Nasci em 1961, na cidade de São Paulo, região sudeste do Brasil. Região que, ainda hoje, é uma das mais ricas do país. Meu núcleo familiar era pequeno e o mais tradicional possível. Meu pai, conseguiu cursar uma faculdade e se formar em direito com mais de 35 anos de idade, minha mãe, formad...Continuar leitura
Nasci em 1961, na cidade de São Paulo, região sudeste do Brasil. Região que, ainda hoje, é uma das mais ricas do país. Meu núcleo familiar era pequeno e o mais tradicional possível. Meu pai, conseguiu cursar uma faculdade e se formar em direito com mais de 35 anos de idade, minha mãe, formada em uma conceituada escola para professores no interior do Estado, minha irmã, 3 anos mais velha e eu, o caçula. Aos 7 anos, após terminar o “pré-primário” em uma pequena escola particular, vizinha à nossa casa, fui estudar em uma escola municipal no mesmo bairro onde morávamos. Apesar das oportunidades de estudo, muito bem aproveitadas pelos meus pais, o que recebiam como salário com seus trabalhos não era o suficiente para comprar um imóvel, muito menos para manter os filhos em um colégio particular. A escola pública foi inevitável. Felizmente, adorava estar na escola e participava intensamente de todas as atividades. Para alguns professores, minha participação, em alguns momentos era até, intensa demais.
Antes das aulas, diariamente, nossos uniformes escolares eram checados, do brilho do sapato, ao alinhamento da gola da camisa. Perfilados e em forma, a tropa infantil, sob o comando dos professores, cantava o hino nacional mantendo, até a última nota, a mão direita no peito, sobre o coração. Ao termino da cerimônia cívica, quando a bandeira estava hasteada no topo do mastro, em silêncio e ordem, seguíamos em fila até a classe.
Na surdina, o momento era o de estruturação de uma sociedade ditatorial. Um tenebroso trabalho discreto, subliminar, fazendo boa parte da população crer que, por trás da importância dos valores cívicos exaltados, tínhamos uma sociedade livre e progressista. Assim, desavisadamente, obedecíamos sem questionar as ordens e regras que nos eram impostas. Como parte desse teatro, a escola organizou uma campanha interna para eleger um aluno que fosse o presidente do Centro Cívico. É claro que ninguém explicou, em nenhum momento, qual era exatamente, a função do presidente ou a que se destinava o tal do Centro Cívico. Houve uma ampla, livre e divertida campanha, disputada por dois candidatos que traziam programas bastante semelhantes. Eu era um deles e talvez, por minha fala sincera e apaixonada de criança fui eleito pelo voto direto e tomei posse. Em plena ditadura. No entanto, era difícil ter discernimento, na época, para entender tudo o que isso poderia significar. Depois de eleito, o que mais lembro, foi a campanha de doação de livros que fizemos para montar nossa primeira biblioteca. A proposta colou e, em pouquíssimo tempo, conseguimos uma ótima sala para abrigar os muitos exemplares recebidos, em bom estado e dos mais variados temas, para ocupar as estantes de aço ofertadas pela escola. Hoje percebo como, sem a menor ideia e, com muita simplicidade, também discretamente, nós alunos desafiamos a obscura intenção de controlar ideologicamente o acesso à uma informação livre para todos os alunos. Subversivamente, a biblioteca vingou e tornou-se um sucesso. Nenhum dos livros doados ficou esquecido ou tomando poeira na prateleira. Até hoje, gosto de pensar eles que tenham formado muitos leitores e, consequentemente, cidadãos mais críticos.
Augusto Citrangulo
março 2024Recolher