiosos já vão embora.
P - E os seus filhos não quiseram aprender o ofício?
R - Porque, minha filha, eu vou dizer uma coisa para você. O nosso ofício era muito sacrificado, ele viu que eu dormia em cima de uma mesa, às vezes, eu nunca levei problema para casa, mas ele via quando eu estava nervoso, trabalhando dia e noite, dia e noite. E a gente faz, se a gente fez alguma coisa, também é aquela história que eu estava falando, a história de renúncia, de sacrifício, se levanta cedo, vai dormir tarde, o que ganha não gasta e só sobra, certo? É isso que eu estou falando, a vida é assim, com sacrifício, com renúncia e economia. Eu não sabia o que era jantar uma pizza fora de casa, minha filha. Porque eu pensando, quatro filhos, eu, a minha mulher, a empregada, o meu sogro, a minha sogra, oito, nove pessoas, sempre vinha alguém, qualquer amigo, éramos dez pessoas. Se você vai numa noite daquela, já dava para gastar, para a despesa, para a comida, por 15 dias. Porque quando você vai jantar você quer jantar no mesmo conforto que você está na sua casa, não é que vai lá, vai olhar, fazer economia disso, é melhor não sair. Então você ficar em casa é melhor, é muita renúncia Hoje eu estou bem, consegui laurear quatro filhos. Ricardo, esse é que diretor de banco, ele é laureado pela USP, engenheiro naval e administração de empresas pela Getúlio Vargas. Ele me falou uma frase que me comove muito. Nós estávamos vindo da granja, que eu tenho uma casa lá, fiz uma casa, uma casa com cinco suítes para os cinco filhos casados, cada um tem o seu quarto lá. Estávamos voltando, e ele me bateu no meu joelho, ele disse assim: "Papai," - estávamos parados assim num farol - "o maior orgulho da minha vida é ter o senhor como pai." Essa é a vida, essa é a minha riqueza da luta que eu fiz, não é o dinheiro. Todo mundo que tem, eu sou uma formiga em confronto com esses ricaços, eu estou bem, tenho a minha casa, tenho alguma coisa, mas não é o dinheiro, mas é a satisfação de você ter mostrado com garra, com sacrifício, com renúncia, ser bom profissional. Não, eu não estou falando que sou melhor do que os outros, mas se você chegou a um ponto que nós chegamos, é porque nós erramos menos que os outros, porque o desfrutável, você vê essas coisas, certo? O Jô Soares, eu ia provar roupa do Jô Soares. A primeira coisa, ele tem um motorista dele que faz tudo, o Sebastião. O Jô Soares é um camarada que eu acho que é o que mais ganha dinheiro no país porque é um camarada que não tem despesa com ninguém, o motorista dele faz tudo lá. Quando logo que chegava, antes de provar a roupa, já tomava uísque com prosciutto, com formaggio, com queijo lá, só tomar. O prazer que sentem os fregueses com a gente, que se torna amigo. O Agnaldo Rayol, todos eles, um saco de artistas naquela época, o Anselmo Duarte que eu falei, todos eles. Um monte de gente, lá passaram milhares e milhares de clientes.
P - Na Itália ainda tem essa tradição de alfaiataria?
R - Na Itália a perfeição da sob medida, das indústrias, porque primeiro que a roupa sob medida vai custando muito caro, nos grandes centros ainda tem um tipo Minelli, vamos dizer, que se chama Caracene, tem algum alfaiate, entendeu? Mas falando, 99% como está aqui no Brasil está lá. A confecção deles ainda é melhor, bem melhor, depois tem os tamanhos, eles estão fazendo tudo. Vamos supor, uma camisa, tem o 48 com manga com 58 de comprimento, outro que tem 66, entende? Então tem o tamanho que você quer, a manga a mesma coisa. É lógico que é sempre uma confecção. O sujeito sempre, a confecção sabe o que é? É que nem mulher pintada, parece bonita assim, acomoda, é bonita mas não aparece, mas você não se sente bem. Uma mulher bonita, uma mulher trucada, como se diz, muito pintada, assim é a confecção. Eles fazem uma cava enorme, é que nem um sapato, é cômodo, mas depois de um pouco de uso fica tudo dobrado, assim é a roupa. Não compara com uma roupa que te dura cinco, seis, sete, oito anos e a roupa se mantém sempre o mesmo estilo. O que fizeram com as mulheres? As mulheres, tudo com enchimento, tudo isso, não se entende mais nada. Por quê? Porque serve para você que tem 42, serve para ela que tem 46, serve para a outra moça que tem 48, serve para todo mundo. Porque uma coisa grande não é uma feminilidade ,que você faz um tailleur na medida, bem certo, bem feminino. Como fizeram essas confecções de jaquetão, tudo um saco, você não nota. Então os que criam as confecções eles criam de uma maneira que serve em todo mundo, o pequeno porque quer virar grande, o grande porque ele veste bem e pronto. P/1 O senhor tem idéia se este ofício ainda é passado de pai para filho na Itália?
R - Não, é muito difícil, é como eu falei. O profissional exige muito sacrifício, menina. Existem muitos, são detalhes, é uma continuação, é manual, é máquina, nós conseguimos fazer uma coisa mas ninguém, eu ainda vi na Itália. Eu vou lá, mas só tem confecção, porque ele prefere comprar, o filho do alfaiate, ele compra a loja, ele vê uma loja e compra as meias, compra os sapatos, compra o cinto e ganha muito mais dinheiro. Para não esperar. Agora quantos ternos ele pode fazer sob medida? Você faz 10, 15, 20. Porque mais de 10 pessoas você não pode ter numa oficina, te custa caro isso aí, se você põe aluguel, você puser dez pessoas para trabalhar, tem que ter um ambiente selecionado, aquele que tem dinheiro às vezes não quer pagar, porque ele acha que o vestir para ele não é nada, ele acha que basta ele se cobrir, entendeu? Eu fiz roupa para o presidente da República, o Itamar Franco, fui em Brasília, ele não se olhava no espelho, me entende o que eu quero dizer? Tem gente, eu não estou falando dele, mas tem muita gente que não dá valor. Pode andar de calça, uma moça pode andar de saia, pode andar de sobretudo, de capa, importante que seja uma bela capa, pronto. Ela está coberta, e é melhor ainda porque não se vê nada, não se vê se está gorda, se está magra, certo? Eu estou falando que tem muita gente que não dá valor a isso, ao artesanato. Por isso é que o filho, não tem um filho de alfaiate que aprendeu a profissão. Eu levava o meu filho lá, sabe quando eu levava ele lá? Eu levava para ele ficar lá quando ele não ia bem de prova. Para ele aprender, para ficar pelo menos sentado e ver o sacrifício que o pai fazia.
P - Aí ele ia bem na escola?
R - Aí ele ia bem na escola. Eu falava assim para ele: "Filho, importante é que você trabalhe, se você amanhã é um médico você ganha de médico, se amanhã você é lixeiro você vai ganhar de lixeiro, importante é que você trabalhe." Então se infiltrava essa filosofia de trabalho e de luta. E o alfaiate é muito serviço, ele já sabia, sabia que quantas vezes eu chegava 8, 9, 10 horas da noite. Era muita renúncia, não pode imaginar o que é alfaiate, o sujeito só passando nisso é que sabe.
P - O alfaiate tem que ter uma vista boa, não é?
R - Sim. Tem que ter a vista boa mas você precisa, depois uma idade, precisa de óculos de qualquer maneira, porque não agüento. Ainda mais que eu tenho três oftalmologistas, tenho o meu filho Eduardo, a Silvana, e tenho o meu genro, os três. (riso) Por isso é que eu não tenho tanto problema, mas tenho que usar óculos hoje.
P - Quais as outras habilidades ou qualidades que um bom alfaiate deve ter para ser competente?
R - Bom, qualidade, a primeira coisa é ser bom profissional, é você estar sempre por baixo porque o dia que você quiser se igualar, pensar que você é alguma coisa, não vai se comparar com José Ermínio de Moraes, aquele é José Ermínio de Moraes. Você tem que falar sempre: "Sim, senhor, sim, senhor." Tem essas coisas, porque você é que precisa. Bom profissional tem que saber se exprimir e conhecer. O bom profissional é atencioso, ele quer um terno para amanhã você tem que fazer, tem que fazer e tem que se sacrificar. Porque se você quer escolher um jeito, não tem, não tem freguês. Às vezes tem que fazer um preço mais barato, depende da pessoa, não pode estar com a cabeça, com o pescocinho alto assim, viu? Tem que estar sempre com ele um pouquinho curvo. Tem um provérbio napolitano que ele fala assim: "Nós somos sempre incudine," sabe o que é incudine? Os ferreiros derretem o ferro e aquele que está por baixo, os fregueses são sempre o martelo e nós somos sempre a incudine, para não dizer a presa, aqueles dois furinhos que somos sempre alguém enfia sempre para nós. (risos) Os furinhos a presa dele suicidado, somos aqueles furinhos. (risos)
P - Mas tem que ter assim uma certa habilidade manual?
R - Ah, sim. Você tem que ser um todo. Se você depende dos outros, filha, você tem que saber fazer tudo, tem que ser bom. Tem uma frase, eu estive na Argentina peguei uma revista do calcio, futebol, futbol, estava escrita assim, eu peguei essa revista, foi em 1966 ou 69, eu não me lembro. Fui abrir essa revista eu vi Pelé em cima e dez jogadores embaixo. Tinha o Baltazar, você não se lembra do Baltazar? Tinha, era o maior cabeceador que ele tinha, o Baltazar. Tinha o Di Stefano que era o melhor centroavante, tinha o Jair Rosapinto, o maior jogador de falta, tinha o Pelé em cima, e dez jogadores embaixo. E estava escrito embaixo assim: "Isso que é hai Pelé." Você tem que ter muitas coisas, muitas qualidades para ir na frente, tem que ser um bom cabeceador, tem que ser um bom cortador, um bom profissional de tudo, completo. Só assim você consegue, aí você se salienta, como eu falei antes. Era tanto melhor do que os outros, tem que ser, tem que ter todas essas qualidades que o Pelé tinha para ser um bom. Nós chegamos a dizer que nós não fomos os melhores, não os melhores no sentido, chegamos a dar pão para muita gente, e se ele vir no lar e perde mais uma vez é porque nós tínhamos alguma qualidade. Eu sou muito, veja, para mim crise ou não crise, fica bom ou mau, para mim não interessa, porque vale é a consciência de cada um, que seria a minha que eu sou, posso até morrer amanhã que eu estou satisfeito, acaba a profissão porque acaba. Eu tenho que largar a profissão, mas aqui é paixão para mim, porque eu fico contente, eu posso cobrar uma roupa quando está bem feita, senão fico triste, não tenho coragem. O profissional só se sente contente, só cobra aquilo quando o serviço está bem feito.
P - Agora estamos encerrando o depoimento, mas antes queria saber se o senhor mudaria alguma coisa na sua vida, caso pudesse mudar.
R - Veja, eu adoro o meu sistema de trabalho, na nossa roupa semi-confeccionada e assim na roupa sob medida. O que te dá paixão de poder servir é a semi-confeccionada, aquela que nós tínhamos, eu não mudava nada disso aí. Eu admiro essa gente que tem fábrica, eu tenho um conhecido nosso que é de uma fábrica esplêndida que ele montou aqui no Brasil, mas a minha paixão é isso. Ainda você, com a sua mãozinha, você fazer as coisas nessa linha semi-confeccionada. Porque você acolhe todo mundo é a sob medida, é lógico, que você pega um Jô Soares, que você pega Delfim Neto, essa pessoa exagerada. Tinha o pai de Bibi Ferreira, vocês conhecem a Bibi Ferreira. Ele era um exemplar corcundo, mas a roupa dele era uma elegância, ele era quase curvo mas ficava, abotoava, aquilo dava prazer fazer um roupa, tinha uma elegância o pai de Bibi, Procópio Ferreira, era uma elegância perfeita e era um corcundinha assim. Mas eu adorava fazer a roupa como eu estava falando, ele tinha cada jaquetão bonito, ele. Eu fiz para a Bibi Ferreira, o primeiro marido era Edson França, toda aquela turma do canal 9, naquele tempo. Tem muita gente, ela era, tinha o Zeloni, não sei se você se lembra, era da Família Trapo com o Golias e ele era até o cunhado do Golias na Família Trapo. O Zeloni, então uma elegância fora de série, ele dizia assim: "Minelli é um sossego de espírito." Ele dizia assim: "Você vai no Minelli, é um sossego de espírito." Essa era a frase dele.
P - Senhor Artur, considera o seu trabalho raro, quase em extinção?
R - Não, já está se acabando. Está acabando por isso. Porque a quantidade, primeiro o pessoal não tem tempo e depois você... o alfaiate, você faz um terno não pode, não tem quantidade de tecido, não tem quantidade de oficial, não pode enumerar e vai acabando. E isso aí mais um pouco, existirá dois, três, quatro numa cidade grande, ainda qualquer alfaiate que tem paixão, a mesma coisa que fazer um quadro, fazer alguma coisa, mas isso vai acabar A coisa feliz é ver um sorriso quando ele se olha no espelho de frente, que se olha, e ele fica sorridente, entende, se vê diferente. Você pega um freguês un tanto grasso, e você vê que ele dá um sorriso, essa é a tua alegria. É lógico que te paga, é o profissional, é outra coisa. Mas infelizmente você não vive só de pano, se vive das outras coisas, vive das despesas que você tem. E se você chega no fim da semana, no fim do mês, e não pode pagar o empregado, como é que vai fazer? Não vai esperar se o freguês pagou, não te pagou, se ele foi viajar. A loja não, a loja lá, pagou, escolheu, tem que pagar e pronto, acabou tudo, lá é uma troca só. E ainda mais depois que você se torna familiarizado com o cliente, não tem cliente que, o meu tipo de cliente são todos eles um mais correto do que o outro, eu não faço para cliente que não paga, um novato eu não faço, só se ele tem recomendação que eu faço uma roupa, mas um novo eu não faço. Só se ele veio por intermédio do Sérgio, do Luís Carlos e vier me dizer se não é curioso, depois eu não tenho necessidade. Quando eu comi hoje eu, quando eu comi, comeu todo mundo, já comeu todo mundo em casa, eu e a minha mulher...depois não pode comer muito, senão engorda também. (riso)
P - Está legal senhor Artur, muito obrigada pelo seu depoimento.
R - De nada, veja, para mim foi um prazer. Hoje foi uma coisa muito bonita, sabe por quê? Desabafei uma coisa, uma recordação, foi uma lembrança das coisas que nós passamos. Obrigado.
P - Obrigada.
R - Obrigado eu.Recolher