P/1 – Boa tarde!
R – Boa tarde.
P/1 – Eu gostaria de começar a nossa entrevista agradecendo a presença do senhor...
R – Você adora falar senhor...
P/1 – (risos) Ai! Desculpa! Nesse projeto memória do AFS Intercultura Brasil 60 anos. Gostaria de começar nossa entrevista propriament...Continuar leitura
P/1 – Boa tarde!
R – Boa tarde.
P/1 – Eu gostaria de começar a nossa entrevista agradecendo a presença do senhor...
R – Você adora falar senhor...
P/1 – (risos) Ai! Desculpa! Nesse projeto memória do AFS Intercultura Brasil 60 anos. Gostaria de começar nossa entrevista propriamente pedindo nome completo, data e local de nascimento.
R – Vandré Luís Meneses Brilhante, Fortaleza, Ceará, 27 de setembro, 1969.
P/1 – E, qual é o nome dos seus pais?
R – Ogenis Alves Brilhante, Francisca Francineida Meneses Brilhante.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Bem, meu pai nasceu no interior do Rio Grande do Norte, em 1928, era filho de agricultor. E, ele foi comerciante, a vida inteira. E ele só fez praticamente a alfabetização, uma pessoa auto alfabetizada. Minha mãe cursou até o início do colegial. E eram pessoas muito humildes, muito simples. E é isso, no interior do Ceará, há 80 anos. Essa é a origem dos dois.
P/1 – O senhor poderia falar um pouquinho sobre a sua família? Seus avós...
R – Claro, claro! Então, meu avô não tinha o sobrenome Brilhante. Quem tinha era minha vó. Mas como na época Brilhante era um nome associado ao cangaço, era um nome importante, então ele mudou, ele pegou o nome da minha vó. Ele ficou Miguel Alves Brilhante. Ele assumiu o nome da mulher pra ficar mais importante, porque a minha vó era Brilhante descendente de Jesuíno Brilhante, que era um cangaceiro de Lampião, uma pessoa temida. Então, meu avô ficou mais importante com o nome Brilhante. Aí teve três filhos, meu pai e duas tias. A minha vó, mãe do meu pai, morreu no parto da filha mais nova e meu pai foi criado pelo avô. Segundo ele, um andarilho, de cidade em cidade, até chegar em Pacajus, no Ceará, ainda jovem, 10, 12 anos, e ele trabalhava como vendedor de doces, de frutas na cidade. Minha mãe era filha de um casal que tinha casa de farina e engenho de cana de açúcar, mas uma coisa muito rudimentar, muito pequeno. E é isso, a origem dos dois. Aí eles se conheceram, numa cidade pequena, minha mãe teve 13 filhos. Doze vivos e uma que faleceu antes de mim. Eu, na hierarquia, sou o 12º, então, antes de mim tiveram 11 outros e são dez homens e duas mulheres. E é todo a proposta do meu pai e da minha mãe, sempre trabalhando pra educar os filhos, foi de investir em estudo, educação. Então, o que o meu pai sempre falava: “Vocês querem estudar? Eu pago o estudo, coisa que eu nunca estudei. Não quer estudar? Você vai trabalhar.” Então isso foi o que a gente ouvia em casa. Dos 12, são todos formados, com terceiro grau e, assim, a família hoje... Meu pai não é mais vivo, minha mãe continua viva e meus irmãos são relativamente integrados, né, numa família de 12 não dá pra dizer que eles são tão integrados assim. Mas eu moro no Rio [de Janeiro] e os outros moram em Fortaleza (CE) e um outro irmão mora na Holanda, então, tem dois foras e outros dez morando ainda no
Ceará.
P/1 – E, você pode falar um pouquinho como era sua infância?
R – Sim.
P/1 – Tem alguma lembrança marcante?
R – Ah, tenho! Foi uma infância feliz, uma infância criada em sítio, uma infância solto, de brincadeira na rua. Na época, a rua não era perigosa. Como tinha muitos irmãos mais velhos, nunca faltava gente dentro da minha casa, pessoas pra brincar, primo, amigos de irmão... Foi uma infância ligada à agricultura, pássaros, meu pai tinha cavalo, carneiro, lago, rio, então, foi uma infância sempre de muita brincadeira, isso a infância dos zero aos cinco anos. Depois, começa escola, o primário, mas ainda uma infância muito, muito feliz, muito sem grandes responsabilidades como toda infância deve ser, né? Desde muito cedo tinha aquela vontade de descobrir o mundo, né, o mundo já vinha acho que desde os seis, oito anos de idade, acho que muito influenciado por um irmão mais velho que, na época, colecionava folders de Embaixada. Ele, a vida dele era mandar carta pras Embaixadas em Brasília pedindo informação sobre os países. Então, na minha casa tinha uma estante inteira com folders de todas as Embaixadas do mundo que você possa imaginar. E aquilo ali era o meu mundo, né, não tinha internet e eu ficava folheando Atlas e folder de Embaixada, catálogo de países... Eu tenho essa memória aí dos sete ou oito, nove, dez anos de idade. Mas é uma infância, como eu já disse, feliz, compromissada, estudo, estudei na mesma escola que a minha mãe estudou e como todos os outros 13 filhos, 12 filhos estudaram. Dona Dalva foi minha professora, professora de toda a família, até pelo menos a quarta série. Eu não, acho que eu fiquei até a terceira, depois eu fui pra Fortaleza, mas todo mundo ficou lá em Pacajus, que fica a 50 quilômetros de Fortaleza, com a Dona Dalva. E aí com oito, dez anos, mudei pra Fortaleza pra começar a estudar num colégio melhor. Aí já era uma vida mais responsável, né, já tinha mais matérias, já era uma coisa... Minha mãe passava a semana conosco em Fortaleza e final de semana a gente retornava pra Pacajus. E aí eu tinha um macaco, com um papagaio e dois periquitos, então tudo isso ia e vinha de Pacajus pra Fortaleza, toda segunda e voltava na sexta-feira. O carro era lotado de bicho e de filho e de roupa e de mochila, era essa a infância que eu lembro desse transitar aí, acho que dos oito aos 12 anos de idade, 13 anos, até ficar um pouco mais adolescente.
P/1 – E já na adolescência, quais são as lembranças marcantes? Levando-se em conta tanto a parte mais lúdica e, né, quanto educacional, né.
R – É, acho que a adolescência talvez a parte mais marcante foi o desafio de mudar de Pacajus pra Fortaleza, um mundo novo, de eu começar a estudar inglês, é uma coisa que eu sempre gostei muito, conhecer outras pessoas, assumir uma responsabilidade maior. E na adolescência, aos 14 anos, eu acho que o AFS entra como uma parte marcante, foi quando eu comecei a ter contato com a Organização. Na época que eu participei, ainda em 1985, você tinha uma prova de conhecimentos gerais, entrevista, seleção... Eu não passei nesse processo seletivo, então eu repeti ainda em 86. Então, desde os 14 anos eu tenho contato com o AFS, que tá muito associado à minha adolescência e foi um período que eu também comecei a descobrir outras pessoas, quiçá outros mundos, né... Amigos em Fortaleza, que eu não tinha amigos, fora da escola, e começar também a sonhar em mudar, em morar em outro país, em outro lugar. Então, acho que essa coisa de criança de oito, dez anos vendo folders de embaixada, catálogos, começou a tomar uma concretude quando comecei a entrar em contato com o AFS. Logo em seguida, eu comecei a estudar alemão, inglês, também aos 14, 15 anos de idade, então eu tinha essa verbe do mundo muito próxima, essa sede de conhecer o mundo.
P/1 – E como que você conhece o AFS?
R –Voluntários entraram na minha sala de aula falando sobre o processo seletivo. Foi assim que eu conheci o AFS.
P/1 – Na escola em que você estudava?
R – Na escola em Fortaleza, já no primeiro ano, oitava série, não lembro agora, mas voluntários entraram divulgando o teste de seleção pra quem estava interessado em passar um ano no exterior. E assim eu conheci o AFS.
P/1 – E qual foi sua reação?
R – “Ah, vou fazer!” E, com mais algumas colegas da turma, fizemos a seleção e acho que, assim, eu vi uma oportunidade de passar um ano fora, de viajar, de sair de casa, aquela coisa que todo adolescente quer sair de casa, então, eu queria muito sair de casa, queria ir pro, descobrir outros lugares. Então, o AFS surgiu como essa oportunidade.
P/1 – Mas havia algum impedimento? Por exemplo, da língua já não havia, mas, financeiro?
R – Ah sim! Olha, meu pai tinha 12 filhos, é, a gente sempre estudou em escola particular, curso de inglês, alemão, mas não tinha dinheiro sobrando pra viagens, não tinha dinheiro sobrando pra grandes..., pro luxo de lazer, ou seja, final de semana em outro Estado, ou vir pro Rio de Janeiro de avião. Primeira vez que eu vim pro Rio de Janeiro, foi de ônibus, eu vim com meu pai, minha mãe e minhas duas irmãs. Era um dinheiro contado. E com o AFS tinha uma oportunidade de conseguir bolsa e eu consegui 50% de bolsa pra viajar e facilitou meu pai pra conseguir os outros 50%, não foi fácil, teve que fazer várias economias, pegar algum dinheiro de poupança, emprestado, coisas parecidas.
P/1 – Então, você disse que conseguiu 50% com o AFS e os outros 50% foi muito difícil de conseguir e juntar todo o dinheiro, mas foi possível.
R – Foi possível.
P/1 – E aí, pra qual destino você foi?
R – Eu fui pra uma cidade chamada Walton, no norte do Estado de Nova Iorque. Uma família onde eu tinha um irmão. Era uma família que minha mãe era professora, meu pai trabalhava numa fábrica de laticínios, no turno da noite. Então, todo dia ele saía de casa às nove da noite, logo após o jantar, e voltava quatro, cinco da manhã. Eu saí do Ceará, onde a temperatura média é 30 graus, 28 graus, pra uma temperatura muito fria no inverno, era uma região que é de ski, nas montanhas, a menos 20, menos dez. Mas foi um ano excelente, com a minha família até hoje temos contato. A relação com o irmão não foi das melhores possíveis, mas a relação com o pai e a mãe foi fantástica, então até hoje temos contato. A escola foi super adaptável, acho que já ter um conhecimento médio de inglês ajudou bastante.
P/1 – E você foi por qual programa?
R – O programa anual, de 11 meses. Eu fui 87-88.
P/1 – E era escola particular ou escola pública?
R – Escola pública, escola municipal, mesmo, da cidade.
P/1 – E como foi chegar nessa escola vom a recepção dos alunos e professores?
R – Acho que os primeiros dias, os primeiros três dias, acho que o próprio organismo te coloca numa posição de “não se mexe muito”, né. Você fica doente, fica gripado... Acho que eu passei mal, comi algumas frituras, acho que eu vomitei, então você fica meio fragilizado... E é isso, na época, não tinha internet, telefone, não dava pra ligar, não era uma coisa tão fácil, mas acho que isso... Algumas pessoas que ajudaram muito. Uma vó americana que foi fantástica, no sentido de puxar conversa, de entender o que eu falava, né, ou então ela fingia que entendia pelo menos! (...) E uma representante do AFS, a Ms. Speer, que foi uma pessoa fantástica, de passar em casa duas, três vezes por dia, saber se eu estava bem, apresentando outros alunos, tinha um outro rapaz do AFS que vinha da Suécia, tava lá, e dois alemães, um casal de alemães que estavam por outros programas, então ela acabou juntando nós quatro desde o início e ela também levou a gente pra escola. Ela era professora da escola e fez uma ponte de apresentar, de fazer com que a gente fizesse palestras em sala de aula, ser apresentado ao Diretor da escola, apresentando aos diretores... Então você era meio que um bichinho estranho dentro da escola, né, as pessoas te olhavam, mas, acho que foi fácil, não foi, não tive nenhum tipo de não adaptação, ou de, ou de me sentir rejeitado, muito pelo contrário, sempre fui... E eu tinha facilidade também de gostar de história, de biologia, de matemática, eu sempre tive boas notas, então, dentro da escola, eu era um aluno que se destacava por notas. Independente da língua, eu sempre ganhei medalha na escola como um dos melhores alunos e isso fazia com que você fosse um pouquinho mais importante do que a média, então você tava mais em evidência.
P/1 – E fez amizades assim fora da da família hospedeira e da escola? Fez amizades na cidade?
R – Acho que... Dois grandes amigos. Um sueco que era o outro intercambista e uma alemã...Você sempre procura os intercambistas pra serem seus melhores amigos porque acha que eles têm os mesmo problemas que você tem, então isso é normal. Os dois eram grandes amigos e algumas, sim, algumas meninas, garotos da escola eram amigos de final de semana junto. Mas amizade forte, que dura até hoje, apenas com a família e com a Ms. Speer que já tá bem idosa. Enquanto, amizade com locais, com os waltonians, muito pouco. A gente hoje se achou no Facebook, a gente se cumprimenta, a gente acompanha os filhos nascendo, casamentos sendo, já não é nem casando, casamentos sendo terminados, outros sendo reiniciados.... Então essa é a fase dos amigos... Mas muitos com a vida ainda em Walton, outros em outros lugares, mas acho que cada um tem uma história pra contar, diferente.
P/1 – Quais foram os maiores desafios durante o intercâmbio? Teve assim algum desafio?
R – Acho que o maior desafio em si é talvez se convencer que você vai ficar ali 11 meses e que podem ser os melhores meses da sua vida se você fizer por onde, se você se adaptar, se você... Acho que o desafio foi se adaptar. Eu ter que me adaptar ao meio e não querer que o meio se adaptasse a mim, acho que é isso... O frio, ir de escola de bicicleta, achar que minha mãe era chata, que meu pai era mais chato, que a escola era boba, acho que esse foi o desafio de adaptação. Saudade muito pouco, acho que eu me adaptei muito bem no sentido de não querer voltar, não tive drama de ter saudade de pai, de mãe ou de irmão, então assim, não, não consigo te dizer que foi difícil ficar lá, não foi difícil ficar lá, foi super fácil. A língua acho que as primeiras duas semanas foi um pouco mais difícil mas rapidamente eu comecei a pelo menos a compreender e ser compreendido.
P/1 – E como foi depois voltar pra o Brasil? A readaptação?
R – Aí foi mais difícil do que ir. Voltar foi mais difícil do que ir, com certeza! Cê começa a se deprimir acho que um mês antes, dois meses antes, de voltar, né. Deprimir por quê? Porque eu acho que assim, é um ano de férias, de coisas diferentes, é um ano que você sabe que vai deixar pessoas que não vai revê-las, possivelmente, você não tem nenhuma certeza. A tua família você deixou pra ir sabendo que você ia retornar e ia encontrá-los todos, mas a volta é diferente. Eu não sabia se ia encontrar aquelas pessoas em algum outro dia da minha vida, então, foi um adeus de fato, foi difícil. Chegar em casa, mais tranquilo, a família te recebe com carinho, com amor, e aí você começa a se cercar também das pessoas que viajaram com você. Acho que éramos um grupo de 12, 13 de Fortaleza, acaba que quase todo mundo foi pro mesmo cursinho, né, então ficava fazendo terapia nas escadas no cursinho e não dentro da sala de aula e todo mundo começou a buscar o seu caminho. Ou seja, faculdade, trabalho, eu comecei a dar aula de inglês acho que duas semanas depois pra ganhar um dinheiro. Eu trabalhei quando eu tava nos Estados Unidos, eu fazia faxina com o meu irmão em alguns consultórios dentários, depois do jantar. Então, eu voltei ainda com algum dinheiro, o dinheiro que eu levei eu voltei praticamente com mais dinheiro. E acho que foi legal também pra um primeiro trabalho. Logo em seguida, eu quis trabalhar, então consegui aí um curso que tava contratando professores de inglês pra conversação. Depois, eu fiz um curso pra ser professor de inglês e fui professor do FISK durante quatro anos. Voltei diferente, voltei já mais independente, voltei já querendo talvez construir uma vida. Construir uma vida no sentido de buscar desafios, concretizar meus sonhos, trabalhar, de fazer uma faculdade, voltei muito decidido a fazer Economia quando eu fui, na ida eu tava em dúvida entre Medicina e Economia. Acho que conviver nos Estados Unidos, estudar uma cadeira que eu não lembro o nome agora mas era tipo Relações Internacionais, isso me abriu uma perspectiva de mundo... Ganhei a assinatura do
New York Times quando tava lá, lia diariamente. Gostava de escrever sobre desafios sociais dos Estados Unidos, sobre população de rua. Fiz um trabalho gigantesco de pesquisa, o professor me deu a nota “terrific”, eu fiquei decepcionado que eu achei que era terrível, mas era uma nota acima de ótimo, depois demorei uns dez minutos pra entender que a nota não era terrível era “terrific”. Acho que isso me trouxe pro que eu sou hoje, no sentido de seguir esse trabalho que eu faço, trabalhar com desenvolvimento social, desenvolvimento econômico. Então, a volta, e começar a trabalhar também pra ter renda própria, me colocou em posição de autonomia, de estar mais junto dos amigos. Acho que você começa a inverter a família. Os amigos passam a ser mais família do que a família original, então você compartilha mais esses momentos. Acho que os primeiros seis meses são difíceis, mas logo em seguida você se adapta. A vida se refaz normalmente.
P/1 – O AFS acompanhou todo seu processo de estadia nos Estados Unidos?
R – Sim, a Ms Speer que eu falei era conselheira local e era como se fosse uma segunda mãe. A presidente do comitê do AFS me visitou há uns oito anos aqui no Rio, levei à Fortaleza. Em todos os momentos, eu era super bem acompanhado. Tive que tirar um dente siso, tive todo tipo de assistência... Tudo! Quebrei um dedo, coisas parecida, esquiando... Tanto fui tão bem assistido que, quando voltei, imediatamente me tornei voluntário, o comitê em Fortaleza estava fechado, eu e mais uns quatro, cinco amigos que retornaram reabrimos o comitê e começamos então o processo seletivo já da turma de 89-90. E logo assim engrenei numa carreira de AFS. Acho que eu e o Gontijo, que é uma pessoa que, é um amigo que mora em São Paulo hoje, engrenamos aí como Diretores Regionais, Presidentes da Região Nordeste, Diretor de Finanças, isso um ano logo depois que a gente retornou. Em 1990, eu fui eleito Vice-Presidente do AFS Brasil, numa Convenção em Barra Bonita (SP). Praticamente, levantaram minha mão. Eu fui eleito sem saber muito pra que ainda, mas era uma Diretoria muito jovem ainda, então com 20 anos eu me tornei Vice-Presidente do AFS Brasil e Diretor Nacional de Finanças, que era uma organização separada do que é o AFS. Existia na época organização dos voluntários e a organização internacional. E esse processo de integração foi feito ao longo da gestão que eu era Diretor Financeiro de 90 a 94.
P/1 – Ah, então vamos esmiuçar um pouco essa parte. Quando começou a ser voluntário, imediatamente foi presidente do Comitê de Fortaleza?
R – Não, não era o presidente. O Gontijo era o presidente, eu era não sei qual era o cargo que eu tinha, conselheiro ou coisa parecida, fazia um pouco de tudo no Comitê Fortaleza. Mas ainda, ainda em 88, acho que eu assumi a Diretoria Regional do Nordeste, Diretoria Financeira do Nordeste, sempre me colocavam pra Diretoria Financeira, não sei por que. Acho que eu fazia Economia e era isso, então me colocavam pra Diretoria Financeira das coisas e assumi a Diretoria Financeira da Região Nordeste.
P/1 – E o que muda? Sair de Local pra Regional?
R – A Região Nordeste é um grupo de 8 comitês, que juntava de Salvador a Fortaleza e você tinha três ou quatro encontros anuais. A Região fazia arrecadação de fundos pra potencializar voluntários, investir em treinamento e também fazer um pouco de controle de qualidade, de receptivo dos estudantes que a gente tava hospedando e também a gente implementava ações definidas do nível nacional pela Diretoria Nacional do AFS. Mudou só em termos de visão, de ter uma visão maior, né, de um espaço maior de articulação na Região Nordeste. Um ano depois, foi AFS Brasil, onde eu assumi a vice-presidência. Aí mudou muito, isso mudou muito. Isso fez a minha vida mudar. Eu diria que eu tive um segundo intercâmbio, em 90.
P/1 – Ah, então fale sobre ele!
R – Eu fui muito privilegiado, porque eu já estava na Universidade, tinha entrado já no curso de Economia e, com 20 anos de idade, eu comecei a vir pro Rio, São Paulo, praticamente a cada dois meses. Não só Rio-São Paulo, eu viajei o mundo. Viajei mais de 20 países, era uma época que a gente fazia negociações, as Organizações Nacionais dos AFSs faziam negociações com outros países, pra definir número de cotas, de bolsistas, número de cotas de alunos, definir o processo de integração, que era o processo de parceria que a gente chamava. Então, fui acho que 15 vezes aos Estados Unidos, eu fui ao Japão, eu fui à Austrália, eu viajei pela América Latina, num período de 4 anos enquanto eu fazia faculdade, então, eu digo que a minha faculdade foi feita dentro de um avião! Ganhei um laptop do AFS, na época que ninguém tinha laptop, eu tinha um computador pequeno onde eu escrevia. Minha monografia com certeza foi escrita em aeroporto, em avião, mas foi escrita já com uma visão de mundo, foi escrita com uma visão de desenvolvimento, com uma visão de, de futuro. Acho que é isso que eu consigo lembrar desse processo. E isso me fez crescer bastante, porque eu já tinha uma abordagem, sei lá, um menino com 21 anos de idade, que já viajou pra Austrália, que já foi X vezes pros Estados Unidos, já começava a me destacar dos próprios colegas na Universidade e meu mundo em Fortaleza já começava a não ser o meu mundo. Meu mundo já estava fora daquele universo e, em 94, quando eu terminei o meu segundo mandato no AFS, eu entrei para uma comissão internacional do AFS Nova Iorque, era também uma comissão financeira, que tava discutindo o futuro do AFS enquanto geração de recursos, enquanto gestão de recursos. E mudei pro Rio de Janeiro porque também já não tinha base nenhuma em Fortaleza. Minha perspectiva de futuro tava aqui. Recusei alguns convites de trabalho, fui selecionado pra trabalhar num grupo econômico grande no Ceará, mas aceitei um convite do AFS pra fazer um curso aqui no Rio sobre gestão de empreendedores, capacitação de empreendedores. E foi um curso de um mês. Eu vim fazer o curso de um mês e não voltei mais. Eu to aqui até hoje, há 21 anos. Voltei pra pegar outras roupas e alguns objetos pessoais depois e minha vida tá aqui no Rio de Janeiro. Então esse período quando eu digo foi um outro intercâmbio, porque a diretoria do AFS enquanto voluntário, ela me habilitou a negociar, a compreender processos de construção participativa, me habilitou a ser criativo, a adaptar e a gerir uma Organização de pessoas, acima de tudo, onde todo mundo pensa diferente, mas a gente tem que construir um objetivo comum, acho que esse foi o processo de aprendizado maior, não só no ano de intercâmbio, que era praticamente a mesma coisa, conviver no meio de pessoas diferentes, no meio de pessoas diversas, tirar o melhor dessa convivência e depois gerir a organização com outros companheiros fazendo a mesma coisa. Como que você gere naquele ambiente diverso e aí já pensando como estratégica, como gestão financeira, como gestão administrativa. Contratos, alugueis, advogados, plano estratégico, então toda essa nomenclatura nova chegava e pra mim era fantástico, eu fazia um curso de Economia, então, as coisas se juntaram.
P/1 – Agora, como que é ser vice-presidente? Porque aí já saiu da escala local, regional, passou pra uma escala nacional, né. Então como que é ser vice-presidente? Qual a função, atribuição do vice-presidente e como ele é eleito, escolhido?
R – É... Como ser vice-presidente me veio a imagem de estar dirigindo um carro que você não sabe se o freio funciona mas é um pouco isso. Quando a gente assumiu, eu, o Mauricio Dantas, o Scaroni e o Cândido, em 90, éramos quatro colegas, jovens, e assumimos uma organização sem experiência passada de direção nacional. Então foi tudo um aprendizado, foi...dirigindo esse, essa organização. Na época a Liliane era a Superintendente do escritório, tinha alguns consultores que davam apoio... O processo de eleição era um processo democrático, onde as pessoas se candidatavam, na época, praticamente um dia antes, então, quando eu digo democrático é que era até um processo que tinham poucos candidatos então quem se candidatava geralmente era eleito, ninguém queria assumir a organização. Primeiro porque era um trabalho que exigia muita responsabilidade, tempo e o perfil era muito jovem. Todo mundo tinha na faixa de 19 a 22, 23 anos de idade. Então eu fui apontado como Vice-presidente e todo mundo votou no meu nome. Assumi junto com o Mauricio e acho que foi muito, foi rico demais pra todos nós. O Scaroni vinha da área de cultura, trabalhava na TV Cultura na época. O Mauricio vinha da área de psicologia, então era uma pessoa que conseguia ouvir mais, ponderar mais. O Scaroni já fazia a parte de redes, relacionamentos. Eu já cuidava um pouco da parte de gestão, de arrecadação de fundos, de organograma, de estatuto. Tinha o Cândido que cuidava um pouco de desenvolvimento de voluntários, antes era o Atalmir. Acho que foi um quarteto interessante. Desse quarteto, o Mauricio depois foi funcionário do AFS, nos Estados Unidos, o Scaroni entrou em algumas comissões internacionais do AFS, o Cândido continuou na organização um bom tempo. Foram pessoas que assumiram muita responsabilidade. Então ser presidente, ser vice-presidente, ser da Diretoria do AFS aos 20 anos de idade, isso em 1990, foi um desafio fantástico. Mais do que um desafio, foi uma grande escola de vida.
P/1 – E encontrou algum problema ou alguma dificuldade, melhor dizendo?
R – Ah! Vários, né? Como se você pilota um carro que você não sabe se o freio tá funcionando? Você tem mil dificuldades, mil problemas. A maior dificuldade sim, acho que a imaturidade né, essa é a maior dificuldade. Quando você não tem o senso de ver a longo prazo, acho que, na juventude, a gente ve tudo muito rápido, você não consegue avaliar o impacto das suas decisões, acho que você não tem a maturidade e a paciência de ouvir. Então, tudo isso que a juventude na época dava pra gente, no sentido de gerir a organização de uma forma rápida, de uma forma, tida por nós, progressista, moderna, causava um monte de dificuldades com relacionamento com outras pessoas. A maior dificuldade talvez, além da falta de experiência, a distância. Eu morava em Fortaleza, Mauricio morava em Brasília, Scaroni morava em São Paulo e a sede era aqui no Rio, então assim, a gente se falava de madrugada, a gente estudava, trabalhava e as conversas... Na época, também, o telefone era mais barato depois de 11 horas, meia noite. Então, a gente se falava depois de meia noite, era muito comum a gente se falar madrugada adentro pra fazer decisões e viajar, então a gente sempre viajava de madrugada. Mas isso era, foi gostoso. Difícil, né, nem todo mundo aceitava esse tipo de desafio, de você ceder a tua vida. Ao final dos quatro anos, eu tinha mais amigos no Rio de Janeiro do que eu tinha em Fortaleza. Minha vida tava aqui, então eu tive que mudar praqui. O Maurício mudou pra Nova Iorque, então assim, o Scaroni foi trabalhar com intercâmbio, acho que foi um processo tão vivo de se dar, se entregar à organização, que a gente acaba que foi absorvido por esse meio. E acho muito importante a experiência de gerir uma organização como o AFS, uma organização voluntária, uma ONG [Organização Não-Governamental]. Isso fez também com que o meu caminho migrasse pra esse, pra o terceiro setor. Então, desde os 18 anos que eu era voluntário do AFS, depois fui, geri como diretor do AFS, então comecei a entender o processo de gestão de uma ONG, de planejamento estratégico, de rede de parcerias, gestão financeira, parte legal. E logo em seguida que eu saí da direção do AFS, em 94, em 95, eu fui trabalhar numa fundação alemã, aqui no
Rio. Fui coordenar um escritório aqui no Rio, que também só consegui coordenar esse escritório aos 24, 25 anos de idade, já graduado, por conta da experiência do AFS. Então, plano estratégico, gestão de pessoas, metodologias participativas, treinamento, isso era muito comum pra mim na época, não muito comum, mas isso era uma linguagem fácil, eu compreendia fácil. Então me habilitou a gerir esse escritório de uma forma também que eu assumi destaque dentro do processo de gestão. Ao final de três anos, quatro anos, eu era o responsável geral do escritório no Rio e em 89 eu fundei o CIEDS [Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável] que é a ONG que eu sou presidente até hoje.
P/1 – 89? Ou 99?
R – Desculpa! 99.
P/1 – Você poderia falar um pouquinho sobre o CIEDS?
R – Sim. Eu morava no Rio já há quatro anos trabalhando nessa fundação alemã, com formação e capacitação de empreendedores, planejamento estratégico de campanhas, levantando, fazendo diagnósticos socioeconômicos de alguns municípios aqui do médio Paraíba e, à época, a gente tinha um convênio com a Prefeitura pra trabalhar com a formação de lideranças de comunidades aqui do Rio de janeiro: Rocinha, Jacarezinho... E eu dava aula, entrava em sala de aula pra trabalhar esse processo de fazer com que líderes, gestores, conseguissem de alguma forma desenhar melhor os seus caminhos. Seja estruturando Associação de moradores, seja criando pequenos negócios ou pequenos projetos sociais que juntassem jovens e futuras lideranças. Daí surgiu a ideia junto com mais dois amigos, uma amiga e um amigo, de criar a própria ONG, onde a gente pudesse, tomando um chopp num bar chamado Bofetada, aqui no Rio.
P/1 – Ah, o Bofetada...
R – Tomando um chopp: “Porque que então a gente não cria uma ONG onde a gente pode definir melhor a metodologia que a gente quer trabalhar, onde a gente pode buscar parceiros de uma forma mais autônoma?” E daí surgiu novamente, então, coube a mim fazer a parte legal, a parte de legalização, de registro, de estatuto, de correr atrás... Criamos o CIEDS em meados do ano, tipo maio, julho, de 90.
P/1 – Nove?
R – E nove, de 99. Eu fiquei mais um ano na fundação alemã, depois eu saí da fundação alemã e me dediquei 100% ao CIEDS onde permaneço até hoje. As outras duas pessoas que criaram o CIEDS – de fato, não foram só outras duas pessoas, foram 7 pessoas, tinha uma alemã, tinha um baiano, tinham dois cariocas, um grupo de pessoas bem diversas também – foram aos poucos saindo da organização, porque acho que não quiseram acreditar no futuro ou investir, ou não quiseram largar os seus trabalhos pra investir numa ONG recém criada que era o CIEDS. E eu consegui ainda fazer as duas coisas, a fundação alemã e o CIEDS. Um ano depois, os primeiros projetos já possibilitaram que eu tivesse uma renda do próprio CIEDS. O CIEDS completa agora 18 anos, no próximo ano, em maio, e hoje somos uma organização com quase dois mil colaboradores, estamos presentes em 17 cidades do Brasil, com escritório.
Fomos selecionados como a 5ª melhor ONG do Brasil e a 101ª do mundo, pelo Gobal Geneva que é um instituto suíço que faz a análise qualitativa e quantitativa de ONGs do mundo inteiro. Sempre tive um sonho ao criar o CIEDS que era muito espelhado no AFS, de ser membro consultivo da ONU [Organização das Nações Unidas]. Ganhamos status de membro consultivo da ONU há 5 anos atrás no ECOSOC [Economic and Social Council], no Comitê Econômico e Social da ONU e também há 4 anos nos tornamos membros do Global Compact, que é um movimento de quatro mil instituições entre empresas e entidades do terceiro setor que buscam implementar os objetivos do milênio, de uma forma colaborativa e dentro do seu próprio dia a dia de atividades. Então, acho que o CIEDS se espelhou muito, bebeu muito da água do AFS enquanto uma rede internacional, enquanto instituição com capilaridade, enquanto uma instituição com foco de crescimento, então, se eu faço uma retrospectiva de por que que deu certo o CIEDS? Por que que eu acho que a minha vida cresceu de uma forma ordenada, não sei se eu posso falar a palavra ordenada, né, mas pelo menos quem tá de fora acha que é ordenado isso – eu acho que não – mas acho que espelhou muito do, em planejamento estratégico, em gestão, em campanha, em monitoramento, em cuidado com a qualidade dos programas, em formação de equipe, eu acho que, acho que compartilhei muito aí desse aprendizado que eu tive no AFS trazendo isso pra minha vida pessoal, pra minha vida profissional.
P/1 – E paralelamente, você seguiu carreira no AFS? Depois de ter participado daquela comissão financeira?
R – Sim. Em 94, fiquei aí mais um ano na instituição, no comitê internacional de finanças. Em 96, eu saí, e aí foi o tempo que minha vida no Rio tava descobrindo novos mundos, né, vamos dizer assim. Sendo mais carioca, já tava há dois anos no Rio, então eu saí do AFS. Voltei pro AFS em 2006. Então eu fiquei 6 anos, mais ou menos, 8 anos fora... Oito?
P/1 – Dez, 96, né?
R – Dez anos, mais ou menos, 10 anos... Sempre acompanhando à distância, nunca tão fora, mas sem nenhum tipo de cargo. Em 2006, eu voltei como membro convidado do Conselho Diretor do AFS Brasil. Fiquei aí uns quatro anos. Em 2011, eu fui indicado e eleito Trustee do AFS Internacional.
P/1 – Vamos só, pontuar como foi a sua passagem como membro do Conselho Diretor?
R – Ahh, bem interessante. Impaciente, eu diria. Foi uma passagem muito impaciente. Acho que, como membro convidado, já vinha de um perfil, não era mais um voluntário, não tava mais na ponta, então não tava no processo de seleção, de busca de família... E um membro convidado ele vem porque ele tem uma maturidade, talvez ele já tenha o perfil, requer que ele tenha uma maturidade, requer que ele consiga de alguma forma aportar conhecimento, experiência e novas ideias pro comitê gestor. Então, tinha sempre o confronto entre discussões que eu julgava que não tinham relevância, você ficava quatro horas discutindo se vão servir água num copo azul, amarelo, né? E eu tava mais preocupado de onde vem a água. Acho que era esse o tipo de discussão e isso fui muito cansativo, isso foi um processo de muita paciência, mas acho que eu sou uma pessoa de uma resiliência muito alta. Acho que aprendi muito de rever, mas foi um processo que cansa. Porque acho que a falta de perspectiva, a falta de visão larga, a falta de avaliação de consequências dos seus atos, da pouca experiência de gestão... E eu sou muito impaciente, eu sou uma pessoa que eu gosto de fazer cinco coisas ao mesmo tempo, eu gosto de estar aqui e tô pensando na tarde, então eu não paro. E acho que isso eu pensava, poxa, o AFS tem uma história, tem um recurso, tem um capital social, um capital humano gigantesco e isso pode ser uma organização muito mais forte. Como é que a gente faz essa Diretoria pensar dessa forma? Então foi um processo em alguns momentos dolorido e também marcado por um processo de disputa que eu acho que não fez bem a mim nem ao processo. Disputa no sentido pela a insegurança dos membros no momento, as pessoas estavam mais preocupadas em ser membro do que atuar como membro. Isso foi um processo difícil, que eu acho que é uma realidade do AFS hoje no mundo inteiro. Então discutindo com vários outros parceiros mundo afora, acho que a grande dificuldade é como é que o AFS empodera melhor a sua direção voluntária. No geral, são returnees, 20 e poucos anos de idade, que ainda não estão com formação profissional consolidada, não têm ainda projeto de vida definido, as pessoas não têm claro pra onde vão ou pra onde não vão e o AFS se torna um clube importante, se torna um espaço onde elas são ouvidas, acaba sendo um espaço de referência. Mas isso sem associar ao futuro da Organização, sem associar a desenvolvimento financeiro, a desenvolvimento de capital social, então é difícil. É difícil porque a organização por mais que ela tente investir em formação de voluntários, mas essas são as pessoas que nós temos. Não dá pra dizer que eu não posso ter mais uma junta diretiva jovem, porque o contrário seria terrível, ter uma junta diretiva só com pessoas acima de 50 anos, pra uma organização que é jovem. Então, a gente tem que chegar a um meio termo, chegar a um acordo. O futuro do AFS passa por aproveitar a diversidade da melhor forma possível.
P/1 – E, em seguida, em 2011 você foi para?
R – Em 2011, teve uma... Anualmente, você tem a eleição pro board, que é pro Conselho Internacional do AFS. Cada país, pode indicar pessoas, eu fui indicado pelo AFS Brasil, fui eleito para um mandato de dois anos, que era um mandato mais curto, eles tavam na época coincidindo mandatos, tavam terminando alguns cargos. Normalmente, o mandato é de quatro anos, o meu era de dois anos apenas. Fui eleito e aí me deparei com, com um processo diferente de tudo que eu tava acostumado a vivenciar do próprio AFS Brasil, não sei se da minha vida profissional, acho que quando eu tava na fundação alemã eu tinha muita inserção com as instituições da Alemanha, viajava muito, mas o AFS, novamente, eu saí de lá insatisfeito, porque as reuniões eram em cima de processos burocráticos. Em poucos momentos se discutia o desenvolvimento da organização, se discutia o futuro da organização. As discussões eram muito estéreis, no sentido de que não produziam, não reverberavam para os países. Ficava um grupo de 15, 14 pessoas em Nova Iorque, eu era o mais novo com 43 anos, 42 anos de idade e pessoas discutindo uma realidade que não se encaixava sequer no país de origem deles mesmos. Eu acho que eu fui um patinho feio naquele grupo, porque toda hora eu ficava: “mas como é que a gente pensa no futuro dessa organização sem parcerias?” O AFS não tem parcerias estratégicas com outras organizações internacionais, o AFS não tem plano... Talvez eu dizer “não tem” é muito forte, mas pelo menos os planos não são disseminados, de desenvolvimento do voluntariado, de arrecadação de fundos. As organizações são muito incipientes e são muito feudais. Feudais em que sentido? Na rede mundial, tem pessoas que tão gerindo o país há 30 anos, 35 anos. Então, o processo de mudança dentro é muito lento. Tem vários países da Europa, Estados Unidos que o Diretor é diretor há 20 anos, então assim, você não tem um refresh, você não tem gente nova chegando. O próprio AFS Internacional você tem pessoas que estão lá há 30 anos e não tem nenhum jovem no Board Of Trustees, que é uma coisa que eu colocava muito forte. A gente tá discutindo sobre juventude, o que o jovem quer, o jovem não quer e as pessoas davam aula dizendo o que o jovem queria e eu levantava a mão: “Mas cadê o jovem pra dizer o que ele quer?” Foi rico, porque eu acho que eu consegui entender também o processo da organização, contribuir no que eu considerava importante contribuir, mas saí mais preocupado do que entrei. Acho que esse foi o grande aprendizado do AFS Internacional. Com a gente consegue integrar uma organização tão diversa, onde o muro tá muito diverso e a gente acha ainda que luta pela paz e essa paz não é concreta. Então você pergunta a qualquer jovem no Brasil, ou na Tailândia, ou na Inglaterra que que é paz pra você? Paz pode ser estar bem com o meu vizinho, ou paz é estar em paz em casa, ou poder sair à noite aqui no Rio de Janeiro, isso é paz pra gente. Paz não é eu estar interferindo aí na questão da Bósnia, novamente, ou interferindo na Guerra da Síria, somente. Esse conceito não é estabelecido. Acho que mudou nos últimos três, quatro anos, o AFS tá tentando se tornar mais local. Eu espero que isso tenha sido uma consequência dos inúmeros debates e discussões que eu tive aí nesse período de 2012, 2013, mas eu percebo hoje uma preocupação com o local, né. O AFS tem que ser uma organização local e não uma organização internacional. Porque eu acho que é o local que faz o mundo.
P/1 –E como que é esse processo? Você é indicado por quem pra ser parte do Conselho Internacional?
R – Você é eleito, cada país tem um voto, da rede. A rede, hoje, acho que [é composta por] 70 países, algo assim e aí você tem lá 10 nomes, você apresenta o currículo, você faz um vídeo defendendo sua candidatura, tem um site onde os candidatos colocam lá sua campanha, seu plano de governo. São as pessoas indicadas pelos países, são voluntários ou não. O Brasil pode indicar, sei lá, uma pessoa que não é do AFS. Normalmente, indicam pessoas que já passaram pela organização e aí a gente defende o nosso plano de campanha. Por que eu quero ser um Trustee? Quem eu sou? Voluntários do mundo inteiro assistem aquilo, a direção dos países, e eles votam em três ou quatro candidatos, eu não sei. E aí os candidatos que têm mais votos são eleitos.
P/1 – Ahh, e esse Conselho... Qual a função primordial dele?
R – A função primordial desse conselho é representar a Organização, ele é conselho maior da rede AFS no mundo. Integrar, não só representar legalmente mas integrar, então você tem pessoas da África, você tem pessoas da Índia, você tem pessoas da América, das Américas, da Europa. Então tem a função de integrar, representar e discutir o futuro. Então aí que tá, quando se discutia o futuro é que eu dizia que a gente não tava discutindo o futuro. Mas é o conselho que assina legalmente contratos com bancos, contratos com plano de seguro, é o conselho que contrata a equipe de Nova Iorque, é o Conselho Diretor da Organização. Se reúne três vezes ao ano fora alguns comitês que se reúnem com mais frequência por Skype ou em outros eventos.
P/1 – E depois de ter participado do conselho internacional?
R – Tirei férias...
P/1 - Tá de férias do AFS?
R – To de férias ainda, um pouco de férias... Acho que a vinda da Andreza foi muito rico, tenho conversado muito com a Andreza, como a gente pode pensar em buscar, fortalecer uma rede de parcerias do AFS, uma coisa que eu sempre falo... Nós somos returnees, eu to aqui falando de coração... Se você me chamasse pra dá essa entrevista em Bangu, estaria lá. Não em Bangu, Bangu presídio, mas no bairro de Bangu e é um potencial enorme que a organização pode contar. E acho que agora, a Andreza veio feliz me receber, me apresentar a nova pessoa de desenvolvimento organizacional e de gestão de campanhas, porque eu acho que o AFS tem uma rede de colaboradores não acessadas, mas a gente tá solto aí nesse mundo, nesse mercado e isso pode ser uma organização muito forte, muito forte pra quê? Não só pra fazer intercâmbio, né, muito forte pra fortalecer o processo de educação, forte pra ajudar aí o Brasil a ter uma juventude mais madura pra tomar decisões no futuro. Acho que o grande papel do AFS é formar jovem. Seja através de intercâmbio, seja através de debate, seja em parceria com universidades, com bibliotecas, com outras instituições.
P/1 – E você participou de algum projeto nesse sentido, que o AFS tenha feito algum tipo de parceria ou de algo que tivesse mudado substancialmente a instituição?
R – Lembrando na minha época de voluntário, ainda adolescente, a gente tinha parcerias locais com centros de idosos, com grêmios de algumas escolas. Enquanto AFS Brasil, acho que a gente fez parcerias com outras organizações e intercâmbio, ainda na época de 90 a 94. Com escolas, né, acho que aqui no Rio de Janeiro e em São Paulo a gente tinha parcerias fortes. A própria TV Cultura chegamos a desenhar um esboço de discutir cultura internacional, diversidade. No mundo existe hoje algumas iniciativas. O AFS Estados Unidos eu acho que forçado aí pela crise não só econômica, mas pela crise no processo, no sistema de educação nos Estados Unidos aí nos anos 2000, forçou com que a organização pensasse mais no futuro, então acho que eles arriscaram mais de tentar parcerias com outras organizações afins, organizações de voluntários, organizações que promovem lideranças pra jovens. Então, hoje eles se colocam como organização que forma líderes para o futuro, não uma organização que faz intercâmbio. Eu acho que isso é um grande divisor de água. E o processo de aprendizado do AFS, ele dá-se também se você não viaja. Se você é exposto talvez a outros tipos de conversa, outro tipo de projeto. É esse o caminho que eu vejo pro AFS contribuir mais pro sistema de educação do Brasil, né, agora a gente tá conseguindo colocar alunos na rede pública aqui no Brasil, isso era um tabu muito forte. Primeiro pelo preconceito das famílias de classe média que recebiam os seus alunos, seus estudantes, a mãe não queria que a filha dinamarquesa fosse pra escola municipal X, Y, Z. Ela queria que fosse pro Santo Inácio. A organização ficou muito tempo ainda rendida ao padrão da classe média brasileira e a contribuição de uma menina dessa no Santo Inácio é zero, mas numa escola municipal, seja de qualquer bairro aqui do Rio de Janeiro, ela é fantástica. Ela leva o mundo ali dentro. Hoje a organização começa a entender que ela tem caminhos de contribuir mais efetivamente pro local, pra sociedade, atuando muito, de uma forma muito real, como é o Brasil, do que querendo copiar o modelo do sonho da escola americana, ou da escola francesa. Não é esse o caminho, eu acho que o AFS tem que ser local, repito aqui, acho que cada país tem que ter a sua cara aí, o seu processo e entender como aprender com essa diversidade.
P/1 – E há alguma parceria entre o AFS e o CIEDS?
R – A gente já fez algumas parcerias aqui no Rio de Janeiro com o voluntariado, campanhas, nada estratégico. O AFS, acho que no mundo inteiro, são poucas as parcerias. Hoje, o que o AFS aqui tem parceria com algumas universidades, com algumas escolas, acho que isso é bem positivo. Com o CIEDS fizemos parcerias pontuais em cima de, seja alguma campanha de arrecadação, seja participando de alguma feira junto, a gente compartilha espaços, a gente contribui, mas não, não tem nada de médio e longo prazo construído.
P/1 – De algum projeto, por exemplo, como jovem aprendiz, não?
R – Não, não passa por aqui. Isso não foi, acho que com nenhuma entidade no Rio de Janeiro ou no Brasil, em cima disso.
P/1 –O ano que vem o AFS faz 60 anos, né... E o, você comemora quase, vai comemorar 40 anos de AFS... De 86 a 2016
R – Eu não fiz essa conta, mas é isso... (risos)
P/1 – E aí, qual a importância que você vê que o AFS desempenha na vida das pessoas? Tanto dos bolsistas, né, dos intercambistas, dos voluntários... E na própria sociedade brasileira?
R – É, assim, eu acho que o impacto... Posso falar bobagem, mas uma análise que eu faço, o impacto no AFS das pessoas que viajaram na década de 80 e 90, eu considero muito maior do que as pessoas que viajam agora, de 2010 pra frente, pra cá. Simples, né. Eu acho que quando a gente viajava em 70, 80, 90, a gente não tinha a facilidade da comunicação, do WhatsApp, do e-mail, do Facebook. Hoje eu tenho sobrinhos que viajam pelo AFS e eles tão conectados 24 horas com a mãe, com o pai. A mãe todo dia quer ver o rosto do menino e aí vira uma coisa... Eles não têm amigos locais, eles falam com os amigos do Brasil. A comunicação ajudou muitas coisas, mas em termos de impacto do AFS, ela diminuiu esse impacto. Esse menino que viaja pelo AFS hoje, o AFS tem pesquisas disso que mostram que ele já viajou pro exterior 5, 10 vezes antes de fazer o intercâmbio. Então a emoção de entrar no avião e embarcar é zero, comparada com a emoção que tínhamos na década de 80, ou no início dos anos 90. O senso de responsabilidade diminui também, porque eu to conectado com meu pai, minha mãe brasileira. O senso de responsabilidade de “deu errado”, na hora alguém vai me dizer aqui do Brasil como eu devo me comportar. Então acho que a comunicação e as famílias não conseguem entender isso, por mais que a gente aconselhe evitar falar todo dia, falar uma vez por semana, ou algo parecido, não dá. A mãe quer ver o filho, uma preocupação muito forte em cima disso. Existe uma preocupação muito forte em cima disso. [interrupção na entrevista] Eu considero ela ainda super importante, mesmo. Falava há pouco tempo da influência da comunicação diminuindo o efeito da, da assumpção de responsabilidade, de você se encontrar sozinho, distante em um país. Hoje em dia, você não tá mais sozinho, não tá mais distante porque você tá toda hora perto. Mas mesmo assim, independente se a pessoa fica conectada via WhatsApp, via Skype ou o que seja com seus amigos, seus familiares, o AFS te expõe ao novo, te expõe, te tira do teu quadrado, que é o teu quarto, ou da tua sala. E ele te coloca convivendo com uma família que te recebe de bom grado. Acho que esse é um grande diferencial. Ela te recebe de uma forma voluntaria, ela abre o espaço e ela espera que aquilo seja retribuído, mesmo que não seja, claro, de alguma forma ela tá apostando que uma relação vai surgir dessa experiência. E essa relação surge, eu acho que aí que tá o “Efeito AFS”. A relação surge no café da manhã, ela surge na hora de lavar roupa, ela surge na hora que você tem uma gripe, um resfriado e o carinho começa a surgir. Então o AFS te expõe aí a esse novo momento que você tem que ceder muito para começar a admirar o outro. E esse outro pode ser negro, branco, apache ou turco ou algo parecido. E acima de tudo, eu acho que o AFS na vida das pessoas, além da questão da convivência com a diversidade, ele te faz pensar eu no mundo. E esse eu no mundo te coloca no centro das responsabilidades, te coloca no centro das transformações. Faz com que você então tenha que agir, acho que esse é o segundo grande “Efeito do AFS”. O primeiro é conviver com a diversidade, o segundo é você tem que agir nessa diversidade. Caso contrário, você vai ter depressão, você vai ficar apagado e você vai querer voltar. Se você consegue romper a barreira do “aqui eu tenho que me adaptar”, você começa a agir. E esse agir te ensina a agir pra vida inteira, te agir na tua futura família, te agir no teu trabalho, te agir na...agir na universidade, em qualquer lugar. Então é um impacto muito alto. Recomendo o AFS, já tenho três sobrinhos que viajaram pelo AFS, sou fã de carteirinha do AFS! E o desafio da Organização passa por compartilhar acho que esse efeito de uma forma mais clara, com outros atores da sociedade que também querem contribuir para uma sociedade melhor. Acho que o AFS ainda é muito isolado. Muitos ainda veem o AFS como uma instituição muito elitista, só classe media-alta viaja, associa o AFS ao internacional, ao dólar, então assim, acaba que fica um pouco distante da realidade brasileira. Então a gente precisa pensar em como que cria uma instituição mais próxima da classe C, da classe média-media brasileira? Como que a gente consegue levar com que a pessoa pobre tenha um sonho? Como que a gente faz parcerias com empresas que possam entender que investir em voluntariado, investir em capacitação de comitês locais, juntando seus funcionários é uma forma também de adquirir competências, né? Não só pros funcionários da empresa, mas competências pra sociedade, então acho que são caminhos que o AFS pode explorar. É uma organização muito rica, a gente tá hoje em mais de 50 cidades aqui do Brasil e a gente pode contribuir com competências, com indicadores de desempenho, a gente pode contribuir com integração, com dinâmicas, o mundo é o limite, em cima disso.
P/1 – Agora nós estamos caminhando pro final da nossa entrevista, né, e eu só vou fazer mais duas perguntinhas pra você. O que acha, né, de contar a história do AFS através de um projeto memória? O que você acha do AFS contar a história dele através do Projeto Memória?
R – Tá bem...
Eu acho que é super, super a cara do AFS. O AFS é feito de pessoas, o AFS é feito de histórias, de lembranças, de momentos, né. Acho que cada um que foi mordido, né, por essa abelhinha chamada AFS, cada um tem histórias pra contar, cada um tem um pouco do efeito pra trazer. E se a gente consegue reunir isso em vários depoimentos, a gente tem aí uma riqueza de valores, de emoções, uma riqueza de exemplos de vida, muito forte. Essa oralidade, ela é importante não só no AFS como no mundo. Daí que a gente repassa valores, né. É através da conversa que uma mãe passa valor pro seu filho. Acho que o AFS passa esses valores contando a sua história também. E eu acho fundamental que outras pessoas consigam escutar o que eu to falando e consigam entender porque eu falo isso com tanta propriedade, com tanta certeza e eu falo esse efeito AFS na minha vida e na vida de outros e o quanto eu quero ver isso na vida de mais outras pessoas. Deve ser bom, né, não deve ser uma coisa tão ruim e acho que as pessoas se interessam. E acho que as pessoas só abraçam, se elas tiverem interesse. Então assim, e são os relatos que fazem com que as pessoas tenham interesse. Eu acho que livro não consegue de cara trazer esse interesse. Seminário, show ou algo parecido, mas é uma conversa. O AFS se resume em conversas, né. Acho que quando o AFS busca aproximar pessoas, não é colocar uma do lado da outra. É fazer com que uma converse com a outra e uma conversa é uma via dupla. E acho que isso é a cara do AFS, então acho que isso é perfeito.
P/1 – E o que acha de ter dado esse depoimento?
R – É, sempre bom relembrar. Os depoimentos fazem a gente ver o quanto a gente cresceu, o quanto a gente evoluiu, o quanto a gente tem que agradecer, reconhecer fases, momentos da vida, aquilo que fizeram com que você hoje conseguisse entender todo esse processo, absorver aprendizados e colocar isso no dia a dia, colocar isso no teu mundo. Então assim, acho que relembrar a minha infância, relembrar o processo de conhecer o AFS, o processo de viajar, depois o processo de atuar como voluntário e agora de reclamar do AFS, de exigir que o AFS seja mais ativo, que o AFS esteja mais presente na comunidade. Acho que isso é fantástico, acho que isso mostra carinho, isso mostra apego, né. Acho que a gente não, ninguém na vida reclama ou elogia se não tiver apego. Acho que eu tenho um apego pela organização. A organização é sempre aberta a outras pessoas que queiram ter esse apego e mesmo aquelas que não tenham apego, mas que pensam que podem contribuir acabam tendo apego, logo quando tomam contato com essa organização. Então, foi bom, foi bom. É bom falar e olhar ali pro mar, tem um pedacinho do mar ali.
P/1 – Gostaria de deixar uma mensagem?
R – Ah! Espero celebrar aí os 100 anos do AFS. Eu celebrei os 100 anos do AFS na França, eu estive ano passado na França com mais algumas pessoas celebrando os 100 anos do AFS mundial. Mas eu espero celebrar daqui a 40 anos, os 100 anos do AFS Brasil, espero estar dando outro depoimento, espero que lá a gente seja uma organização mais presente, com voluntários mais maduros. Que a gente possa estar atuando de fato pra concretizar o sonho da Paz Mundial, que é aproximar os nossos vizinhos, ter praças mais tranquilas pra você passear, ter escolas que possam absorver essa diversidade como um processo de aprendizado. Acho que o AFS pode ser o indutor aí desse processo de entender que o mundo, que o distante, ele é muito próximo, se a gente tiver aberto a hospedar, se a gente tiver aberto a dar carinho a quem a gente não conhece. Acho que essa é a mensagem que o AFS passa e acho que isso que eu espero que o AFS consolide aí como organização.
P/1 – Então eu gostaria de agradecer a sua presença... Tem que chegar, tem que colocar um fim infelizmente, à entrevista. Mas em nome do Museu da Pessoa e do AFS Intercultura Brasil, quero mais uma vez agradecê-lo e parabenizá-lo porque você faz 40 anos de AFS com os 60 anos do AFS.
R – Eu que agradeço. Eu vou fazer uma festa! (risos)
P/1 – Exatamente!Recolher