Centenário Nair Callou
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Hoje, 2 de fevereiro, minha mãe atravessaria um século de vida. Faz falta sua discrição, sua generosidade, sua gentileza, seu senso de justeza e honestidade, em tempos tão avessos às alteridades.
Filha de espanhóis, nascida em Salvador, era taquígrafa, datilógrafa, trabalhou como secretária numa editora alemã, tinha fluência na escrita em espanhol. Gostava de ler e estimulava a leitura às crianças. Exímia costureira e uma verdadeira “chef”, para usar a expressão de agora, na culinária espanhola: rustrido de bacalhau, polvo à feira, peixe à escabeche, empanadas galegas, tortilha de batata e ervilhas com ovos escalfados eram pratos corriqueiros na porção galega de nossa família.
Cursou até a 5ª série primária. Na coleção de cartas que recebia dela, quando morava fora do Recife, não encontro um único erro sequer de português. Que inveja!
Uma vez, já ciente de sua inteligência diferenciada, perguntei por que não seguiu os estudos. Disse-me que minha avó percorreu, em vão, todas as escolas públicas de Salvador à procura de uma vaga no curso ginasial. Mais uma vítima, portanto, do sistema educacional brasileiro. Ora, vejam vocês, agora vem essa gente ignóbil de hoje em dia criticar os governos PT na Presidência da República, por terem criado o Prouni, o Pronatec, as cotas de vagas nas universidades públicas para negros e muitos excluídos da sociedade, entre outras políticas de apoio à educação no país. Ah, que essa gente vá pentear macacos!
Recentemente, lendo a biografia de Paulo Freire, escrita por Nita Freire, percebo que sua mãe igualmente percorreu, também em vão, os colégios públicos do Recife, para conseguir uma vaga no curso secundário para o futuro Patrono da Educação Brasileira.
Paulo Freire era da mesma geração de minha mãe. Teve a sorte de bater à porta de uma instituição privada humanista, o Colégio Oswaldo...
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Centenário Nair Callou
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Hoje, 2 de fevereiro, minha mãe atravessaria um século de vida. Faz falta sua discrição, sua generosidade, sua gentileza, seu senso de justeza e honestidade, em tempos tão avessos às alteridades.
Filha de espanhóis, nascida em Salvador, era taquígrafa, datilógrafa, trabalhou como secretária numa editora alemã, tinha fluência na escrita em espanhol. Gostava de ler e estimulava a leitura às crianças. Exímia costureira e uma verdadeira “chef”, para usar a expressão de agora, na culinária espanhola: rustrido de bacalhau, polvo à feira, peixe à escabeche, empanadas galegas, tortilha de batata e ervilhas com ovos escalfados eram pratos corriqueiros na porção galega de nossa família.
Cursou até a 5ª série primária. Na coleção de cartas que recebia dela, quando morava fora do Recife, não encontro um único erro sequer de português. Que inveja!
Uma vez, já ciente de sua inteligência diferenciada, perguntei por que não seguiu os estudos. Disse-me que minha avó percorreu, em vão, todas as escolas públicas de Salvador à procura de uma vaga no curso ginasial. Mais uma vítima, portanto, do sistema educacional brasileiro. Ora, vejam vocês, agora vem essa gente ignóbil de hoje em dia criticar os governos PT na Presidência da República, por terem criado o Prouni, o Pronatec, as cotas de vagas nas universidades públicas para negros e muitos excluídos da sociedade, entre outras políticas de apoio à educação no país. Ah, que essa gente vá pentear macacos!
Recentemente, lendo a biografia de Paulo Freire, escrita por Nita Freire, percebo que sua mãe igualmente percorreu, também em vão, os colégios públicos do Recife, para conseguir uma vaga no curso secundário para o futuro Patrono da Educação Brasileira.
Paulo Freire era da mesma geração de minha mãe. Teve a sorte de bater à porta de uma instituição privada humanista, o Colégio Oswaldo Cruz, considerado, à época, uma das melhores escolas do Brasil. O proprietário e diretor da instituição, professor Aloízio Pessoa de Araújo, pai de Nita Freire, acolheu o jovem estudante, com uma bolsa de estudo. Professor Aloízio e sua mulher, Genove, eram pessoas reconhecidamente comprometidas com a educação de jovens no Recife. Minha mãe chegou a conhecê-los, por ironia do destino. E uma prima, Maria Luiza Fernandes Batalha, morou com a família durante dois anos, na rua da Soledade, para estudar em um dos colégios próximo dali, em meados dos anos 1960.
De férias em São Bento do Una, onde sua irmã morava, depois de casada com um médico sanitarista, que estudara em Salvador, minha mãe fisgou o jovem promotor público da cidade, na sua primeira comarca. De tão apegado a ela, o apelidaram de goma arábica. Nunca mais voltou à Bahia. Criou cinco filhos.
Dia desses, escrevendo sobre a Escola de Sagres, consultei o Lello Universal, um dicionário ilustrado português, numa edição de capa dura, de quatro volumes, que muitas vezes minha mãe abria, quando criança, para pesquisar comigo não sei mais o quê. Foi sublime aquele momento de superposição de temporalidades. Não à toa, somos três professores na família, além de cinco sobrinhos que seguem o mesmo ofício.
Memórias, se alguma serventia há é justamente a humildade de reconhecer o melhor de nós, a partir do outro. Nisto, Nair Fernandes Callou ocupa um lugar central. E imorredouro.
(Praia do Pina, 2 de fevereiro de 2021)
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